Alcácer do Sal > 29 de janeiro de 2018 > Vista interior da pousada Dom Afonso II
Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Âs vezes este país quase perfeito e sem mácula
por Luís Graça
Às vezes este país quase perfeito e sem mácula. Em certos dias, a uma certa hora, em certos sítios, visto de um determinado ângulo.
Num dia qualquer, tirado à sorte do calendário. Em 2004, por exemplo, no mês de Abril, em pleno Baixo Alentejo, de preferência ao pôr do sol.
Gostaste de experimentar ver este país, sentado no banco da frente do piso superior do autocarro. Ao sul, a 250 km ao sul de Lisboa, ao fim da tarde, ao pôr do sol.
Tu podias achar este país quase perfeito e sem mácula, numa viagem de regresso a casa, de Beja a Lisboa. Viajando sobre as planícies do Baixo Alentejo, podias observar o breve e oblíquo voo das cegonhas que, afinal, já não traziam os bebés de França.
Num certo troço da estrada número-não-sei-quantos que ia desembocar na A2. A tal, que era mais conhecida como a autoestrada do Sul, a que te levava ao Algarve, quando tu fazias férias de praia no Algarve, que já pertencera outrora ao reino de Portugal e além-mar em África.
Visão panorâmica, a dois metros e meio acima do solo, em voo raso de cegonha. Tomaste nota, no teu canhenho sem argolas, que a hora era importante para veres o teu país quase perfeito e sem mácula. Tal como o sítio e o ângulo de visão, ao fim da tarde, na primavera, no conforto relativo do teu autocarro da Rede Expresso. A televisão desligada, por favor. E o telemóvel. Só o barulho monótono do autocarro a rolar.Regressas vinte anos atrás e tomas a viatura número não-sei-quantos,
Nada como um perfeito pôr do sol no Alentejo, nada como um montado de sobro e um bando de cegonhas em formação de voo, de regresso a casa, também elas. O papo cheio de lagostins das albufeiras.
Tanto e tão pouco, afinal, para te reconciliares com o teu país. De tempos a tempos, tens de te reconciliar com o teu país. O mesmo é dizer, com a vida. Com os outros.
Na Festa de Nossa Senhora das Pazes, entre ficalheiros e azinheiras centenárias, todos os anos no domingo seguinte à Páscoa. Nesse ano de 2004 veio muito menos gente, que a morte batera, com mão pesada, a muitas portas de Vila Verde de Ficalho, terra raiana. Vinte e cinco mortes, disse-te o médico, desde janeiro.
Todos os anos na primeira semana a seguir à Páscoa, quer faça chuva, quer faça sol. Chovia pouco por estas bandas. E cada vez menos, já diziam os antigos, de memória curta. E mesmo que os homens não se incorporassem na procissão da Santa que dava três voltas à capelinha, cada um rezava como podia e sabia.
A um tiro de distância da raia espanhola, Nossa Senhora das Pazes, rogai por nós, pecadores, soldados e marinheiros, cavaleiros e peões, nobres e plebeus...Lembrando, pelo caminho, os ódios e os amores antigos que atraíam e repeliam os vizinhos separados pelas extremas de dois países do Al-Andaluz.
Mesmo que houvesse (sempre houve!) quem quisesse desistir da vida, ou dela se despedir com dignidade. ("Que, em passando a festa, doutor, eu dou um rumo à minha vida!"...)
E aí tu percebias a diferença entre ter e não ter um médico de família,
um equipa de saúde, um centro de saúde, ao alcance do tua mão que pede ajuda.
Para trás deixavas o verde das searas de trigo, do Alentejo que ainda dava pão (e que agora só dá vinho e azeitonas e cada vez menos cortiça e giesta), para trás deixavas gente fantástica, no mínimo, gente competente, boa e generosa, que trabalhava nos centros de saúde e suas extensões do Baixo Alentejo.
em Vila Verde de Ficalho.
em Serpa,
na Cuba,
na Vidiguêra,
em Aljustrel,
em Almodôvar e no Alvito,
em Barrancos.
em Beja,
de Castro Verde a Ferreira do Alentejo,
em Mértola e em Moura,
em Odemira ou em Ourique.
Dando consultas em insólitos lugares, como o Sporting Clube de A do Pinto. Ou fazendo SAP (serviço de atendimento permanente) em velhos conventos transformados em hospitais.
Gente remando contra a maré...
do cinismo,
da arrogância,
da gestão mercantilista da saúde,
da descrença,
da desmotivação.
as vítimas da aculturação médica,
os tiques, os taques, as contas, os ajustes de contas
do Portugal Sociedade Anónima dos Hospitais,
da indústria farmacêutica, dos lóbis,
do poder, da política politiqueira...
Gente que que trabalhava sem rede. E que às vezes era até agredida ou maltratada. Mal tratada sobretudo pela tutela. Gente que trabalhava num SNS sem rosto. No Ministério da Indústria da Doença.
Um dia quiseram trabalhar em equipa. Para prestar melhores cuidados de saúde, para trabalhar com outra motivação e satisfação. Um dia pensaram na perigosa utopia igualitária, nos idos anos de setenta.
Que nenhum deles era perfeito mas que juntos podiam sê-lo, que podiam organizar o trabalho nos cuidados de saúde primários numa base cooperativa e tendencialmente igualitária. Fora da tradicional relação hierárquica chefe / subordinado ou especialista / leigo,
e pondo também na equipa o utente (mais o doente, o agudo e o crónico, a criancinha, o pai, a mãe, a avô e o avô, se a vida chegasse a netos e a filhos com barba)...
Subvertendo, enfim, a organização burocrática que o prussiano Max Weber considerava o tipo-ideal da racionalidade legal.
Em 2004 a utopia não tinha morrido ainda, mas estava mais velha e cansada. As utopias também envelhecem e morrem. E renascem como a Fénix da mitologia.
Há muito que as equipas nucleares de saúde haviam perdido o seu vigor ou se tinham desfeito. Ninguém as regava como se tem de regar a relva do jardim e os vasos de flores à entrada do centro de saúde. Mas acabaram por contaminar a cultura organizacional da Sub-Região de Saúde de Beja.
O bichinho estava lá e não morreu de todo, diziam-te. As ideias são como os vírus e os ursos, ficam em hibernação uma parte da vida. O problema é que a vida é curta e a arte é longa. Disse o Hipócrates há 25 séculos atrás.
Não acreditavas nos lugares perfeitas. Nem muito menos em santos nem em heróis. Muitos menos e nos heróis e santos de fancaria que te vendiam na infância.
apenas faziam alguma diferença. Tu dirias que era um certo modo de ser e de estar. Algo que não se ensinava ainda em escola nenhuma. Que não se aprendia nos cursos de formação do Fundo Social Europeu nem na Faculdade de Medicina, nem nas Escolas de Enfermagem, nem nas Business Schools das Novas e Velhas Universidades.
Um modo de ser e de estar, afinal, para o qual não havia ainda receitas de cozinha, muito menos algoritmos. Pequenos detalhes que faziam a diferença, a começar pela vontade trabalhar de outra maneira. Por isso, por tudo isso, gostaste de os rever, gostaste de voltar a encontrá-los. Em 2004. No seu Alentejo ainda profundo.
Eles eram portugas que mereciam as tuas palmas. As nossas palmas.
© Luís Graça (2004). Revisto em 11 de abril de 2025.
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