1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2014:
Queridos amigos,
Este livro é uma apologia da resiliência, da tolerância, da vitória da vontade sobre a adversidade. Todos estes jovens conheceram o processo do desenraizamento, conheceram a pobreza e a exclusão.
A Gulbenkian, que já apostou no projeto das Orquestra Geração, fez opção estratégica com a Academia Ubuntu, com o alvo de formar líderes africanos de primeiríssima qualidade. Vieram de vários PALOP, alguns dos guineenses dão aqui testemunho.
O texto de Jacinto Lucas Pires é imaginativo, estes jovens cruzam-se nos labirintos dos bairros suburbanos, como não se conhecessem, isto quanto todos os seus sonhos se tocam. E a vertente fotográfica é esplendorosa.
Se tiver precisão de uma prenda para alguém que precise de uma injeção de otimismo e confiança na força de vontade, lembre-se de oferecer “Vamos”.
Um abraço no
Mário
Chegar ao começo e sonhar com o céu (2)
Beja Santos
A Academia Ubuntu, dinamizada pelo Instituto Padre António Vieira, e que recebe o apoiou da Fundação Calouste Gulbenkian, deu vida em 2010 a um projeto experimental de capacitação de jovens líderes descendentes de imigrantes, tendo como patronos Mandela, Tutu e Luther King. Subjacente a este projeto, estava o desenho de um inovador programa que procurava desenvolver competências e uma liderança ao serviço de outros. O escritor Jacinto Lucas Pires foi convidado para retratar as histórias por dentro das vidas dos que frequentaram a Academia Ubuntu, jovens que caminharam à beira do abismo mas que souberam ultrapassar a diversidade de obstáculos e até a desmotivação. Jacinto Lucas Pires montou histórias, jovens em atmosfera suburbana, por vezes em alta voltagem emocional, provenientes do rescaldo da descolonização ou de guerras subsequentes, ou vindos por anseio dos pais, à procura da concretização de sonhos. O que aqui se regista, como se compreenderá, são depoimentos de jovens guineenses.
“Os pais de Natália vieram da Guiné, de Bassarel. O pai veio nos finais da década de 80. Esteve em Algés a trabalhar. A mãe e três irmãos de Natália ficaram na Guiné. Vieram mais tarde, em 1991. O pai já a casa construída no Prior Velho, no Bairro da Quinta da Serra.
Natália nasceu logo a seguir, em 1992. O pai trabalhava na construção civil, a mãe numa empresa de limpezas. Os irmãos de Natália fizeram cá a escola. Na Guiné, o pai de Natália era professor. Natália tem três irmãos mais velhos e dois mais novos.
Para as irmãs, foi difícil, que chegaram cá com 15 e 13 anos e tiveram de ir para a primária. Mas o irmão, que só tinha dois anos quando veio, fez o percurso normal, da creche à faculdade; está agora a acabar o curso de Ortoprotesia, a fazer um estágio em Madrid. Gosta daquilo lá, mas tem passado algumas dificuldades. Quando estava à procura de casa, dizia que era português e as pessoas ficavam a pensar que ele era branco. Depois aparecia e – bem, tem passado algumas dificuldades.
Ele é mesmo grande, diz a Natália. Talvez isso assuste também”.
“Gerónimo nasceu no Senegal. A mãe, foi grávida, da Guiné para Dakar, e Gerónimo nasceu lá. São de etnia Manjaca – à letra manjaco significa digo-te”.
Quando saiu do Senegal, Gerónimo tinha o 5.º ano feito; foi para a Guiné continuar os estudos. Não conhecia o pai, que, entretanto, emigrara para Portugal. Durante muito tempo nem sabia que ele existia.
Na Guiné, em Canchungo, voltou atrás nos estudos, perdeu dois anos por causa da língua. No Senegal a escola era em francês, na Guiné era em Português. Em casa, com a mãe, Gerónimo falava Manjaco. E, no Senegal, na rua, fala-se principalmente uolofe.
Um dia Gerónimo fez uma asneira, a irmã vira-se para ele e diz-lhe:
“Hás de ver, quando fores a casa do teu pai”…
Aí é que ele começa a pensar:
“Afinal, este senhor que me está a educar não é o meu pai?”.
“Na escola Rui teve de repetir o 4.º ano. Depois a empresa do pai faliu, o contabilista matou-se e começaram os problemas de dinheiro. A família teve de se mudar da vivenda onde morava para um andar num prédio em Bolonha, na Póvoa de Santa Iria.
Por essa altura o pai do Rui começou a trabalhar com um amigo numa empresa de reciclagens e obras. Na Guiné a mãe de Rui era professora primária, em Portugal é cozinheira. Já esteve no Chimarrão, agora está na Santa Casa. O pai agora está no fundo. Quer dizer, está desempregado. Tem um projeto sobre o clima da Guiné, no Instituto de Meteorologia, mas não tem dinheiro para o montar”.
“Na Guiné os familiares de Gerónimo fizeram uma cerimónia para que ele voltasse para junto do pai. É um mito. É assim que eles chamam àquilo, o mito. Sacrificam um animal, nesse caso foi um porco. A família da mãe e a família do pai juntam-se comem juntos dizem algumas palavras, desejando que o filho vá para junto do pai e pedindo felicidade para toda a gente. Não há palavras obrigatórias, cada um expressa o seu desejo.
Passadas umas semanas, Gerónimo foi para casa do pai, em Canchungo, numa tabanca Beniche. Mas o pai não estava lá. Só lá estava um tio e os seus seis filhos. Gerónimo fica aí a viver, faz aí o 3.º e o 4.º anos. No 5.º ano, vai para liceu no centro de Canchungo; onde estuda até ao 8.º. Quando passa para o 9.º, em 2005, o pai, que entretanto conseguira a nacionalidade portuguesa, trá-lo para Portugal.
Agora Gerónimo vive nas barracas, no Bairro da Quinta da Serra. Vive com o tio e cinco primos. O pai está no Luxemburgo desde 2007. Ficou desempregado e foi para lá à procura de trabalho. Tem trabalhado na construção civil, é pintor.
Como se tudo já não fosse suficientemente difícil, a câmara agora quer despejá-los da casa onde vivem na Quinta da Serra. Dizem que o pai de Gerónimo perdeu o direito de realojamento por não estar cá. Eles recorreram, explicando que ele não está cá mas aquela continua a ser a residência familiar. A ver qual será a resposta.
A mãe de Gerónimo vive no Senegal. Gerónimo veio para Portugal em 2005 e nunca mais voltou lá. Tem saudades. Da família, dos amigos de infância, coisa imperdível, inesquecível. E, claro, de Juvêncio, o filho que teve aos 17 anos e que agora está à guarda da mãe.
Não conhece alguns dos irmãos. Nasceram depois de ele ter nascido do Senegal. Falam ao telefone, eles perguntam-lhe quando é que o Gerónimo vai ter com eles.
Mas mantém um contacto muito forte com a mãe. Falam sempre, muito. Ela é analfabeta, falam só pelo telefone.
O Manjaco é uma língua oral (Uma vez Gerónimo viu o tio escrever Manjaco para falar com um amigo pela internet. Escrevia com as regras do português, a partir do som das palavras em Manjaco. Talvez funcione assim”.
"Gerónimo pensa em Manjaco e sonha em Manjaco. Um Manjaco é a língua dos seus sonhos.
Na Guiné, martelam o português. Aprendem só nas aulas, não praticam cá fora, e a triste verdade é que a maior parte dos professores não tem formação. Alguns acabam o secundário e começam a dar aulas. Há quem ensine português sem saber falar bem português (…) Na Guiné os professores faziam desafios entre os alunos. Chamavam um aluno ao quadro e depois esse aluno chamava outro para o desafio. Colocavam questões um ao outro e quem não respondia levava palmadas. Uma vez Gerónimo chamou uma prima e ela não sabia a resposta. Quando foi para dar a palmada, ele deu-lhe um toque muito mansinho. O professor percebeu, tirou o chicote e bateu nele com força para mostrar como é que se dava. Gerónimo conta isso com o sorriso mais aberto que se possa imaginar”.
As histórias multiplicam-se: quando veio para Portugal, Braima pensava em crioulo, só conheceu o pai aos 12 anos, as grandes figuras de Braima são mulheres; o pai de Edson está na Guiné, é professor na Universidade Lusófona, está separado da mãe de Edson desde os dois anos do filho, Edson jogou futsal no Clube Académico de Odivelas, depois passou para o futebol de onze…
Estes heróis do quotidiano sabem que têm que imaginar o seu céu, começam e recomeçam, têm várias identidades, este curso de liderança parte de valores africanos. Primeiro que tudo, aprende-se com Nelson Mandela a perdoar. Há quem se prepare para voltar. Será o caso de Braima, não se vê como um estrangeirado mas sente que tem mais a dar indo para a Guiné do que ficando em Portugal. Tem muitas saudades, pensa no seu lugar, na sua casa, pensa em Bolama. E de acordo com a sua cultura, desabafa para quem o ouve:
“Nós somos onde o nosso umbigo foi enterrado”.
“Vamos” com texto de Jacinto Lucas Pires e fotografia de Tiago da Cunha Ferreira, Edições Gulbenkian, 2011, é a história de um projeto inspirador onde jovens desenrizados, vivendo por vezes em território de conflito, aprendem liderança, fazem-se dinamizadores, empreendedores, técnicos de gabarito. Para quem olha África como um continente à deriva, este livro é uma enorme promessa.
Os afetos e a identidade são para respeitar e cultivar
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de Setembro de 2014 >
Guiné 63/74 - P13635: Notas de leitura (634): “Vamos", por Jacinto Lucas Pires (1) (Mário Beja Santos)