sábado, 11 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26377: Humor de caserna (94): "Ó meu alferes, telefone à minha mulher e diga-lhe que morri a pensar nela!" ... Ou para o que davam as sezões!... (Alberto Branquinho, "Cambança Final", 2013)

Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970; ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), tem 140 referências no nosso blogue; é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".

Tem, pelo menos, 8 títulos publicados, desde 2005 a 2023.

Não foi apenas um grande operacional, como oficial miliciano, numa companhia como a CART 1689, a quem foi atribuída a Flâmula de Honra (ouro) do CTIG, em julho de 1967, como também é um dos melhores cronistas desta guerra, no género do humor picaresco.

 Para além do toque sempre subtil de humanidade, que ele sabe dar às suas histórias, é um mestre no uso da ironia fina. Numa escala de a 1 a 5, dou 4,5 pontos a este genial microconto: em escassa página e meia,  ele descreve magistralmente, numa só pincelada, o clássico quadro clínico das "sezões" (*) que nos apanharam a todos, no mato, e faz um retrato-robô, a corpo inteiro, do soldado português que tanto é bravo na guerra como é um pinga-amor, piegas, emocionalmemnte frágil, trágico-cómico, quando agarrado à cama de uma improvisada enfermeria do mato, chamando pela mãe ou pela mulher quando pensa que vai morrer... (LG)


"Ó meu alferes, telefone à minha mulher e diga-lhe que morri a pensar nela!" ... Ou para o que davam as sezões!

por Alberto Branquinho



− Ó meu alferes, o Angelino quer falar consigo.

O Angelino era um rapaz franzino, mediador de conflitos, sempre a tentar conciliar mesmo aquilo que parecia inconciliável. Mas, para tentar conciliar os desavindos,  não utlizava linguagem contida, cuidada. Pelo contrário, as suas tentativas  para concilitar as partes em confronto passavam por uma linguagem agressiva, insultando, até, os que estivessem a quezilar.

Estava, agora,  prostrado na cama, naquela espécie de enfermaria, que tinha uma porta de ligação para o quarto do furriel e do cabo, enfermeiros. Estava com paludismo. Era a sua primeira experiência.

Depois dos picos de febre, na área dos quarenta graus, vómitos, diarreia, tonturas, que o faziam gritar "Ai, que vou morrer!",  vinham os arrepios e estremeções que abanavam a cama como se estivesse a haver um terramoto.  A seguir, ficava de tal modo prostrado que parecia morto. Era aquela sensação de fim de mundo, apocalíptica, instalada na cabeça.

Quando recuperava da prostração e sentia que as tonturas iam regressar, agarrava-se aos ferros da cama para evitar ser arrastado, de novo, no rodopio infernal, que só existia dentro da sua cabeça. Regressavam, então, os vómitos.

Porque estava a demorar mais do que o habitual, o furriel enfermeiro estava preocupado e desejava, do fundo da alma, que houvesse um médico.

Depois de quatro (ou cinco?) dias de cama, começou, finalmente, a recuperar, a reter líqudos, a comer sopa. Parecia estar a estabilizar, mas sentia-se prostrado, sem forças. O furriel comunicou, então, ao capitão que o Angelino estava a melhorar e não seria necessário transportá-lo para a sede do Batalhão [BART 1913, Catió, S3]

Foi já nesse estado que o Angelino ouviu dizer que o alferes Abreu  iria nesse dia na Dornier [DO-27] para Bissau, para passar férias na Metrópole.

− Meu alferes, o Angelino quer falar consigo. 

O alferes mandou parar o Unimog à porta da "enfermaria". Saltou do carro, entrou e demorou uns segundos a adaptar-se à luz interior. Sentou-se na cama.

− Então, pá, isso está melhor ?!

As mãos do Angelino procuraram as do alferes, enquanto no rosto, macilento, barbudo, corriam duas lágrimas.

− Ó meu alferes, telefone à minha mulher e diga-lhe que morri a pensar nela. Para este número.

O alferes não telefonou. O Angelino não morreu. Quando o alferes regressou, o Angelino, envergonhado, evitava encontrar-se com ele. 

In: Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - "Paludismo". In: Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos.  Lisboa,Vírgula,  2013, pp. 193/194.  (***)


(Título,  revisão / fixação de texto, itálicos: LG)  (Com a devida vénia ao autor e à  editora) 

_____________________

Notas do editor LG:

(*) A forma sezões é [feminino plural de sezão].

sezão (se·zão)
nome feminino

1. [Medicina] Acesso de febre, intermitente ou periódica, precedido de frio e de calafrios. (Mais usado no plural.)

2. [Medicina] Doença infecciosa causada por parasitas do sangue do género Plasmodium, transmitida ao homem pelo mosquito anófele. (Mais usado no plural.) = IMPALUDISMO, MALÁRIA, PALUDISMO

"sezões", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/sez%C3%B5es.

(**) Último poste da série > 10 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26369: Humor de caserna (93): o guardador das vacas do Enxalé que violou... a bezerrinha do furriel enfermeiro (João Crisóstomo, ex.afl mil, CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)

(***) Alguns dos "microcontos" do autor, aqui publicados recentemente nesta série:

12 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25936: Humor de caserna (74): " O "Biró-lista", atirador de... morteiro (Alberto, Branquinho, "Cambança final", 2013, pp. 105-107)

22 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25866: Humor de caserna (70): um "tuga"... (de)composto, ou uma estória pícara num almoço fula (Alberto Branquinho, autor de "Cambança final", 2013)

27 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25689: Humor de caserna (68): Passa-palavra, furriel Canhão à frente! (Alberto Branquinho)

17 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25652: Humor de caserna (67): O Spínola teria-se-ia desmanchado a rir, se fosse vivo, e tivesse lido esta história do cabo Abel, contada aqui, em versão condensada, pelo nosso Alberto Branquinho

13 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses (Alberto Branquinho)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Alberto, vou descobrindo "diamantes" no teu baú... Como tens livros mais recentes, este "contrabando" não é concorrência desleal...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Num ano de loucos a governar a arca de Noé do planeta, temos que ter antídotos contra a loucura global...