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sábado, 28 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23303: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VIII

1. Continuação da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte VIII

Debruçando-me sobre a saúde e os vários casos que durante a comissão tive que enfrentar não só com a parte militar como também com a parte civil.

Sobre a parte militar, como já deixei entender mais atrás, não tive casos de saúde muito graves na CCS do Batalhão 2884 ou seja, durante o tempo que estive no Pelundo.

Descrevendo sobre as necessidades de tratamentos de saúde dos militares, os casos de maior preocupação do Médico e meus, foram os ataques de paludismo “Malária”, doenças sexuais transmissíveis e saúde oral. Sobre a saúde oral, a ela se deveram a maiorias de consultas externas de militares enviados para o Hospital em Bissau.
Quantos aos casos de Paludismo, com mais ou menos dificuldade foram sendo resolvidos no local.

Mais graves e diversos foram os casos de saúde sexualmente transmissíveis. Devo começar por descrever que, casos houve, que tiveram início ainda na metrópole. Destes, lembro-me de um que não conseguimos curar durante toda a comissão.

Numa das minhas idas a Bissau e à Direção de Saúde, o chefe desta, chamou-me ao seu gabinete para trocar informações sobre a saúde dos militares e das populações. Devo confessar aqui, o grande apreço que tive por este militar com a patente de Brigadeiro. Só o conheci lá, mas, a forma carinhosa como sempre me tratou ficará sempre comigo. Eu era o seu menino! A revista do Exército já me tinha colocado na capa de uma das suas edições como militar exemplar a lidar com a saúde da população civil.

Naquele dia tinha uma informação importantíssima a transmitir-me em primeira mão, portanto, antes de ser enviada para o Comando do meu Batalhão.
Tratava-se dum tema ligado às doenças sexualmente transmissíveis e, sobre a forma como o PAIGC a estava a utilizar. Estes começaram a introduzir prostitutas infetadas para contaminação das nossas tropas, enfraquecendo-as moral e fisicamente. Os americanos utilizaram este esquema contra os japoneses na segunda Grande Guerra Mundial. Os japoneses, logo que descobriram, começaram a fuzilar os seus militares infetados para imporem regras.

Logo que naquela tarde e mal a escolta chegou ao Pelundo, fui de imediato falar com o Capitão da CCS dando-lhe conta do que pensava fazer em relação ao pedido do Brigadeiro Médico da Direção de Saúde da Guiné. A resposta do Capitão, que por sinal já tinha recebido as mesmas instruções de Bissau, deu-me carta branca para atuar junto das prostitutas que frequentavam o nosso meio e, proporcionou-me os meios para as trazer ao Quartel a fim de serem observadas por mim, já que o Médico se encontrava ausente em férias no Continente.

Alem das prostitutas, havia a necessidade de ter uma conversa muito séria com os militares sobre minha responsabilidade na saúde.
Uma a uma, elas me foram entregues pela patrulha destinada a esta missão. Dentro dos meus conhecimentos, fiz-lhes uma prévia observação.

Para espanto meu, logo que soube que já se encontrava a primeira no Posto Médico, encontrei a porta deste fechada, mas com som de música no seu interior. Bati na porta, dando ordem para que a mesma fosse aberta. Mal esta se abriu, encontrei um dos Maqueiros a querer ensinar a prostituta a tirar a roupa como se estivesse num cabaré. Não gostando do que vi, levantei a voz para que terminasse o espetáculo. Ordenei novamente que fosse fechada a porta do Posto Médico para, deste modo, tentar dar alguma privacidade à paciente.

Mal eu tinha dado esta ordem, senti a voz do Major ordenando que queria entrar para verificar o que se estava a passar. De imediato, dirigi-me à porta para saber o que o Major Pinho queria. Foi-me dizendo que tinha ouvido música e, como tal, queria observar as suas razões. Disse-lhe que era assunto interno e que o já tinha resolvido. Porém, ao aperceber-se que a mulher se encontrava meio despida tentou forçar a entrada, mas eu não deixei, dizendo-lhe que se tratava de assuntos de saúde com ordens superiores de Bissau e como tal, só a mim diziam respeito. Pouco convencido, lá foi praguejando.

Das cinco prostitutas por mim observadas, duas foram enviadas para o Hospital para melhor observação médica e, às outras três, apliquei-lhes um tratamento com antibiótico injetável correspondente a um tratamento diário de uma semana. De Jipe foram levadas cada uma para sua residência onde permaneceram sem poder exercer a sua profissão durante cerca de quinze dias por causa das dores que as suas nádegas lhe transmitiam.
Este tratamento começou a ser dado pelo Médico aos homens civis para evitar que nenhum não mais aparecesse no Posto Médico após a primeira injeção e, se tornassem possíveis doentes crónicos.

Quanto aos Soldados da Companhia, fui chamando um a um ao Posto Médico para lhes falar dos objetivos do PAIGC com as prostitutas e, como a partir dos meus conselhos, todo aquele que me aparecesse contaminado seria tratado. Em cima da minha secretária tinha colocado uma seringa de vinte centímetros cúbicos com uma agulha de doze centímetros de comprimento. Alguns deles desmaiaram só pela visão da agulha.
Às prostitutas, aconselhei-as a obrigarem os Soldados a usar o preservativo. Umas responderam-me que tinham receio que o preservativo ficasse dentro delas fazendo balão. Disse-lhes que tal não aconteceria. Tentei durante a comissão evitar este flagelo de saúde pública.

O interesse por aumentar os meus conhecimentos na saúde foram uma realidade com o tempo e a população civil deu-me esta possibilidade. A minha dedicação foi uma constante. Desde ajudar em partos, detetar apendicites e outras mazelas originais de África. Direi que o serviço militar em África foi uma grande escola de saúde para mim e para muitos dos Médicos que por lá passaram. Até aos dias de hoje, tenho ao longo destes anos tirado partido desses conhecimentos, não só para mim, como também para os meus familiares.

Como já referi em páginas anteriores, uma tarde o Comandante chamou-me ao seu gabinete para me anunciar que teria que ir para o Quartel de Có dar assistência sanitária aos nossos militares que lá se encontravam como também à população que de mim necessitasse.
Com um sentimento de revolta perguntei-lhe porque eu? Sendo o mais qualificado do Batalhão porque não era indicado outro? Respondeu-me que não havendo Médico nem Furriel Enfermeiro naquela Companhia, eu era o Enfermeiro mais bem preparado para dar confiança aos nossos militares que lá se encontravam. Agradeci o elogio, mas que bem o dispensava porque iria contrariado. Acabava de receber um balde de água fria na minha cabeça. Senti vontade de gritar pela revolta que sentia. Na minha mente senti a vingança dele pelas afrontas que lhe fiz não cedendo aos seus caprichos. Também o Médico que comigo se encontrava no Pelundo enalteceu os meus conhecimentos em saúde, mas para proveito próprio. Desta forma, evitava ter que se deslocar em escoltas a Có numa altura que se aproximava o fim da nossa estadia na Guiné.

Um dos motivos para ter havido necessidade de se deslocar para a povoação de Có um Furriel Enfermeiro deveu-se, primeiro, porque o Furriel Enfermeiro daquela Companhia e do meu curso ter sido preso de acordo um artigo das regras militares sobre a conduta que todo o militar devia ter naquela altura, bem como não possuírem lá Médico.
Dias antes deste acontecimento, fui surpreendido ao ver na prisão do Quartel do Pelundo o Furriel Enfermeiro de Có. O Lemos, de seu nome, era um daqueles que juntamente comigo tiraram o curso e dos mais pacatos e até divertidos, tendo muito jeito para o Teatro. Porem, quando soube das causas, não fiquei muito surpreendido. Nos dias de hoje, até ficaria famoso já que passou a ser um ato de afirmação que as minorias de hoje nos tentam impor. Devo ainda acrescentar, que sendo o Lemos natural de Braga, foi também para o Porto tal como eu, realizar o estágio do curso no Hospital Militar local. Um quase fim de Comissão drástico para ele. Anos mais tarde, e já em Lisboa, voltei a encontrá-lo na Calçada da Estrela, onde possuía uma loja de decoração.

Lá tive que fazer o saco e despedir-me daqueles que me eram mais próximos e parti em escolta para Có. Porém, antes de partir, vim a confirmar as minhas suspeitas que uma das razões porque tive que ser transferido se deve ao Médico que comigo se encontrava no Pelundo ter receio de alguma emboscada que sofresse sempre que tivesse que ir a Có dar consultas. Não me senti nada orgulhoso por este grau de confiança já que estava a pouco mais de cinco meses do fim da Comissão, e portanto, do regresso definitivo a casa.
Fiz as minhas despedidas dos Maqueiros e Cabo Enfermeiro que tinha a meu cargo, do Médico e de alguns amigos da população, mas de forma muito especial, de quem tinha o cuidado de zelar pela minha roupa.

Cheguei a Có e, surpresa minha, tinha já à minha espera uma jovem para tomar conta da minha roupa que tivesse necessidade de ser lavada. Perguntei-lhe porquê ela? Respondeu-me que tinha recebido ordens da sua amiga do Pelundo para ser ela e não uma outra pessoa a tomar conta da minha roupa a lavar. Fiquei sem fala. Não mais fiz perguntas e pensei para mim o quanto se preocupava comigo a jovem do Pelundo.
De seguida fui-me apresentar ao Capitão da Companhia, que já conhecia, mas apenas de vista, pois só tinha falado uma ou duas vezes com ele no Pelundo. O Capitão Miliciano Rodrigues era natural de Macau. Excelente pessoa que já não vive. Voltei a encontrar-me com ele anos mais tarde em Lisboa, na zona do Marquês do Pombal. Fomos beber café algumas vezes.

As apresentações continuaram de seguida, primeiro aos Sargentos (Primeiro e Segundo) e depois aos Cabos Enfermeiros que no momento lá se encontravam. De seguida fui conhecer os meus aposentos que ficavam junto ao Posto Médico e dar uma espreitadela a este.
Fiquei parvo com o que me era dado a observar. Era uma bagunça total. Além da desordem observada, toda a gente entrava e mexia a seu belo prazer e, numa das paredes laterais, por cima de um banco corrido que servia para se sentar quem lá fosse para consulta, qual escola, fotografias do Presidente da República e do Ministro do Ultramar na altura.
Chamei os Cabos Enfermeiros presentes nesse momento no Quartel para lhes comunicar que a partir daquele instante só eu autorizava as entradas ao Posto Médico.

Depois de uma pequena conversa com os Cabos Enfermeiros, dirigi-me ao gabinete do Primeiro-sargento (Gabinete da companhia onde eram tratados todos os assuntos com papeis) para o informar que não queria fotografias ou outros quadros no Posto Médico que não fossem alusivos à saúde e portanto, que enviasse alguém para retirar de lá tudo o que fosse estranho à saúde. Acrescentei que o lugar daquelas molduras seria na Escola como era natural na altura.
Reagiu mal. As ameaças começaram de seguida dizendo que não seriam retirados os quadros de lá. Respondi-lhe com um ultimato. Ou o Primeiro os retira ou enviava alguém para o fazer. Já os tirei da parede e foram colocados em cima do banco corrido, ou então, eu não vejo outra solução, que não seja colocá-los no bidão do lixo. Olhou para mim de feições iradas dizendo para que eu pensasse bem nas palavras que tinha acabado de proferir. Calmamente respondi-lhe que não me assustava. Leve o assunto para a política que não lhe tenho medo. Voltei-lhe a reafirmar que no Posto Médico eu só aceitava propaganda de saúde. Leve-os para a Escola, voltei a dizer-lhe. Arranjei mais um inimigo. Até ao último dia em que nesta Companhia permaneci, não mais nos demos bem e não mais lhe falei até aos dias de hoje.

Para agravar mais o nosso relacionamento e dado a aproximação do fim da Comissão, recusei-me a assinar um termo de responsabilidade de tudo o que se relacionava com material sanitário sem que fosse feito um inventário ao mesmo. Mais zangado ele ficou comigo. Com isto, o Segundo Sargente esteve até ao último dia que lá permaneci a trabalhar para mim elaborando autos de consumo ou extravio de materiais.

Um outro caso muito estranho lá fui encontrar nesta Companhia. Um dos quatro Cabos Enfermeiros não fazia mais nada que não fosse comer e dormir. Achei muito estranho este ter tirado o Curso de Cabo Enfermeiro e já se terem passados dezassete meses de Comissão e, vir a saber, que esta criatura nada fazia porque dizia não ter coragem para ver sangue e para dar qualquer injeção. Resumindo, este lorde diariamente castigava os outros três Cabos Enfermeiros com uma sobre carga de trabalho.
Fui primeiro ter uma conversa com o Capitão da Companhia acerca deste caso. Pedi-lhe que me fornecer dados sobre aquela situação.
Respondeu-me que nenhum militar confiava nele e, como tal, só os outros três acompanhavam as patrulhas e atendiam todas as necessidades do Posto Médico.

Este espertalhão natural de Almada passou até então meses gozando com o pessoal. Como foi possível darem-lhe o posto de Cabo Enfermeiro? Interroguei-me eu! Vou ter aqui mais uma dor de cabeça, mas não irá terminar a Comissão sem que vá nem que seja uma única vez numa patrulha para o mato, meditei de seguida.
Falando com o Capitão, acertei com ele os detalhes. Disse-lhe que a partir daquele dia eu iria verificar os conhecimentos de saúde daquele Cabo.

Pedi ao Cabo Enfermeiro para arranjar uma almofada velha para treinar à minha frente como espetar uma agulha. Recuou uns passos e foi dizendo que não ia resultar dado que muitas vezes tinha tentado e não conseguia sequer olhar para a agulha. Reafirmei-lhe que era uma ordem minha que teria de cumprir. Assim aconteceu, mas tentando sempre fazer batota.
Como o inventário que eu juntamente com o Segundo Sargento estávamos a realizar a todo o material sanitário, este trabalho ocupava-me muito tempo. Deste modo nem sempre era possível pôr o Cabo treinar a dar injeções como também fazer um penso.

Andava eu naquela azáfama, quando num dia, ao começo da tarde e encontrando-me a descansar um pouco no meu quarto, eis que surge o Cabo Enfermeiro Carlos Gomes muito aflito dizendo-me que se encontrava no Posto Médico um jovem com parte da rótula do joelho em mau estado e sangrando bastante.
Reagi logo e pedi-lhe para colocar o jovem em cima da maca, e esta em cima duma mesa que lá se encontrava. Também que fosse preparando o material como pinças, tesouras, estilete e tudo mais necessário para fechar o golpe, bem como, desinfetar e isolar o local do referido joelho para eu o tratar.

Vesti-me e passando água pelos olhos, lá me dirigi ao meu posto de trabalho.
Espanto meu quando o vi com os dedos segurando num pouco de algodão embebido em mercúrio ou cromo e, passando a medo em volta do golpe, mas com o rosto virado para as suas costas como tivesse nojo do que tinha na sua frente. Passei-me, e, com o meu braço esquerdo, segurei-o pelo pescoço encostando-lhe a cara ao joelho ferido do jovem, ao mesmo tempo que gritando com ele lhe dirigi palavras amargas. Nunca pensei ir encontrar tamanho malandro e matreiro com o posto de Cabo Enfermeiro.

Embora eu tivesse naquele momento os nervos à flor da pele, olhei para o jovem ferido que gemia de dores e dediquei-me sem demoras tratando-o.
Comecei por isolar devidamente a zona do joelho a tratar, mas sempre dizendo ao Cabo Enfermeiro para não deixar de olhar para as minhas mãos e para o golpe. Abri um buraco numa compressa para que a linha de sutura apenas tocasse em zona desinfetada. Lentamente fui retirando, com o auxílio de uma sonda, pequenos pedacitos de ossos da rótula e comecei a fechar-lhe o golpe sem que antes lhe tivesse aplicado anestesia local. Acabei de fazer a sutura, ensinei o Cabo a desinfetar de novo toda a zona, e a proteger devidamente o joelho do jovem com compressas e respetiva ligadura. Transpirei não só pelo calor que aquela hora se fazia sentir como também pela zanga que aquele traste me provocou.

Continuei a dar-lhe ensinamentos e, certo dia, combinei com um Alferes o levar numa das patrulhas que habitualmente fazia. Ficou receoso da responsabilidade que ele iria ter para com os seus homens no caso de poderem ser atacados pelo PAIGC.
Disse-lhe que estivesse tranquilo que ele iria dar conta do recado. Confesso que eu próprio continuava a não ter total confiança naquele traste. Foi ao mato e tudo correu bem para alívio do Capitão, do Alferes e meu. Deste modo deixou de gozar com o pagode. A partir daquele dia passou a dar injeções, mas só a pessoas da população já que os soldados continuavam a não confiar nele.

Vinte anos depois e no primeiro encontro de convívio do Batalhão, este cavalheiro fez queixas à mais tarde minha mulher dum tabefe que lhe tinha dado na Guiné. Disse-lhe que explicasse à minha mulher o acontecido e todos os porquês. Calou-se.

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série 26 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23295: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VII

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)





Imagens, sem data, documentando a presença de descendentes de escravos negros na lezíria e ribeira do Sado



Fonte: Blogue Comporta-Opina (2010), com a devida vénia..



1. Com a devina vénia, transcreve-se do blogue Comporta-Opina, este texto interessante sobre a colonização do vale do Sado por escravos oriundos da Senegâmbia, já provavelmente a partir do séc. XVI (*).




Comporta-OPinia > 2 de janeiro de 2010 > 




Durante séculos a Lezíria e Ribeira do Sado foram um território desabitado, com fama de insalubridade, rodeado de charnecas e gândaras. Apenas a exploração das salinas implicava a deslocação de trabalhadores temporários, funcionando o rio como via de comunicação e escoamento de diversos produtos regionais e locais, de onde avultava o sal, produto que, pelo menos desde o século XVI a meados do século XX, constituiu a principal actividade económica das regiões ribeirinhas entre Alcácer e Setúbal.


O paludismo, localmente conhecido por febre terçã ou sezões, era um mal endémico, correndo ainda hoje a versão que a pouca população existente em períodos anteriores ao século XX era constituída por africanos - supostamente imunes à doença - aí fixados pela Coroa como forma de assegurar alguma agricultura.


Lenda ou não, o certo é que Leite de Vasconcelos na sua monumental "Etnologia Portuguesa", refere e descreve os chamados pretos de Alcácer ou mulatos da Ribeira do Sado, correspondentes a habitantes desta região que apresentavam nítidos traços africanos.


Alentejanos de pele escura

Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta,
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.

Quem quiser ver moças
Da cor do carvão,
Vá dar um passeio
Até São Romão
.

(do cancioneiro popular de Alcácer do Sal,
Alentejo, sul de Portugal)
Ribeira do Sado é o nome de uma região que se estende ao longo do vale do Rio Sado, no sul de Portugal, a partir de Alcácer do Sal e para montante, não longe de Grândola, a Vila Morena. São Romão do Sado é uma das aldeias existentes na referida região.

Quem agora for passear pela Ribeira do Sado, já não verá gente verdadeiramente preta diante dos seus olhos, nem encontrará moças da cor do carvão propriamente dito na aldeia de São Romão. A mestiçagem já se consumou por completo. Mas são por demais evidentes os traços fisionómicos observáveis em muitos dos habitantes da região, assim como a cor mais escura da sua pele, que nos remetem imediatamente para a África a Sul do Sahara.

Nem sequer é preciso percorrer a Ribeira do Sado. Se nos limitarmos a dar uma ou duas voltas pelas ruas de Alcácer do Sal, por certo nos cruzaremos com uma ou mais pessoas que apresentam as características físicas referidas. São os chamados mulatos de Alcácer, por vezes também designados carapinhas do Sado. O seu aspecto é semelhante ao de muitos cabo-verdianos, mas eles não têm quaisquer laços com as ilhas crioulas. São filhos de portugueses, netos de portugueses, bisnetos de portugueses e assim sucessivamente, ao longo de muitas gerações. Quando falam, fazem-no com a característica pronúncia local. São alentejanos.

É frequente atribuir-se ao Marquês de Pombal a iniciativa de promover a fixação de populações negras no vale do Rio Sado. Mas não é verdade. Existem registos paroquiais e do Santo Ofício que referem a existência de uma elevada percentagem de negros e de mestiços em épocas muito anteriores a Pombal. Segundo tais registos, já no séc. XVI havia pessoas de cor negra vivendo nas terras de Alcácer.


O vale do Rio Sado, no troço indicado, é um vale alagadiço onde hoje se cultiva arroz. Até há menos de cem anos, havia muitos casos de paludismo nesse troço. A mortalidade causada pelas febres palustres fazia com que as pessoas evitassem fixar-se naquela região.


No séc. XVI, muitos portugueses embarcavam nas naus, o que agravava ainda mais o défice demográfico existente. Terá sido esta a razão por que, naquela época, os proprietários das férteis terras banhadas pelo Sado terão resolvido povoá-las com negros, comprados nos mercados de escravos. Os mulatos do Sado dos nossos dias são, portanto, descendentes desses antigos escravos negros. (**)


[Nota, a posteriori: a autoria deste texto, não das imagens, deve ser atribuído ao nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, que o publicou aqui, originalmente, sob pseudónimo ("DEnudadp"), no blogue "Da Kappo", da angolana Paula Santana ("Koluki"). 

Link: https://koluki.blogspot.com/2008/07/be-my-guest-ii-denudado.html ]

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Notas do editor:

(*) Últino poste da série > 7 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19756: Blogues da nossa blogosfera (110): O livro "Imagens e Quadras Soltas", de JERO e Manuel Maia, no Blogue da Tabanca do Centro (José Eduardo Reis Oliveira)

(**) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 63/74 – P20192: Agenda cultural (703): Livro do nosso camarada ranger António Chaínho "A escrava Domingas". (José Saúde)

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20017: Manuscrito(s) (Luís Graça) (158): Afinal a guerra também era ototóxica...

Infeliz o cego, surdo e mudo,
porque dele não será o reino de Neptuno


Estou surdo e não poderei ouvir-te em agosto.
Nem ouvir o que mais gosto em agosto,

o mês da festa de todos os sentidos,
ouvir o mar, a décima sinfonia do mar,
tocada pelo vento,

pelos golfinhos e pelos surfistas.
Ou só poderei captar meio som, 

com o meio ouvido que me resta. 

Estou surdo e por mais absurdo
que isso te pareça,
só poderei entender as palavras sibilinas, 

e as semifusas, que me escreveste,
em papel pautado, no teu último mail.

Aqui estou eu, especado, na areia, emparedado entre o
 Beethoven a fazer o pino 
e o desejo e a ameaça de Sibila,
enquanto espero o otorrino, 

à porta do consultório, na casa de praia,
e o sol que tarda 
nesta tarde do mês de Agosto.

Infelizes os surdos e os curdos
(que não têm mar nem pátria nem otorrino,

e muito menos casa de praia) 
e os duros de ouvido, como eu,
porque deles não será o Reino de Neptuno!

Sinto-me infeliz, no pico do verão,
meio surdo, meio huno, meio curdo,
à espera do pôr do sol
e do seu espetáculo de strip-tease,

e o otorrino que tarda em almoçar.

Aqui especado, parado, enterrado na areia,
à espera de qualquer coisa,
da iminência de acontecer qualquer coisa,
à espera da queda dos últimos restos
do sacro império romano do ocidente,
à espera que me caia, na cabeça,
uma prancha de surf,
um tubarão assassino,
um ultraleve publicitário,
à espera que haja uma notícia, 

que não seja falsa,
que dê um belo título de caixa alta
para ler amanhã com o café do pequeno almoço,
qualquer coisa que não me agrave ainda mais 
a minha surdez, o meu autismo...

Por favor, nada de ataques de pânico,
falsos alarmes de tsunami,
e muito menos ainda 

o crash na Bolsa de Nova Iorque,
o suicídio coletivo dos povos da Amazónia,
ou um magnicídio. 

Ao menos que eu fique à espera 
que dê à costa na maré cheia 
um pedaço da arrábida fóssil da Lourinhã,
em vez da cabeça do rei 
ou do Santiago de Compostela,
de preferência um duro osso de roer 

de um pachorrento jurássico dinossauro,
ou até quiçá uma boa chuva de meteoritos
made in China, transgénicos…

Emfim, aqui estou eu à espera dos bárbaros, 
à espera dos hunos,
à espera do meu otorrino,
à espera de ti, meu amor.
à espera do sol que teima em tardar,
à espera do FMI ou do FIM do planeta,
sem pachorra para os curdos,
sem piedade para com os surdos, 
muitos menos os cegos e os mudos,
agora sem o fio de Ariane.

À espera, enfim, da recuperação 
dos meus cinco sentidos,
à espera do fim da minha crise existencial,
à espera do som e da fúria 

da próxima praia-mar,
em noite de lua cheia
prenha de augúrios, fantasmas e medos.

Só não conquistaram o sol, nem a lua, 

os sacanas dos romanos,
que nos escravizaram e deram o ser,
nem os oceanos,
o Atlântico, a autoestrada da globalização, 

o sol que tarda em Agosto,
ou que alguém pôs no prego
para pagar dívidas ao fisco,
nem havia nesse tempo direito a férias pagas,
subsídio de invalidez 

por surdez, profissional,
nem muito menos o prémio 

por nascimento, batizado, casório e funeral.

Estou surdo, cego e mudo,
ou, se não estou surdo, cego e mudo, 

foi por um triz,
que o míssil passou rente ao arame farpado,
estou surdo e a fazer o luto 

pela morte do Estado-Providência
que me pagava o otorrino 

e as gotas para o nariz.

Aqui é o meu futuro, diz o novo huno,
o imigra que agora vende bolas de Berlim
em praias rigorosamente concessionadas
e outrora vigiadas pela ASAE. 

Viva o fascismo sanitário, 
proclama o outdoor
da nova polícia das retretes e dos croquetes.

Estou surdo, sem dó nem piedade,
falta-me ficar cego e depois mudo,
para ser cego, surdo e mudo,
como a figura da deusa Justiça,

esculpida à porta do tribunal. 

Luís Graça,

[Lourinhã, Praia da Areia Branca, 13/8/2007. Revisto].


2. Comentário do autor:

Tenho 'ouvidos novos' que encontrei no lixo e reciclei. Tenho má consciência por toda uma vida em que fui predador do planeta. Agora, tarde e a mais horas, ando numa de reciclagem. Reciclo tudo o que posso, até pus ouvidos novos. Não sei que raio de planeta vou deixar para os meus netos e bisnetos, se os tiver.

Fui fazer um audiograma, mas primeiro fui ao otorrino limpar a merda dos ouvidos. Um deles tinha favos e favos de mel e cera. Mais cera do que mel. Ou era só cera ?...

Há já uns anos que ouvia mal, já não ouvia os alunos da terceira fila na sala de aulas. Muito menos o safado do locutor de serviço ao telejornal. Deixei de ouvir e ver televisão. Nem podia ir ao teatro, que os atores só falavam para eles e entre eles. E a primeira fila era só para os convidados e amigos bons de ouvido. E mesmo para ouvir a 9.ª sinfonia tinha que levar um funil.

O sacana do otorrino, há uns anos atrás, no hospital que devia ser um farol para os doentes, encolheu os ombros, e disse-me: "Mas o que é o senhor professor quer que eu lhe diga ?!... A idade não perdoa, a perda auditiva é irreversível"...

Merda para a idade, senhor doutor, e então os milagres da novas ciências médicas para cujo peditório também dei durante anos e anos ? Eu quero uns ouvidos novos, quero uma recauchutagem do esqueleto, como deve ser, da cabeça aos pés...

Nunca fui egoísta, agora estou a sê-lo... Andei cinquenta anos a descontar para a ADSE, nunca tomei um medicamento, nunca gastei um chavo ao provedor da santa casa da misericórdia... Fui amigos dos ministros da saúde. Tinha saúde para dar e vender. Nunca meti uma cunha a Deus e ao Hospital de Todos os Santos, também nunca me calhou o euromilhões ou a sorte grande, mas a verdade é que também não jogo, e quem não arrisca não petisca, diz o saloio do Zé Povinho....

Não joguei, não ganhei, não arrombei os cofres da santa casa. Agora ando a fazer as contas à vida: tanto para os ouvidos, tanto para a anca, tanto para os joelhos... E que Deus nos livre do raio do Alzhemeir!

"Otites líquidas, teve em pequeno?", pergunta-me a audiologista...

"Minha querida, quem as não teve, em pequenino, ou no Portugal pequenino em que nasci, vivi e cresci. E o meu médico era a ti'Adlina, minha vizinha da rua do clube, guardadora de segredos terapêuticos milenares... Médicos ?... Só havia dois na minha aldeia, e a gente só os chamava no estertor da morte ou nalgum parto de má hora"...

E acrescentei, por descargo de consciência:

"Depois disso, estive na Guiné, na guerra, ouviu falar ?... A menina é jovem, já nasceu depois do 25... E mesmo que fosse antes, nunca iria para a tropa. Só se fosse enfermeira paraquedista, conheci algumas na Guiné... Tiros, explosões, emboscadas, minas anticarro, acidentes com viaturas, quedas mais ou menos aparatosas, picadas, solavancos, cabeçadas, cones de fogo nas trombas, trambolhões, bezanas, esquentamentos, febres palúdicas... sabe como são estúpidas as brincadeiras da guerra, quando se tem vinte anos, sangue na guelra e as hormonas a rebentar a pele"...

"Ah!, já sei, quinino, ototoxicidade!

"O quê... ?"

"Há certos medicamentos que são otóxicos... Já passaram por aqui dezenas e dezenas de antigos combatentes da Guiné que se queixam do mesmo mal... O quinino, do Laboratório Militar, que vocês tomavam regularmente, às refeições... Por causa da malária ou paludismo... Lembra-se ?"


"Eureka!... Se me lembro !... Um pacotinho de sal e outro de quinino, ao almoço!!"...


"Parece haver evidência científica de que o quinino pode provocar danos ao sistemas coclear e/ou vestibular"...

"Não percebo nada da anatomia e da fisiologia do ouvido... Mas com essa do quinino, é que a menina me estar a lixar!... Não sabia, mas devia saber, porra, afinal andei anos e anos a falar de saúde e segurança do trabalho"...

"Não sou farmacêutica, mas há para aí mais do que uma centena de medicamentos ototóxicos. Acrescente-lhe a penicilina"...

"Porra, tomávamos aos milhões"...

"Agora, não há remédio, e não precisa de dizer palavrões... Ou melhor: felizmente há remédio. Deixe isso comigo. Vamos lá fazer o audiograma e, depois, pôr estes brinquinhos no ouvido, devidamente regulados"...

"Com essa é que me tira o sono, que a guerra era tóxica, eu já o sabia, mas que também podia ser ototóxica, não me passava pela cabeça!"...

"É bom para o Estado-patrão (e, para nós, multinacionais que vendemos aparelhos auditivos, um negócio de milhões, aqui para nós que ninguém nos ouve)... Enfim, é bom que os antigos combatentes não saibam certas coisas que faziam mal à saúde... Afinal, só os juízes é que são, coitados, cegos, surdos e mudos... E têm que ser bem pagos por isso"...

"Minha querida audiologista, estou encantaddo por ouvi-lo... Sabe, estou até a simpatizar consigo!".

... Ganhei uns 'ouvidos novos'. Posso agora ouvir todas as conversas, mesmo baixinhas... Até as conversas dos espiões!... Mais importante: posso ouvir o mar no mês de agosto, e o vento a dar nos búzios dos moinhos da minha infância...


Algumas conversas bem as dispensava... Mas não há mundos perfeitos... Mais vale andar neste mudo de muletas do que no outro em carretas... Obrigado ao 'morto' que me deixou uns 'ouvidos novos', comprados no OXL. A preço da uva mijona. É indecente que me peçam 4 mil euros por um aparelho auditivo XPTO... Prefiro um, em segunda mão, reciclado. A mim, que que lutei na guerra pela minha Pátria e que, se calhar, fui vítima da ototoxicidade provocada pelas drogas antimaláricas do Laboratório Militar...

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o·to·tó·xi·co |cs|
(oto- + tóxico)

adjectivo

[Medicina] Que tem efeito tóxico sobre o ouvido ou sobre órgãos ou nervos responsáveis pela audição e pelo equilíbrio.

"ototóxico", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/otot%C3%B3xico [consultado em 27-07-2019].

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19987: Manuscrito(s) (Luís Graça (157): Andamos à volta com os fantasmas de sempre, que, desde meninos, nos ensombram, uns, ou nos encantam, outros... Para o Jaime, ao km 73 dos passos em volta...

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19533: Memórias de Gabú (José Saúde) (78): O paludismo. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem. 

Falemos de uma doença conhecida pelos camaradas

O paludismo

Neste incessante vaguear por caminhos já estreitos que a mente, por enquanto, vai sendo benévola para que possamos escalpelizar a nossa passagem pela Guiné, acontece, agora, falar sobre o paludismo. Um tema que, aliás, nos foi comum.

O paludismo é tão-somente uma doença provocada ao ser humano através de picadelas de uma determinada variedade de mosquitos que por terras guineenses eram “mato”. Julgo que numa triagem que porventura ousemos efetuar ao enormíssimo contingente militar que pisou aquele solo, raro terá sido o camarada que não conheceu a enfadada moléstia, ou porque o paludismo lhes fustigou o físico, ou porque camaradas que viviam por perto terão sido atacados com tal malazenga.

A doença, em si, é também conhecida como malária. As causas que o paludismo provoca interferem com febres altas, dores de cabeça, vómitos, fraqueza muscular, tosse, problemas renais e hepáticos, alteração do sistema nervoso central de entre outros problemas, assim como a implícita chancela de gravidade que pode levar à morte.

As estatísticas são explícitas quando referem que milhares de pessoas morrem por ano tendo como causa principal o paludismo. Aliás, acrescesse que a maioria das mortes ocorridas são de crianças que vivem no continente africano.

Mas será que existem mecanismos para abreviar a propagação da doença? Claro que os há! Basta, por exemplo, tratar a água estancada em pântanos que se constituem como os locais ideais para o seu habitat natural e onde estes insetos proliferam.

Sabe-se, por outro lado, que existem vacinas que visam prevenção no desenvolvimento do mal. Não sendo especialista na matéria, isto é, sou leigo, e humildemente confesso, diz-se que uma vacina considerada capital para o aniquilar o paludismo estará ainda por descobrir. Por conseguinte, a definitiva cura para a maleita persiste.

A cédula pessoal deste velho combatente regista dois casos de paludismo: o primeiro contraído em Gabu; o segundo em Beja em finais de 1970. Este último foi-me diagnosticado por um médico amigo que me visitou quando me encontrava acamado no leito da minha cama e logo me pôs ao corrente do meu estado de saúde.

Neste contexto, sinto-me minimamente à-vontade para debitar narrativa sobre as condicionalidades que o conhecido paludismo me provocou. Sei que vi a coisa preta. Os arrepios de frio e o mal estar geral deixaram-me o corpo quase inerte. Depois, com uma santa paciência lá me ergui e prossegui o meu caminho. Ficou, porém, a malvadez da experiência.

Na Guiné a ansiedade do “mal” deixava o combatente de rastos. Presenciei camaradas entregues a uma luta corporal que impunha apertadas restrições. O “mal” não era fácil combater e um dia, tal como atrás referi, calhou-me conhecer essa efémera e tenebrosa doença.

Asseguram os especialistas na matéria, que o paludismo, vulgo malária, é uma doença transmitida pela picada de mosquitos pertencentes ao gênero Anopheles.

Recorrendo a dados da Organização Mundial de Saúde, observa-se que cerca de 200 milhões de criaturas foram detetadas como portadores da doença e que derrapa, infelizmente, para cerca de 700.000 mortes por ano. A praga é de tal modo agressiva que os médicos travam árduas lutas para minorar as estratégias de contaminação.

Recordo a nossa espontânea deliberação para protegermos a “carcaça” da praga de mosquitos que nos nossos “poisos” não davam tréguas ao combatente que requeria o merecido descanso, isto é, dormir sob a proteção dos famosos mosquiteiros que, em princípio, salvaguardavam inesperadas picadelas destes inoportunos “terroristas”.

Uma curiosidade: quando cheguei à Guiné e me fixei nas exíguas instalações do Quartel General (QG ), “Biafra” como a malta apelidava o pomposo alojamento, vi, desde logo, que muitas das camas das camaratas eram dotadas com os pomposos mosquiteiros.

Lembremos, então, a guerrilha travada com estes inusitados inimigos, leia-se insetos, que não davam pausas a homens cujo propósito era, naturalmente, salvaguardar o corpo de outros ferrões maiores que o IN, sempre à espreitava, impunha no terreno.

E assim vamos dissecando memórias de uma guerra onde conhecemos variadíssimas situações de calamidades, e de pânicos, sendo o paludismo uma “arma de arremesso” que visava um ataque cirúrgico a camaradas que caíam numa emboscada desses proféticos “bicharocos”.



Um abraço camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

19 DE FEVEREIRO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19509: Memórias de Gabú (José Saúde) (77): Pequena biografia da Guiné-Bissau. Viagem pela história. (José Saúde) 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19392: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LIX: O estado de coma... alcoólico no passagem de ano de 1968/69, e as crises de paludismo...


Foto nº 1 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 1 de janeiro de 1969 > O meu estado de coma, durante as primeiras horas do dia de Ano Novo de 1969. Furriéís da CART 1744, meus amigos e camaradas, "fazendo-se pensar por enfermeiros"...



Foto nº 2 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Messe de sargentos >  1 de janeiro de 1969 >  A farra ou a tainada  continua


Foto nº 3 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Messe de sargentos >  1 de janeiro de 1969 > Os mesmos da parelha anterior, agora com mais dois furriéis, o 1º Sargento Godinho, e o Alferes Gatinho, o careca.



Foto nº 11 >   Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 26 de outubro de 1968,  na minha cama, no meu quarto,com um ataque de paludismo.


Foto nº 12 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 27 de outubro de 1968 >  Na minha cama, no meu quarto, já e fase de recuperação do paludismo.


Foto nº 13 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 28 de outubro de 1968 >  Na minha cama, já com evidentes melhoras, e já a ler uma revista.


Foto nº 14 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 28 de outubro de 1968 >  Na  minha cama, a convalescer, lendo uma revista, pronto para o próximo combate. 


Foto nº 21 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Janeiro de 1969 >  Já com a braçadeira de ‘oficial de dia’ num local a que chamavam ‘Casa do Anis’. 


Foto nº 22 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Fevereiro  de 1969 > Cserna dos soldados > Uma festa de aniversário de alguém, onde já se nota o cheiro a álcool.


Guiné > CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >  São Domingos, 1968/69

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alfmil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) (*)


[Foto à acima , o Virgílio e a esposa Manuela, o grande amor da sua vida, na Tabanca de Matosinhos, Restaurante Espigueiro (ex-Milho Rei), 5 de setembro de 2018. O casal vive em Vila do Conde.  (Foto: LG, 2018)]



CTIG - Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:
T091 – O ESTADO DE COMA ALCOÓLICO
UMA SITUAÇÃO REAL DA QUAL NÃO ME ORGULHO
- O COMA PROFUNDO, OS CONVIVIOS, AS FESTAS, OS COPOS E A PERDA DE CONSCIÊNCIA.
- OUTRO TEMA DA PERDA DA CONSCIÊNCIA:
AS DUAS TERRIVEIS CRISES DE PALUDISMO




I - Anotações e Introdução ao tema:


Deixo estas peças – coma, copos e malária – para este fim de ano de 2018.

NOTA PRÉVIA:

Para além de ressalvar os erros e omissões que remeto para final, este tema pode não ser tal como o descrevo, pela razão evidente que o vivi, sem ter consciência do mesmo. 

1 - O tema principal é o ‘estado de coma’ porque passei, na noite de 31 de Dezembro de 1968, para 1 de Janeiro de 1969. Não me agrada, mas nem por isso vou deixar de me lembrar deste episódio e partilhar com outros.

Estamos no final do ano de 1968, com jantar melhorado, antes e depois, muitos copos de bebidas variadas, começa na messe de oficiais, depois na messe de sargentos, acabando junto daqueles com quem mais convivi, os nossos soldados, em especial os condutores. Não sedi se foi esta a ordem mas vamos passando por todas as ‘capelinhas’ como é normal.

Sempre a beber, sempre a misturar, tudo o que tivesse álcool, e rapidamente a mente está toldada, com tantos aromas e tanta mistura, todos querem partilhar um pouco e os copos vão sucedendo uns atrás de outros.

Não sei bem contar esta história, porque na realidade e na prática eu ‘não a vivi’, foi algo que me toldou o cérebro, e já não era eu.

Por volta da meia-noite, os oficiais do Batalhão foram convidados para o fim de ano na Casa do Administrador local, que passa inevitavelmente à meia-noite, pelo champanhe, que não me lembro se era nacional, mas presumo que era Francês.

Esta é a machadada final, pois pouco depois já era o ‘Novo Ano de 1969’, e a partir daqui não posso contar mais nada, pois perdi natural e vergonhosamente todos os sentidos, e assim entrei em estado de ‘coma alcoólico’. Não é bonito, nem feio, foi assim, não fui o único, nem serei o último.

Acordei já a meio da manhã desse primeiro dia de Janeiro de 1969, na minha cama, vestido com um pijama, que quase nunca o vestia, era em Terylene, nylon ou polyester azul-escuro. 

Procurei saber onde estava e o que me tinha acontecido, lentamente acordo e tento procurar todos os meus bens pessoais, que não tinha – o meu relógio Omega, a minha Câmara Konica, os meus documentos, a minha carteira, o meu dinheiro, a minha lanterna, o meu cordão e medalha em ouro, enfim as minhas coisas pessoais. Nada vejo, nem tenho a quem perguntar. 

Levanto-me tomo o duche com o recurso habitual à lata e o bidão de água, visto-me e vou tomar águas da Perrier, nem pensava em comer. A nossa capacidade de sobrevivência é enorme, os nossos anos ainda de jovem têm uma grande vantagem, pois rápido recupero.

Sei que me observavam, muita gente sabia o que se tinha passado, mas eu não. 

Passaram-se muitas horas desde que perdi a consciência, não fazia a mínima ideia do que aconteceu, e nem hoje sei ao certo, talvez me ocultassem por razões de ética e camaradagem. Mas constou-me que estaria deitado numa berma, e já a ser rodeado por população local, Felupes e outros.

Acabo por saber que foi um grupo de Furriéis milicianos, da CART 1744, com os quais eu convivia numa constante camaradagem e brincadeira, nunca tinha vivido assim antes, foram eles que me conduziram para o meu quarto e a minha cama, despiram-me a roupa e vestiram aquele pijama que raramente usava. Devem ter preparado uma grande brincadeira com esta situação. Contaram-me, eles e outros do meu Batalhão, mais ou menos, não quis mais saber. Entregaram-me tudo, pois tiveram a preocupação que nada ficasse perdido ou fosse roubado.

Não almocei, bebi sempre águas, e à noite já estava novamente com eles, bem fresco e com aquela pedalada que hoje já não tenho, onde se fizeram algumas cenas hilariantes, era afinal dia de ano novo. Tudo na messe de sargentos, onde se juntaram praças e oficiais.

Mais tarde com a revelação do rolo que estava na minha máquina fotográfica, venho a encontrar, entre outras, esta que apresento – Foto Nº 1.

Eles, neste período de tempo, á vontade, durante a noite, vestiram-se como se fossem médicos e enfermeiros, simulando e bem, uma transfusão de sangue, acho que é isso que aparece na fotografia, que eles com a minha máquina me tiraram, e assim ficou na minha história, da qual muito se falou depois, mas já não me lembro de nada, porque não ‘assisti’ ao vivo a este momento único.

Não deixo de agradecer a todos por aquilo que me fizeram, se ninguém me socorresse, o que ara quase impossível, pois naquela meio tão pequeno ninguém passava despercebido, talvez as coisas levassem outro rumo, mas foi assim e tudo correu bem, talvez agora a figadeira se vai queixando de tanta barbaridade, que não me orgulho, mas também não me lamento de nada.

Faz agora – 1 de Janeiro de 2019 - 50 anos que tudo aconteceu, e continuo vivo, e nessa noite já estava em novas brincadeiras, com aqueles que eu mais apreciava, eram os operacionais da CART 1744, a Companhia de Intervenção. Sempre achei aquela Companhia do Capitão Serrão como um exemplo a seguir, levavam aquela vida como se fosse uma brincadeira, mas quando era para trabalhar e intervir, não faltaram nunca. 

Tudo começou mal mas acabou em bem, mas poderia ter tido outro desfecho.

2 – Meti aqui neste tema, mais umas fotos e passagens. Ou seja por que razões aconteciam estas coisas, esta a mais grave, começava tudo em festas de aniversários e petiscada, e depois acabava tudo com os copos. 

Tenho mais de uma centena de fotos que não tenciono publicar, pois não são cenas que me dignifiquem, são demasiado ultrajantes para o meu posto e para a minha função, como para qualquer um dos outros camaradas, pois estamos todos à molhada nas mesmas fotos.

3 – Aproveitei também para anexar algumas fotos daqueles terríveis momentos em que estamos a ferver a mais de 42º, com a Malária, a doença do mosquito, o Paludismo. 

Para muitos que sabem o que isto é, não preciso de explicar muito, mas entramos em delírio nos primeiros dois dias, até que a célebre ‘Terramicina’ comece a fazer o seu efeito e a temperatura comece a baixar. Numa situação de temperatura ambiente acima de 35º e mais, temos tanto frio como se estivéssemos na neve, as ajudas eram poucas, o Médico não sei bem o que fazia, mas o nosso Enfermeiro, o já falecido Furriel Veiga, estava ali para ajudar no que podia e era com certeza orientado pelo nosso Médico, posto que ele atingiu já na vida civil, acabou por cursar medicina.

Apanhei por duas vezes esta peste, uma vez em Nova Lamego, outra em São Domingos.

II – Legendagem das fotos:

F01 – O meu estado de coma, durante as primeiras horas do dia de Ano Novo de 1969.

A simulação bem-feita dos dois Furriéis, meus amigos e camaradas da CART 1744, que infelizmente não me recordo dos seus nomes, fazendo passar-se por enfermeiros, numa missão de transfusão de sangue, de soro, ou mais vinho e álcool...

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, durante a madrugada do dia 1 de Janeiro de 1969.

F02 – Na messe de Sargentos a brincadeira continuou, com fantasias de ano novo. A mesma ‘parelha’ que me socorreu com a transfusão de ‘soro alcoólico’ agora com novas vestes e cenas que não era normal ver na classe e messe de oficiais. Só gostavam de jogar.

Foto captada em São Domingos, na messe de sargentos, na noite do dia 1 de Janeiro de 1969.


F03 – Na messe de Sargentos, em cima da mesa, uma cena qualquer que não distingo. Os mesmos da parelha anterior, agora com mais dois furriéis, o 1º Sargento Godinho, e o Alferes Gatinho, o careca.

Foto captada em São Domingos, na messe de sargentos, na noite do dia 1 de Janeiro de 1969.

F11 – Na minha cama, no início de um ataque de Paludismo, talvez a delirar.

As fotos podem ter sido tiradas por qualquer camarada meu no nosso quarto, mas não sei.

Pode ver-se um balde com água e talvez gelo, para molhar a toalha e colocar na cabeça, as dores eram terríveis, e afectavam-me bastante.

E lá estão os comprimidos – LM  [, Labortório Militar,] – para todos os males.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 26 de Outubro de 1968.

F12 – Na minha cama, na cura do Paludismo, já com evidentes melhoras.

As fotos podem ter sido tiradas por qualquer camarada meu no nosso quarto, mas não sei.

Pode ver-se já as garrafas de água Perrier, com as quais combatia a desidratação.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 27 de Outubro de 1968.


F13 – Na minha cama, já com evidentes melhoras, e já a ler uma revista.

As fotos foram tiradas por um camarada a meu pedido.

De salientar, agora que estou a apreciar, as paredes estavam repletas de fotos, de mulheres que faziam capas nas revistas internacionais da época. Sem entrar em cenas ousadas, uma simples figura feminina, com roupa interior ou de praia, era uma delícia para a malta toda.

Não sei se cá na metrópole desse tempo, existiam revistas destas, não me lembro. 

Apenas sabemos que não haveria ‘motorista’ de pesados, que não tivesse na sua cabina do camião, algumas capas destas revistas, mais tarde bem ousadas.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 28 de Outubro de 1968.


F14 – Na minha cama, a convalescer, lendo uma revista, pronto para o próximo combate. 

As fotos foram tiradas por um camarada a meu pedido.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 28 de Outubro de 1968.


F21 – Já com a braçadeira de ‘oficial de dia’ num local a que chamavam ‘Casa do Anis’. 

Esta e outras tantas fotos, representam a razão por que poderiam aparecer situações extremas, incluindo o Coma.

Na companhia de alguns soldados do meu Batalhão, uns à civil, outros fardados. E sempre com o copo na mão, que não era água de certeza. Não sei se a Casa do Anis, era o nome de alguém, ou se era um sítio onde se bebia ‘anis’!

Não percebo também os olhares arregalados de todos os presentes, mas sei que todos me respeitavam. Este era um serviço de 24 horas sempre presente e atento.

Foto captada em São Domingos, na Casa do Anis, tomando uma qualquer bebida em Janeiro de 1969.


F22 – Uma festa de aniversário de alguém, onde já se nota o cheiro a álcool.

Era neste ambiente que nasciam os exageros, aos quais nunca faltava à chamada.

Pode notar-se sempre de copo na mão, na maioria são soldados condutores, dois furriéis, o Carvalho, e o outro atrás de um copo que pode ser o Camolas. Lembro os nomes dos soldados condutores, o Ermesinde, o Bourbon, o Pita e outros.

Terá sido uma das últimas fotos e convívios com o meu pessoal em São Domingos, pois de seguida, antes do fim do mês, já estava em fuga para mais umas férias no Porto.

Foto captada em São Domingos, numa Caserna de Soldados, em meados de Fevereiro de 1969.

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».


NOTA FINAL DO AUTOR:


# As legendas das fotos em cada um dos Temas dos meus álbuns, não são factos cientificamente históricos, por isso podem conter inexactidões, omissões e erros, até grosseiros. Podem ocorrer datas não coincidentes com cada foto, motivos descritos não exactos, locais indicados diferentes do real, acontecimentos e factos não totalmente certos, e outros lapsos não premeditados. Os relatos estão a ser feitos, 50 anos depois dos acontecimentos, com material esquecido no baú das memórias passadas, e o autor baseia-se essencialmente na sua ainda razoável capacidade de memória, em especial a memória visual, mas também com recurso a outras ajudas como a História da Unidade do seu Batalhão, e demais documentos escritos em seu poder. Estas fotos são legendadas de acordo com aquilo que sei, ou julgo que sei, daquilo que presenciei com os meus olhos, e as minhas opiniões, longe de serem ‘Juízos de Valor’ são o meu olhar sobre os acontecimentos, e a forma peculiar de me exprimir. Nada mais. #


Acabadas de legendar, hoje,

Em, 2018-12-30
Virgílio Teixeira

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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18312: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 26 (O primeiro castigo no mato) e 27 (O paludismo)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > O 1º cabo cond autor José Claudino da Silva, ostentando um bigode que não era "regulamentar"...

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda]

Nasceu em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, reside hoje na Lixa, Felgueiras. Tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado. Tem o 12.º ano de escolaridade. 

Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook: é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante.  É membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(ix) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(x) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(xi) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xii) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda;

(xiii) ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xiv) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xv) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 26 e 27


[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


26º Capítulo  > O PRIMEIRO CASTIGO NO MATO 

[O capº 25 -  As Mensagens Natalícias - já aqui foi reproduzido em poste de 22 de dezembro último (**)]

No dia 25 de Abril de 2017, para comemorar o dia da liberdade, fui convidado a discursar, perante uma plateia onde até deputados do parlamento europeu marcaram presença, além de outras ilustres figuras da política, da arte e da cultura de Portugal. As minhas primeiras palavras foram: - Olho para vós e tenho a sensação de que estou ao mesmo nível de todos. É isso que nos permite a democracia. Sermos todos iguais.

No dia 25 de Outubro de 1972, o 1º cabo condutor, (éramos dois) encarregado da cantina, soube qual o castigo que apanhou: 10 (DEZ) dias de detenção.

As funções dele eram a de servir os camaradas com os produtos existentes na cantina e também a população civil. Não me perguntem porquê, mas regras ditavam que na cantina não se podia estar com a cabeça tapada. Em contrapartida, fora da cantina não podíamos andar de cabeça destapada.

Querem saber qual foi o crime? O 1º cabo exigiu a um dos senhores Alferes que tirasse a boina da cabeça. Fez isso sem estar em sentido e sem pedir por favor. O senhor Alferes participou o sucedido ao comandante que, muito ao jeito dos militares, ajuizou e condenou o pobre 1º cabo.

Parece-lhes ridículo? Eu já tivera um castigo na Metrópole, embora muito mais leve, por assobiar. Enchera 20 flexões.

O meu colega estava-se nas tintas para os 10 dias de detenção; tínhamos sido todos condenados a um exílio, num presídio penitenciário, por dois anos, só que o castigo impedir-nos-ia, no caso de o pretendermos, passar o mês de férias a que tínhamos direito, ao fim de um ano de comissão, na Metrópole.

Não será necessário afirmar que a disciplina, mesmo naqueles confins do mundo, era duma exigência tal que torturava. Admito que com o decorrer do tempo foi aliviando um pouco mas, nos primeiros meses, até formatura diária era obrigatória, com o uniforme completo e a barba feita. Arrotava-se de náusea.

Como já frisei, tinha deixado crescer bigode, porém, como na foto da caderneta militar tal não constava, fui obrigado a cortá-lo ou teria de fazer um requerimento superior.

Aproveito para lhes contar um caso divertido, precisamente com a caderneta. Não podendo usar bigode, interroguei o capitão se podia ter a altura que tenho, ou se deveria usar a que a caderneta mencionava. É que eu meço um metro e setenta e seis e na caderneta consta que meço um metro e meio. Não me proibiu de usar a minha altura real.

Juro que nos encontros anuais de ex-combatentes, já me apeteceu enfiar um barrete na cabeça do ex-alferes mas ele iria dizer-me que eram outros tempos e só cumpriu ordens. Era assim, por muito estúpidas que as ordens fossem.


27º Capítulo  > O PALUDISMO


Não acreditei minimamente no que tinha escrito quando, após estes anos, li que tinha passado de 63 para 58 quilos em quatro dias e acreditei menos quando também li que tinha atingido 41 graus de febre.

Está ali escarrapachado na carta:

“Apanhei o paludismo, nem tenho forças para escrever! – Não digas à minha avó” - dizia eu.

Dois dias depois, já pesava apenas 56 quilos. Isto estava a ficar complicado.

Acreditem que já vários colegas que tinham estado com essa doença, alguns dos quais, como também já vos disse, por serem analfabetos era eu que escrevia por eles, me proibiam que dissesse aos familiares, principalmente pais, algo que fosse grave e que os pudesse afligir.

Tínhamos consciência de que eles nada poderiam fazer para nos ajudar,  por isso, para quê atormentá-los com os nossos problemas?

Era, pois, natural que até nesse aspecto tenhamos aprendido a contar com a lealdade de uns para com os outros, e, mais uma vez, tive sorte.

O Leal e o Moreira cuidaram de mim, alimentando-me o melhor que puderam. Também o Lopes, enfermeiro, dos poucos alentejanos da companhia, que desviava vitaminas para mim e me obrigava a tomar MILO. No batalhão, tínhamos um excelente médico que vinha de 15 em 15 dias, e enfermeiros que faziam da sua profissão uma missão de coragem, de abnegação e sacrifício, em nome de todos nós. Enfermeiros que participavam nas operações no terreno, que além das armas e munições, para sua defesa, tinham de carregar a pesada mochila de medicamentos e que, em caso de ataque, pura e simplesmente não se podiam abrigar, pois tinham de socorrer os feridos. Eram esses os nossos anjos brancos, embora nos tratassem com o camuflado vestido. 

O paludismo não me venceu nem a nenhum dos soldados da companhia. Recordo que até esta data dois colegas já tinham sido evacuados por contraírem hepatite. Dizia-se que tinham feito de propósito para adoecerem. Não acredito

Agradeço aos meus amigos e à magnífica equipa de saúde da minha companhia que, por vezes, e em circunstâncias extremas, socorreram e trataram, com uma sensibilidade fora do comum, todos, e creio que fomos mesmo todos, que em algum momento daqueles dois anos precisaram dos seus serviços. Ficámos a dever-vos ser mesmo muito amigos.

[Continua]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18280: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 23 e 24: A partir de outubro de 1972, aumentei a requisição (quinzenal) de cervejas: de 5 ml para 6 mil... Por outro lado, fiquei chocado quando pela primeira vez ouvi dizer que éramos colonialistas...

(**) Vd. poste de 22 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18122: O meu Natal no mato (43): as mensagens natalícias de 1972, gravadas pela RTP a 23 de outubro... E se a gente morresse, entretanto ?...Como não tinha pai nem vivia com a minha mãe ou com os meus irmãos, tive de dizer “querida avó” e mais umas balelas obrigatórias... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)