segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25652: Humor de caserna (67): O Spínola teria-se-ia desmanchado a rir, se fosse vivo, e tivesse lido esta história do cabo Abel, contada aqui, em versão condensada, pelo nosso Alberto Branquinho

 
1. Ó Alberto Branquinho, o Spínola deveria ter gostado de ler esta história... Não sei se ele tinha sentido de humor e se chegou a aprender o crioulo tão bem como tu. O seu biógrafo é omisso sobre isso. Mas ter-se-ia desmanchado a rir, como eu me desmanchei,  ao ouvir a resposta da moça que ia para escola, ao cabo Abel, que, armado em dono da guerra, lhe queria barrar o caminho no cerco ao seu bairro... Mais: teria ficado imensamente satisteito e até orgulhoso com a "lata" da bajuda, vendo na sua atitude e comportamento o triunfo da sua política "Por uma Guiné Melhor"... Não achas ?!

[ Para quem não sabe, o Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970, foi alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69). "Por Portugal, um por todos, todos por um", era a divisa do seu batalhão. Chegaram a Bissau a 1 de maio de 1967 e regressaram a casa em 2 de março de 1969. Portanto, ainda "trabalharam" com o Spínola nove meses... Tem 140 referências no nosso blogue, é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo". ]


Noss’ cabo Abel bai na Bissau

por Alberto Branquinho


O cabo Abel nunca tinha estado em Bissau.

O batalhão a que pertencia chegou a Bissau no paquete que os transportava desde Lisboa, mas a sua companhia saiu do paquete sem pisar terra, passou, diretamente, para batelões rebocados e, assim, foram rio acima,deixando, ainda, a bordo as restantes companhias do batalhão. (…)

Nunca tinha saído de junto da companhia, nos vários aquartelamentos por onde tinha peregrinado. Nem sequer uns dias de férias em Bissau. Tinha-se afeiçoado ao periquito que tinha preso à barra da cama. (…)

Agora, passados vinte e três meses, em Bissau,à espera de embarcar para a Metrópole, também já com a cara verde-amarela azeitona que o impressionara nos velhinhos no dia da chegada, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez!  

Era um rio de vida que corria pelas ruas – tropa bem fardada, polícia militar, polícia naval, civis, muitos civis e, principalmente, mulheres, muitas mulheres! Todas bonitas. E, até, muitas mulheres brancas, que já não via há muito tempo. (…)

Em Bissau a companhia recebia, por vezes, instruções para fazer cerco aos bairros negros de Bissau. O bairro era cercado pelas quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completo o cerco, grupos de militares inspecionavam casa a casa, pedindo os documentos.

(...) Era já manhã. O pessoal que fazia o cerco sentava-se no chão, com a G-3 entalada entre os joelhos ou em cima das coxas, em atitude descontraída, que, em nada, se assemelhava às situações de tensão que, em circunstâncias idênticas, tinham sido vividas, em emboscadas ou cercos no interior da Guiné,

De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o cabo Abel, surgiu uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca,trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O cabo Abel levantou-se e,  com a G-3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:

Bajuda, bô cá pude passa!

A moça, que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:


− Porque você não fala comigo português direito ?

E, contornando-o, continuou o seu caminho para Bissau. O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado, a vê-la passar. 

Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 141/43

(Título, excertos,  revisão / fixação de texto, parênteses curvos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25636: Humor de caserna (66): Fidju di bó... ou a língua afiada das mulheres guineenses

5 comentários:

Valdemar Silva disse...

Calhando, a bajuda falou assim por perceber que o Abel não estava a falar crioulo correctamente.

Bajuda, bo ka pudi pasa. Assim já percebia

Em crioulo da Guiné em nenhuma palavra entra a letra C que é substituída por K, excepto nas palavras com ch, bitchu=mosquito, assim como as vogais a,o,e não têm acento por serem vogais abertas, o único a acento é o til para a pronuncia nh como p. ex. araña .

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Na minha leitura, ela falou assim ao Abel, com o ar de superioridade de quem já anda na escola, sabe português "direito" e não supporta o "crioulo" atamancado... Um grande lição!

Alberto Branquinho disse...


Luís

Vim agora ao blogue e vi este texto. Agradeço.
Já deves ter este livro há uns dez anos. Creio que é de 2013.

Valdemar

Na Guiné, do Cacheu (já depois da "peluda") até Nova Lamego ou Canquelifá, de Bafatá até Catió ou Cabedu, ouvi diferentes entoações do crioulo. Pequenas, mas notórias. Às vezes variando até com a raça do falante. Alías é o mesmo em Cabo Verde (mais notório nas ilhas mais afastadas).
Quanto à ortografia do crioulo guineense, não sei se existem regras (oficiais). Há? Não me importou saber.
Sei que em Cabo Verde introduziram o "K". Eu não sei, mas eles lá saberão porquê. Nunca o perguntei aos amigos caboverdeanos (alguns ex-governantes). Por outro lado, Valdemar, em crioulo falado, não se nota a diferença na pronúncia de um "ká" para um "cá". Com acento ou sem acento.

Um grande abraço, com estima e consideração.
Alberto Branquinho



Valdemar Silva disse...

Ok, caro Branquinho.
Não passou duma brincadeira minha igual à da bajuda.
Mas, uma coisa é certa, no crioulo da Guiné pode haver várias palavras para a mesma "coisa" nos falantes variando de local, não tanto como no crioulo de Cabo Verde que varia de ilha para ilha, e que é muito diferente do crioulo da Guiné.
Também o não se notar entre o "ká" ou "cá" com ou sem acento, será como por cá com o betacismo, o 'bocê num passa' é assim ouvido e não faz diferença com 'você não passa", quer dizer a mesma coisa e não tem nenhuma importância especial.

Abraço, saúde da boa e continuação de boas destas histórias do nosso tempo na guerra da Guiné.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sim, Alberto, tenho um exemplar autografado do "Cambança Final" que diz:

"Para o Grande Chefe da Tabanca Grande, Luís Graça, com um abraço do Alberto Branquinho. 8jun2013. Monte Real".

De vez em quando gosto de te reler... Força. Luís