Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Cartaz da Conferência sobre Mutilação Genital Feminina: Uma Abordagem Multidisciplinar. Lisboa, Centro de Formação do Hospital dos Capuchos, 17 de Maio de 2006.
Na mesa, os Dr Jorge Cabral, Alfredo Henriquez e Cristina Carvajal Isabel (assistente social colombiana, com vasta experiência em trabalho social na América Latina e Europa)
A apresentação de Mafalda Sofia Félix dos Santos (licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Autónoma de Lisboa, com especiaidade em Jornalismo. Pós-graduação em Criminologia pela Universidade Lusófona. Especialista em Etnologia)
Dr Jorge Cabral, Dr Alfredo Henriquez e Prof Luís Graça (sociólogo da saúde e do trabalho, docente universitário, ex-combatente da guerra colonial na Guiné) que fez um comentário final sobre a Mutilação Genital Feminina e o relativismo cultural.
O Dr Jorge Cabral (docente da Universidade Lusófona, presidente do Instituto de Criminologia, especialista na área da Infância, direito penal, escritor, ex-combatente da guerra colonial na Guiné) e o Dr Alfredo Henriquez (presidente do Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social), que presidiu à conferência.
Fotos: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...) (2)
1. Comemorou-se, na passada 5ª feira, dia 8 de Março de 2007, mais um Dia Interncional da Mulher. Pensando num pequeno país como a Guiné-Bissau, nas suas crianças, adolescentes e mulheres, é de recear que este dia tivesse tido pouco ou nenhum impacto na melhoria da sua condição socioeconómica, e da sua emancipação. Por razões históricas, culturais, religiosas, sociais e económicas, a condição da mulher guineense - apesar da independência - está longe de ser aceitável.
Não é vocação nem propósito deste blogue reflectir, analisar e debater, por sistema, a actualidade sociopolítica da Guiné-Bissau. Há, no entanto, um problema que persiste, e que afecta uma parte significativa das guineenses: a Mutilação Genital Feminina, a nossa (mal) conhecida festa do fanado, uma prática que tem milhares de anos e que viola os direitos humanos das mulheres, adolescentes e crianças.
Não podemos ficar indiferentes ao Holocausto Silencioso das Mulheres a quem Continuam Extrair o Clitóris, (Sofia Branco, Público, 4/8/2002), na Guiné-Bissau ou noutros paíes de África e do Próximo Oriente. No nosso tempo, quando passámos por lá, convivemos superficialmente com este fenómeno. Por falta de sensibilidade cultural, de informação e de formação de nós, jovens tugas, e sobretudo por cinismo e hipocrisia das autoridades portuguesas, a MFG foi um problema que nos passou ao lado, até mesmo na cama (na tarimba que servia de cama para as nossas episódias conquistas...). Dificilmente falávamos sobre isto, com as bajudas e muito menos com as mulheres grandes, sobre as consequências do fanado para a saúde reprodutiva, sexual, psicólógica e mental da mulher guineense, em especial das que pertencia aos grupos islamizados (fulas, mandingas e outros).
Também não creio que o Amílcar Cabral e outros dirigentes do PAIGC alguma vez tenham tocado no problema. Calculo que fosse tabu durante a guerra de libertação. Hoje as coisas mudaram, felizmente. E há mulheres (homens, poucos) guineenses a lutarem pelos seus direitos... Sem defender o relativismo cultural, devo no entanto acrescentar que não podemos ver estes e outros complexos que têm ver com valores, de uma perspectiva etnocêntrica e eurocêntrica...
Segundo dados da OMS - Organização Mundial de Saúde, a taxa de prevalência da MGF na Guiné-Bissau seria da ordem dos 50%, atingindo maior percentagm entre as mulheres fulas e mandingas (70% a 80%). A modalidade MGF mais praticada é de tipo II - Excisão do clitóris com parcial ou total excisão dos lábios menores...
Há um ano atrás, dois membros da nossa tertúlia, Jorge Cabral e Luís Graça, participaram, comentadores, numa conferência sobre a MGF que se destinou sobretudo a apresentar e discutir a um trabvalho de invetsigação de Mafalda Sofia F. Santos e Paulo César L.B. Matos (Universidade Lusófona). A iniciativa foi do Fórum de Santo António dos Capuchos.Achei
Achei oportuno reproduzir aqui, hoje, como modesto contributo para a celebração do Dia Internacional da Mulher - 2007, a intervenção do nosso camarada Jorge Cabral em 17 de Maio de 2006.
2. Intervenção do Jorge Cabral:
O meu louvor aos Promotores desta iniciativa.
Que eu tenha conhecimento é a primeira vez que em Portugal de uma forma pública e organizada, se pode debater tão complexo quanto dramático problema.
Pedem-me um comentário, e duvido que o façam só tendo em conta a minha qualidade de jurista. Certamente sabem que estive na Guiné-Bissau, que sou curioso. Que procurei conhecer e aprender, porque também eu adoptei o lema Humani nihil alienum, isto é, nada do que é humano me pode ser estranho.
Estamos em 2006, e só desde 2002 o assunto mereceu entre nós alguma atenção, mercê dos notáveis artigos de Sofia Branco. E no entanto, como tão bem acentuou na altura o Prof. Luís Graça, durante décadas e décadas os Portugueses conviveram com essa realidade. Médicos, Professores, Padres, Agentes da chamada Acção Psico-Social, artífices da Política Spinolista da Guiné Melhor, conheceram a prática da Mutilação Genital Feminina. Uma Guiné Melhor na qual metade das meninas era e continuou a ser violentamente mutilada, com a complacência de todos os representantes do Poder Colonial.
Claro que na Guiné-Colónia vigorava o Código Penal Português, o qual sempre puniu as ofensas corporais, designadamente as que ocasionassem “cortamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou órgão do corpo”, cominando uma pena de prisão de 2 a 8 anos. Obviamente que nunca ninguém foi julgado pela prática da excisão.
Respeito pela cultura, tradições ou costumes do Povo? Ou desprezo? A realidade colonial dividia-nos entre nós e eles, e o fanado era festa deles, que não nos incomodava enquanto ocupantes. Paradoxalmente porém, aplicávamos com rigor o Código Civil quanto ao registo das crianças, todas filhas ilegítimas, dado pai e mãe não serem casados segundo a Lei Portuguesa. Ia-se até mais longe obrigando as crianças fulas a possuírem um nome português, em geral o do Chefe do Posto, facto que eu descobri ao deparar numa aldeia com 32 Augustos (Augusto Idrissa Embaló, Augusto Demba Djaló, Augusto Mamadú Baldé… etc).
A Mutilação Genital Feminina praticava-se no meu tempo e pratica-se hoje na Guiné-Bissau e também, embora em reduzido número, em Portugal. Podemos, como a Mafalda fez, elencar as crenças ou razões que lhe são subjacentes, as quais servirão tão somente para mascarar o seu objectivo fundamental – o controlo da sexualidade feminina – um cinto de castidade sem chave e vitalício.
O problema deve pois ser enquadrado nos direitos da Mulher, direito ao Corpo, direito à Sexualidade, direito à Liberdade, direito à Dignidade. Porque o que está verdadeiramente em causa é o estatuto da Mulher. A mulher coisa, a mulher propriedade, a mulher comprada, a mulher serva.
Na guerra e na Guiné estive há muitos anos. Do que lá se passa hoje sobre Mutilação Genital Feminina, só disponho de algumas informações – as tentativas de criar um Fanado alternativo, que cumpra os ritos de iniciação sem mutilar, parece não ter dado o resultado esperado. Quanto às fanatecas, as mulheres que fazem profissão da excisão, bastantes entregaram as facas, acreditando que lhes seria atribuída uma pensão para sobreviverem, o que parece não ter acontecido.
Segundo creio a operação está a ocorrer em crianças cada vez mais novas, quase bebés, porque talvez a facilite, ou em virtude de as novas excisadoras não terem a perícia das de antigamente. Não creio que exista uma vontade política determinada em erradicar a Mutilação Genital Feminina, num país em que o equilíbrio étnico é garante de uma sempre difícil estabilidade. Decretar pura e simplesmente a proibição iria sem duvida desagradar aos Islamizados, que constituem o grupo religioso maioritário na Guiné.
Acredito que, quando muito, as preocupações sejam de saúde pública, como se pode depreender do Código Penal da Guiné-Bissau, cujo art. 117º, que tem como epígrafe “Ofensas Privilegiadas”, diz o seguinte: “Quem habilitado para o efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar que se produzam os efeitos previstos no nº 1 do art.115º ou a morte da vitima, e estas sobrevierem, é punido com pena de prisão até 3 anos e de 1 a 5 anos”.
A leitura do preceito é elucidativa – o que se pune é a negligência na operação e não a própria mutilação genital feminina. Estamos no domínio da Medicalização, de que a Mafalda falou. Atenuam-se os riscos. A complexa cerimónia de iniciação transforma-se numa intervenção cirúrgica sem outro objectivo ou razão, senão cumprir o costume.
Aliás, e como sabem, durante o séc. XIX e até aos anos 30 do séc. XX, tanto nos EUA como na Europa, a ablação do clítoris constituiu tratamento da histeria, da ninfomania e do lesbianismo. Terapêutica para bem delas, está bem de se ver…
Há mais de 20 anos, que nas minhas aulas falo da Mutilação Genital Feminina e sempre a propósito da falta de consciência da ilicitude. A punição de alguém por um acto cometido implica a interiorização do ilícito da conduta praticada, que a pessoa sinta que o que fez está errado. A não ser assim, a aplicação da norma penal torna-se absurda e ineficaz. Por isso todo o esforço para banir ou erradicar determinado comportamento deve ser efectuado prioritariamente através de outros meios, de uma Política Social, de educação, de saúde, de integração. O Direito Penal, não o esqueçamos, deve constituir uma ultima ratio.
Enraízada como crença, mito ou costume, será a Mutilação Genital Feminina um valor cultural a ser preservado? O respeito pela identidade cultural deve tolher-nos na luta, contra práticas desumanas, atentatória da vida e da liberdade das pessoas?
Cada cultura encerra em si valores e desvalores. Não devemos deixar morrer os valores, mas devemos procurar extinguir os desvalores. De outra forma toleraríamos que as viúvas na Índia fossem enterradas vivas com os falecidos maridos, ou que os pais violassem as filhas obedecendo a um velho costume.
Creio que o impacto dos artigos da Sofia Branco, publicados no Jornal Público em 2002, se deve principalmente à informação de que a Mutilação Genital Feminina ocorreria em Portugal. Também pela Europa as preocupações aumentaram com a possibilidade da prática ser cá efectuada, dada a corrente migratória. Julgo, porém, que toda a Mutilação Genital Feminina é igualmente grave, devendo ser denunciada e combatida, independentemente do lugar onde seja efectuada. A universalidade dos Direitos Humanos impõe-nos que sintamos toda a sua violação, como violação dos nossos direitos. A mutilação de uma menina no Sudão constitui uma ofensa à minha condição de homem livre, até porque a minha liberdade só pode ser assumida em plenitude, num Mundo de Homens e Mulheres Livres.
Em todos os nossos Códigos Penais, o de 1852, o de 1886, o de 1982 e o de 1995, a mutilação genital constitui o crime de ofensas à integridade física grave previsto e punível no actual art. 144º. No projecto em discussão, propõe-se ao artigo um acrescento, na alínea b). Assim onde agora se lê – “Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem”, passará a surgir “de procriação ou de fruição sexual”.
A proposta suscita-me algumas dúvidas. A mutilação já estava incluída quer na alínea a) “privá-lo de um importante órgão ou membro” e até na própria b) “afectar-lhe a possibilidade de utilizar o corpo”. A questão é porém outra. Deve a mutilação feminina, ser incriminada autonomamente, tipificando a conduta?
Se a resposta for positiva então terá de ser enquadrado o novo tipo, nos crimes contra a Liberdade Sexual, definindo com rigor o comportamento. Para tanto, tornar-se-á necessário que os nossos legisladores conheçam o problema. Infelizmente, a nossa política criminal parece ditada pelos media. Se amanhã os jornais relatarem um caso de canibalismo, logo surgirá uma proposta de criminalização, como aconteceu com a venda de bebés, que evidentemente já estava integrada no crime de escravidão.
Desculpem toda esta desalinhada exposição. Penso que indiciei o que penso sobre a temática em debate: Atentado contra as crianças, coisificação da mulher, abominável violação da dignidade, deve ser encarado na óptica dos Direitos Humanos.
Estudado multidisciplinarmente, urge o seu combate no terreno, pelos diversos técnicos que conheçam e lidem com a situação. Técnicos de saúde, interventores sociais e todos os que trabalham com a Imigração, terão um papel fundamental pela persuasão, educação e aconselhamento.
A repressão só por si nada resolverá! Antes pelo contrário, aumentará o secretismo ou determinará as famílias a levarem as crianças à Guiné para sofrerem a Mutilação. Por outro lado, ao actuarmos aqui em Portugal, chamando a atenção para o criminoso da conduta, estaremos a colaborar na luta também lá, pois os imigrantes transmitirão a mensagem. Vai sendo tempo de terminar. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, como diz o Poema.
É legítima a nossa indignação. Não chega porem indignar-nos. Habitamos o mesmo mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana. Não somos nós e os outros, somos todos Nós!
Lutar contra esta prática, constitui dever de cada um de nós, porque é nossa obrigação contribuir para um Futuro mais livre, fraterno e solidário.
Muito Obrigado.
Jorge Cabral
______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts sobre o fanado que, no caso das raparigas, implica a prática da Mutilação Genital Feminina:
4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)(Luís Graça)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)
(2) O Fórum de Santo António dos Capuchos é uma iniciativa de profissionais de Serviço Social organizada pelo Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social (CPIHTS), pelo Serviço Social dos Hospitais dos Capuchos, Desterro, Miguel Bombarda, Liga dos Amigos e Utentes do Hospital dos Capuchos (LAU) e do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona.
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