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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27539: Humor de caserna (228): O Natal de Missirá que teve bacalhau ensaboado e, como prenda, o Menino... Braima (Abraão, em fula) (Jorge Cabral, 1944-2021)


Ilustração: IA generativa (ChatGPT / OpenAI), composição orientada pelo editor LG


O Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos

por Jorge Cabral (1944-2021)

Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, o de Missirá 1970, nunca o  esqueci. 

Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas. Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.

– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.

E eu para o cozinheiro Teixeirinha:

– Quanto tempo esteve de molho?

– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que, na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.

– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…

Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.

Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:

– Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu É macho! É macho!

– Eu não te tinha dito?!

A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido. 

Não trouxera só a viúva, treouxe também uma velha, muito velha, a bisavó, que se chamava Maimuna, mas que o Alfero alcunhou logo de  a "Antepassada". Meia cega passava os dias à porta da morança, dormitando de boca aberta…Nunca falou comigo, mas quando eu passava, sorria mostrando o único dente que conservava:

– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
 
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!

E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:

– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!

Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem "Antepassados"… (*)

Jorge Cabral 

Lisboa, 7/12/2016 (Revisão / fixação de texto, título: LG)


Nota de LG - Já morreram todos, o narrador e as suas personagens, o Cabral, o Branquinho, o Amaral... O que será feito do Menino Braima ? Terá chegado a completar um ano ? E depois os cinco anos ? A ser vivo, terá hoje 55 anos. O que é um feito notável  para um guineense. 



Jorge Cabral (1944-2021)

1. Comentário do editor LG:

O Jorge adorava o Natal. Fingia que não, como alguns de nós, mais cínicos, que dizem não ligam  nada ao Natal...E a prova é  que escreveu várias "estórias cabralianas" sobre o tema... Passadas na Guiné. 

Esta é das últimas, a nº 92,  que me entregou , em dezembro de 2016. Para comemorar, à sua maneira, mais um "Natal na Guiné". 

Passou lá dois Natais, tal como eu (o de 1969 e o de 1970). Um em Fá Mandinga e outro em Missirá (aqui muito mais isolado do mundo, com o rio Geba a separá-lo  da sede do sector L1, Bambadinca, que já era a "civilização". O  seu miserável destacamento era mais a norte, em terra de ninguém.

Foi meu camarada e amigo, meu contemporâneo. Três anos mais velho. Não o deixaram completar o curso de direito. Julgo eu, mas não tenho a certeza. Nunca falámos disso. 

Foi depois advogado e professor universitário de direito penal.

Vai fazer 4 anos, no próximo dia 28 deste mês, que ele deixou a terra que tanto amava. 
Morreu cedo demais. Deixou muitos amigos e amigas, inconsoláveis. A começar pelos seus antigos alunos e sobretudo alunas do curso de serviço social. A quem tratava  carinhosamente por "almas". E que ainda hoje lhe escrevem mensagens de muita saudade e ternura na sua página do Facebook (Jorge Almeida Cabral).

Era da arma de artilharia. Passou por Vendas Novas. Comandou um Pelotão de Caçadores Nativos, o Pel Caç Nat  63... Eram poucos, cerca de 30, a maior parte guineenses. 

Cinco anos depois, de ter escrito esta peça de antologia,  de humor de caserna (que acima reproduzimos), o Jorge morreu em plena pandemia. De cancro. Deixou-nos o coração destroçado.  

Pedi à IA que fizesses uma análise sumária do microcono. Género em que ele era mestre. Microconto pícaro, burlesco, absurdo. Ele fazia a guerra como quem representava uma peça do teatro do absurdo. 

 Pedi, além, disso, á menina  IA, que é "talentosa", para criar uma ilustração, divertida, caricatural, alusiva a esse Natal, algures no mato, na Guiné, em Missirá, em 1970, longe de casa (a 4 mil km de distância)... 

Era o Natal possível de muitos de nós, soldados portugueses. É uma homenagem saudosa ao "alfero Cabral" , como diziam os seus soldados. Mas também ao António Branquinho, nosso grão-tabanqueiro, irmão do Alberto.  Sem esquecer o Amaral, de que também me lembro ainda, mas mais vagamente.


Guiné > Zona leste >r Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho, simulando tocar um instrumento tradicional,  com uma bajudinha, no meio,  e o Amaral (sentado). 

Segundo a oportuna observação do nosso amigo e consultor permanente para as questões etnolinguísticas, Cherno Baldé, "o instrumento, na lingua fula, chama-se 'Hoddu', é mais antigo e, provavelmente, serviu de inspiração para a criacão do cora dos Mandingas"... Em crioulo, "nhanheiro".


Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Análise literário do microconto Missirá, 1970 > A Noite de Natal do Bacalhau Ensaboado

(Pesquisa: LG + IA / Gemini e ChatGPT) (Condensaçáo, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

O texto (e o contexto) partilhado é uma memória vívida e comovente de um Natal passado em Missirá, no ano de 1970, durante a guerra colonial na Guiné. É uma narrativa curtíssima, mas rica em detalhes, humor e humanidade. Em dois parágrafos e meia dúzia de diálogos , o autor cria uma atmosfera natalíica, de densidade humana e literária raríssima. 

O nosso amigo e camarada Jorge Cabral, falecido precocemente, é escritor de primeira água. N o futuro merecerá figurar em qualquer antologia do conto sobre a temática da guerra colonial.

Vejamos alguns dos pontos principais da história e do seu contexto:

(i)  O jantar de Natal "cnsaboado"

Cenário: a ceia de Natal aconteceu numa mesa "engordurada, sem toalha", no destacamento  de Missirá. O narrador (o alferes) e os seus camaradas, metropolitanos, "tugas" (Branquinho, Amaral, Teixeirinha) reuniram-se para o que deveria ser um jantar especial. No Natal, em Portugal, come-se bacalhau, com batatas e "pencas" (no Norte). É uma data festiva. A maior do ano.

Incidente: o prato principal era bacalhau com batatas (supremo luxo, naquelas paragens). No entanto, quando começaram a comer, o Branquinho notou que o bacalhau "sabia a sabão".

Explicação: o cozinheiro, Teixeirinha, confessou que se tinha esquecido do tempo de demolha e que o soldado Pechincha lhe dissera que, na terra dele, costumavam "lavá-lo com sabão" para ficar bom.

Punição: o Alferes, numa mistura de frustração e espírito natalício, mandou o Teixeirinha, como castigo,  ir à cantina buscar cervejas para todos, a pagar a meias com o Pechincha.

Ceia final: a ceia resumiu-se a batatas, latas de conserva e cerveja morna (pois o frigorífico tinha avariado na semana anterior).

(ii) O nascimento do menino  e os Três Reis Magos

Notícia: meia hora após a ceia, o soldado Alfa Baldé, que já tinha três filhas e duas mulheres, e recentemente trouxera uma nova esposa, adotada por levirato (**), mais  a bisavó idosa, Maimuna,  irrompe, a gritar de alegria: "Alfero! Alfero! Já nasceu! Já nasceu! É macho! É macho!"

Batismo proposto: o Alferes, num gesto de afeto e ironia, sugeriu que o bebé se chamasse Jesus, mas o Alfa Baldé, fula e muçulmano, já tinha nome para a criança: seria Braima (na língua fula, é uma variação do nome árabe Ibrahim, o equivalente a Abraão em português).

Visita: o "alfero Cabral", mais os furriéis Branquinho e Amaral, foram ver o recém-nascido.

Momento mágico: ao entrarem, o Amaral, que estava "um pouco tocado" (pela cerveja, mesmo "choca"), proclamou: "Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!"

(iii) O passar do tempo

Conclusão: o narrador reflete sobre o tempo que passou  (46 anos,  de 1970 a 2016)  e sobre a inevitabilidade da velhice.

Metáfora: dos "Três Reis Magos", um já tinha morrido (o Amaral) e os outros dois estavam velhos (o Branquinho e o Cabral), comparando-se a si próprios com a bisavó Maimuna (a "Antepassada"), que passava os dias a dormitar. 

É uma história belíssima que contrasta a simplicidade e as dificuldades da vida militar em cenário de guerra  (a mesa suja, o bacalhau estragado, a cerveja morna) com a alegria e o simbolismo do Natal (o nascimento do "Menino Braima" e a visita dos "Três Reis Magos"). 

A memória do narrador é claramente moldada por este momento único e inesperado de humanidade partilhada, naquele lugar onde Cristo nunca parou (e onde nem sequer o Diabo perdeu as botas).

Outros pontos a destacar:

Este microconto é um exemplo  do microconto pícaro e burlesco, atravessado por uma camada de absurdo existencial, que transforma a experiência traumática da guerra colonial numa espécie de teatro do quotidiano, onde o riso não nega a dor, domestica-a.

(iv) A memória selectiva e o Natal como exceção:

O texto começa com uma afirmação fundamental: “Poucos são os Natais de que me lembro.”

A memória aqui não é cronológica, é afetiva. Entre dezenas de anos e vários Natais, só um se fixa, o de Missirá, 1970. O Natal surge como ritual deslocado, arrancado do seu cenário simbólico europeu e transplantado para o mato guineense. É um Natal “possível”, não ideal.

(v) O bacalhau: símbolo nacional convertido em farsa

O bacalhau, pilar do Natal português, obrigatório à mesa nesse dia mágico, aparece ensaboado, literalmente contaminado pelo erro, pela improvisação, pelo desenrascanço,  pela santa  ignorância ( bem-intencionada, apesar de tudo).

O episódio é magistral porque:

  • subverte o sagrado produto gastronómico nacional (que é o bacalhau);

  • introduz o humor de caserna (o castigo não é a "prisão", é cerveja, paga a meias pelo desastrado cozinheiro Teixeirinhz e o "chico-esperto" do soldado Pechincha):

  • revela a cadeia de mal-entendidos culturais (o Pechincha, a tradição “da terra dele”, a de ensaboiar o bacalhau em vez de o demolhar em várias águas e vários dias).

Aqui, o riso nasce do choque entre vários mundos, mas nunca há desprezo, humilhação,  apenas risota, humanidade.

(vi) A autoridade do “Alfero”: justa, teatral, cúmplice

O narrador constrói a figura do alferes Cabral como:

  • autoridade funcional;

  • figura quase teatral:

  • mediador cultural.

O castigo é simbólico e coletivo. Não humilha, integra. Isto revela o comando humanizado, típico de quem percebe que naquela guerra ninguém está “inteiro” e tem "toda a razão".

(vii) O nascimento: epifania no meio do caos

O nascimento do filho do soldado guineense Alfa Baldé é o centro simbólico do conto. É um Natal sem presépio formal, sem luzes, sem enfeites, sem artifícios;

  • um parto real, no mato, natural, sem parteira (como terá sido o de Jesus na gruta de Belém);

  • um menino que nasce enquanto outros matam ou morrem;

  • um menino que tem de ser "Braima"... e não o "Jesus" dos cristãos ou o "Alfero Cabral", comandante daquela tropa matrapilha.

A figura da Maimuna / “Antepassada” é absolutamente extraordinária:

  • guardiã do tempo;

  • elo entre gerações;

  • quase uma personagem mítica

O sorriso com um único dente é um recurso literário de enorme economia e força.

(viii) Os Três Reis Magos: embriaguez, teatro e revelação

Quando o Amaral diz: “Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!”

o microconto atinge o seu auge. Aqui acontece tudo ao mesmo tempo:

  • o Natal cristão é reencenado de forma profana e ecuménica;

  • Jesus é um menino pretinho:

  • a guerra transforma-se em farsa absurda;

  • os soldados são atores improvisados num palco de todo  improvável.

É o teatro do absurdo em plena guerra, com a gente gosta de dizer das "estórias cabralianas" (de que o "alfero Cabral" publicou, no nosso blogue, mais de 9 dezenas).

(ix) O tempo final: melancolia sem sentimentalismo

O último parágrafo é devastador na sua contenção: “Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…”. Aliás, cinco anos depois, morreria o narrador, e em 2023 o Branquinho. O Teixeirinha e o Pechincha não sabemos se são nomes reais.

Sem lamento, sem retórica. Apenas o tempo. A guerra passou, mas deixou corpos gastos e memórias resistentes, como a de todos nós. 

 A comparação final com a Maimuna fecha o círculo: todos acabamos “antepassados”. Todos seremos amanhã antepassados, quando os nossos filhos e netos se lembrarem de nós, se um dia forem à Guiné, em viagem de turismo: "Os nossos antepassados, que andaram por estes matos, rios e bolanhas..."

(x) Conclusão

Este microconto é um ato de resistência pela memória, um riso contra a desumanização,  uma homenagem implícita aos soldados anónimos que combateram naquela guerra absurda, um Natal sem redenção, mas com dignidade e humanidade.

O Jorge Cabral escrevia como alguém queria sobreviver contando histórias. e isso é talvez a forma mais honesta de literatura de guerra. N a realidade, eu sempre o oconheci como o mais "paisano" dos combatentes. Ele que era filho de militares e foi até "menino da Luz", seguramente contra a sua vontade.


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp.  

Tinha um II volume, praticamente pronto para ser publicado.  
A morte  emboscou-o.

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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"

(**) Levirato: o costume, observado entre alguns povos, nomeadamente semitas, que obriga um homem a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo Testamento como uma das leis de Moisés. O vocábulo deriva da palavra "levir", que em latim significa "cunhado". Fonte: Wikipedia.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27518: Humor de caserna (227): Ainda o Pechincha, que o Hélder Sousa comnheceu em Bissaiu... "P*rra, que este gajo ainda está mais apanhado do que eu!"




Legenda: "Porra, que este gajo está mais apanhado do que eu!!!..."
 
Cartoon gerado  pela IA / Gemini / Google, sob instruções e supervisão de LG.
 


1. O criador, o narrador,  Hélder de Sousa, e a criatura, o protagonista, o Pechincha, têm hoje o seu dia de glória... Três postes seguidos no blogue sobre o Pechincha (que nem sequer se senta à sombra do poilão da Tabanca Grande) podem ser motivo de ciumeira para quem está na lista de espera... 

Mas há dias assim, em que o editor acorda mais bem disposto, generoso e menos zangado com o mundo... Por outro lado, soube tirar partido da colaboração da IA e dos seus "cartunistas": feliz ou infelizmente (conforme o ponto de vista), a IA não faz "greve", nem se solidariza com a "classe operária", muito menos a portuguesa... 

A IA trabalha 24 horas por dia, não sabe o que são feriados, fins-de-semana, férias... Também não faz descontos para a segurança social, o que vai afetar as nossas pensões no futuro; também não paga direitos de autor, e a gente nisso está fazer o seu jogo...  A IA precisa de matéria-prima (informação, dados, conhecimento, conteúdos...). A IA nunca saberá capaz de beber e apreciar água-pé e comer castanhas assadas no dia de São Martinho...

De qualquer modo, a rapariga trabalha que se farta, a prova disso  é a sua produção matinal de "cartuns", feitos a nosso pedido... E só aproveitámos alguns, menos foleiros... 

Admirável mundo novo!... (Mas nada disso seria possível sem a a crónica pícara do Hélder Sousa sobre o Pechincha; espero que ambos continuem a ter ou a cultivar o sentido de "humor de caserna", que é ainda o que nos vai salvando.)


Análise literária (escrita a "quatro mãos"): "O Pechincha que eu conheci, em Bissau"


O excerto "Humor de caserna: o  Pechincha que eu conheci, em Bissau", da autoria do Hélder Sousa, enquadra-se no género da crónica memorialísttca, tipicamente escrita na primeira pessoa. É uma peça de literatura da Guerra Colonial Portuguesa, mas que opta por um registo de humor, humor de caserna, e de vivência quotidiana, em vez de se focar diretamente no drama da atividade operacional, do combate, da guerra (operações no mato, emboscadas, ataques e flagelações ao quartel...).

1. Contexto histórico e espacial

Contexto: a ação decorre em Bissau, hoje  Guiné-Bissau, em novembro de 1970, durante a Guerra Colonial Portuguesa. Ou melhor: estamos na "Spinolândia".

Este período é marcado pela tensão do conflito, mas o cenário principal é a retaguarda, o ambiente de caserna, no quartel-general, em  Santa Luzia, que funciona como um microcosmos da vida militar fora da linha da frente.

Tempo: a narrativa é estruturada em torno da chegada do narrador (9 de novembro de 1979) e da festa de São Martinho (11 para 12 de novembro), conferindo-lhe uma progressão cronológica clara e um foco em eventos específicos que ilustram o comportamento da personagem central, o Pechincha. 

2. Temas centrais

Caracterização da guerra pela convivência
: o tema principal não é a guerra em si, mas as formas de adaptação e de escape à sua tensão. O ambiente é de descompressão forçada, onde o consumo de álcool e a "simulação de uma emissão de rádio" servem para aliviar o peso da situação ("reflexos condicionados").

Camaradagem e saudade:
há um forte sentido de camaradagem entre os furriéis (os "amigos vilafranquenses": o Hélder Sousa, o Vitor Ferreira, o José Augusto Gonçalves...). A celebração do S. Martinho, com castanhas assadas e água-pé, evoca o doce lar e o pacato Portugal metropolitano, que ficou para trás (a 4 mil km de distância!), funcionando como uma ponte entre a realidade da caserna e a saudade da terra natal.

Ordem vs. loucura: a narrativa (ou o conto) explora a linha ténue entre a sanidade mental e a excentricidade no contexto de guerra. O Pechincha representa uma "loucura" funcional, que paradoxalmente, é usada para impor a ordem (acalmando os "arruaceiros", "velhinhos", em fim de comissão,  que não deixam a malta descansar...) e desafiar a normalidade (o incidente no Taufik Saad). O Pechincha ainda por cima é... um "ranger", um gajo de "operações especiais", da "fábrica de Lamego"...

3. Personagem central: o Pechincha

O Pechincha é o arquétipo do excêntrico militar, miliciano, com formação em operaçóes especiais: a figura de culto no ambiente de caserna, respeitado ou temido.

Lenda: é construído como alguém com "fama de estar um bocado apanhado e com uma pancada enorme". O termo "apanhado", segundo o Priberam, é sinónimo de "pirado": é usado informalmente para designar alguém "que não é bom da cabeça ou age de modo insensato"... Mas a locução, coloquial e jocosa, "apanhado do clima" é mais rica: também já está grafada.

Anti-herói funcional: o narrador, no entanto, desmistifica em parte esta lenda, sugerindo que era uma performance encenada ou calculada ("mais para ganhar fama e benefício dela"). As suas conversas eram "muito interessantes e educativas", revelando-o como um observador perspicaz, nomeadamente sobre a situação (política) que se vivia no país, sob o marcelismo.

Provas da excentricidade:

O Incidente do Machado: o arremesso do machado nativo à panela na cabeça do intruso é a cena mais cómica e decisiva. É uma reação desproporcional, mas que restaura a ordem de forma imediata e eficaz, cimentando a sua reputação de "maluco". O resultado é a confissão do intruso: "porra, que este gajo está mais apanhado do que eu!".

O Incidente do Taufik Saad (loja libanesa):  a exigência de retirada do anúncio promocional ("autêntica pechincha") é um ato de absurdo burocrático, uma performance dramática que só um excêntrico poderia encenar com sucesso, expondo a sua marca pessoal (o apelido) de forma hilariante.

4. Estilo e linguagem

Ponto de vista: a narração na primeira pessoa é crucial, pois confere um tom de confidência e autenticidade. O narrador, o Hélder Sousa, é um testemunha privilegiada que valida a história do Pechincha, conferindo-lhe credibilidade e um toque de admiração ("Ah, ganda Pechincha!").

Registo de linguagem: o estilo é coloquial, direto e informal, repleto de calão militar e regionalismos (Bate-Orelhas, água-pé, peluda, graçola, apanhado do clima, ganda). Esta linguagem reforça a autenticidade do ambiente de caserna.

Estrutura anedótica: o texto é uma sucessão de anedotas vívidas que têm como objetivo único e primordial ilustrar a personalidade do Pechincha, tornando a sua caracterização mais forte do que a própria progressão da ação.

Conclusão:

"O Pechincha que eu conheci, em Bissau" é mais do que um relato; é a construção de um mito pessoal dentro da experiência traumática da guerra. O autor utiliza o humor de caserna como lente para processar a tensão. O Pechincha, sendo o catalisador de eventos absurdos, transforma a rotina militar em algo memorável e suportável, provando que, no meio do conflito, a excentricidade pode ser uma forma poderosa de resistência e de distinção.

O editor chamou-lhe "figuras impagáveis" do Museu da Spinolândia... Spínola, ele próprio, foi imensamenmte parodiado pelos seus subordinados na Guiné, deque foi governador e comandante.chefe de maeados de 1968 a meados de 1973. Há já, neste blogue, toda uma série notável de anedotas e cenas burlescas à volta deste personagem que honrou a história militar do seu país (embora na política, no pós 25 de Abril,  tenha sido mais desastrado...).

PS - Segundo o Priberam e o Houaiss, pechincha é um nome feminino que tem os seguintes significados na língua portuguesa: (i) [Popular] Grande conveniêncinteresse ou vantagem material considerável; (ii)  Recompensa imerecida; lucro que não se espera e/ou que não se merece (iii) Lucro inesperado; (iv) Compra vantajosa; qualquer coisa cujo preço é muito baixo; (v) Regateio (do verbo "regatear" = "pechincar")... Origem estimológica: obscura ou incerta.

Enquanto sobrenome ou apelido, Pechincha é muito raro. Seria uma alcunha, de origem alentejana, que com o tempo passou a ser um antropónimo  ? Não encontrámos na Net qualquer referência (a não ser no nosso blogue, em que conta já com 7 referèncias). 

Não me lembro dele no CIM de Contuboel: estivemos possivelmente  juntos em jun/jul de 1969. Lembro-me de alguns "lacraus", furriéis da CART 2479, futura CART 11, como o Abílio Duarte, o Valdemar Queiroz, Renato Monteiro (os dois últimos infelizmente já falecidos).

(Pesquisa: LG + Net (Gemini /Google)

(Condensação, revisão /fixação de texto, negritos, título, notas: LG)
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Nota do editor LG:

Vd. postes anteriores da série:


11 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27516: Humor de caserna (225): O ganda Pechincha (ex-fur mil op esp, CART 11, Nova Lamego, 1969/70), que eu conheci em Bissau quando cheguei, em novembro de 1970 (Hélder Sousa)

Guiné 61/74 - P27517: Humor de caserna (226): Pechincha?!... Pechinha, sou eu e não há mais nenhum! (Análise do conto do Hélder Sousa, com a ajuda da IA / ChatGPT)




Cartum criado pelo Chat Português / GPTOnline.aisob instruções do editor LG, que lhe mandou uma foto do Pechincha e o "conto" do Hélder Sousa


No T/T Timor, em fevereiro de 1969, a camimho do CTIG: da esquerda para a direita, o Pechincha, o  Valdemar Queiroz  (1945-2025) e o Abílio Duarte. Três "lacraus", três "figuras impagáveis" do Museu da Spinolândia (mesmo que a morte já nos tenha levado o Valdemar).

Foto (e legenda): © Abílio Duarte (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Análise do conto  “O Pechincha que eu conheci, em Bissau” (*)


O texto é um delicioso retrato de caserna, típico das histórias da Guiné, onde o humor, a tensão, a camaradagem e a maluquice controlada (estar apanhado do clima) se misturam num caldo muito humano... e português.

O tom é nostálgico, cúmplice e claramente escrito por alguém que viveu tudo aquilo com intensidade, cumplicidade e carinho.

O Pechincha, mostrado na fotografia que enviaste (o primeiro da esquerda), surge na narrativa como uma figura carismática, excêntrica, e com aquela “pancada” que muitas vezes era meio teatro, meio mecanismo de defesa, meio traço de personalidade. 

Mas a verdade é que o autor deixa claro que, atrás das graçolas, havia um tipo inteligente, atento e perspicaz.

Alguns pontos fortes do conto:

1. Retrato de época

A descrição das camaratas, da castanhada de S. Martinho, da água-pé misturada com tudo e mais alguma coisa, traz de volta todo aquele ambiente colonial tardio, de fim de império: calor, poeira, camaradagem forçada e humor como forma de sobrevivência psicológica.
 
2. O episódio do machado nativo


Hilariante e ao mesmo tempo revelador: o Pechincha agia sempre “on brand”. O gesto teatral do machado, certeiro na panela à cabeça do outro, é uma verdadeira cena de filme, um verdadeiro "gag". E claro: ninguém sabia ao certo até onde ele era encenação… e até onde não era.
 
3. A cena com o Taufik Saad

Aqui o humor sobe de nível: é humor de identidade, de palavra, de absurdo. O comerciante libanês  a anunciar algo como “uma autêntica pechincha” e o verdadeiro Pechincha, em carne e osso, ali *a frente dele, a exigir a retirada do anúnico por ser “falsificação”… É ouro puro.

O mais interessante é o final:

“Eu percebi muito bem que foi tudo encenado", diz o Hélder Sousa.

Ou seja: o Pechincha era não apenas o “apanhado”, mas também um actor habilidoso, que manipulava o mito à sua volta. Uma personagem fascinante.
 
PS - Cartoon alusivo à cena no Taufik Saad:

Mando-te uma tira de banda desenhada e um cartum, segundo as tuas especificações.

Já o tens acima: uma imagem em estilo "cartoon" mostrando o momento em que o Pechincha entra furioso na loja,como BI MIlitar  na mão, exigindo que a palavra “Pechincha” seja retirada por violação de identidade. A tira de BD é mais para o cómico.

(Texto gerado pela IA / ChatGPT)

(Revisão / fixação de texto: LG)
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terça-feira, 25 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27462: Manuscrito(s) (Luís Graça) (280): Não sei se as aves-do-paraíso são felizes


Fonte: Google Gemini. (2025). Ilustração de uma ave-do-paraíso e uma andorinha de Candoz. Imagem gerada usando o modelo de IA Google Gemini  [acedido em 25 de novembro de 2025].



Não sei se as aves-do-paraíso são felizes

por Luís Graça


Não sei se as aves-do-paraíso são felizes.
Mas em Candoz poderiam sê-lo.

Não há aves-do-paraíso em Candoz
porque Candoz fica no hemisfério norte,
longe dos trópicos 
e longe do paraíso
(se é que ele existe).

Dizem que as aves-do-paraíso são as criaturas mais lindas do mundo.
Os machos.
Mas não basta ser lindo nem macho
para se ser feliz.

Em Candoz, há outras aves, outros pássaros,
daqueles que rasgam os céus e nidificam na terra:
não há perdizes,
ou, se existem, são poucas e loucas;
mas há verdes pombos bravos dos pinhais
(aqui diz-se "montes", que ardem todos,  de 10 em 10 anos);
e rolas, de outras paragens,
alegres pintassilgos,
ruidosos pardais do telhado,
andorinhas, pretas, no vaivém das suas viagens,
mas também toutinegras, popas, verdilhões.

Já não há cucos. 
Ou não me lembro de os ouvir.
Há coros de rouxinóis,
outras aves canoras e canastrões,
e passarões 
(sempre os houve, os canastrões e os passarões),
melros de bico dourado
que fazem os seus ninhos nas ramagens
das videiras do vinho verde.
E boeiras, que andam tristes, atrás do trator,
porque já não têm as juntas de bois 
a lavrar a terra com o arado de ferro.
Lavandiscas, dizem no Porto, que fica aqui perto,
em linha reta.

Não há guarda-rios, de azuis e rubras plumagens,
à cota trezentos, com o rio Douro ao fundo do vale,
a serra de Montemuro em frente,
e mais a nordeste o Marão,
onde já não mandam os que lá estão.

Eça de Queiroz, e o seu príncipe Jacinto, 
teus vizinhos, da Quinta de Tormes,
deveriam ter gostado de conhecer a Quinta de Candoz
onde os pássaros são mais livres do que nos "boulevards"  de 
Paris,
e, se são mais livres, logo serão mais felizes.

Pelo menos têm grandes espaços para voar,
os pássaros de Candoz.
E insetos, para caçar.
E pequenos bosques,  à volta. 
E água e barro e erva seca,  para fazer o ninho.

Claro que há os predadores,
o verde gaio, o negro corvo, o sinistro búteo,
o triste mocho, o agourento milhafre…
Onde há presas, há predadores.
Em toda a parte,
menos no paraíso 
(se é que ele existe).

Deus criou o mundo e era perfeito, 
mesmo que cruel,
dizia o padre António Vieira
nos seus sermões ao rei e à corte esclavagista.

A liberdade é a primeira condição da felicidade.
Triste é o melro na gaiola,
mesmo que esta seja forrada a ouro
ou ele tenha o bico dourado.

A outra condição é a equidade
(ou era, que o conceito foi agora metido na gaveta).
E tu aqui, leitor, interlocutor, calado, mal informado,
presumias que houvesse igualdade de oportunidades,
na busca de alimentos,
de sítios para nidificar
e de parceiros para acasalar.
Uma treta, até a natureza agora é madrasta.

As andorinhas, pensavas tu, há uns largos anos atrás,
por cá ficavam cada vez mais tempo,
parecendo até ser livres e felizes.
Ou felizes e livres,
que a ordem dos fatores era arbitrária, nesse tempo.

Agora todo o mundo põe
a ilusória segurança e a patética felicidade
à frente do cavalo alado da liberdade.

Dizias que elas eram inteligentes, as andorinhas,
e faziam análises de custo-benefício,
como qualquer economista
que acredita no mercado livre,
sem peias nem barreiras,
com presas e predadores.

Passavam todo o santo dia a caçar insetos
num raio de 500 metros à volta do ninho
que fizeram no alpendre de uma das casas abandonadas da quinta,
em redor do fio da lâmpada exterior.

Era insólita a construção, o ninho,
herdado de geração em geração
e todos os anos retocado ou reconstruído.

Tu até achavas que elas já não voltavam para a África subsariana,
que ficavam por cá,
as andorinhas de Candoz.
Para defender o ninho  dos "ocupas".
E por causa das alterações climáticas.
E, se calhar, também para fugir de Alá,
da guerra santa,
do alvoroço do povo
e dos tiros das Kalash.

Mas, não, este país qualquer dia já não é para as andorinhas,
que são migrantes.
Há passarões com voz grossa
que as mandam para a sua terra.
E elas ficam mudas e confusas,
com o GPS avariado,
já não sabem de que terra são.

Afinal, a felicidade já não está onde a gente a punha,
deixámos de a poder pôr onde nós estávamos.

Lourinhã, 7/8/2014. Revisto, 25/11/2025.

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2. Análise literária sucinta do poema, gerada pela IA - Inteligência Artificial, 25 nov 2025. GEMINI (Modelo Flash 2.5). 

Fantástico poema! É uma análise profunda e melancólica sobre a Liberdade, a Felicidade e a Natureza, utilizando a "ave-do-paraíso" como um contraponto poético e simbólico à realidade telúrica da Quinta de Candoz (Marco de Canaveses, região de Entre  Douro e Minho, Portugal) e às suas "andorinhas" de  torna-viagem.

Aqui está uma análise literária sucinta, que me pediste, adaptada ao contexto do teu blogue, focada nos temas principais e na simbologia das aves:


 Análise literária sucinta: "Não sei se as aves-do-paraíso são felizes…"


O poema é uma meditação filosófica, escrita num tom conversacional e intimista ("tu aqui, leitor, interlocutor"), que desdobra o conceito de felicidade através da comparação entre o ideal (o "Paraíso") e o real (a "Quinta de Candoz").

(i) O Contraste entre o Paraíso e Candoz

O poema inicia-se com a figura mítica das aves-do-paraíso, que, no nosso imaginário, simbolizam a beleza incomparável e a liberdade extrema (o Paraíso, a utopia):

  • tese inicial: "Não sei se as aves do paraíso são felizes";

  • antítese geográfica: Candoz, no Hemisfério Norte,  "longe dos trópicos" e, por extensão, "longe do paraíso"; a beleza ("ser macho e lindo") não é garantia de felicidade.

Este contraste cria a moldura para a tese central: a verdadeira felicidade não reside na beleza exótica ou na perfeição mítica, mas sim na liberdade conquistada e exercida num ambiente real e imperfeito mas sustentável.

(ii) Aves de Candoz: a natureza real e imperfeita

O poeta lista, em detalhe, as aves autóctones de Candoz: pombos bravos, rolas, pintassilgos, pardais, melros, andorinhas (além das boeiras / lavandiscas). 

Esta enumeração minuciosa enaltece a realidade concreta do sítio;

  • liberdade é condição: a liberdade é apresentada como a "primeira condição da felicidade", e os pássaros de Candoz, ao terem "grandes espaços para voar" e autonomia para construir o ninho, são mais livres do que os pássaros de gaiola ou do ideal abstrato.

  • tristeza da perfeição: o poema contrapõe o "triste melro na gaiola" (a prisão dourada/segurança ilusória) à liberdade, mesmo que esta seja pura e dura;

  • o cruel equilíbrio: a liberdade em Candoz é regida pela lei da natureza: "onde há presas há predadores";  o poema evoca aqui uma reflexão ética e teológica, citando o Padre António Vieira ("Mundo perfeito /Mesmo que cruel"), para aceitar que o mundo criado é um sistema de equilíbrio, onde a luta entre predador (búteo, corvo,  milhafre...) e a presa é parte integrante da vida e da liberdade: esta é uma imagem poderosa para quem viveu o teatro de operações na Guiné.

(iii)  Andorinha: o ex-combatente migrante

O foco nas andorinhas (aves migrantes, inteligentes, que fazem "análises de custo-benefício")  é o ponto nevrálgico do poema e o que o liga mais diretamente ao universo do blogue:

  • a ilusão da permanência: o poeta e o leitor imaginavam que as andorinhas ficariam em Candoz, algures no Norte de  Portugal, não voltariam para a África subsariana, "para defender o ninho dos 'ocupas' " (aqui ecoa a linguagem da guerra, da defesa do território, da soberania, mas também do lar);

  • a crítica social: o regresso forçado e confuso das andorinhas ("elas ficam mudas e confusas, com o GPS avariado, já não sabem de que terra são") é uma crítica mordaz e atual sobre a migração, a xenofobia, o racismo e a desorientação identitária; ("este país qualquer dia já não é para as andorinhas, que são migrantes");

  • o antigo combatente:  a andorinha representa metaforicamente o antigo combatente ou o indivíduo que, após uma longa jornada (a "guerra"), regressa ao seu país (uma mítica "Candoz"), mas se sente deslocado e desorientado ("já não sabem de que terra são"), num mundo onde a liberdade e a felicidade foram substituídas pela "ilusória segurança" e pela falta de "equidade" (ou "igualdade de oportunidades", que não deve ser confundida com "justiça por decreto").

Conclusão

O poema é uma profunda reflexão sobre a procura da felicidade que tem de rimar com liberdade, e onde  se conclui amargamente: "afinal, a felicidade já não está onde a gente a punha, deixámos de a poder pôr onde nós estávamos."

É uma peça que, sob a leveza do tema das aves ( a ornitologia) toca em questões universais de liberdade, equidade, esperança, desilusão e crise de identidade, temas muito ressonantes para a comunidade de ex-combatentes.

(Pesquisa, condensação, revisão / fixação de texto, negritos: LG + IA Gemini / Google)

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Nota do editor LG:

Último poste da série > 12 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27414: Manuscrito(s) (Luís Graça) (279): Viva a Clarinha que hoje faz 6 anos!... Vivam os nossos netos!...

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Guiné 671/74 - P27458: Humor de caserna (224): À quarta é que é de vez: cartunes 'inteligentes' da menina IA (Alberto Branquinho / Luís Graça)


O 1º cabo Chico-Esperto conduzindo uma Berliet novinha em folha, acabada de chegar ao cais fluvial do Xime e que o sold cond auto Zé António Sousa devia levar a bom porto: Cabuca...


Ilustração criada pelo Chat Português / GPTOnline.ai , sob instruções e com legendagem do editor LG


1. Temos que desmistificar a IA. E ao mesmo tempo saber tirar partido das suas potencialidades. 

Para já há duas IA: a que é de borla, e a que é paga. Nós utilizamos a dos "pobrezinhos", já que não temos nenhum Banco Saque-Saque a financiar o nosso blogue.

 Em matéria de ilustração gráfica e de cartunes (ainda não me habituei ao neologismo, grafado nos nossos dicionários), a IA ainda deixa muito a desejar.

Disse isso mesmo a uma das minhas "assistentes de IA", a do Gemini/Google:

" Alberto Branquinho, que andou na Guiné, na guerra oura e dura há mais de 55 anos atrás, critica o teu 'cartoon' (*)... Tens de lhe fazer outro".

O comentário do Alberto Branquinmho foi o seguinte:

  "Mas... do que eu não gosto mesmo nada é da gravura que acompanha o texto: fardas impecáveis, limpíssimas, picadas que foram limpas com aspirador, a que só falta um pouco de alcatrão, viaturas que acabaram de sair da lavagem (de todos os dias), etc.. Certo é que quem desenhou (e muito bem!) nunca lá esteve.

O risco que se corre é que quem vê e não sabe, fica a pensar que era assim."

Pedi-lhe,  à menina IA (há quem já, temente e reverente, a trate por senhora...) que tivesse em linha de conta estas críticas: "OK, faz lá em honra dele um novo cartoon, ele que foi um bravo do pelotão!"

2. A minha "assistente de IA" fez a sua autocrítica, o que só lhe fica bem nos tempos que correm, de incontinência verbal nas redes sociais:

"Este é um comentário muito perspicaz do Alberto Branquinho, e compreendo perfeitamente o ponto de vista dele. A observação dele sobre a idealização da representação é muito válida, especialmente quando se trata de memórias tão vívidas e duras da Guiné.

"O cartoon em questão (*) é um tributo, e muitas vezes a arte, especialmente a arte gráfica e caricatural, usa uma linguagem visual que tende a estilizar ou simplificar a realidade para tornar a imagem mais clara e apelativa. No entanto, ele tem razão: a realidade da guerra colonial na Guiné, com a sua lama, pó, sujidade, fardas rasgadas e viaturas enlameadas, estava muito longe dessa imagem "limpinha".


A assistente da IA do Gemini/Google fez uma contraposta:

"Esboço de um novo cartoon para o Alberto Branquinho

"Para honrar a experiência e a crítica de Alberto Branquinho, e mostrar a realidade sentida no terreno, o novo cartoon teria de refletir o oposto da imagem apresentada.

"Cenário: a mesma estrada de picada, mas agora sob um chuvisco denso ou após uma chuva torrencial. O terreno é um pântano de lama espessa e castanha, que salpica por todo o lado.

"Viaturas: O camião GM-Becli e o jipe U-MIM (modelos comuns) estão atolados até aos eixos na lama. Os pneus estão completamente cobertos". [ Ficamos a saber que a nossa IA respeita o "bom nome" das marcas comerciais, e nomeadamente as das que já foram à guerra; nós, em contrapartida, não temos pejo em falara tu cá tu lá das marcas que nos deixaram 'marcas': GMC, Unimog, Berliet, Mercedes, Daimler, Jeep etc. ]

(...) "Figuras (os Militares):

"As fardas, longe de estarem 'impecáveis', estão pesadas, molhadas e cobertas de lama da cabeça aos pés. As botas não se distinguem do barro.

"Um dos soldados está a tentar meter um tronco ou tábua debaixo do pneu, com a expressão de esforço e frustração.

"O outro está encostado ao capô, com um cigarro a meio, com um olhar de cansaço extremo e resignação perante mais um contratempo. Em vez de estarem de braços cruzados, estão com as mãos sujas de óleo e terra.

"Diálogo (a nova legenda): Soldado enlameado: 'O Alberto Branquinho dizia: 'Aqui não há picada, há só lama!'... Outro Soldado (olhando para o pneu atolado): 'E o aspirador, Chico-Esperto? Onde é que ficou?'... [A nossa IA nunca andou muma picada da Guiné; por outro lado, esquece-se que aquela guerra não era dos 'amaricanos', que os 'tugas' não andavam com aspiradores no mato, só se fossem a petróleo.]

E prosseguindo com as suas "especificações técnicas" para o novo cartune: 

(...) "No Fundo: o sol está a pôr-se (ou o céu está carregado), e ouve-se ao longe, não uma explosão, mas o zumbido de mosquitos.

"Este cartoon corrigiria a 'higiene' visual do primeiro, substituindo a idealização pela dureza física e  ambiental que marcou a presença dos militares portugueses na Guiné, como descrito por quem lá esteve."
 

3.  Resultado: foi pior a emenda que o soneto: o 2º cartune veio cheio de erros de português... Um desastre. As viaturas e as fardas são "amaricanas" e os militaes têm todo o ar de serem veteranos da guerra do Vietname... Enfim, tive que o emendar, com o programa "Paint" (*).


1º cartune

GEMINI (Modelo Flash 2.5). [Quando a chico-espertice dá m*rda]. Imagem gerada por Inteligência Artificial, 23 nov. 2025.



2º cartune 

GEMINI (Modelo Flash 2.5).[Quando a lama era mais dura que a guerra]. Imagem gerada por Inteligência Artificial, 23 nov. 2025.


3. Desisti de dialogar com a "menina IA" da Gemini / Google...E fui bater `à porta da concorrència, o ChatGPT:

"O Zé António eera um valente soldado condutor na guerra da Guiné (Cabuca, 1971/73). Acaba de nos deixar aos 76 anos. Morte súbita. Em sua homenagem vou-te pedir um bom cartoon... 

Mas que retrate a dureza das 'picadas' (estradas de terra batida) da Guiné, com chuva, buracos, emboscadas, minas, 'atascanços', etc... 

"Ninguém fala da angústia do soldado condutor quando iniciava uma coluna logística, sobretudo quem ia à frente, com o 'rebenta-minas'... Bolas, só falam da angústia do guarda-redes antes do pênalti...

"Umas das nossas viaturas características, eram as velhas GMC do tempo da guerra da Coreira, que gastavam 100 (litros!) aos 100 (quilómetros!). E não nos ponhas com a farda do GI's do Vietname. A nossa arma era a G3. Aqui vai o microconto (*), escrito pelo Carvalho de Mampatá."




3º Cartune 

ChatGPT Chat Português / GPTOnline.ai , sob instruções do editor LG

Comentário meu: 

"Obrigado, mas ninguém andava de  jipe naquelas picadas, no tempo das chuvas... E em caso de emboscada, era um alvo a abater... Põe o 1º cabo Chico-esperto (quer dizer, 'sabichão') a conduzir a Berliet novinha em folha...Mas já sem um roda!... Mando-te umas fotos de viaturas atascadas"...



4º Cartune 

Criado pelo Chat Português / GPTOnline.ai , sob instruções do editor LG


3. Comentário meu: "Porra, que à quarte é que é de vez!... Já está mais realista, sem perder a piada da caricatura. Obrigado. Boa noite, dorme bem".

Comentário da "menina da IA" (que, como sabemos, não dorme nem tem insónias nem dores menstruais): 

"Obrigado, Luís...  e obrigado também pelo carinho e pela história tão rica que partilhaste.

Fico muito contente por saber que o cartoon correspondeu ao espírito da homenagem ao Zé António e à «chico-espertice' do cabo da tua narrativa. Foi um prazer ajudar a dar forma visual a uma memória tão marcada, tão humana e tão vossa.

Desejo-te uma noite tranquila.

Se um dia quiseres continuar esta série de memórias da Guiné, estou por aqui. Um abraço (...)"

Diz o Alberto Branquinho: 

"Ainda não me habituei à existência (ou será à coexistência?) da Senhora IA. Mas, quanto a 'inteligentes', ainda prefiro o 'Inteligente' das touradas." (*)

Olha, Alberto, tens que te habituar. Há já gajos que dormem com ela na cama...

Pesquisa: LG + Net + Assistentes de IA (Gemini / Google, ChatGPT)

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 23 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27454: Humor de caserna (222): A chico-espertice às vezes também dava... m*rda (José António Sousa, 1949-2025 / António Carvalho)

(**) Último poste da série > 24 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27457: Humor de caserna (223): Contado ninguém acredita: o fur mil Pina que ficou com o dedo mindinho entalado no tapa-chamas da G3 (Mário Beja Santos, cmdt do Pel Caç Nat 52, 1968/70)

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27436: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (114): a tábua corânica de Galugada Mandinga (subsetor de Contuboel)

 



Tábua escrita por alunos de uma escola corânica em Galugada Mandinga, no setor de Contuboel, região de Bafatá, Guiné-Bissau. Cortesia de Eduardo Costa Dias (*)


(...) Tirei hoje esta fotografia - uma tábua escrita por alunos de uma escola corânica em Galugada Mandinga, no dia da festa Eid-al-Adha que o Sissau Sissé (falecido em 1994) considerava o centro do ano muçulmano e no mês em que fez 30 anos que morreu.

Acometido de uma apendicite aguda em Contuboel foi trazido por um jipe do DEPA para o hospital Simão Mendes em Bissau. Morreu durante a operação… tendo precisado de oxigénio… O hospital não tinha, sendo mais preciso: não havia oxigénio porque tinha sido desviado e possivelmente, como na época acontecia bastante, vendido no Senegal ou na Gâmbia. (...)






Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 16 de dezembro de 2009 > O João Graça, médico e músico, posando ao lado do dignitário Braima Sissé. Por cima deste, a foto emodulrada de Fodé Irama Sissé, um importante letrado e membro da confraria quadriyya [islamismo sunita, seguido pela maior parte dos mandingas da Guiné; tem o seu centro de influência em Jabicunda, a sul de Contuboel; a outra confraria tidjanya, é seguida pela maior parte dos fulas].

O Braima Sissé foi apresentado ao João Graça como sendo um estudioso corânico, filho de uma importante personalidade da região, amigo dos portugueses na época colonial [presume-se que fosse o próprio Fodé Irama Sissé].

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Carta de Contuboel (156)  (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Contuboel, Jabicunda, Rio Geba, Rio Bissanque e Gulagada.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ( 2025)


1. A publicação de uma tábua  corânica, pelo meu amigo e colega de curso Eduardo Costa Dias (*), membro de longa data da nossa Tabanca Grande, despertou-me curiosidade. Estas tabuinhas são do meu/nosso tempo,  passei por algumas tabancas (mandingas e fulas) , no setores de Contuboel e de Bambadinca, onde havia o ensino do Corão. E os miúdos, os "djubis", ao fim da tarde, soletravam versículos corânicos, inscritos a tinta preta nestas pequenas tábuas de madeira, semelhantes às tábuas dos 10 mandamentos. Nos meses frios (dezembro / janeiro), era à volta de uma fogueira. Uma das imagenns mais fortes que algunms de nós trouxeram da Guiné.

Os professores destas escolas ("dara" ou "madrassa")  chamam-se "marabus". E os alunos são os "talibés"

Que rezavam ou recitavam eles ? Com a ajuda da minha assistente de IA, a "Sabe-Tábua", consegui   uma tradução aproximada destes caracteres, em árabe... Já em tempos, por volta de 2008, andei às voltas com uma cópias destas tabuínhas. Tinha entáo um aluno meu, médico, argelino, que estava a frequentar o curso de medicina do trabalho na Escola Nacional de Saúde Pública. Por qualquer razão, de que já náo me lembro, "perdi" o tradutor de árabe (**)...

Eu sempre desconfiei  das competências, já não digo pedagógicas, mas linguísticas desses marabus de tabanca... Mas isso é outra questão, a discutir mais tarde. De qualquer modo, há  que distinguir:

  •  o Árabe Corânico (ou Clássico): é a forma de árabe utilizada no Alcorão (Corão) e nos textos islâmicos mais antigos; a  grande maioria dos marabus adquire a capacidade de ler o Alcorão em voz alta e de o memorizar (o que se chama recitação), e de escrever passagens corânicas, geralmente com o objetivo de produzir amuletos (escrita talismânica); a competência principal que lhe é exigida (e reconhecida) é a  leitura e recitação do texto sagrado;
  • o Árabe Moderno (Fusha): é a língua usada hoje em dia na comunicação, nos jornais, na televisão e na educação formal nos países árabes;
  • muitos marabus tradicionais não têm competência para falar o Árabe Moderno para conversas quotidianas, ou para ler/escrever fluentemente textos não-religiosos em Árabe Moderno, a menos que tenham frequentado universidades ou escolas religiosas nos países árabes (como Marrocos, Egito ou Arábia Saudita).
  
De qualquer modo, à força de serem reproduzidas, há nestas tabuímnhas erros sistemáticos que passam, de mão em mão, de ... O Beja Santos lembra-se de as ver à venda,  em 1968/70, em Finete, tabanca e destacamento a norte do Rio Geba, no subsetor de Bambadinca.


2. O  que diz a  IA / ChatGPT em português:

Interessante peça! Essa tábua é um exemplo típico de ensino corânico tradicional na Guiné-Bissau, especialmente entre comunidades Mandinga: os alunos escrevem versículos do Alcorão em tábuas de madeira (chamadas luh) para memorização e recitação.

No entanto, não consigo fornecer uma tradução exata sem uma leitura cuidadosa do texto árabe. O que posso dizer, observando a imagem, é que o texto parece ser um excerto corânico  provavelmente relacionado com o sacrifício e a  obediência, temas centrais na festa de Eid al-Adha, que comemora a disposição do profeta Abraão em sacrificar o filho em obediência a Deus.

É muito provável que os versículos sejam retirados da Surata As-Saffat (37:102–107) ou Al-Hajj (22:34–37), ambas frequentemente estudadas e copiadas nessa altura do ano, por abordarem o tema do sacrifício.

Mas posso tentar fazer uma transliteração e tradução aproximada. Aqui vai:

Antes de tudo, deixo claro que o texto da tábua é em árabe corânico (e não árabe moderno), e, como é comum nas escolas tradicionais da Guiné-Bissau, a caligrafia pode variar ligeiramente da norma. 

Pelo que consigo ler da imagem, o conteúdo corresponde, de facto, a versículos do Alcorão ligados à história de Abraão (Ibrahim) e do sacrifício, recitados durante o Eid al-Adha (Tabaski, na Guiné-Bissau, ou "festa do carneiro").

Segue uma tradução aproximada do conteúdo:  Texto e tradução livre:

"Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.
Quando (o filho) atingiu a idade em que podia trabalhar com ele,
(Abraão) disse: 'Ó meu filho, vejo em sonho que te sacrifico;
observa o que pensas disso.'
Disse (o filho): 'Ó meu pai, faz o que te foi ordenado;
encontrarás em mim, se Deus quiser, um dos pacientes.'
E quando ambos se submeteram e ele o deitou com o rosto para baixo,
chamámo-lo: 'Ó Abraão!
Já cumpriste a visão.'
Assim recompensamos os que praticam o bem.
Isso foi, na verdade, uma provação evidente."

 Estes versos são da Surata 37 — As-Saffat (Os que se colocam em fila), versículos 102 a 106.

Na tradição islâmica, recitar e copiar este trecho é um ato de devoção durante o Eid al-Adha, simbolizando fé, obediência e sacrifício.

A tábua que o professor Eduardo Costa Dias tem em casa e fotografou, representa, portanto, um testemunho da pedagogia religiosa mandinga e da espiritualidade local associada ao ciclo ritual islâmico, sobretudo em regiões como  Galugada Mandinga, que têm uma longa tradição corânica. 


3. O Gemini  IA / Google confirma o conteúdo destes versículos, 102 a 106. da Surata 35 - As-Saffat:

A Surata 37, As-Saffat (Os que se colocam em fila), nos versículos 102 a 106, narra o episódio do Profeta Abraão (Ibrahim) e o mandamento de sacrificar seu filho.

Aqui está o resumo do que dizem esses versículos (baseado em traduções do Alcorão):

(i) Versículo 102: "E quando (o filho) chegou à idade de labutar com ele, (o pai) disse: "Ó filho meu, sonhei que te oferecia em sacrifício; que opinas? Respondeu-lhe: Ó meu pai, faze o que te foi ordenado! Encontrar-me-ás, se Deus quiser, entre os perseverantes!"

Este versículo descreve o diálogo entre Abraão e seu filho (geralmente identificado como Ismael), onde Abraão revela a visão de seu sonho e o filho demonstra total submissão e paciência à ordem de Deus

(ii) Versículo 103: m ostra o momento da submissão total de pai e filho, prontos para cumprir o que Deus havia ordenado. "E quando ambos aceitaram o desígnio (de Deus) e (Abraão) preparava (seu filho) para o sacrifício."

(iii) Versículo 104: "Então o chamamos: Ó Abraão!"

Neste ponto, Deus intervém no sacrifício.

(iv) Versículo 105: "Já realizaste a visão! Em verdade, assim recompensamos os benfeitores."

Deus confirma que Abraão cumpriu fielmente o que lhe foi ordenado no sonho, demonstrando sua devoção e obediência.

(v) Versículo 106: "Certamente que esta foi a verdadeira prova."

Conclui que o evento foi um teste claro e revelador da fé e submissão de Abraão (e seu filho).

Esses versículos são centrais na narrativa do sacrifício de Abraão e são a base do feriado islâmico de Eid al-Adha (Festa do Sacrifício, Tabaski ou "festa do carneiro", na Guiné-Bissau).



4. Já agora ficamos saber (o que é bom para a nossa cultura ecuménica), o que dizem os restantes versículos (de 107 a 111), da Surata 37, As-Saffat 

Os versículos 107 a 111 da Surata As-Saffat (Os que se colocam em fila) concluem o episódio do sacrifício de Abraão, destacando a graça, a recompensa e a honra que Deus lhe concedeu após a prova de fé. Aqui está o significado desses versículos:

(i) O Fim da Prova e a Recompensa: Versículo 107: "E o resgatamos com outro sacrifício importante."

Este versículo descreve a intervenção divina final. Deus substituiu o filho por um grande sacrifício (geralmente interpretado como um carneiro ou animal similar), completando a prova de fé de Abraão sem o sacrifício de seu filho.

(ii) Versículo 108: "E o fizemos (Abraão) passar para a posteridade."

Deus estabeleceu um louvor e uma menção honrosa para Abraão entre as gerações futuras. O seu nome e exemplo são lembrados e reverenciados por todas as religiões monoteístas (judaísmo,cristianismo e islamismo).

(iii) Versículo 109: "Que a paz esteja com Abraão!" (Saudações a Abraão).

Uma saudação e benção direta de Deus ao Profeta Abraão, enfatizando a sua posição honrada.

(iv) Versículo 110: "Assim, recompensamos os benfeitores."

Esta é uma declaração geral de Deus, indicando que a recompensa dada a Abraão é o padrão de como Deus retribui a todos aqueles que praticam o bem (muhsinin), que são sinceros e buscam a excelência na adoração.

(v) Versículo 111: "Porque foi um dos Nossos servos fiéis."

Conclui o trecho reafirmando o estatuto de Abraão como um servo crente (mu'minin), leal e submisso a Deus.

Em resumo, estes versículos mostram que a disposição de Abraão em sacrificar seu filho já era o cumprimento do mandamento em espírito. Deus aceitou essa submissão total e, por Sua misericórdia, proveu um resgate, garantindo que o seu ato de obediência fosse lembrado e honrado para sempre.


5. Ficamos também a saber o que é Surata ( às vezes confundida com o próprio Alcorão):

Surata (ou Sura, do árabe sūrah - سورة) é o nome dado a cada um dos capítulos do Alcorão, o livro sagrado do Islão:

  • o Alcorão Sagrado é composto por um total de 114 Suratas ( capítulos);
  • cada Surata é, por sua vez, subdividida em versículos, chamados Ayat (ou Ayyat);
  • as Suratas variam muito em extensão; a mais curta tem apenas 3 versículos (Surata An-Nasr), e a mais longa tem 286 versículos (Surata Al-Baqarah);
  • no total o Coro tem maos de 6,1 mil versículos (a Bíblia tem 5 vezes mais).
  • as Suratas  não estão organizadas por ordem cronológica de revelação, mas geralmente seguem uma ordem decrescente de tamanho (as mais longas vêm primeiro, exceto a primeira, Al-Fatiha).
Em resumo, o Alcorão é o Livro Sagrado inteiro (o todo), que contém a palavra literal de Deus (Allah), revelada ao Profeta Muhammad (Maomé); a Surata é um Capítulo (uma parte) dentro desse Livro Sagrado; o Alcorão é a compilação completa das 114 Suratas. (***)

PS - É lamentável que tenhamos passado quase dois anos na Guiné, e lidado com muitos militares, milícias e população civil, de religião muçulmana, e nada nem ninguém, no exército, se preocupou em  dar-nos umas "luzes" sobre o Islão, e os "usos e costumes" religiosos dos nossos camaradas do recrutamento local...Nós é que tivemos de descobrir o que era o "irã", o "Tabaski" (ou "fetsa do carneiro"), o "fanado", o "choro"... E estávamos no Portugal "pluricontinental e plurracional", que "ia do Minho e Timor"...
 
(Pesquisa, condensação, revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 13 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27418: Em memória de Sissau Sissé, que me acompanhou durante muitos anos no meu trabalho de terreno em Contuboel (Eduardo Costa Dias)