Capa do livro de Luís Moita (1894-1967): O Fado, canção de vencidos: oito palestras na Emissora Nacional. Lisboa: [s.n.] [Lisboa, Oficinas Gráficas da Empresa do Annuário Comercial], 1936, 357 páginas. Ilustrações de Bernardo Marques (1898-1962).
Luís Graça, Contuboel, CCAÇ 2590/ CCAÇ 12, Junho de 1969 |
A Galeria dos Meus Heróis (12): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte II (Luís Graça)(*)
[Continuação]
Sinopse da I Parte:
[ Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades" dos bons velhos tempos].
− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo. Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo...
O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:
− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...
− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.
O António Mota, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original.
− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…
− O quê ?...
− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...
− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem de ciência, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...
−... e às alunas, de alto a baixo!
− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons amigos... Até hoje! É verdade ?
− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…
− Pois, eu também já tive as minhas crises de fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde fui notário e onde casei, antes me de fixar, de vez, na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria…
− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Há-de ser a nossa última morada, também…
− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... E agora a rapaziada do nosso tempo.
− Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!
− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!
− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.
− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.
− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…
− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há-de chegar!
− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda", para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!
− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro, dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…
−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...
− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…
− A alma ?
− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...
− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns quilómetros valentes para fazer ?!… Mas fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos dar de beber à dor, companheiro!
− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras da igreja da Misericórdia.
O sítio não podia ser mais inspirador com larga vista sobre o casario, o a vasta lezíria, e o rio, agora com muito menos água do que no tempo da infância dos nossos dois interlocutores... "Carpe diem", dizia a tabuleta, em latinório, aproveita o dia, goza a vida, o dia-a-dia… Pediram duas taças de branco, enquanto o Belmiro foi relembrando a história de vida do Zé Nuno…
Além das touradas, o Zé tinha uma paixão, que era a guitarra… Aqui seguia as peugadas de um tio materno cuja coroa de glória era ter acompanhado a Amália num já longínquo programa da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português, numa substituição de última hora. Tocou nas primeiras casas de fado, que floresceram com a guerra, em Lisboa, entre 1941 e 1943, na altura em que fazia o serviço militar obrigatório. Ainda chegou a estar mobilizado para os Açores, o que não aconteceu, talvez devido à guitarra e "à cunha certa metida à pessoa certa no momento certo"…
O Zé Nuno, por sua vez, animava algumas noites de fado no célebre Solar do Marquês de Marialva. Fora em tempos em clube seleto da vila ribatejana. Havia entrado em decadência, talvez no início dos anos cinquenta, depois de algumas senhoras da elite local terem tido a ousadia de denunciar ao Salazar, em pessoa, o sítio como "um antro de jogo ilegal, casa de passe e templo de perdição"… Uma delas, mulher de um médico da terra, era amiga, do tempo de Coimbra, da comissária nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, a célebre Guardiola…
− E creio que também amiga ou conhecida da Van Zeller, que era a nº 2 da Mocidade Portuguesa Feminina, e que há-de ser, nos anos 60, a diretora-geral de saúde, a primeira mulher a desempenhar esse cargo – acrescenta o Belmiro.
− Ah!, sim, a médica e deputada Maria Luísa Van Zeller…
− Eram as duas mulheres mais poderosas do regime.
− Depois da Dona Maria..., não te esqueças, Belmiro… E acrescenta a Supico Pinto, a famosa Cilinha, mais tarde, com o início da guerra.
Até então o Solar era frequentado pelas senhoras da terra, mas apenas durante o dia: tomava-se o chá das cinco, fazia-se tricô, jogava-se à canasta, bisbilhotava-se… Uma vez por outra, aos fins-de-semana, havia récitas, espetáculos musicais, verbenas, chás de caridade… A noite era reservada aos cavaleiros... Faziam-se aqui negócios, arranjavam-se casamentos, trocavam-se as amantes... Apesar das tradições republicanas, a segregação de género agravara-se com a Ditadura Militar e o Estado Novo. Nas horas mortas, durante a semana, também aparecia, de tempos a tempos, gente da boémia da capital, com destaque para as coristas do Parque Mayer, em digressão pela província… A relativa proximidade da vila em relação à capital tinha as suas vantagens e desvantagens, uma delas a de ser uma extensão da "Babel do pecado"…
O Belmiro e o António eram putos nesse tempo, não se lembram de nada, mas mais tarde irão conhecer o ambiente já decrépito do clube onde, aos sábados, na época marcelista, depois do “fado boémio e reaça” (si), ainda havia uma ala juvenil que gostava de cantarolar e tocar uns fados e baladas de Coimbra, a meia voz, e onde se revelavam novos talentos da terra, acarinhados pelo Zé Nuno e pelo seu tio…
Curiosamente, já ninguém se lembrava, trinta e três anos antes, em 1936, das exortações, aos microfones da Emissora Nacional, de ideólogos do regime, como o Luís Moita, para que a mocidade portuguesa deixasse de cantar o fado, essa “canção de vencidos" (**)...
O tio do Zé Nuno era um bocado a "ovelha ranhosa" da família, por ser considerado do "reviralho"… Em 1958, apoiara publicamente a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, o que lhe trouxe alguns dissabores em casa e no emprego.
Com o novo presidente da Câmara Municipal, e dirigente local da Ação Nacional Popular (que sucedera à União Nacional), o pai do Belmiro, marcelista, mais liberal que o anterior, que era um ferrenho salazarista, o ambiente na vila ribatejana desanuviara-se um pouco no final dos anos 60.
− Continuando a nossa conversa…, vejo que estás com bom ar, Belmiro… Mas, quem vê caras, não vê corações.
− Bem, parafraseando o provérbio, "muita saúde", vou tendo ainda, mas não sei se "pouca vida"…, porque afinal "Deus não dá tudo"… Acho que era esse o provérbio que dizia o meu avô materno, que morreu cedo, segundo a minha mãe. Vendia saúde às carradas, mas tinha o pressentimento que iria morrer ainda jovem. Costumava também dizer: "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"… A verdade é que não chegou a conhecer os netos…
− Em suma, morria-se cedo, cheio de saúde…
− São provérbios ao teu gosto hipocrático, Tony… Tu é que publicaste em tempos uma antologia de provérbios populares ligados à saúde, não foi ?!
− Sim, num suplemento de uma revista de história da medicina… O povo lá sabe, ou sabia, tenho muito respeito pela sabedoria popular.
− Tretas…, desculpa lá, Tony… De popular têm muito pouco os nossos provérbios.
E, subindo o tom de voz, o Belmiro sentenciou:
− E, se queres um conselho, da minha experiência de vida, que já é alguma, não te fies no povo, na populaça… O povo é vilão, é mouro, é saloio, é conservador, se não mesmo reacionário, manhoso, desleal, ingrato… O povo é um caçador oportunístico, tanto come na gamela do pobre como apanha as sobras da mesa do rei… Eu vi pelo meu pai, que passou de bestial a besta, com o 25 de Abril...Cuida mas é da tua vida, cuida de ti, cuida dos teus!
− “Ao vilão dá-lhe o dedo, toma-te a mão” – ironizou o António Mota. – Seja, mas poupa-me os teus sarcasmos, o teu humor à laia do Bordalo Pinheiro. Estás a sugerir que o nosso Zé Povinho é gentalha, feia, porca e má... Como os ciganos, os pretos, os imigras... Vocês, juristas, são tramados… Mas também quero dizer-te que gostei da nossa conversa.
− Dantes ainda nos encontrávamos nos casamentos e batizados… Agora é só nos funerais – lamentou-se o Belmiro.
− Sim, uma conversa à porta do cemitério, não direi mórbida, talvez mais nostálgica do que filosófica.
− Então, à nossa, Tony!... Aos bons velhos tempos!.. Tchim, tchim!
[ Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures no Ribatejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades" dos bons velhos tempos].
− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam. Os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seu moço ajudante. Enfim, encontravam-se na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo. Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo...
O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:
− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...
− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...
− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.
O António Mota, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original.
− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…
− O quê ?...
− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...
− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem de ciência, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...
−... e às alunas, de alto a baixo!
− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons amigos... Até hoje! É verdade ?
− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…
− Pois, eu também já tive as minhas crises de fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde fui notário e onde casei, antes me de fixar, de vez, na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria…
− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Há-de ser a nossa última morada, também…
− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... E agora a rapaziada do nosso tempo.
− Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!
− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!
− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.
− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.
− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…
− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há-de chegar!
− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda", para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!
− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro, dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…
−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...
− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…
− A alma ?
− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...
− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns quilómetros valentes para fazer ?!… Mas fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos dar de beber à dor, companheiro!
− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras da igreja da Misericórdia.
O sítio não podia ser mais inspirador com larga vista sobre o casario, o a vasta lezíria, e o rio, agora com muito menos água do que no tempo da infância dos nossos dois interlocutores... "Carpe diem", dizia a tabuleta, em latinório, aproveita o dia, goza a vida, o dia-a-dia… Pediram duas taças de branco, enquanto o Belmiro foi relembrando a história de vida do Zé Nuno…
Além das touradas, o Zé tinha uma paixão, que era a guitarra… Aqui seguia as peugadas de um tio materno cuja coroa de glória era ter acompanhado a Amália num já longínquo programa da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português, numa substituição de última hora. Tocou nas primeiras casas de fado, que floresceram com a guerra, em Lisboa, entre 1941 e 1943, na altura em que fazia o serviço militar obrigatório. Ainda chegou a estar mobilizado para os Açores, o que não aconteceu, talvez devido à guitarra e "à cunha certa metida à pessoa certa no momento certo"…
O Zé Nuno, por sua vez, animava algumas noites de fado no célebre Solar do Marquês de Marialva. Fora em tempos em clube seleto da vila ribatejana. Havia entrado em decadência, talvez no início dos anos cinquenta, depois de algumas senhoras da elite local terem tido a ousadia de denunciar ao Salazar, em pessoa, o sítio como "um antro de jogo ilegal, casa de passe e templo de perdição"… Uma delas, mulher de um médico da terra, era amiga, do tempo de Coimbra, da comissária nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, a célebre Guardiola…
− E creio que também amiga ou conhecida da Van Zeller, que era a nº 2 da Mocidade Portuguesa Feminina, e que há-de ser, nos anos 60, a diretora-geral de saúde, a primeira mulher a desempenhar esse cargo – acrescenta o Belmiro.
− Ah!, sim, a médica e deputada Maria Luísa Van Zeller…
− Eram as duas mulheres mais poderosas do regime.
− Depois da Dona Maria..., não te esqueças, Belmiro… E acrescenta a Supico Pinto, a famosa Cilinha, mais tarde, com o início da guerra.
Até então o Solar era frequentado pelas senhoras da terra, mas apenas durante o dia: tomava-se o chá das cinco, fazia-se tricô, jogava-se à canasta, bisbilhotava-se… Uma vez por outra, aos fins-de-semana, havia récitas, espetáculos musicais, verbenas, chás de caridade… A noite era reservada aos cavaleiros... Faziam-se aqui negócios, arranjavam-se casamentos, trocavam-se as amantes... Apesar das tradições republicanas, a segregação de género agravara-se com a Ditadura Militar e o Estado Novo. Nas horas mortas, durante a semana, também aparecia, de tempos a tempos, gente da boémia da capital, com destaque para as coristas do Parque Mayer, em digressão pela província… A relativa proximidade da vila em relação à capital tinha as suas vantagens e desvantagens, uma delas a de ser uma extensão da "Babel do pecado"…
O Belmiro e o António eram putos nesse tempo, não se lembram de nada, mas mais tarde irão conhecer o ambiente já decrépito do clube onde, aos sábados, na época marcelista, depois do “fado boémio e reaça” (si), ainda havia uma ala juvenil que gostava de cantarolar e tocar uns fados e baladas de Coimbra, a meia voz, e onde se revelavam novos talentos da terra, acarinhados pelo Zé Nuno e pelo seu tio…
Curiosamente, já ninguém se lembrava, trinta e três anos antes, em 1936, das exortações, aos microfones da Emissora Nacional, de ideólogos do regime, como o Luís Moita, para que a mocidade portuguesa deixasse de cantar o fado, essa “canção de vencidos" (**)...
O tio do Zé Nuno era um bocado a "ovelha ranhosa" da família, por ser considerado do "reviralho"… Em 1958, apoiara publicamente a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, o que lhe trouxe alguns dissabores em casa e no emprego.
Com o novo presidente da Câmara Municipal, e dirigente local da Ação Nacional Popular (que sucedera à União Nacional), o pai do Belmiro, marcelista, mais liberal que o anterior, que era um ferrenho salazarista, o ambiente na vila ribatejana desanuviara-se um pouco no final dos anos 60.
− Continuando a nossa conversa…, vejo que estás com bom ar, Belmiro… Mas, quem vê caras, não vê corações.
− Bem, parafraseando o provérbio, "muita saúde", vou tendo ainda, mas não sei se "pouca vida"…, porque afinal "Deus não dá tudo"… Acho que era esse o provérbio que dizia o meu avô materno, que morreu cedo, segundo a minha mãe. Vendia saúde às carradas, mas tinha o pressentimento que iria morrer ainda jovem. Costumava também dizer: "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"… A verdade é que não chegou a conhecer os netos…
− Em suma, morria-se cedo, cheio de saúde…
− São provérbios ao teu gosto hipocrático, Tony… Tu é que publicaste em tempos uma antologia de provérbios populares ligados à saúde, não foi ?!
− Sim, num suplemento de uma revista de história da medicina… O povo lá sabe, ou sabia, tenho muito respeito pela sabedoria popular.
− Tretas…, desculpa lá, Tony… De popular têm muito pouco os nossos provérbios.
E, subindo o tom de voz, o Belmiro sentenciou:
− E, se queres um conselho, da minha experiência de vida, que já é alguma, não te fies no povo, na populaça… O povo é vilão, é mouro, é saloio, é conservador, se não mesmo reacionário, manhoso, desleal, ingrato… O povo é um caçador oportunístico, tanto come na gamela do pobre como apanha as sobras da mesa do rei… Eu vi pelo meu pai, que passou de bestial a besta, com o 25 de Abril...Cuida mas é da tua vida, cuida de ti, cuida dos teus!
− “Ao vilão dá-lhe o dedo, toma-te a mão” – ironizou o António Mota. – Seja, mas poupa-me os teus sarcasmos, o teu humor à laia do Bordalo Pinheiro. Estás a sugerir que o nosso Zé Povinho é gentalha, feia, porca e má... Como os ciganos, os pretos, os imigras... Vocês, juristas, são tramados… Mas também quero dizer-te que gostei da nossa conversa.
− Dantes ainda nos encontrávamos nos casamentos e batizados… Agora é só nos funerais – lamentou-se o Belmiro.
− Sim, uma conversa à porta do cemitério, não direi mórbida, talvez mais nostálgica do que filosófica.
− Então, à nossa, Tony!... Aos bons velhos tempos!.. Tchim, tchim!
E ergueram as taças de vinho branco.
− Vejo que estás mais cético, Belmiro, mais crente em Deus, menos confiante nos homens, ou seja, no povo de Deus. Afinal, quem o diria, um ex-maoista, como tu, quando jovem, para quem a Bíblia, na faculdade de direito, era o famigerado "livrinho vermelho"…
− Sem dúvida, um "best seller", como a Bíblia. Foi um dos primeiros grandes negócios que a China fez em Portugal… Mas, eh!, nada de ressentimentos nem de remoques políticos…
− De modo nenhum, nessa altura, já não convivíamos,ou muito pouco, estava cada um para seu lado.
− Assumo esse passado, embora hoje me ria de mim próprio. Sabes como era: jovens imberbes, chegados à capital, más companhias, paixões juvenis, a descoberta do sexo, a revolta contra o pai, a incultura geral, leituras apressadas, na diagonal, dos gurus do marxismo-leninismo, pensamento de grupo, o exotismo da revolução cultural chinesa, a cabeça na ponta da mão, a vontade (irresistível) de mudar o mundo e a vida… Fomos como o frango de aviário: em mês e meio ficávamos doutores em ciência política, frequentando os cafés das Avenidas Novas, em Lisboa, ou as repúblicas coimbrãs.
− Sei do que falas: as hormonas em convulsão aos 20 anos… Não é por acaso que é a idade em que te mandam para a tropa e para a guerra!... A idade perfeita para se matar e para se morrer!
− Mas fica sabendo que foi uma grande escola, a maoista…
− Sim, pelo que vejo por aí com os teus ex-correligionários… Um caso de sucesso de promoção da literacia política e, nalguns casos, públicos e notórios, de meteórica ascensão na hierarquia dos partidos do poder e nas grandes empresas.
Os dois amigos davam agora conta de que há muitos anos não bebiam um copo juntos… Mas que este tchim, tchim, este tilintar de copos, também tinha algo de premonitório. Como eram os dois supersticiosos, tiveram um estranho pressentimento... o de que não voltariam mais a encontrar-se.
− Cruzes, canhoto, afasta de mim esse cálice, irmão! – galhofou o Belmiro, para disfarçar o calafrio que sentiu pela espinha acima.
(Continua)
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 6 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19171. A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)
(**) No ano da graça de 1936, o germanófilo Luís Moita apelava aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).
Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, a formação política e militar, etc.
"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era então visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda, se albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos Wandervogel (Moita, 1936, pp. 217-218). [Os Wandervogel integravam-se naquilo a que se poderia chmar os Grupos de Juventude do Nacionalismo Alemão, surgidos no princípio do séc. XX. Não comfundir com a Juventude Alemã hitleriana].