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segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27150: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (43): Oficial e cavalheiro


Contos com mural ao fundo (43) > Oficial e cavalheiro


por Luís Graça


Nada como não pensar em nada. Em fim de tarde. No pico do verão. O céu de chumbo. O ar carregado de eletricidade.

Vai trovejar, pensaste tu. Vem aí uma carga de água... Ou antes viesse. Um dilúvio. Daqueles que costumam desabar sobre o incauto turista em meados de setembro.   Limpavas a merda toda. A alma. A culpa. A dúvida. O nojo. O carro que acabava de atravessar meio Alentejo. O trigo já ceifado. A terra ressequida, crestada como a tua pele. Os chaparros sob stress térmico. Torturados.

Limpavas a tua cabeça cheia de ideias negras. O teu corpo ainda dorido das picadas dos mosquitos. A merda toda da Guiné. Que a água ferrosa, pegajosa, salobra, não lavava.  

Ainda mal sabias verdadeiramente o que era a chuva. Tropical. No tempo dela. A noite inteira. Tu,  todo ensopado até aos ossos. Um fantasma enterrado no poncho camuflado. Em bicha de pirilau. Mal descortinando o homem da frente. O trilho iluminado pelos relâmpagos.

Não pensar em nada... Confiar no homem da frente. Que maquinalmente abria o caminho. Na noite de breu. A catana numa mão. A pica noutra. A G3 a tiracolo. Não, não era milícia nem militar. Apenas um civil, antigo caçador, contratado pela tropa. Para a difícil função de guia e picador. Tinha faro de cão para as minas, o sacana. Franzino,  seco de carnes, de baixa estatura. Como convinha a um "rafeiro", como ele. 

As imagens do mato perseguiam-te. Mesmo de férias. A milhares de quilómetros de distância... "Há quanto tempo, Malan ?".. Nem ele sabia. Desde que havia guerra. Sempre houvera guerra no seu "chão".  A Guiné não existia. Era um mosaico de "chãos". Fula, balanta, mandinga, biafada, manjaco, papel...

Ouviu, ainda, aos homens grandes da sua tabanca, falar do "capitão-diabo". O lendário Teixeira Pinto, que incendiou o Oio em 1913/15. Já o pai do pai do pai do Malan trabalhara para os "tugas".

Desde 1895, pelas tuas contas. Quatro gerações. Mercenários ? "Manga de patacão, Malan ?!"... "Não, alfero, cá misti patacon"... Era apenas uma questão de estar no lugar certo. Ao lado dos mais fortes.  Dos "tugas".

"Certo ou errado, Malan" ? 

Para o Malan, o lado certo era sempre o dos mais fortes. Como tu, afinal. Desde que Alá criara o mundo. E o bicho homem. Mas não dava para falar no mato. À noite, em bicha de pirilau. "Chiu, silêncio" !...A chuva a cântaros. Sim, no regresso ao quartel, na tabanca, sob o velho poilão. "Sim, alfero, Malan já pode falar". 

Ou mais discretamente na messe e bar de oficiais. Gostavas de conversar com ele e manter a sua amizade. Ou, antes, cumplicidade. Muçulmano, crente, guinéu, biafada. Bebia a sua laranjina C com evidente volúpia e prazer. Gostava da garrafa bojuda do refrigerante. "Granada de mão, alfero. Suma mama firme de bajuda". E ria-se.

O capitão não gostava muito destas intimidades. "Promiscuidades", rosnava ele.  Mas a verdade é que  eras tu quem andava com o Malan no mato. Ele conhecia como a palma das suas mãos todo o difícil território do subsetor que fora atribuído à companhia.

Mas sabias que no passado  eram os mandingas, e só depois os fulas e a seguir os "tugas", os donos do chão. E amanhã seriam  outros,  que a história é o soma-e-segue -come-e-cala-te. Ele era um obscuro biafada. Um "cão rafeiro". Sabia lá o que era a história.  E estava longe de suspeitar sequer que em 1974 os novos senhores da guerra iriam pôr a sua cabeça a prémio. No novo faroeste que em que se transformaria depois aquela terra. Com caça aos "cães  dos colonialistas" e julgamentos populares...

Recuas no tempo. Julho de 1970. Fazes um esforço danado para reconstituir, de memória, essas já tão longínquas quanto dececionantes  férias de verão. Há um apagão na tua memória que persiste. As primeiras férias a que tiveste direito pagas pelo Estado- patrão.  Passadas a 4 mil quilómetros de distância do teu local de trabalho. Esses dias (trinta e cinco) evaporaram-se. E deixaram-te um gosto amargo na memória. Ainda hoje. Não foram as férias que tanto idealizaste.

Dizes bem, local de trabalho. O teatro de operações. Lá onde era a guerra. Na província portuguesa da Guiné. Em guerra, há sete ou mais anos. Nem sabias desde quando, ao certo. Muito menos porquê. Até te pagavam para defender a Pátria. Nunca contestaste. Ensinaram-te a cumprir ordens. "Para já safas o pêlo. O teu e o dos teus homens".

Tinhas chegado há menos de nove meses. O tempo que levaste a ser parido. Acabavas de fazer 23 anos. Aprendeste a fazer contas. A trabalhar com números. A fazer cálculos.  Querias ser contabilista. O teu pai, preocupado com o teu futuro, achava que podias  vir a trabalhar nos estaleiros. Como apontador de obra,  para começar. Nos estaleiros de construção e reparação naval.  E depois nos escritórios. Envidraçados. Com ar condicionado. O teu pai não passava de um simples estivador. Com 50 anos estava "velho, arrumado, acabado".  Não querias a vida dele. Nem ele queria a vida dele para ti.

Não, não te ensinaram a pensar. Na Escola Industrial e Comercial de Setúbal. De preferência não penses em nada. Só em coisas boas. Frívolas. Banais. "O que é o tacho na messe quando regressares ao quartel ?"... Ou: "quantas semanas faltavam para as férias ?"... Gajas não havia. "Sim, meu capitão.  Compreendido, meu capitão. O meu capitão é que sabe"... Ou ainda: "Vamos a eles, rapazes!"

Com um jeitinho do 1º sargento (um homem velhaco e temido) e do capitão, talvez conseguisses ainda, em 1971,  obter uma segunda licença de férias. A comissão de serviço terminava em fim de agosto. Se tudo corresse bem. Se lá chegasses. Bem rezava a tua avó. Que fora operária da indústria conserveira. E a tua mãe, que era doméstica. Rezavam a Nossa Senhora de Fátima para regressares são e salvo. O teu mano, esse, já não rezava. Já cumprira a parte dele em Angola. Em 1964. E safara-se, como tu haverias de safar-te. 

Tu nunca foras lá muito de rezar. Mas  imaginavas que a Santa também estivesse muito ocupada. Sobretudo aos dias 13. De maio a outubro. Com tantas peregrinações, súplicas, preces, cunhas... Sobretudo naquela altura em que o país estava em guerra. Com tantas promessas. Os santos só eram precisos nas dores e aflições. No parto e na morte.

País em guerra ? Quando chegaste  ao aeroporto de Lisboa, no início de julho de 1970, pareceu-te que estava tudo tranquilo. Mais tranquilo do que quando partiras do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, em outubro do ano anterior. Nunca tinhas visto tanto "patacão". Nunca se construira tanta casa (e também tanta barraca à volta e dentro de Lisboa e Setúbal).

O teu mano tinha ido,  pela primeira vez, passar férias ao Algarve. À Quarteira.   A mulher, professora primária e a filhota. Um privilegiado. Já com o seu Fiat 127. Pago em notas de conto. Novo, no stand. Sessenta e tal  notas, escreveu-te ele num dos primeiros aerogramas.

E os teus soldados, esses, também já não rezavam. Já não iam a missa. O capelão visitava esporadicamente o aquartelamento. Quando havia coluna. Muito do pessoal era do sul. Alguns nem batizados seriam. Mas rezavam debaixo dos lençóis. À noite ouvia-os a cochichar. Outros a tocar à punheta. Quando fazias ronda aos abrigos, e em especial ao do teu pelotão. E tinham fios de ouro ou prata, com crucifixos e medalhinhas de Nossa Senhora de Fátima. Os africanos das milícias também usavam amuletos. Não vias diferenças. "Quem tem cu, tem medo", resmungava o teu pai. Sem grande jeito para te animar. 

À despedida para Lisboa onde foste embarcar, ele não compareceu. Tinha de ganhar a vida. Só o teu irmão. Que trabalhava num transitário, ali perto no Cais do Sodré. Foi um abraço rápido. A partida de tropas para África tornara-se uma coisa banal. Ele já tinha passado por isso. Como de resto o teu pai, que tinha estado na Ilha do Sal, na II Guerra Mundial. 

Tu também não rezavas. Mas "tinhas fé". À tua maneira. Nunca andaste na catequese. Foste menino de rua. Mas a tua mãe ensinou-te o "Pai Nosso" e a "Avé Maria". Dizias aos teus homens: "A fé move montanhas". Não eras lá muito bom a fazer discursos. A levantar o moral. Bastava-te o exemplo, seguias à frente dos teus homens. Eras de poucas falas. Não tinhas a lábia do teu mano. Um gajo com sorte com as miúdas. Tu, não. Nem sorte ao jogo nem  aos amores.  Ias tendo sorte na guerra, vá lá . Repetias as frases feitas, "a sorte protege os audazes", "a Pátria vos contempla", "mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"...Ah, e "um homem não chora". Frases estafadas.  Nisso, eras um tosco. 

No curso de "ranger", em Lamego, não te quiseram nos "comandos". Ficaste  sempre a remoer essa sacanice. Porquê? Só porque tinhas vindo do CSM  ?  Foste para o COM por mérito.  E a comandar homens no mato eras melhor do que o "caixa d'óculos", ou o "padreco".  O único, dos alferes da companhia, que te podia pedir meças, era o do 3º pelotão. Era bancário. Um gajo teso. E disciplinador. Infelizmente acabava de ir para uma companhia africana. Tal como dois furriéis e vários praças.

Acabaste, miseravelmente, por ir parar a uma companhia de "tropa- fandanga". Tu que sempre te bateste ao crachá de "comando". Era a melhor alegria que podias dar ao teu velho. Nunca soubeste quem te tramou.

Segundo azar o teu: nem sequer todos os gajos da companhia eram de cavalaria. Havia ali filhos de muitas mães.   E depois não entendias a política de gestão de pessoal. Como é que o nosso general Spínola queria ganhar a guerra? A manta era curta. Para se pôr num lado (equipas de reordenamentos, graduados para as companhias africanas, etc.), tinha-se de tirar ao outro lado.

Nunca ousaste comentar estas contradições da política "Por a Guiné Melhor", com o teu capitão. Que era assumidamente spinolista. Aliás, um incondicional do general. E ambos da arma de cavalaria. Não, não era um homem de trato fácil. Cultivava a distância e a frontalidade. Tratava toda a gente por tu. E pouco se sabia dele. Tinha o seu arranjinho com a lavadeira. "Um homem não era de pau". Toda a gente sabia mas ninguém comentava. 

Férias, disseste tu ?!...    

Na Guiné sentias-te encurralado. Tinhas claustrofobia. Não suportavas viver dentro do arame farpado. Preferias andar no mato, apesar dos riscos acrescidos. Eras o alferes com mais saídas para o mato.

Dizes bem... A tropa e a guerra. Durante três anos e tal. Eras pago para fazer a guerra. Tinhas direito a um mês de férias na metrópole. Nada mau... Se te portasses bem. Leia-se, se não apanhasses uma porrada. Estava tudo previsto no Regulamento de Disciplina Militar. O famoso RDM. Por exemplo, ao fim de oito dias de ausência não autorizada eras dado como desertor. Nada mais desonroso para um militar do que ser dado como desertor. E pior ainda, ser preso e punido num tribunal de guerra.  Com o Spínola a esbofetear-te em público, na parada, e arrancar-te os galões. Estás a imaginar a  cena.

Tinhas um mês para decidir se voltavas. Será que querias voltar ? Admites hoje (mas nunca falaste disso a ninguém) que nessa época chegaste a ponderar essa hipótese, a de desertar. Ou melhor, não voltar. O que ia dar ao mesmo.   Vagamente. Sem grande convicção. Eras demasiado "atado" para te meteres numa embrulhada dessas, censurava-te o teu pai. Ele bem poderia, se quisesse,  ter-te escondido  no porão de um navio que zarpasse para a Europa. Com alguma cumplicidade da tripulação, e do pessoal da estiva do porto de Setúbal. Mas sempre recusaste essa ideia. Afinal, eras um "ranger". Afinal, eras um oficial do Exército português. Sempre tiveste orgulho na tua farda.

 Contavam-se pelos dedos, os desertores e os prisioneiros. Se a guerra fosse impopular, teria havido muito mais refratários e desertores. E as cadeias estariam cheias. Mas, não, a malta da tua geração aguentou a canga em cima do pescoço. Tal como os bois do teu avô materno, que era um pequeno seareiro do Montijo.

Claro que a guerra era impopular. Não havia guerras populares. Argélia, Vietname... ?  Sabias pouco, mas tinha havido ou havia mais contestação. Em França. Na América. Um pouco por todo o lado. 

Quem vai à guerra, está sujeito a lá ficar. Pelo menos sem um braço ou uma perna. Mas não era assim tão odiada a guerra da Guiné. Como queriam fazer crer alguns. Que eram do contra. E que eram poucos no teu tempo.

"Vais para o Ultramar ?!"... Era uma fatalidade. A malta encolhia os ombros. Toda gente vai, lá terá que ser. E, afinal, por que razão é que terias de desertar ? Com sorte haverias de escapar. Em cem morria um. E se desses o "salto", irias fazer o quê ? Lavar pratos, limpar o cu a meninos, alombar com baldes de cimento e tijolos ? 

"Agora deixa-te estar quieto, já que chegaste até aqui. As velhas rezam por ti", segredava-te o teu velho ao ouvido, quando lhe foste dar um abraço à chegada, de férias. 

Foras incumbido de levar parte do espólio de um dos teus soldados, morto por acidente com arma de fogo. Pouca coisa. Um gajo morto cabia numa caixa de sapatos: objetos pessoais como o fio de ouro, o relógio, uma medalha com a foto da mulher e do filho, documentos  de identidade, fotografias, cartas e aerogramas, um porta-moedas, algum dinheiro...

O resto (a mala com a roupa, etc.) já tinha seguido, pelas vias normais, para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

O capitão não era um militar de usar "paninhos quentes" nem "falinhas mansas". Era tropa, e bastava.  E para mais de cavalaria.  Falava feio e grosso. Foi direito ao assunto. Tratava-te por tu e por "ranger".  

− Ó "ranger", vais de férias, vais ter que levar uma carta a Garcia...

Parece que adivinhaste, mesmo não conhecendo a expressão:

 − ... à família do A... ? Ser o mensageiro da morte ? Mas agora para dizer o quê ?

− Cala-te, o mais duro está feito: o nosso cabo está morto e enterrado. A família já fez o luto. Já se passaram três meses.

− Mas..., qual é então a minha missão ?

 − Levar a caixa com os seus objetos mais pessoais, pouca coisa. E relatar sucintamente as circunstâncias da morte. Claro,  apresentas as minhas condolências pessoais à viúva e aos pais, os votos de pesar de todos os seus camaradas.

O capitão sabia-a toda. Afinal tu eras o seu "homem de confiança".  Eras o comandante do A... Fizeras o auto de averiguações. E eras um "ranger"... Foras treinado segunda a divisa: "Ninguém fica para trás. Nenhum camarada. Vivo, ferido ou morto".

O A... viera num caixão de chumbo. Já a expensas do Estado. Mas não sabias  como irias encontrar a família, no Baixo Alentejo. E tinhas uma vaga ideia, pelos teus contactos em Setúbal, com malta alentejana, que o luto podia durar um ano. As pessoas vestiam-se de preto. E durante esse período abstinham-se de ir a festas e a bailes. Até mesmo de entrar na taberna.

Podias recusar-te ou pedir escusa da missão ? Afinal, a tropa tinha os seus próprios canais burocráticos para realizar este tipo de missão, cuja delicadeza não era suficientemente valorizada pelo capitão. E depois, na prática, eram dois dias perdidos das tuas preciosas férias.

Ainda hesitaste:

− Porque não o capelão do batalhão, meu capitão ? Vai de férias, a seguir a mim, segundo me confidenciou.  Como sabe, chegámos a dormir no mesmo quarto quando estivemos juntos com a CCS, na sede do batalhão... Ficámos amigos. E depois, ele que é padre, saberá encontrar as palavras certas para consolar a viúva e os pais do A...

− Nem penses nisso !... Sabes bem que eu não tenho confiança nele!... − disparou o capitão, visivelmente irritado contigo.

E prosseguiu:

 − Nem tenho a certeza se ele quer voltar de férias. Andamos de olho nele. Se não voltar, também não faz cá falta nenhuma. É menos uma boca a comer e menos uma esponja a beber. Mas estará metido num sarilho: terá o bispo, a tropa e a Pide à perna.

Não tiveste coragem de  discordar do teu superior hierárquico. Ele não estava irritado, estava "piurso"!... A alusão ao capelão tinha sido extremamente infeliz da tua parte. 

 Eles não morriam de amores um pelo outro. Tudo começara  com a viagem no "Uíge". E por causa de uma homilia, dita no convés , que não caira bem no comando do batalhão. O capitão deixou de lhe falar. 

Mas tu tinhas que ser coerente e cumprir o teu dever . Mesmo que a missão fosse desagradável. Afinal, eras um oficial. Mas não de relações públicas. Eras um operacional. O comandante do A..., mais do que isso,  o segundo comandante, o comandante de 150 homens na ausência do capitão. Não eras nenhum merdas. Eras um "ranger". O teu pai tinha orgulho em ti. Ele tinha servido na ilha do Sal como expedicionário durante a II Guerra Mundial". Fora mobilizado pelo RI 11, de Setúbal. Muita sede e fome lá passou, coitado do velho.

Pensando bem, até então não tinhas sido nada na "puta da vida" (a expressão era do teu pai de quem não dizias a ninguém que era estivador, e que falava mal como um carroceiro). Agora, sim, "eras gente". Mas ir de Setúbal até ao Baixo Alentejo, ao monte onde vivia a viúva do A..., com os sogros,  era um esticão de carro. E ninguém te pagava a gasolina. Nem ajudas de custo. As estradas em 1970 não eram as que são hoje. Tinhas um Mini Austin, comprado em segunda mão ao teu mano (que era mais velho), com o primeiro patacão que ganhaste na tropa e na guerra.  

Tinhas tirado a carta em Bissau. E a pouca prática de condução que tinhas, era com o jipe da companhia.  Em estradas de terra batida. Era também um desafio ir de Setúbal até lá baixo, já nas faldas da Serra do Caldeirão. Sítios aonde nunca tinhas ido antes.

Pior que tudo seria enfrentar a pobre viúva que acabara também por perder o filho com três meses.  Para não falar já dos pais do A... Não sabias se ele tinha irmãos. Aliás, era um rapaz de poucas falas. Metido consigo mesmo. Pouco sociável. Chamavam-lhe o "Chaparro". Soubeste da perda do filho por ele. Pensas que nunca superou o desgosto. Mal o conheceu, é certo. Mas tinha muito orgulho na mulher e no filho.

O que lhes irias dizer, à viúva e aos pais  ? A verdade nua e crua ?... Que o A ...tinha morrido num estúpido acidente com arma de fogo ?!... Isso eles já deveriam saber pelo telegrama que terão recebido na altura... Não sabiam eram os pormenores macabros.

Felizmente, tinhas conseguido, em resultado do auto que tu próprio elaboraras, que o acidente tivesse sido considerado em serviço. A viúva iria ter direito a uma pensão de preço de sangue. O que era uma ajuda para recomeçar a vida. E isto enquanto não se voltasse a casar. Ias-lhe dar a novidade. Não sabias de quanto seria a pensão. Talvez de uns 400 a 500 escudos, naquela época.  "Porca miséria!", pensas tu hoje. Septuagenário.

Só te deste conta dos espinhos da missão quando já vinhas a caminho, no avião da TAP. Era tarde de mais para te recusares.  O capitão estava incontactável. Na época não havia telemóveis.  Os dados estavam lançados.

Indiferente ao teu pequeno drama pessoal (ir ou não ir levar a "carta a Garcia"), um grupo de gajos (à civil, mas seguramente militares em gozo de licença de férias) não paravam de chamar as "boazonas" das hospedeiras... Para mais uma rodada de uísque!

Era uma ordem do teu capitão, mesmo que não fosse por escrito. E, mesmo de férias, tu continuavas a ser um militar. A comunicação na tropa era clara, concisa e precisa. Às vezes até demais. Telegráfica. Burocrática. Impessoal. E, no limite, desumana. 

Pediste também uma bebida. Um gin tónico. Tinhas uma secura danada na garganta. A verdade é que o A... não morrera em combate. Como um herói. Não morrera pela Pátria. Fora morto estupidamente numa zaragata de caserna. Numa altercação de bêbedos. (Não escreveste isso no auto:  com o A... a defender a honra da mulher que, pelos vistos, era um rapariga alegre e vistosa. Algarvia do Barrocal.)

As testemunhas-chave foram o B... e o C... Engalfinharam-se os dois, o A... e o B... Caíram a rebolar no chão, com o A... empunhando a G3 e o B..., por baixo dele, a tentar desarmá-lo.

O A... era um dos teus melhores operacionais. Com ele, a HK 21 nunca encravava... Tinha um bom municiador, é certo, mas era muito cuidadoso com a sua "algarvia", como ele chamava à metralhadora ligeira de fita que lhe estava distribuída.

O B..., que era do 4º pelotão, o do "padreco", não foi dado por culpado, embora tivesse sido ele a insinuar que a mulher do A... teria sido vista a dançar com outros, "feita galdéria" ( sic), numa festa da vila... O que era de todo inverosímil. Ela estava de luto, pela perda do filho. E tinha o homem no ultramar.

Brincadeira de mau gosto ? Piada de caserna ? Ciumeiras antigas ? Cio e luta de machos ?

O B... era de uma freguesia vizinha do A... Os dois eram conterrâneos. E já se conheciam quando foram formar companhia em Estremoz. O B... jurou-te a chorar, que nem uma Madalena, que era amigo do peito do A...:

 − Éramos como irmãos!... Como é que eu podia querer-lhe mal ?... Enrolámo-nos à porrada por causa da estúpida da guerra!... Andamos todos almareados... Ele andava completamente transtornado da cabeça, desde que o filhinho lhe morrera... Juro, meu alferes, que não tive culpa nenhuma!... Tentei apenas arrancar-lhe a G3 para ele não cometer nenhuma asneira.

A verdade é que acabou tudo em tragédia. Conhecendo o A..., ficaste na dúvida se ele não terá querido mesmo fazer justiça por suas próprias mãos. Mas os depoimentos de quem viu a cena, na caserna, a uma razoável distância da cama do A..., eram inconclusivos. Na dúvida, optaste por inocentar os dois contendores.

E acabaste, em 1970, na tua vinda à metrópole por assumir, "por piedade e, vá lá, por camaradagem", a ingrata missão de levar o espólio (ou a parte mais íntima do espólio)  do A... à família. Mais uma carta do capitão.

Desconhecias o conteúdo da carta do comandante da companhia. Ficaste "entalado", quando deste com o envelope fechado. E se as duas versões, a tua e a do capitão, não batessem certo ? O capitão certamente por lapso não te chegou a falar sobre o que devias dizer à família e, em especial, à viúva.

O que iriam pensar aquelas pobres criaturas ? Ficaria a dúvida, a suspeição, quiçá o ódio contra a tropa, ainda a latejar  no coração daquela pobre gente que há três meses acabara de receber um telegrama seco, desumano, a dar a notícia  da morte do seu ente querido, lá longe, na Guiné ?!... Que eles nem sabiam onde ficava.

Tiveste que abrir, com muitas cautelas, o envelope  e inteirar-te do conteúdo da carta. Afinal, o que o capitão escrevera, era lacónico, banal e sobretudo impessoal. Era apenas o elogio do "homem íntegro", do "militar brioso" e do "grande português", não respondendo a eventuais e legítimas dúvidas dos familiares sobre as trágicas circunstâncias do acidente. 

Por certo que a jovem viúva iria querer saber como tinha morrido o marido. E onde, e quando, e porquê. E mais: queria saber se tinha murmurado o seu nome e o do seu filho, antes de dar o último suspiro. E se tinha sofrido muito antes de morrer... Enfim, tinhas que estar preparado para todas as possíveis perguntas da viúva e dos pais. Iriam perguntar pela certidão de óbito, de que tu não trazias cópia nem estavas autorizado a dar pormenores. Iriam inundar-te de perguntas sobre o comportamento dele naqueles escassos seis meses de permanência na Guiné. Se estava magro ou gordo, se comia bem, se andava triste ou alegre...

Embora fosse gente pouco letrada (os pais do A... nem sequer sabiam ler nem escrever), a viúva pelo menos teria a 4ª classe e  achar-se-ia no direito de saber tudo sobre a morte do marido. 

Estavas com receio de não estar à altura de  desempenhar esta delicada tarefa... Reconhecias que o Exército era "parco" na comunicação com os familiares, em casos de morte ou ferimento grave de um militar. "Parco" ? Avarento nas palavras, frio nos gestos.

E depois tu não sabias se, eventualmente, por intermédio de amigos, conhecidos ou conterrâneos, eles não estariam  já de posse de mais pormenores sobre o acidente... As más notícias chegavam sempre depressa. Farias figura de parvo. Tinhas que estar preparado para todas as hipóteses, perguntas, cenários...

No final da carta, o capitão depois de reforçar os seus "sentidos pêsames pessoais", transmitia também os do exército, do comandante do batalhão e até do próprio general António Spínola, "governador e comandante-chefe do CTIG", isto é, da Guiné. 

No último parágrafo, manifestava a sua intenção de louvar o 1º cabo A..., a título póstumo, por feitos em combate na Operação X...

Não deixaste a "ingrata tarefa" para o fim das tuas férias. O "berbicacho", como disseste lá em casa aos teus pais, intrigados com a tua agitação.

Logo no primeiro fim de semana, a seguir à tua chegada, decidiste levar a "carta a Garcia".  A morada era a que constava no processo do A... Não era muito precisa, estaria incompleta. Tiveste que passar, sábado, ainda de manhã, pelos correios da vila. O carteiro fez-te um croqui do monte onde a família do A... vivia. Não era longe, mas a estrada era péssima e poeirenta. Era terra batida, como nas picadas da Guiné. Não foi bom para a suspensão do teu pobre Mini.

Bateste à porta. Mas já os cães haviam dado conta da presença do intruso. Sempre odiaste cães. Felizmente não andavam à solta. Alguém, de súbito, espreitou  pelas cortinas da portinhola. Dois olhos negros e grandes como tições, fotografaram-te. Uma jovem mulher, vestida de preto, entreabriu a porta. Tinha traços típicos das mulheres do povo da região. Olheiras fundas. Pareceu-te curiosa e assustada ao mesmo tempo. 

Vinhas... fardado!... O boné com pala. Os óculos escuros,  Ray-Ban, devem tê-la intimidada!... Claro, era a viúva. Só podia ser. E tu eras o "mensageiro da morte"... Ela percebeu logo que era alguém da tropa. Que vinha por causa do marido. Abriu a porta devagar, cautelosa...

Casa rural. Modesta. Limpa. Um centenário pinheiro manso dava-lhe sombra. E era uma das referências que te dera o carteiro...
 
Oficial e cavalheiro, estendeste-lhe a mão depois de, estupidamente, lhe teres batido a pala. Não correspondeu ao teu gesto. Mais por timidez do que por descortesia. Mandou-te sentar numa cadeira de verga. Só havia uma. E ela mesmo sentou-se numa banqueta, junto à  lareira, a dois metros de distância. Recatada. E ligeiramente ofegante.

Sem grande palavras, deste-lhe a pequena caixa de cartão com os objetos pessoais do defunto. Os de mais valor... Entre eles  um aerograma que o A... não chegara a ter tempo  de pôr no correio. (E que tu devias ter lido antes de lho entregar, mas achaste que não tinhas esse de direito; nem sequer constava do auto.)

Leste a carta, seca, do capitão... O rosto dela, impassível. Nem uma lágrima. O silêncio estava, porém, a tornar-se pesado e intolerável. Não havia mais ningém na casa. Os sogros estavam fora, voltavam na segunda feira seguinte. 

A desgraçada não conseguiu acabar de ler o rascunho do aerograma do marido. Deu um grito lancinante de dor. Começou a chorar, sufocada. Acabou num pranto, arranhando a cara e puxando os cabelos.

Ficaste sem pinga de sangue. Não sabias como agir. Pegaste no aerograma que ela deixara cair no chão.  Num ápice deste conta que o A... tinha sido  cruel e injusto, no que escrevera... O marido, numa crise de ciúme patológico, declarava, preto no branco, que ela lhe era infiel. E acusava-a da morte do filho. 

De repente pareceu-te que ela ia desfalecer Fizeste um gesto para a amparar. Foi então que ela se agarrou a ti como uma lapa à rocha, na iminência da tempestade.

 − Cabrão...ão...ão...!!!... Eu aqui que nem uma monja à espera dele!...  E ele a dar ouvidos àquela gente bera, que só nos queria mal!

Tiraste um lenço do bolso para lhe enxugar as lágrimas... Não sem algum esforço, conseguiste sentá-la na cadeira de verga. Desapertaste-lhe a blusa de flanela no colarinho. Correste à cozinha para lhe arranjar um copo de água.  Havia uma pequena bilha de barro com cocharro em cortiça. Amparaste-a sob as tuas pernas.  Deste-lhe de beber. 

 − Por favor, agarre-me, abrace-me, beije-me...que eu vou morrer!... 

Puxou-te com toda a força bruta de uma jovem mulher, viúva de vinte anos. As unhas cravadas nos teus braços. Procurava  desesperadamemte os teus lábios.  Era de pequena estatura, só te chegava ao peito. 

 ... O resto tens pudor em contar. Porque se calhar não terá sido  inteiramente digno de um oficial e cavalheiro. De alguém que estava ali a representar o Exército português. Numa missão humanitária. 

Esta história nunca mais te saiu da cabeça. Nem muito menos quando foste para Moçambique, já como capitão, em 1973, a comandar uma companhia. Para o Niassa. Embarcaste no avião. Tentando não pensar em nada. Numa noite de verão. Tinhas 26 anos. E terias tido a benção do teu pai, se ele ainda fosse vivo.

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Nota do editor:

terça-feira, 22 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27043: Notas de leitura (1822): 2ª edição do livro do nosso José Saúde, "Aldeia Nova de São Bento" (Lisboa, Edições Colibri, 2021, 299 pp.)



Foto nº 1 > Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa,  anos 30 > O Poço do Lobo  (1)... Hoje fica na Rua do Poço do Lobo. A povovoação, cuja origem remonta à guerra da restauração (Séc. XVII) foi elevada à categoria de vila em 1988.


Fotos nºs 2 > Aldeia Nova de São Bento, concelho de Serpa, anos 30 > O Poço do Lobo  (2)


Foto nº 3 > Aldeia Nova de Sáo Bento, concelho de Serpa > s/d > Rapariga com "enfusa" à cabeça


Foto nº 4 >  Aldeia Nova de Sáo Bento > Serpa   > José saúde, o autor quando jovem... Aos 9 meses, em 1951...Vê-se o braço da mãe, que o ampara...

José Saúde > Página do Facebook > Fotos do seu álbum (Com a devida vénia...). Presume-se que as fotos nºs 1,2 e 3 sejam do domínio público. (LG)


Fotos (e legendas): © José Saúde (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso José Saúde,  jornalista e escritor, ex-fur mil OE/Ranger, CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), antigo desportista, "aldeano", hoje a viver emn Bejam membro da nossa Tabanca Grande, com 255 referências no nosso blogue, publicou em 2021 o seu decimo livro;

José Saúde - "Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes" 2.ª ed. Lisboa: Edições, 2021, 299 (Prefácio de David Monge da Silva) (Preço de capa atual: 14,40 €).

Apraz-nos registar que a obra foi muito bem aceite pelos seus conterrâneos, pelo que já saiu uma 2ª edição. Vão daqui as nossas palmas para ele e os demais "aldeanos".

Aproveiutamos para publicar, editadas, algumas fotos do seu álbum, disponíveis na sua página do Facebook.


Sinopse

Recanto de imensas conversas, a bica, onde o pessoal da nossa aldeia recorria para encher mais uma “enfusa” de água ou para atestar mais uma pipa instalada num carro de animais que se protegiam debaixo de um enorme chorão ali existente, era um local deveras enternecedor.

(…) Mulheres trajando com os xailes pretos, assim como outras com lenços atados à cabeça, outras com “enfusas” já cheias e transportadas irrepreensivelmente sobre a nuca, outras esperando, gentilmente, que chegasse a sua vez para chegarem às bicas de água, que eram duas, uma menina de pé descalço, um burro que bebia na pia localizada a meio. Enfim, pedaços de histórias que ficam aqui retratadas e que visam trazer à opinião pública um passado que merece um inexcedível respeito.

***

(...) "Ao ler estas deliciosas crónicas regresso de imediato à minha infância e adolescência, a um tempo de felicidade em que todos os nossos familiares e amigos estavam connosco para nos ajudar a crescer e descobrir, sem sobressaltos, o mundo e a vida.

(...) Tudo hoje é diferente. O passado apenas subsiste na minha memória, nas minhas recordações. Somos as nossas memórias. Somos quem fomos. É a nossa história que nos caracteriza e define.

(...) Eu e o Zé Saúde vivemos a nossa infância e juventude nas décadas de 50 e 60, conhecemos a nossa aldeia com a sua população máxima, e acompanhámos o seu progressivo decréscimo.

(...) As memórias que nos são trazidas nesta obra situam-se, sobretudo, nestas duas décadas, trazem-nos personagens, profissões, modos de vida, relações sociais e formas de convívio que não voltarão mais. Há que ler atentamente para que os mais idosos recordem as suas vivências e os mais novos conheçam um pouco do que foi a vida dos seus pais e avós. Este livro é serviço público." (...)


David Monge da Silva | Fonte. Edições Colibri, página do Facebook, 19de dezembro de 2021 


Sobre o autor, José Saúde:

(i) nasceu em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de novembro de 1950, todavia, o seu registo oficial de nascimento reporta-se a 23 de janeiro de 1951;

(ii) desportivamente, iniciou a sua carreira futebolística no Despertar Sporting Clube e aos 16 anos ingressou no Sporting Clube de Portugal;

(iii) como jogador sénior representou o Desportivo de Beja, o FC Serpa e em 1974 foi um dos grandes impulsionadores do futebol de competição na Aldeia Nova de São Bento ao reativar a atividade no Clube Atlético Aldenovense;

(iv) tem colaborado ativamente na Imprensa Regional e Nacional como comentador desportivo.e como cronista do que foi a vida dos seus pais e avós;

(v) tem uma dezena de livros publicados, sobre a sua história de vida,  incluindo  a sua experiència omo militar na Guiné, durante a guerra colonial.


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Nota do editor LG:

Último poste da série > 18 de julho de 202 > Guiné 61/74 - P27030: Notas de leitura (1820): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) - 3 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 8 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26665: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (38): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula


Alcácer do Sal > 29 de janeiro de 2018 > Vista interior da pousada Dom Afonso II  

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 Ás vezes este país quase perfeito e sem mácula

por Luís Graça


Às vezes este país quase perfeito e sem mácula. Em certos dias, a uma certa hora, em certos sítios, visto de um determinado ângulo.

Num dia qualquer, tirado à sorte do calendário. Em 2004, por exemplo, no mês de abril, em pleno Baixo Alentejo, de preferência ao pôr do sol.

Gostaste de experimentar ver este país,  sentado no banco da frente do piso superior do autocarro. Ao sul, a 250 km ao sul de Lisboa, ao fim da tarde, ao pôr do sol. 

Tu podias  achar este país quase perfeito e sem mácula, numa viagem de regresso a casa, de Beja a Lisboa. Viajando sobre as planícies do Baixo Alentejo,  
podias observar o breve e oblíquo voo das cegonhas que, afinal, já não traziam os bebés de França.

Num certo troço da estrada número-não-sei-quantos que ia desembocar na A2. A tal, que era mais conhecida como a autoestrada do Sul, a que te levava ao Algarve, quando tu fazias férias de praia no Algarve, que já pertencera outrora ao reino de Portugal e além-mar em África.

Visão panorâmica, a dois metros e meio acima do solo, em voo raso de cegonha. Tomaste nota, no teu canhenho sem argolas,  que a hora era importante para veres o teu país quase perfeito e sem mácula. Tal como o sítio e o ângulo de visão, ao fim da tarde, na primavera, no conforto relativo do teu autocarro da Rede Expresso. A televisão desligada, por favor. E o telemóvel. Só o barulho monótono do autocarro a rolar.

Nada como deixares o teu carro em Lisboa e viajares na Rede Expresso. 
Regressas  vinte anos atrás e tomas a viatura número não-sei-quantos, 
de preferência o lugar nº 1. Tinhas (e continuas a ter) que ir desembocar no terminal de Sete Rios. Beja-Lisboa, Sete Rios... (Este país só não era perfeito e sem mácula porque já tinha um terminal como o de Sete Rios, mas isso era outra história.)

Podias ter reservado o bilhete pela Internet ou enviado um SMS. Em 2004 já havia essas modernices. Mas não ias estragar esse momento único contaminando os teus pensamentos poéticos com as coisas prosaicas das novas tecnologias.

Nada como um perfeito pôr do sol no Alentejo, nada como um montado de sobro e um bando de cegonhas em formação de voo, de regresso a casa, também elas. O papo cheio de lagostins das albufeiras.

Nada como um horizonte quase perfeito e sem mácula. Tão pouco como isso. Tu podias achar este país quase perfeito e sem mácula, por meia dúzia de euros, viajando na Rede Expresso que não era para turistas. Mas para viajantes solitários como tu.

Em certos dias, a uma certa hora, saindo de Beja, a caminho de Lisboa, Sete-Rios. (E não vice-versa.)

Tanto e tão pouco, afinal, para te reconciliares com o teu país. De tempos a tempos, tens de te reconciliar com o teu país. O mesmo é dizer, com a vida. Com os outros.

Noutra hora e noutro lugar, tu acrescentarias: nada como um naco de pão alentejano, feito de trigo de barbela, umas azeitonas com o gosto do alho e dos orégãos, um bocado de requeijão de Serpa, um copo de vinho branco, uma roda de amigos.

Na Festa de Nossa Senhora das Pazes, entre ficalheiros e azinheiras centenárias, todos os anos no domingo seguinte à Páscoa. Nesse ano de 2004 veio muito menos gente, que a morte batera, com mão pesada, a muitas portas de Vila Verde de Ficalho, 
terra raiana. 
Vinte e cinco mortes, disse-te  o médico,  desde janeiro.

A festa e o luto nunca combinam bem, mas viera gente de outras partes do mundo, do Montijo, do Seixal, do Barreiro, de Almada, de Lisboa, da diáspora alentejana, quiçá da Suíça e do Luxemburgo. E a alegria e a festa do reencontro são universais.

Todos os anos na primeira semana a seguir à Páscoa, quer faça chuva, quer faça sol. 
Chovia pouco por estas bandas.  E cada vez menos, já diziam  os antigos, de memória curta. E mesmo que os homens não se incorporassem na procissão da Santa que dava três voltas à capelinha, cada um rezava como podia e sabia. 

A um tiro de distância da raia espanhola, Nossa Senhora das Pazes, rogai por nós, pecadores, soldados e marinheiros, cavaleiros e peões, nobres e plebeus...Lembrando, pelo caminho, os ódios e os amores antigos que atraíam e repeliam os vizinhos separados pelas extremas de dois países do Al-Andaluz.

Desde 1232 (há tanto ano!),  quando o lusitano e cristão D. Sancho II, o pio (mas não o da coruja) reconquistara aos mouros a margem esquerda do Guadiana.

Mesmo que houvesse (sempre houve!) quem quisesse desistir da vida, ou dela se despedir com dignidade. (
"Que, em passando a festa, doutor, eu dou um rumo à minha vida!"...)

E aí tu percebias a diferença entre ter e não ter um médico de família,
um equipa de saúde, um centro de saúde, ao alcance do tua mão que pede ajuda.

Para trás deixavas o verde das searas de trigo, do Alentejo que ainda dava pão (e que agora só dá vinho e azeitonas e cada vez menos cortiça e giesta), para trás deixavas gente fantástica, no mínimo, gente competente, boa e generosa, que trabalhava nos centros de saúde e suas extensões do Baixo Alentejo.

Para trás deixavas amigos...

em Vila Verde de Ficalho.
em Serpa,
na Cuba ( nunca digas: em Cuba),
na Vidiguêra,
em Aljustrel,
em Almodôvar e no Alvito,
em Barrancos.
em Beja,
de Castro Verde a Ferreira do Alentejo,
em Mértola e em Moura,
em Odemira ou em Ourique.

Médicos de família, enfermeiros, técnicos administrativos e operacionais, trabalhando em condições muitas vezes difíceis, sem o conforto do teu gabinete de Lisboa, sem o ar condicionado da Sony, com 37 graus à sombra, com um frio de rachar no inverno, com falta de equipamentos (informáticos, sociais, e outros). Com a Renault 4L a um canto, parada, porque não havia verba "cabimentada" para a sua reparação e manutenção.

Dando consultas em insólitos lugares, como o Sporting Clube de A do Pinto. Ou fazendo SAP (serviço de atendimento permanente) em velhos conventos transformados em hospitais.

Gente remando contra a maré...

do individualismo,
do cinismo,
da arrogância,
da gestão mercantilista da saúde,
da descrença,
da desmotivação.

Mais: 

remando contra a doença da saúde,
a iatrogénese,
as vítimas da aculturação médica,
o consumismo,
o novo riquismo,
os tiques, os taques, as contas, os ajustes de contas
do Portugal Sociedade Anónima dos Hospitais,
da indústria farmacêutica, dos lóbis,
do poder, da política politiqueira...

Gente que cuidava dos outros e que se cuidava pouco, que cuidava pouco de si própria. E que podia estar trinta anos numa carreira administrativa como terceiríssimos oficiais. Ou enfermeiros sem (de)grau. Ou que continuava a fazer urgências mesmo para além do limite legal de idade.

Gente que que trabalhava sem rede. E que às vezes era até agredida ou maltratada. Mal tratada sobretudo pela tutela. Gente que trabalhava num SNS sem rosto. No Ministério da Indústria da Doença.

Um dia quiseram trabalhar em equipa. Para prestar melhores cuidados de saúde, para trabalhar com outra motivação e satisfação. Um dia pensaram na perigosa utopia igualitária, nos idos anos de setenta. 
Que nenhum deles era perfeito mas que juntos podiam sê-lo, que podiam organizar o trabalho nos cuidados de saúde primários numa base cooperativa e tendencialmente igualitária. Fora da tradicional relação hierárquica chefe / subordinado ou especialista / leigo,
e pondo também na equipa o utente (mais o doente, o agudo e o crónico, a criancinha, o pai, a mãe, a avô e o avô, se a vida chegasse a netos e a filhos com barba)...

Subvertendo, enfim, a organização burocrática que o prussiano Max Weber considerava o tipo-ideal da racionalidade legal.

Em 2004 a utopia não tinha morrido ainda, mas estava mais velha e cansada. As utopias também envelhecem e morrem. E renascem como a Fénix da mitologia.

Há muito que as equipas nucleares de saúde haviam perdido o seu vigor ou se tinham desfeito. Ninguém as regava como se tem de regar a relva do jardim e os vasos de flores à entrada do centro de saúde. Mas acabaram por contaminar a cultura organizacional da Subregião de Saúde de Beja.

O bichinho estava lá e não morreu de todo, diziam-te. As ideias são como os vírus e os ursos, ficam em hibernação uma parte da vida. O problema é que a vida é curta e a arte é longa. Disse o Hipócrates há 25 séculos atrás. 

Sempre discordaste dos que pensavam a utopia sem tempo nem lugar. A utopia também podia ter um tempo e um lugar. Porque na sua dupla etimologia, utopia tanto queria dizer, em grego,  nenhum lugar (ou + tópos) como lugar perfeito (eu + tópos).

Não acreditavas nos lugares perfeitas. Nem muito menos em santos nem em heróis. Muitos menos e nos heróis e santos de fancaria que te vendiam na infância.

Os que conheceste, no passado, homens e mulheres de carne e osso, não eram heróis nem levavam nenhum existência heróica. Eram portugas como os outros, profissionais de saúde como os outros,
apenas faziam alguma diferença. Tu dirias que era um certo modo de ser e de estar. Algo que não se ensinava ainda em escola nenhuma. Que não se aprendia nos cursos de formação do Fundo Social Europeu nem na Faculdade de Medicina, nem nas Escolas de Enfermagem, nem nas Business Schools das Novas e Velhas Universidades.

Um modo de ser e de estar, afinal, para o qual não havia ainda receitas de cozinha, muito menos algoritmos. Pequenos detalhes que faziam a diferença, a começar pela vontade trabalhar de outra maneira. Por isso, por tudo isso, gostaste de os rever, gostaste de voltar a encontrá-los. Em 2004. No seu Alentejo ainda profundo.

Eles eram portugas que mereciam as tuas palmas. As nossas palmas.

© Luís Graça (2004). Revisto em 11 de abril de 2025. 
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Nota do editor

Último poste da série > 12 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26576: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (37): O silêncio do rio Xaianga

sábado, 30 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25321: Os nossos seres, saberes e lazeres (621): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (148): Em Arraiolos, o dia era de greve, por ali se cirandou entre casas de alvura e azul, os belos tapetes e as ruínas do castelo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Tratava-se de uma excursão para seniores organizada pelos serviços de ação sociais da administração pública, o primeiro destino era Arraiolos, anteviam-se mundos e fundos, desde tapetes, espaço museológico, igrejas, passeio pelo centro histórico, e inevitavelmente uma subida ao castelo. Era dia de greve da função pública, os visitantes ficaram por conta própria, a ver Arraiolos por fora. Cada um por si, e de vez em quando lá nos íamos encontrando rua acima rua abaixo, como adoro a tapeçaria de Arraiolos, não me fez mossa nenhuma andar a bisbilhotar pelas lojas, a contemplar as fachadas, o asseio é irrepreensível, há muita casa recuperada e muita casa abandonada, o estado do castelo magoou-me, conhecia as fotografias turísticas, há ali sérios indícios de poder haver derrocada. Agora, está na hora de partir para o segundo e último destino do programa, o Museu Agrícola da Atalaia, no Montijo, o guia informa que há um espaço valioso de recuperação da memória da agricultura da região em Tinta Nova da Atalaia, tem museu desde 2009. Para lá vamos, e depois haverá uma visita breve ao santuário, tudo acabará quando o autocarro nos despejar em Sete Rios.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (148): Em Arraiolos, o dia era de greve, por ali se cirandou entre casas de alvura e azul, os belos tapetes e as ruínas do castelo

Mário Beja Santos

Em 27 de outubro de 2023, parti em autocarro de excursão, o primeiro destino era Arraiolos. Chegados à vila, confirmou-se que era dia de greve, os edifícios que estava previsto visitar encerrados, logo o Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos. Nesse dia abria as portas ao público uma mostra gastronómica, um festival de empadas e a feira de tapetes, aí essa hora estaríamos noutro destino. Bem procurei numa papelaria comprar uma publicação que me ajudasse a ver por fora o que não poderia ver por dentro, que não, isso de livros e brochuras era no Centro de Interpretação, mesmo bilhetes postais da Pousada, da Igreja da Misericórdia ou do Solar da Sempre Noiva, era ali que poderia adquirir. Felizmente tirara notas de enciclopédias, o suficiente para saber que fora D. João I a doar Arraiolos a D. Nuno Álvares Pereira, conde de terra e Condestável de Portugal. Esperava ver a Igreja da Misericórdia e a sua riqueza azulejar, ficará para a próxima. Aqui vos deixo a fachada do Centro Interpretativo, de grande beleza e o pelourinho, monumento nacional.

Entrada do Centro Interpretativo
O pelourinho de Arraiolos e a fachada do Centro Interpretativo

Procurei esmiuçar alguns dados do passado, consultei a enciclopédia Verbo, são dados publicados em 1964, ao tempo o concelho tinha uma população total residente que se aproximava dos 13 mil habitantes, fábricas de moagem, de telha, de tapetes (muito florescente nos séculos XVII e XVIII), lagares de azeite e a importante indústria de carnes. A vila já existia nos começos do século XIII; a enciclopédia recomenda a visita à Igreja da Misericórdia, ao hospital com portal manuelino, ao pelourinho, coluna torcida em mármore de Estremoz erguido em 1634. O castelo foi mandado construir por D. Dinis em 1310, possui portas ogivais.

A alteração de programa justifica que se vá farejar a rica tapeçaria de Arraiolos, bem documentada a partir da primeira metade do século XVIII. Por mera curiosidade, respigo o que Calvet de Magalhães escreve sobre estes tão prodigiosos tapetes: “São bordados a fios contados de lã de diversas cores sobre tela de linho, de grossaria, estopa ou canhamaço, que as tecedeiras locais teciam, sendo as lãs tosquiadas, lavadas, cardadas, tintas e fiadas pelas próprias bordadeiras. Os tapetes são executados com ponto cruzado, de forma a atapetar inteiramente o fundo do campo e a barra, conhecido pelo ‘ponto de Arraiolos’ e que noutras regiões do mundo é conhecido pelo ‘ponto entrançado eslavo’ e ‘ponto grego’. Os motivos dos tapetes são persas e, como arte popular que é, inspira-se no solo, utilizando como base os seus objetivos mais comuns, tais como pássaros, árvores, figuras humanas, etc. A composição consta de um centro, campo e bordadura. O campo é, geralmente, preenchido ou por duas albarradas ou ramos enfolhados dispostos simetricamente em relação às cabeceiras; o campo é decorado considerando-se que é ilimitado e decorado por motivos soltos alternados ou repetidos; a bordadura é cheia com linha ou linhas sinuosas ou ainda quebradas, decorados com elementos florais ou elementos geométricos, enchendo os espaços que linhas sinuosas em ziguezague, percorrendo a bordadura, deixam livres, com repetições ou alternâncias ornamentais de motivos geométricos.” Vamos então visitar onde se fazem tapetes e mostrá-los.

Tapeceira em atividade, as visitantes não escondem o seu pasmo por ver nascer tanta beleza
Dois motivos ornamentais distintos
É a alvura da caiação, o azul cintilante, a limpeza irrepreensível das ruas, que logo prendem o olhar, sabe-se rapidamente que se está perante uma premissa maior da cultura alentejana.
O que nos faz deter diante desta fachada é o respeito pela coisa antiga, nada de tapar as memórias do passado, seja ao nível dos rés-do-chão seja do primeiro andar, fazem-se obras mas não se esconde a elegância dos arcos, das colunas e das suas bases, assim se respeita a memória de quem teceu tão elegantes elementos.
Este castelo mandado fazer por D. Dinis, no início do século XIV, é motivo de preocupação, são mais do que evidentes os sinais de ruína, e, no entanto, é muito gracioso no seu ponto alto, nas suas muralhas quase circulares, no seu Paço onde chegou a viver D. Nuno Álvares Pereira, carece de intervenção urgente, há mesmo panos na muralha que podem dar origem a acidentes, era bom que trouxessem aqui o Sr. Ministro da Cultura, este monumento nacional merecia melhor sorte.
Consta de uma inscrição o seguinte acerca das muralhas e da história do castelo: “O recinto amuralhado de Arraiolos, construído sob responsabilidade de João Simão entre 1306 e cerca de 1310, tem planta quase circular, aproveitando a forma muito regular da colina. Nele abrem-se duas portas: a da Vila (destruída), junto à Torre de Menagem, e a de Santarém. Várias vezes restaurado, a última das quais em 1944, nele se conservam a Torre do Relógio da época manuelina e o adarve, quase todo circulável, permitindo ao visitante desfrutar de uma vastíssima paisagem envolvente.”
Retenho agora o que diz outra legenda sobre o Castelo-Paço: “Erguida na mesma época da muralha, tem planta retangular com torres angulares de defesa. Além da Torre de Menagem, faziam parte deste antigo castelo-paço os aposentos do alcaide, a casa da guarda e o pátio de armas. Todas as construções interiores estão hoje reduzidas aos alicerces. D. Nuno Álvares Pereira, segundo Conde de Arraiolos, fronteiro-mor do Alentejo e Condestável de Portugal, passou neste Paço largas temporadas.”
Igreja do Salvador no Castelo de Arraiolos
Uma vista das planícies alentejanas da muralha do castelo
Era impossível ficar indiferente à postura do cão. Estava dentro da sua alcofa, neste estranho ambiente do que terá sido uma loja, ele vive num estado circundado por um biombo, deverão achar graça os donos a tê-lo em exibição. Saltou da alcofa e pôs-se a jeito para a fotografia, olhou bem para a câmara, é cão com pedigree, tenho a certeza.
Prestes a partir para novo destino, desta vez a Atalaia do Montijo, rendi-me a esta linha tão aprumada do casario em azul e branco, as suas varandas, o seu toque antigo, e, como sempre, a limpeza dos arruamentos, inexcedível.
E despeço-me com o monumento ao pintor mais conceituado de Arraiolos, Dordio Gomes, conhece-o bem, o meu padrinho tinha um óleo de cavalos na sala de jantar, era um regalo para a vista, e quando fui trabalhar para o Ministério do Comércio Interno, numa ampla sala onde no passado funcionara o Conselho da Agricultura, as paredes estavam pejadas de quadros seus. Aqui relembro Dordio Gomes, distintíssimo artista. Aqui finda a viagem a Arraiolos, partimos para a região do Montijo.
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Nota do editor

Último post da série de 23 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25300: Os nossos seres, saberes e lazeres (620): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (147): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (7) (Mário Beja Santos)

sábado, 23 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25300: Os nossos seres, saberes e lazeres (620): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (147): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Com a continuação da visita ao Paço dos Condes de Basto, a que se seguiu assistir a um recital de violoncelo e guitarra num espaço esplendoroso do Museu Nacional de Évora, e depois de ter vistoriado, com muito gosto, a esplêndida obra azulejar de Jorge Colaço, um artista que em Paris chegou a trabalhar para Le Figaro e que durante muitos anos compôs os seus magníficos trabalhos na Fábrica de Cerâmica Lusitânia (que ainda conheci, estava prantada onde é hoje a sede da Caixa Geral de Depósitos, restam alguns vestígios como uma chaminé), regressei a Lisboa, de coração afogueado, um belo fim de semana, procurei meter o Rossio na Betesga, impossível, não deu para registar os valores da arquitetura popular tradicional, desta arquitetura civil manuelina não passei do Páteo de São Miguel e do Paço dos Condes de Basto, embora tenha visto por fora o Palácio dos Condes de Cadaval, confesso que foi uma revelação visitar o que já se designou por casas de Vasco da Gama e Palácio da Inquisição e que hoje é o Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, bem gostei das casas pintadas e das belas exposições ali patentes. Basta de me lamuriar, há palácios, conventos e igrejas, a universidade e até o Teatro Garcia de Resende a pedir nova visita, assim me dê Deus vida e saúde, até lá dar-vos-ei notícias de umas andanças por Arraiolos e Torre de Moncorvo.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (147): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (7)

Mário Beja Santos

A arquitetura civil manuelina em Évora tem belíssimos espécimes. O que se costuma designar por estilo manuelino é uma combinação do tardo-gótico, do mourisco e dos primeiros sinais do Renascimento. Atestam esta riqueza a Galeria das Damas do Palácio Real de S. Francisco ou de D. Manuel, o Páteo de São Miguel da Freiria ou dos Condes de Basto (onde viveram os reis D. Sebastião, Filipe II e D. João IV) assente nos muros romano-árabes do castelo, com janelas de arcos de ferradura e tendo no interior as célebres pinturas mitológicas e históricas; mas há também o Paço do Almirante, o Palácio dos Duques de Cadaval, o mirante da Casa Cordovil e outras reminiscências, como o varandim da Casa Soure, a janela da casa do cronista Garcia de Resende, o Solar dos Condes de Portalegre, os restos arquitetónicos do Paço dos Condes de Vimioso.
Continuo a visita neste Paço dos Condes de Basto, Túlio Espanca descreve-o no seu livro Évora, encontro com a cidade, uma edição de 1997, faz saber que é um edifício de grande caráter e diversidade arquitetónica, refere as majestosas salas, as tais pinturas murais do estilo renascentista e outras maneiristas, dá conta da linhagem dos Castros que aqui viveram, referindo que o Palácio no período de 1678-89 recebeu grandes melhorias para nele se alojar o arcebispo de Évora, primo de D. Pedro II, e aqui esteve temporariamente instalada, em 1699, D. Catarina de Bragança, a viúva de Carlos II de Inglaterra. Em 1958, após longa agonia de ruína e degradação, o palácio foi adquirido por Vasco Eugénio de Almeida que o restaurou cuidadosamente com a assistência da Direção-Geral dos Monumentos Nacionais e nele instituiu a Fundação que tem o seu nome. Mais impressionado se fica quando se deambula por estas instalações ricamente intervencionadas e se pode ver um vídeo que mostra o estado de degradação em que se encontrava este monumento e as instalações anexas antes destas obras magnificentes. São estas as derradeiras imagens que se mostram do interior do palácio, há divisões que estão fechadas, o que está patente é exibido com muito bom gosto e mostra as cuidadas intervenções.

Uma bela tapeçaria flamenga alegórica a um triunfo do imperador Marco Aurélio
Um pormenor do jardim mostrando ao fundo um vestígio da muralha
Saindo do Palácio dos Condes de Basto, havia a indicação de que se podia visitar a biblioteca, estão aqui os arquivos das propriedades da família Eugénio de Almeida
Aquando da visita ao Museu Nacional de Évora (estávamos a 1 de outubro) noticiava-se que a pretexto de ser o Dia Mundial da Música se ia realizar neste belo espaço um concerto com a violoncelista Sofia Azevedo e o guitarrista Marco Banca, pareceu-me um duo bem ousado, foi um belo recital com música brasileira para violoncelo e violão, música adaptada do rock onde não faltou Mozart e composições a partir de José Mário Branco. Uma bela despedida do centro histórico, agora ponho-me rumo à estação e não posso deixar de exaltar a classe da azulejaria da responsabilidade de Jorge Colaço, painéis que envolvem a estação rodoviária com motivos eborenses, desde a Sé Catedral, quadros históricos como a Revolta do Manuelinho de Évora (1637), um auto vicentino que aqui se estreou em ambiente régio, cenas de trabalhos agrícolas, impressiona não só o estado de conservação, mas também a combinação cromática que Jorge Colaço urdiu, emoldurando o azul e branco de belas molduras que fazem ressaltar as cenas que nos remetem para Évora, isto passa-se numa estação ferroviária que vem de meados do século XIX e que já teve ligações a ramais, hoje extintos. Regresso a Lisboa, mas já estou saudoso de voltar. Entretanto, vou viajar até Arraiolos e Torre de Moncorvo, não deixarei de dar notícias.
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Nota do editor

Último post da série de 16 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25278: Os nossos seres, saberes e lazeres (619): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (146): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (6) (Mário Beja Santos)