segunda-feira, 17 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25649: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte III: O Eustáquio, que tinha 14 anos, andou fugido nas montanhas de Liquiçá e Ermera, com a mãe e a irmã mais nova, mais duas pessoas amigas da família Sobral, durante três anos e meio


Timor > Liquiçá > Manati > Boebau > 2018 > Escola de São Francisco de Assis > Uma luz ao fundo do túnel... Aproxima-se a data da inauguração: 19 de março de 2018.


Texto e fotos: © Rui Chamusco  (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral.  A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra.  A família Sobral andou vários anos pelas montanhas de Luiquiçá e de Ermera, tentando escapar à tirania dos ocupantes indonésios. O Gaspar esteve 38 anos fora da sua terra, só lá voltando em 2016, com o Rui.

Foto: Luís Graça  (2017).


1. Esta é a segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, uma missão solidária que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.

O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã.

O Rui tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta).

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. Juntamente com outros destacadas figuras, como o Gaspar Sobral (nascido em Timor) e a Glória Sobral (natural da Malpaca, Sabugal).

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores. E um obrigado ao nosso cronista, extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,à Aurora, à Adobe e outros protagonistas destas histórias luso-timorenses.

Estas crónicas tem um enorme interessante para se conhecer o que é hoje a República Democrática de Timor Leste,  país membro da CPLP, com o qual mantemos laços históricos, e sobretudo afetivos, tal como mantemos  com a Guiné-Bissau e outras antigos territórios que estiveram sob a administração portuguesa em África e na Ásia (LG).



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)
 
Parte III - O Eustáquio, que tinha 14 anos, andou fugido nas montanhas de Liquiçá e Ermera, com a mãe e a  irmã mais nova, mais duas pessoas amigas da família Sobral, durante três anos e meio 


06.03.2018, terça feira  - Dia de anos da Aurora

A Aurora, que é a mãe da casa, a esposa do Eustáquio e mãe dos quatro filhos que gerou, faz hoje 49 anos. Só isto seria mais do que suficiente para lhe fazermos a festa. Mas a Aurora, para além de mãe e esposa, é muito mais. 

Apesar das dificuldades físicas pois há sete anos teve um AVC que afetou os movimentos do seu lado esquerdo, a Aurora nunca para. Sempre solícita às necessidades da casa, sempre disponível a qualquer apelo, sempre com o seu sorriso de encantar. Claro que lhe fizemos a festa e lhe cantamos os parabéns!...

Para surpresa de todos e já ao fim da tarde, telefona o João Crisóstomo para nos dizer que faz questão de aparecer aqui para dar os parabéns à senhora Aurora. E apareceu mesmo! Esta gente, que tanto tem ouvido falar no João pelas melhores razões, ficou atónita e comentando: “ O quê? O senhor João Crisóstomo vem aqui?”... E desfaziam-se em cuidados para o receber. 

Mal sabiam eles que o João, apesar de toda a importância que lhe é dada e que bem merece, é uma pessoa simples e humilde. Adaptou-se ao local e passou de imediato a ser um dos habitantes da casa.

Teve vários gestos que a todos cativou, mas realço o apadrinhamento “in loco”do Alaka, um dos filhos do Anô. È a primeira vez que acontece um apadrinhamento em direto. Via-se a satisfação do Alaka que dizia “gosta”, mas também do João. Eu diria duas crianças. E lembrei-me então de ditados e canções que ilustram o que escrevo: “de velhinho se volta a menino”; “faz-me ser criança junto dos irmãos”.

Desculpa, João! E obrigado pelo teu exemplo. Este apadrinhamento alargou o campo de ação do nosso programa, levando-o até aos Estados Unidos da América.


07.03.2018, quarta feira  - Encontros com o embaixador de Portugal e o bispo Dom Basílio

Dia 7 de Março é o dia que nos foi marcado para sermos recebidos pelo senhor embaixador de Portugal. Às dez horas em ponto, lá estávamos nós à frente da
embaixada, um edifício novo inaugurado há pouco tempo, e depois de alguns
minutos de espera por questões de segurança interna, alguém nos veio buscar e
conduzir à sala de audiências do senhor embaixador.

Recebidos cordialmente pelo novo embaixador (tudo é novo aqui), que tomou posse há três meses , e pela sua secretária doutora Daniela Pereira, de pronto começamos o colóquio sobre as intenções porque solicitamos esta audiência. Durante mais ou menos uma hora todos fomos intervindo com perguntas e respostas que enriqueceram o diálogo. A embaixada conheceu o nosso projeto e nós ficamos a conhecer a posição e a ação da embaixada a este respeito. Ficou a promessa do senhor embaixador de que daria a devida atenção às nossas pretensões, depois de lhe enviarmos por escrito a fundamentação do que estamos a fazer. Para já ficamos muito satisfeitos e agradecidos por o senhor embaixador aceitou o convite de estar presente no ato da inauguração da escola em Boebau no próximo dia 19. esperamos que a promessa seja cumprida.

Outro encontro de não menos importância aconteceu na parte da tarde, das 16.00 às 23.00 horas, com o senhor bispo D.Basílio, que faz questão de ser meu amigo desde 1980, porque trabalhamos e estudamos durante dois anos, em Paris. É segunda vez que, durante a nossa segunda estadia em Timor, nos encontramos, e com certeza que muitas mais vezes assim o faremos.

À hora marcada, no Hotel Plaza onde o João Crisóstomo está instalado, lá está já o D. Basílio à nossa espera. Deu-nos o exemplo da pontualidade que nós (eu, o Gaspar, o João e o Eustáquio) não conseguimos cumprir. E ainda dizem que as pessoas importantes chegam sempre atrasadas!... Este longo tempo de encontro trouxe-nos tudo: partilha de ideias, recordações, boa disposição, projetos de vida e ação, etc.

De minha parte compete-me agradecer a facilidade e a disponibilidade de tempo e contactos que o nosso amigo nos dispensou, e particularmente as orientações
preciosas que nos prestou quanto ao estatuto e à funcionalidade da escola em
Boebau. Vamos continuar a precisar da sua ajuda, e sei de antemão que nunca nos será negada. Obrigado Basílio!



09.03.2018, sexta feira - Relatos impressionantes 
de cenários de guerra

Enquanto se fazem os preparativos para a inauguração da escola e aproveitando
algum tempo de lazer ainda cá em baixo, em Ailok Laran, vamos ouvindo em primeira mão relatos impressionantes que aconteceram nas zonas montanhosas de Liquiçá e Ermera, particularmente as que aconteceram em terras de Boebau e arredores. 

O Eustáquio tinha na altura da invasão indonésia 14 anos e, como já referi anteriormente, andou fugido três anos e meio pelas montanhas, juntamente com a mãe, a irmã mais nova e mais duas pessoas amigas da família Sobral. Cada vez que fala, sem complexos mas com alguma revolta, do que viu e do que lhes aconteceu, impressiona-nos com o seu realismo. Passo a contar os relatos que hoje lhe ouvi pela primeira vez.

  • Quando os tentaras (tropas armadas indonésias) apareciam, todos procuravam esconderijos. Conta o Eustáquio que uma vez estava um grupo escondido, nele incluído um bebé, enquanto os tentaras passavam. Como a criança começou a chorar, e para que não fossem descobertos, alguém lhe tapou a boca com a mão... Quando se deram conta a criança estava morta.
  • Uma senhora na plena força da vida (mais ou menos 40 anos) foi enterrada viva de cabeça para baixo, de tal modo que viam os pés da senhora a mexer enquanto ali ficava morta.
  • A outra senhora prenderam-na a uma árvore e foram-se embora na esperança de que ela ali morresse e apodrecesse.
  • Uma outra senhora, da família do Eustáquio cujas filhas sobreviveram e habitam uma localidade próxima de Boebau, foi deixada também no local apenas com um pouco de milho moído e um cassapo, feito de bambu com alguma água. Ainda hoje ninguém sabe o que lhe aconteceu: se morreu, se foi levada pelos indonésios, se sobrevive nalgum sítio.

Diz o Eustáquio que este povo sofreu muito e continua a sofrer porque se sente
esquecido do poder central. Os guerrilheiros tinham sempre de comer porque os
populares lhes levavam comida, e tinham com que se defender, pois utilizavam
armas. 

Mas esta gente indefesa era quem mais sofria e continua a sofrer. Chegará algum dia em que se faça justiça? Este povo bem merece. As eleições antecipadas estão à porta, e é urgente que os poderes delas resultantes tenham em consideração os necessidades e anseios das pessoas mais carenciadas.

Quanto a mim, quanto a nós, sinto-me cada vez mais motivado a lutar com as
minhas possibilidades pelo bem estar desta gente, e particularmente por estas
crianças que não vão à escola devido às dificuldades de acesso e às situações de
pobreza extrema. Havemos de fazer a diferença. Que Deus nos ajude!

Talentos perdidos...

Sei que em todo o mundo é assim, e todos conhecemos casos semelhantes ao que
vou contar. A Delfina Tavares é uma jovem que acabou este ano (em Dezembro
passado) os estudos do Secundário (12º ano de escolaridade). Estivemos a ver a sua caderneta escolar que prova ela ser a segunda melhor aluna da turma. 

A Delfina, devido à doença da mãe e a ter perdido o pai teve de deixar a sua casa e está a viver numa família de acolhimento cujo aglomerado familiar soma 15 pessoas, em situação de muitas dificuldades financeiras. Claro que todos vão à escola, exceto a Delfina que, por falta de verbas para pagar a matrícula e a frequência tem de ficar em casa em trabalhos caseiros. 

Infelizmente também aqui em Timor, as universidades públicas, pagas pelo Estado, são ocupados por alunos vindos das classes mais altas. Os outros têm de recorrer ao ensino privado, que tem de ser pago, e ao qual muitos alunos não têm acesso por falta de possibilidades das suas famílias que são pobres.

Estamos a tentar resolver o problema da Delfina, e temos esperança que ainda se
possa matricular e frequentar o curso de economia na faculdade que o administra.

Este caso leva-me a refletir sobre o ditado “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. E vêm me à memória uns quantos casos que em Portugal eu conheço de talentos perdidos por falta de condições e de oportunidades em prosseguir os estudos.

É pena que assim seja. Quem sabe se com a contribuição de cada um de nós a situação não se altere, pelo menos para alguns, e esses talentos perdidos ou escondidos possam desenvolver-se e dar frutos. Assim o desejo profundamente...

Dia 11.03.2018, domingo - Hoje é Domingo...

“ Dies Domini...” Hoje é domingo, dia do Senhor. Por isso e por outras coisas mais fomos à missa das 8.00horas, na igreja de Motael.

Ao chegar encontramos um largo cheio de gente que assistia à missa das 7h. Como há sempre muita gente a esta hora, optou-se por a missa desta hora ser cá fora, tipo missa campal.  

Foi-nos então explicado pelo sr. Ascenso, uma enciclopédia de conhecimentos, que nesta igreja de Motael, a primeira missa é celebrada em bahassa (língua indonésia), a segunda em português, a terceira em tetum,e a quarta em inglês. È assim mesmo, missa para todos os gostos... 

É escusado dizer que a religião católica tem uma grande implantação em Timor Leste. E por isso as cerimónias religiosas têm uma participação muito relevante e muito expressiva. Os cânticos e as orações coletivas fazem-nos crer que esta gente é sincera e as suas devoções, aceitemos ou não, têm razão de ser e dão significado às suas vidas.

A razão mais forte que aqui nos trouxe, (eu, o Gaspar e o João Crisóstomo) foi de nos encontrarmos com o sr. Padre Mário Godamo, que ´é o represente do Vaticano neste país, a fim de combinarmos a cerimónia da benção da escola de Boebau.

Depois de uma larga conversa partilhada, chegamos à conclusão que será celebrada a missa, seguindo-se o programa já delineado. Precisamos de todos os apoios  possíveis, mas particularmente do apoio divino. Deus está connosco. Ele vai ajudar!...

Esteve também connosco o Levy, já meu conhecido e grande amigo do Gaspar, que a nosso pedido se iria encontrar com o João Crisóstomo. O João ficou emocionado ao abraçar este herói da resistência. Ele mais um colega, felizmente também sobreviveu, são os dois heróis que personificam o monumento existente em frente da igreja de Motael, mesmo à beirinha do mar. Aparecem, como imagens fortes de sangue e suor, no filme que percorreu o mundo e ajudou a fortalecer o movimento da luta pela independência nacional. Por isso é compreensível o estado emocional do João, ele que tanto lutou por ajudar este país sofredor. Com certeza que mais emoções hão-de vir ao de cima. Força João!...

12.03.2018, segunda feira  - Nem tudo são rosas...

Quando as promessas não são cumpridas a frustração, a ansiedade, o desânimo
instalam-se na gente. Hoje era o dia anunciado para a chegada do Ralph e de Lucila, os dois jornalistas esperados para fazer o documentário sobre a educação em Timor Leste, e também para fazerem a reportagem da inauguração da escola em Boebau. 

amigo João Crisóstomo, que tudo tem feito para que esta equipa possa realizar o seu trabalho em boas condições, é quem mais sofre com estes incumprimentos. Não sabemos se ainda vêm ou não, mas decidimos não nos deixarmos influenciar pela sua ausência. Todos juntos somos fortes e iremos com certeza levar a cabo esta missão. A escola será inaugurada no dia 19, esteja quem estiver, porque as crianças e todos nós estaremos lá.

13.03.2018, terça feira - A prenda que desejávamos...

Já relatei o caso de “talentos perdidos” que descreve a Delfina, uma aluna que
acabou o secundário como a segunda melhor da turma. Hoje, a Delfina, o Gaspar e eu fomos a Universidade da Paz, falar com o Dr. Lucas que é o reitor, sobre esta
situação. Recebidos num clima de simplicidade e amizade, o Dr.Lucas pôs tudo em movimento e, depois de ter as informações adequadas, decidiu ali mesmo, de
imediato, que a Delfina começará amanhã a frequentar as aulas no curso que ela
escolheu (Relações Internacionais), isenta do pagamento de propinas.

Ainda mais. Sob proposta nossa o Dr. Lucas aceitou com muito agrado ser sócio da Astil, pronto a colaborar connosco em tudo o que seja possível. Estiveram também connosco o Dr. Apolinário e o Dr. Domingos que nos guiaram na visita às instalações desta grande e credível universidade.

Há dias assim, em que tudo corre bem. Obrigado, Dr.Lucas!...



Fonte: João Crisóstomo - LAMETA - Movimento Luso-Americano para a Autodeterminação de Timor-Leste, edição de autor, Nova Iorque, 2017, p. 157 (com a devida autorização do autor, conhecido ativista de causuas sociais, nosso camarada da dáspora lusitana, a viver nos EUA desde 1975, e ex-alf mil da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


Da esquerda para a direita: o professor Berbedo de Magalhães, da Universidade do Porto, João Crisóstomo e Xanana Gusmão, num encontro em Lisboa [em 22 de dezembro de 2001] 
(Fonte:  LAMETA, 2017, pág. 22)

 

Capa da brochura
LAMETA (2017)
14.03.2018, quarta feira  - Exposição Lameta

À hora combinada, 9.30h, lá estávamos na Escola Rui Cinati, em Balide, uma escola de referência em Dili, onde o ensino e a língua portuguesa estão em destaque. Foi o local combinado para que o amigo João pudesse expor os seus trabalhos relacionados com o livro que publicou LAMETA ( Movimento Luso Americano para a Autodeterminação de Timor Leste). 

Acompanhando eu o João na preparação desta exposição sou testemunha de quanto investimento em dinheiro, esforço, contactos, entusiasmo, esperança foi depositado neste evento. Mas confirmo também o apoio inexcedível prestado pela direção desta escola, nomeadamente do Dr. Acácio,  seu presidente, para que esta exposição tenha o êxito esperado. 

O ato da inauguração foi um momento alto que nos catapultou a todos. Vi o João como ele é:  grande e humilde; fervoroso e contagiante; alegre e bem disposto. Para tal muito contribuiu a presença de figuras convidadas, nomeadamente a presença do Sr. Embaixador de Portugal.

De nossa parte fica também o nosso agradecimento à “publicidade” que nos fizeram e que nos permitiu alguns contactos importantes para o futuro da nossa escola em 
Boebau.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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Nota do editor:

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