segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13635: Notas de leitura (634): “Vamos", por Jacinto Lucas Pires (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Mais uma grande surpresa, um projeto de inovação social a que a fundação Gulbenkian está ligado, buscam-se novas soluções para novos e velhos problemas sociais.
Jacinto Lucas Pires conta primorosamente histórias de jovens que foram capazes de fazer cada obstáculo um degrau, são estudantes e simultaneamente dinamizadores, coordenadores de projeto ou fazem estágios. Jovens que valorizam a liberdade, que aprenderam a perdoar.
A fotografia de Tiago da Cunha Ferreira substitui luminosamente as palavras. Mostra estes jovens prontos a conquistar o mundo mesmo quando vivem nos bairros mais inóspitos.

Um abraço do
Mário


Chegar ao começo e sonhar com o céu (1)

Beja Santos

Que a vida me tem sido benfazeja em imprevistos deleitosos, escuso-me de queixar, sou pródigo em tais benesses, em felizes acasos. E então na descoberta de livros…
Vai um cidadão pronto para assistir a “Dido e Eneias”, de Purcell, tem ainda uns momentos ociosos, deambula pelas estantes de livros, a Gulbenkian, mesmo fora da feira de Natal, tem sempre umas oportunidades catitas. O livro chama a atenção pelo grafismo, o livro parece um álbum, tem papel de boa gramagem, e as ilustrações, então…
Os olhos saltitam pelas histórias, trata-se de texto da autoria de Jacinto Lucas Pires, está lá a Guiné e jovens guineenses na diáspora, casos ímpares de força de vontade, histórias incríveis, poderiam emparceirar nos relatos das sagas e odisseias. Compra-se sem hesitar, estão aqui jovens que apostam no futuro, os chamados casos de resiliência, vamos ler e depois contar no blogue.

Porque a esperança nunca acaba. O livro chama-se “Vamos”, a fotografia é de Tiago Cunha Ferreira, o convidado para a empreitada da escrita é Jacinto Lucas Pires, Edição Gulbenkian, 2011.
Como foi possível estar tanto tempo sem saber deste projeto? A responsável da Gulbenkian, Isabel Mota, dá-nos o pano de fundo: “A Academia Ubuntu, dinamizada pelo Instituto Padre António Vieira, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Universidade Católica Portuguesa, deu vida, no último ano, a um projeto experimental de capacitação de jovens líderes descendentes de imigrantes, tendo como patronos Mandela, Tutu e Luther King. Estes gigantes da humanidade inspiraram um ambicioso e inovador programa que procurou desenvolver competências ao serviço dos outros. Quatro dezenas de jovens inseridos em contextos de grande exclusão social, viveram um roteiro de formação exigente, na certeza de poderem contribuir para alavancar a mudança”.
E mais adiante Isabel Mota explica no final do projeto se lançou o desafio a Jacinto Lucas Pires para que retratasse as histórias por dentro das vidas dos que frequentaram a Academia Ubuntu, vidas reais contadas pelos próprios como se não fosse nada. Aqui ficam extratos de histórias de jovens guineenses:  
“Foi há dezoito anos, mas Edson nunca mais esqueceu daquele dia em Bissau. O primo-irmão Mário tinha ido buscar a sua irmã Daise ao jardim-de-infância. Estão os dois à beira da estrada à espera para atravessar, um dia normal de sol, quando a criança larga a mão do primo, começa a correr e é atropelada por um autocarro.
Mário chega a casa assustadíssimo a dizer que a menina está morta. Daise está morta, morreu, um acidente muito grave.
Edson tem oito anos e aquela notícia provoca-lhe um sofrimento grande demais.
Depois vêm dizer-lhe que não, a Daise não morreu, mas ele não acredita. Pensa que é tudo mentira, que lhe dizem aquilo para que não sofra tanto. Um sofrimento intenso, do qual não se pode sair, do qual é impossível conseguir sair.
Dias mais tarde, quando vai ao hospital e vê a irmã, é como se testemunhasse uma ressurreição.
A mãe de Edson traz Daise para Lisboa, para ser vista por uma junta médica no Hospital da Estefânia e Edson fica em Bissau. Passa a viver com a avó e os tios numa grande casa coberta de palha. Teve uma infância bastante feliz”.

“Braima nasceu em Bolama, na Guiné-Bissau; uma ilha do arquipélago dos Bijagós. Do lado da mãe, são bijagós (única etnia da Guiné que não foi islamizada). O pai de Braima é do continente, de Buba; os bisavós vieram da Guiné-Conacri. Do lado do pai são muçulmanos. Do lado da mãe animistas, de educação católica. Braima teve uma educação católica.
Quando ele tinha seis anos, a mãe teve um problema de saúde e veio para Portugal. Curou-se e ficou por cá.
Braima tem cinco irmãos da parte da mãe. O pai teve doze filhos, ao todo. Em Bolama, ele era o codé (é o mais novo da família).
O avô de Braima ficou viúvo muito cedo. Era funcionário público e não tinha com quem deixar a filha pequena (a mãe de Braima). Uma senhora, a Avó Nhinha, costuma ver a miúda sentada ao pé da mesa onde o avô de Braima trabalhava as escrever numa máquina antiga. Um dia, foi ter com ele e perguntou-lhe se não queria que ele tomasse conta da menina. A partir daí, a mãe de Braima – e depois Braima – passa a integrar essa outra família, de origem senegalesa.
Braima também passou muito tempo da infância no Senegal. Quando era miúdo, até falava uólofe.
Mas a sua primeira língua é o crioulo guineense. Na Guiné fala-se português na aula e crioulo no recreio. E português é muito diferente do crioulo e é muito difícil para os miúdos. É preciso dobrar a língua, coloca-la mais leve. O crioulo da Guiné é falado com a língua no céu-da-boca e não tem, por exemplo, os sons ‘lh’ e ‘rr’. Também não há artigos masculinos ou femininos, é sempre neutro”. 

“Edson tem outra irmã, do lado da mãe, com dez anos. Também veio para Portugal antes dele.
Agora está parado no sol do meio-dia, nas escadas da Faculdade de Letras, em Lisboa. A camisa branca é um concentrado de luz. Edson tem 24 anos e olha para nós; uma cicatriz na base do nariz, uma curta linha horizontal, lembrança de um prato que lhe acertou na cara quando era criança. O resultado de se ter metido no meio de uma discussão entre adultos: os tios estavam aos gritos e ele armou-se em ONG”.

“Em Bissau, à noite, Edson sente saudade de um lugar que não conhece chamado Lisboa. Sonha em vir ter com a mãe e os irmãos.
No dia 22 de outubro de 2000, com 13 anos, veio finalmente para Portugal. É o último da família a vir porque é o irmão mais velho.
Mas, quando chega, as aulas estão a meio e tem de ficar um mês sozinho num apartamento em Odivelas. Chora todos os trinta dias”.

“Os Barai são da região de Bula, na Guiné. A mãe de Rui é a filha de um português de Reguengos de Monsaraz e de uma guineense do Arquipélago dos Bijagós. Os avós paternos são guineenses, da etnia mancanha.
Os pais conheceram-se em Bissau; Rui nasceu lá, veio para Portugal com três anos. O pai veio estagiar como meteorologista e a família veio com ele. São três irmãos, Rui é o do meio.
Depois regressaram à Guiné, mas o pai de Rui viu as coisas lá não estavam a correr bem e voltou para Portugal. A família ficou na Guiné mais um tempo. em 1977 os pais de Rui, que eram casados só pelo registo, casaram pela igreja e fizeram uma bela festa em Bissau. O plano era regressarem todos a Portugal em 1998, mas de repente estalou a guerra.
A família já não consegue voar para Lisboa.
A mãe, os três filhos e uma prima que vive com eles saem da cidade, para uma casinha no mato. Vão para Bolama, de canoa – uma canoa cheia de animais e tralha –, e daí para Bambaiá, e depois para o Sul.
A tia tem uma fábrica de descascar arroz. Algumas pessoas dão dinheiro, outras dão parte de arroz, outros pagam com gado, e vai-se vivendo assim. Um dia vão lá militares, mas a tia dá-lhes arroz e eles não fazem mal a ninguém.
Não há notícias, não há rádio, comunicações, não sabem de nada. Rui tem dez anos.
Passados uns meses, regressam a Bissau, mas perdem o barco que os podia tirar dali. Decidem então sair por terra, pelo Senegal.
Em Dakar, numa zona de barracas de venda, uma senhora olha para a mãe de Rui e para, espantada. É uma tia do pai de Rui. Vai ter com eles, pergunta-lhes o nome e abraçam-se.
O pai compra-lhes bilhetes de avião para eles virem ter com ele a Portugal, mas no aeroporto há truques, têm de pagar aos funcionários, etc., e não conseguem passar. Várias tentativas, em vão. A mãe vem para Portugal e eles ficam lá.
Entretanto, o tio do Rui torna-se secretário de Estado da Cooperação Internacional da Guiné. Tem o mesmo nome que ele, Rui Barai. É ele que os vai buscar a Dakar.
Em 2000, chegam a Portugal. Vão viver para a Póvoa de Santa Iria, para um lugar chamado Bragadas. Rui tem onze anos, vai fazer doze”.


Dois jovens que sonham com o céu

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13625: Notas de leitura (633): “Poesias e Cartas", por José Bação Leal (Mário Beja Santos)

1 comentário:

doobedoo disse...

Estou a procura de um rui barai, que estudou em Braga, univ do Minho entre 83 e 88(?). Fomos colegas. Sei que desempenhou funções governamentais na Guiné, depois disso.

Poderá ajudar?

Obrigada.

Eduarda