Queridos amigos,
Andamos a ler as peripécias vividas por um engenheiro civil em Bolama, em 1928, era Governador o Major Leite de Magalhães, o sr. engenheiro tinha as contas no caos, ofendia gente e levava lambada, era sancionado pelo Governador em pleno boletim oficial, contestava sempre, e não esconde que tinha amizades em Lisboa. Nisto saltaram recordações de material em falta, a necessidade urgente de fazer processos de abate para ferros retorcidos de camas, colchões, fronhas e lençóis queimados, armas escavacadas. E logo um alferes na sede do batalhão, em Bambadinca, me pedia para em cada flagelação eu meter as faltas que ele tinha nos seus depósitos. Fatal como o destino, apareceu-me um coronel com cara de poucos amigos a perguntar como é que eu tinha mais abates que 2 batalhões juntos... Tudo se explicou, tudo se perdoou, mas isto do material em falta, deteriorado ou avariado, pode dar as mais inusitadas chatices, regressara a Portugal há bem 6 meses e bateu-me à porta um polícia, tinha que pagar um lençol rasgado (que, evidentemente, recebera rasgado, e com a calmante explicação que não tinha importância nenhuma) ou então teria que o acompanhar à esquadra.
Cuidado com o material em falta!
Um abraço do
Mário
Cuidado com o material em falta!
Mário Beja Santos
A situação de que vou falar foi vivida por muitos combatentes e relaciona-se com material deteriorado sobre o qual havia exigências severas de processo de abate. Imagine o leitor como o assunto sobreveio, lendo documentação manuscrita com um século ou mais que se encontra nos reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Folheando uma grossa pasta, dei com uma novela vivida por um engenheiro civil, diretor das obras públicas em Bolama, no primeiro semestre de 1928, era governador da Guiné o Major Leite Magalhães e o engenheiro chamava-se Caetano Marques de Amorim, recusou ir para o Estado da Índia, foi despachado para a Guiné onde teve muitíssimos problemas, desde ter levado forte pancadaria de deportados ofendidos, uma advertência feita pelo governador em pleno boletim oficial e ser dado como um diretor de obras públicas altamente negligente. O inspetor extraordinário José Manuel de Oliveira e Castro envia ao governador em 29 de agosto de 1928 o resultado da inspeção financeira que levara a cabo na Direção das Obras Públicas.
Escreve:
“A inspeção teve início em 14 de abril último, pelo balanço dado ao cofre e pela verificação dos documentos nele exigentes, representando despesas efetuadas.
E dada a forma irregular como se haviam realizados os pagamentos constantes da documentação ali encontrada, no montante de muitas centenas de escudos, foi necessário proceder a um estudo e confronto demorados com a escrituração da Direção da Fazenda.
Relativamente ao Depósito de Materiais e Ferramentas, não podia ter lugar qualquer exame à sua escrita, porque ela não existia. Existia, sim, um livro sem obediência aos mais rudimentares preceitos legais, mal escriturado e atrasado. Os materiais e ferramentas existentes no Depósito, encontravam-se aos montes, sem indicação de preços e sem referência a faturas.
Foi, portanto, necessário promover a regularização da escrita, o inventário de toda a existência e a organização do novo livro, por onde se pudesse conhecer as espécies dos materiais e dos artigos à carga desse Depósito. Tal serviço foi protelado por parte do respetivo Fiel, durante muito tempo, e, para a sua mais breve conclusão indispensável se tornou que a Direção da Fazenda lhe suspendesse os vencimentos até concluírem e apresentarem os respetivos trabalhos.
Só em 10 de julho do ano corrente, o Sr. Diretor das Obras Públicas, engenheiro Marques de Amorim, me comunicou que o Fiel do Depósito tinha regularizado a escrita. Mas, vista ela, notou-se-lhe a falta de vários elementos que verbalmente lhe foram pedidos e que não apresentou, até que os pedi oficialmente. Em 11 do mesmo mês, vieram esses elementos com a nota da Direção das Obras Públicas, e no mesmo dia estava ultimada a inspeção financeira, cujos resultados levei ao conhecimento daquela Direção.
Verificado está que a demora havida se deve ao caos em que se encontrava a parte financeira daquela Direção, que, é indispensável acentuar-se, a mim, como inspetor extraordinário me pertencia apenas verificar e não organizar e compor, como fiz, não só pelo natural empenho da regularidade de todos os serviços da colónia, como também para satisfazer às instâncias do engenheiro Marques de Amorim, abraços com as dificuldades resultantes dos mais processos adotados anteriormente ao seu exercício.”
Despede-se com os cumprimentos da época (Saúde e Fraternidade), continuei a ler o processo, Marques de Amorim tentou agredir o deportado político José Simões da Piedade, disse a quem o ouviu que se estava a “cagar na revolução”, os deportados ajuramentaram-se para lhe dar um corretivo, Leite Magalhães irá puni-lo por comportamento desrespeitoso, enfim, uma perfeita cegada. Enquanto tudo isto lia, ocorreu-me o que vivera em Missirá, corria o mês de agosto de 1968. Peripécias inesquecíveis, e como é próprio destes casos, com ameaças de punição à vista.
Estava acerca de 1 mês a comandar Missirá e Finete, vivi em Missirá mais tempo, e um dia o cabo-quarteleiro, de nome Veloso, de voz ciciante e sempre a retorcer para baixo a sua bigodaça me recordou que havia uma divisão que eu ainda não visitara, um depósito de material sem préstimo, que conviria urgentemente denunciar à CCS do novo batalhão que ia chegar em breve a Bambadinca. Lá fui visitar o dito depósito, emanava um cheiro nauseabundo a podridões várias, ali havia de tudo, ferros de cama enferrujados, capacetes que tinham perdido préstimo, umas estranhíssimas peças em couro a cheirar a mofo, restos de terrinas metálicas rachadas ou amolgadas, enfim, um mundo inesperado de sucata com que eu não sonhara. E começou uma aventura kafkiana: interrogado o furriel que estava encarregado da contabilidade e manutenção, declarou nunca ter feito autos de abate, nem lhe conhecias a fórmula; anotado como prioritário o assuno na minha agenda, vou a correr falar com o tenente da secretaria do BART 1904, entregam-me formulários, insistem que devo fazer rapidamente o preenchimento dessa documentação, partirão em breves semanas. E preencheu-se aquela burocracia, senti alívio de meter em sacos toda aquela traquitana nauseabunda.
Não tinha passado 1 mês desde a chegada do novo batalhão, sofro uma flagelação de monta em Missirá, na noite de 6 de setembro, fez-se o relatório e descriminaram-se as perdas, o novo alferes encarregado da manutenção do material pede-me para eu alterar os números: na flagelação perderam-se 2 camas, ele recomendou que eu pusesse 20; arderam lençóis, fronhas e colchões, “Epá, põe aí qualquer coisa como 30 pares de lençóis e fronhas e mesmo os colchões, fiz o inventário aqui do batalhão, nem podes imaginar o material que falta, tenho que pedir auxílio a quem sofre flagelações para não vir a ter chatices”.
E cada vez que eu tinha uma flagelação aquele brioso alferes da CCS avolumava perdas.
Até que um dia desceu um helicóptero em Missirá, dele saiu um coronel com ar de poucos amigos, depois de um seco aperto de mão pediu-me um ambiente reservado para conversarmos, foi direito ao assunto, em Bissau achava-se completamente inacreditável que naquele quartelzinho com um pelotão de milícias e um pelotão de caçadores nativos houvesse perdas que excediam à vontade as de um batalhão que estivesse permanentemente a ser atacado. Respondi-lhe sem hesitar que tinha perdas e não enjeitava a camaradagem, como o Sr. Coronel podia imaginar ninguém estaria interessado em levar para a metrópole cobertores malcheirosos, ferros de cama, pedaços de fronha, rolos de arame farpado, procedera com solidariedade e não estava arrependido. O Sr. Coronel então sorriu, deve ter considerado que era com aquela franqueza chamar os bois pelos nomes que valia a pena encerrar o assunto, como aconteceu, meses depois o tal inquérito que foi arquivado.
Enfim, enquanto lia na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa os infortúnios e os disparates de Caetano Marques de Amorim, veio-me à lembrança que não se deve descurar o material em falta, quem descura arrisca-se a muitos amargos de boca. E fica aqui a última lembrança. Já em Bissau, pronto para regressar, aboletado num dormitório infecto a que chamávamos “Vaticano III” entregaram-me um lençol esfarrapado, que não me preocupasse, entregava-o assim na data da partida, era material para abate, não havia mais. Acreditei e 6 meses depois, a viver na Avenida do Brasil, em Lisboa, bate-me à porta um polícia e mostra-me um documento em que eu tinha que repor uma maquia por ter esgarçado um lençol em Bissau, se não pagasse imediatamente teria de o acompanhar à esquadra. Mais uma vez se mostrava que é preciso ter muito cuidado em manusear material para abate…
Prestando-se assistência sanitária na Guiné, 1967, Arquivo Global Imagens, com a devida vénia
A messe em Missirá (Cuor) em 1966, imagem do blogue
A minha morança em Missirá, ardida em 19 de março de 1969
_____________Nota do editor
Último post da série de 14 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25639: Notas de leitura (1700): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1858 a 1861) (7) (Mário Beja Santos)
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