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sábado, 18 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20867: (De)Caras (154): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte III (Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 1973 > Vista aérea de Piarada, foto tirada em 1 de agosto de 1972, no DO-27, nº 3492, pelo então ten pilav António Martins de Matos.  Legenda: 1. Pista de aviação e heliporto ( a leste); 2. Estrada para o Senegal (a norte); 3. Estrada para Bajocunda (a sudeste); 4. Estrada para sul / sudoeste (Sonaco, Bafatá e Nova Lamego)

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1964/66 > Croquis, com a localização da casa dos comerciantes Mário Soares e Palha, e de mais outros dois comerciantes, no centro de Pirada, além da tasca do Paiva,  contígua à casa do Mário Soares, a messe de oficiais, o quartel, a escola, a casa do chefe de posto, Barbosa... Junto deste funcionava também um posto sanitário. O quartel foi adaptado de um antigpo armazém de mancarra.


Croquis de parte das instalações ocupadas pelos militares da CART 676 (Pirada, 1964/66): quartos e messe de oficiais,  cozinha, WC, oficina, poço... A sul / sudeste,  ficava a tabanca.

Fonte:  Geraldes (2009) (*)



Guiné > Região de Gabu > Carta de Pirada (1957) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Pirada e Bajocunda.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)



Mário Soares > Pirada > 14/2/1974.

Foto: António Rodrigues (2015)
1. Quem foi Mário Soares, o comerciante de Pirada, de seu nome completo Mário  Rodrigues Soares, que alguns de nós, que passsaram pelo leste da Guiné, conheceram, ou pelo menos ouviram falar dele,  muitos de nós, ao longo da guerra ? (**)

Dizia-se, mais ou menos à boca cheia,  que o Mário Rodrigues Soares (, mais conhecido por Mário Soares,) tinha "relações privilegiadas" com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando tanto para a PIDE/DGS como para o PAIGC. Onde está a verdade, se é que algum dia o viremos saber ?

A CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66) foi a primeira ficar aquartelada em Pirada. O nosso camarada e grã-tabanqueiro Carlos [Adrião] Geraldes (Lisboa, 1941- Viana do Castelo, 2012) era um dos alferes dessa companhia.   É autor de duas séries no nosso blogue, "Gavetas da Memória"  (13 postes) e "Cartas" (10 postes), onde fala do quotidiano dos militares que nessa época estiveram em Piradas e nos destacamentos de Bajocunda e Paunca.

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Soares justamente quando a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Tornar-se-iam amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E, nas suas carta, vem defendê-lo da acusação, injusta, de que ele jogava com um pai de dois bicos...

Foi assim, num dos seus postes ds série "Gavetas da Memória" (**), que ele descreveu a chegada a Pirada e o início da sua amizade com Mário Rodrigues Soares:

(...) Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie se praceta, com um pequenino monumento e tudo. 

(i) para a esquerda era o caminho para o aglomerado populacional, as palhotas;

(ii) ara a direita o caminho levava a uma pequena pista de aviação. 

(iii) m cada canto desta praceta, erguiam-se quatro edifícios caiados e com telhados de telha: eram as casas comerciais, representantes locais de outras sediadas em Bissau;

(iv) seguindo sempre em frente, chegávamos à fronteira com o Senegal, ali a escassos metros;

(v) a meio caminho [, do lado esquerdo,]  erguia-se a casa do Chefe de Posto e o edifício do Posto Sanitário;

(vi) ao lado [, direito,] um celeiro de mancarra que provisoriamente servia de quartel para um pelotão indígena: era ali que a Companhia iria residir… 150 homens, mais ou menos, iriam ficar alojados onde anteriormente estavam pouco mais de 30 (...)

(...) Para alojar os sargentos e os oficiais também se arranjou solução. O nosso amigo comerciante que tinha encabeçado a recepção às tropas recém-chegadas [, o Mário Soares], também já tinha pensado nisso.

Como de propósito tinha mandado arranjar uma casa, situada nas traseiras de um dos estabelecimentos comerciais que, chegava para albergar os dois oficiais e alguns dos furriéis. Os que não couberam, foram alojados pelo Chefe de Posto, o senhor Barbosa, um simpático velhote que vivia sozinho e ansiava por companhia. A casa que ocupava era demasiado grande para ele e de certo modo até ficava mais resguardado a dormir debaixo do mesmo tecto que a tropa. (...)

(...) Depois de um retemperador banho de bidão e de um opíparo jantar para os oficiais e sargentos, em casa do nosso anfitrião, o nosso futuro anjo da guarda, Mário Rodrigues Soares era assim que ele se chamava, sentíamo-nos num paraíso até aí inimaginável. (...) (**)

2. Continuamos à procura de outros testemunhos sobre esta "eminência parda" da guerra na Guiné, no nosso tempo, que foi o Mário Soares, seguramente o civil então mais conhecido... 

Estivemos a reler as cartas do Carlos Geraldes, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, generoso, prestável, com um vasto capital de relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal).

Nesta III parte, continuamos a publicar excertos, selecionados, das cartas remetidas para a família, no período de agosto de 1965 a abril de 1966, ou seja na última parte da comissão, e em que o Carlos  continua a fazer  referências ao seu "amigo M. Santos [leia-se: Soares]".

Em agosto de 1965, ele deixou o destacamento de Paunca e foi comandar a companhia, em Pirada, em substituição, cap art Álvaro Santos Carvalho Seco, a gozar a sua licença de férias na metrópole.

Em abril de 1966, chega ao fim a comissão, o Carlos Geraldes faz um despedida emocionada aos amigos que fez em Pirada e que deixa, com apreensão em relação ao seu futuro. Não sabemos se voltou algum dia a ver (ou a contactar com) o seu amigo Mário Soares.

Outras companhias, entretanto, passaram  por Pirada e o Mário Soares voltou a receber, na sua casa, outros oficiais,como foi o caso do alf mil médico José Pratas, da CCS/ BCAV 3864 (1971/73). Reproduziremos o seu depoimento no próximo poste desta série.


Carlos Geraldes (Lisboa, 1941 - Viana
do Castelo, 2012)
Na véspera do 25 de Abril de 1974, estavam em Pirada o comando e a CCS do BCAV 8323/73, bem a 3ª C/BCAV 8323/73. O Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323/73 (Pirada, 1973/74), nosso grã-tabanqueiro (e antigo aluno do nosso editor Luís Graça, no curso de especialização em medicina do trabalho, na ENSP/NOVA) também era visita da casa do Mário Soares.


Paúnca, 1 de agosto de 1965 (****)

De novo em Pirada agora a comandar a própria Companhia!

O capitão foi de férias e, como o Cardoso, que é o alferes mais graduado, ainda se encontra na Metrópole, tive de vir eu para o comando das tropas, pois sou o alferes que se lhe segue quanto a graduação. (...)

Continuo a ir todas as tardes e principalmente depois de jantar, a casa do M. Santos, onde jogamos umas partidas de xadrez, novo entretenimento que descobrimos. Mas perco sempre pois ele é um jogador muito mais forte que eu. Agora, costumam juntar-se a nós, dois ou três furriéis, de maneira que os serões são muito mais animados. Discute-se política, cinema, literatura e de tudo um pouco, conforme as preferências de cada um.

Quanto às minhas novas atribuições no comando da Companhia, não me preocupam muito porque são poucas ou quase nenhumas. Daqui a poucos dias deve chegar o Cardoso e então regressarei de novo a Paúnca. (...)

Pirada, 8 de agosto de 1965


(...) Hoje tivemos também a festa de despedida do Gabriel,  aquele alferes de Cavalaria, meu companheiro em Bajocunda, de quem me tinha tornado amigo e que, foi nada mais, nada menos, nomeado ajudante do Governador!

É claro que delirámos com a notícia e fizemos mais uma grande festa em casa do amigo M. Santos que, coitado, depois do jantar, já abria a boca até às orelhas, cansado e mortinho por se ir deitar. 


Pirada, 29 de agosto de 1965

Tudo na mesma. Continuo um bocado azedo mas a coisa passa-me.

Só peço que o capitão chegue depressa, para poder regressar a Paúnca. Não fui ensinado para ocupar lugares destes e já estou farto de, quando quero fazer qualquer coisa, ter de andar a perguntar ao 1.º sargento (que também é uma boa bisca) se o posso fazer ou não.

(...)  De resto, a vida aqui em Pirada tem-se limitado a uma ida todos os dias ao quartel, assinar umas quantas mensagens que vão chegando e dar despacho a outras. Depois almoça-se, dorme-se a sesta e se ainda há mais alguma coisa a tratar volta-se ao quartel, senão vai-se até ao balcão da loja do M. Santos dar à língua até a hora do jantar. À noite vai-se outra vez para lá, jogar às cartas com as crianças e também com alguns graúdos que já apanharam o vício.


Pirada, 11 de setembro de 1965


Acabo de vir de casa do M. Santos, onde fui jantar juntamente com o capitão que, felizmente já cá está. Chegou ontem e fui eu próprio buscá-lo a Nova Lamego. Por enquanto parece ainda um pouco abananado com a mudança da Metrópole para aqui e só me deixa voltar para Paunca segunda-feira (hoje é sábado). (...)

A filha mais nova do M. Santos fez oito anos e houve grande festa lá em casa. Ficámos todos muito alegres como não podia deixar de ser. Eu ainda fiz uma retirada a tempo mas o médico e alguns furriéis teimaram em ficar mais algum tempo. Acabaram a cantar e a gritar desalmadamente no meio da praceta. Tive de os mandar calar à força e o furriel enfermeiro tropeçou e deu um valente tombo. No dia seguinte andava de braço ao peito. Foi uma risota.

Paunca, 10  de outubro de  1965


(...) À noite, quando não chove, geralmente sento-me cá fora e coloco o gira-discos a tocar. Como sei que eles [, os homens do pelotão,] não apreciam jazz, pedi ao M. Santos uns discos emprestados, entre eles, os do Solnado (os famosos discos com os monólogos da “Ida à Guerra”), que têm tido um sucesso estrondoso, pois ficam ali à minha volta, sentados em cadeiras, caixotes ou mesmo no chão. E assim passamos grandes bocados da noite, entretidos a conversar e a rir.


Paunca-Pirada, 24  de outubro de  1965

Hoje fui até Pirada ver um jogo de futebol com a Companhia de Cavalaria que está em Bajocunda.

Em Paunca já temos professor primário, é o Timóteo, um rapaz negro muito alto e ligeiramente coxo. Grande falador e grande bebedor também, como deu também para verificar. Esperemos que não me venha a dar problemas, pois parece ter prosápia a mais.

(De facto, como que a comprovar a minha estranheza quanto a alguns aspectos da sua conduta, vim a saber depois, pelo M. Santos, quando já estava na Metrópole, que ele afinal, tinha sido sempre um elemento do IN infiltrado e que, desaparecera repentinamente, quando sentiu avolumar as suspeitas sobre ele.)

Quanto a batuques, são todos os dias, mas não têm metade da graça dos que se faziam em Pirada. A população daqui é menos simpática e pouco comunicativa. Se não fosse por causa do capitão e daquela convivência forçada com o porcalhão da companhia (refiro-me ao Cardoso) andaria desejoso de voltar para lá. Mas assim é preferível ficar estagnado nesta absurda calma de Paunca. À noite, tenho até experimentado ir até casa de um ou outro comerciante, para uma visita, mas, francamente, são de tal maneira broncos e soezes que, regresso sempre sem vontade nenhuma de lá voltar. (...)

Paunca, 17 de fevereiro de 1966


Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade. Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!

Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás os chefões na sede do Batalhão.

Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…

Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem disposto.

A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.

E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.

Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.

Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o [alferes]  Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. 

Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!

Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto? (...)

Paunca, 8 de março de  1966

No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.

Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.

Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! (...)

Como o Manel Jaquim [,o homem do cinema ambulante,] agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. (...)



Paunca, 13 de março de 1966

Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e, como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.

Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.

Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido.
Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos. (...)



Paunca, 21 de março de 1966


As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.

Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes, que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto.


Bissau, 19 de abril de 1966

Todas as noites, depois de jantar, reunimo-nos e vamos até qualquer bar ou esplanada da baixa, petiscar camarão ou ostras.

No quartel temos mantido um comportamento tão acima da média que toda a gente está bem impressionada connosco. Acabaram-se os problemazinhos quotidianos que surgiam constantemente, quando estávamos no mato, em Pirada e em Paunca. Agora acordamos todos os dias, alegres e descontraídos, pensando sempre que falta menos um dia.

Uma das coisas que mais me impressiona no comportamento que os nossos soldados estão a ter agora é precisamente a calma com que estão a encarar estes últimos dias de comissão. Até parece que reina entre nós uma certa nostalgia por deixarmos estes lugares.

A nossa despedida de Pirada foi extraordinariamente comovente. Todos os amigos que lá fizemos e que por lá ficaram, o M. Santos e a família, o velhote Gomes e os outros comerciantes, a Ti Clara, a Cumba e todas as outras meninas do régulo Solo Só, vieram despedir-se com lágrimas nos olhos e correram atrás dos camiões até os perderem de vista no pó da picada.

Foi até hoje, uma das despedidas mais dolorosas que vivi. Deixámos ali abandonada para sempre (?) aquela gente que não tem outro modo de existência senão ficar ali, expondo-se a uma ameaça eminente, desaparecendo aos poucos da nossa memória.

(A ameaça eminente a que me referia, era a das presumíveis retaliações, logo que a guerra terminasse, pois os guerrilheiros, futuros vencedores, iriam certamente tratá-los como gente traidora, como cobardes que nunca fizeram qualquer sacrifício em favor da causa. O que infelizmente veio a acontecer, nos primeiros anos de euforia da independência.)

Confesso que também me vieram as lágrimas aos olhos.

Agora aqui em Bissau levamos uma vida regalada, pois o serviço até nem é muito e a camaradagem com aqueles que, como nós, também vão regressar, é entusiasta e franca.

Estes últimos dias são de uma emoção fora de todos os limites. Estou ansioso de subir para o barco. (...)
____________

Notas do editor:




quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13564: Em busca de... (247): Afonso Pombinho, ex-Soldado da CART 676 (Pirada, 1964/66), procura camaradas

Foto: © Fernandino Leite (2010). Direitos reservados.


1. Mensagem de Maria Silva, filha do nosso camarada Afonso Pombinho da CART 676 (Pirada, 1964/66), com data de 1 de Setembro de 2014:

Boa tarde,
O meu pai fez parte da CART 676 na Guiné, o seu nome é Afonso de Jesus Pombinho, soldado 4620/63 e gostaria de promover um possível encontro com alguns dos seus camaradas.

Visto que ele já se encontra com bastantes limitações de saúde, gostaríamos de lhe fazer uma surpresa, uma vez que ultimamente e cada vez mais tem manifestado vontade de rever os companheiros de batalha.

Agradeço a sua ajuda, pois também estou disponível para ajudar no que for necessário
Maria Silva
(mariasilva@costaduarte.pt)
Telefone 351 213 504 440

************

2. Comentário do editor:

Cara amiga Maria Silva,
Infelizmente, da Companhia de seu pai, CART 676, temos poucos registos. Em tempos tivemos contacto com o nosso camarada Liberal Correia que foi Furriel Miliciano da 676. Por outra via dou-lhe o seu endereço electrónico. Veja se o seu pai se lembra dele.

Fica aqui publicada a sua mensagem na hipótese de ser lida por alguém que nos possa dar uma ajuda. Da mesma vai ser dado conhecimento ao camarada Liberal..

Ficamos ao seu inteiro dispor.
Em nome dos editores e da tertúlia, aqui fica um abraço para o nosso camarada Pombinho, a quem desejamos a melhor saúde possível.

Amiga Maria, receba os nossos cumprimentos
Carlos Vinhal
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13445: Em busca de... (246): CISMI, 4ª Companhia, Tavira, agosto de 1963... a que pertenceu o vosso grã-tabanqueiro Manuel Luís Lomba... (Armando Sousa / Francisco Mota Lopes)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10898: Em busca de ... (212): Notícias do Comandante da CCAÇ 728, um Tenente à data do desembarque (Liberal Correia)

1. Mensagem do nosso camarada Liberal Correia (ex-Fur Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), com data de 28 de Outubro de 2012:

Boa tarde
Ao ler o post acerca da 728, vieram as recordações.
Eu e o alferes Correia da Cart 676,  quando da chegada a Bissau da Ccaç 728, fomos a bordo para informar o cmdt que eles, 728, iriam nos substituir no Batalhão 600 e seriam colocados no sul e não na área de Bafatá para onde parece que estavam destinados.
Nós os da 676 é que iríamos, e fomos, para Pirada, Bajocunda e Paunca...
Estou a ver a cara do cmdt da Ccaç 728, era um tenente que julgo ter estado na Índia, ficou furioso (?) melhor, desagrado com a notícia.
Não me recordo do nome desse Tenente, mas recordo que, segundo o jornal da caserna teria pedido a demissão do Exército.

Alguém da 728 se lembra deste episódio?
Qual o nome do tenente ao tempo cmdt da Ccaç 728?
Será que fez parte do 25 de Abril?

Cumprimentos do
Liberal Correia
Fur Mil
Cart 676
liberalcorreia@hotmail.com


2. Comentário de CV:

Caro camarada Liberal Correia.
O nosso editor Luís Graça reencaminhou ontem para a minha caixa de correio esta tua mensagem de Outubro do ano passado. Tarde sim, mas vai ter resposta e dela (mensagem) ser dado conhecimento público.

Vamos relembrar que pertenceste à CART 676, és amigo do nosso camarada Mário Fitas, Fur Mil da CCAÇ 763, vives no Canadá e tens já duas entradas neste Blogue respeitantes aos postes P3819 e P7894.

Quando falas da CCAÇ 728, julgo estares a referir-te aos postes do nosso camarada J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil desta CCAÇ.

Entretanto, consultando o 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné, da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), encontramos 3 Comandantes da CCAÇ 728, todos com o posto de Capitão, a saber: António Proença Varão, Ramiro José Marcelino Mourato e Amândio Oliveira da Silva.

Vamos ver se o camarada Mendes Gomes pode responder às tuas interrogações.

Já que estamos com a mão na "massa", em nome do Luís, convido-te a aderires à nossa tertúlia. De que precisamos? Da tua vontade de te juntares a nós, de uma foto do teu tempo da farda amarela, já que a actual está em cima como podes ver, de te dispores a contar uma ou outra memória ainda viva, assim como do envio de fotos relativas à Guiné do teu tempo e dos camaradas que contigo viveram o quase início da guerra.

Esperamos as tuas próximas notícias na expectativa de te passarmos a ter como, não mais um tertuliano, mas como mais um camarada e amigo, mais um elemento desta enorme família.

Recebe um abraço dos editores e desta tertúlia que te espera.
O teu camarada
Carlos Vinhal
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10885: Em busca de ... (211): O ex-Alf Mil Médico João Calheiros Lobo, procura camaradas do HM 241 do ano de 1970

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P9973: (Ex)citações (181): Revisitando as cartas do alf mil Carlos Geraldes (José Freitas, ex-fur mil minas e armadilhas, CART 676, Pirada, 1964/66)





Guiné > Região de Gabu > Pirada > CART 676 (1964/66) > O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil. Foto nº 59 do álbum de Carlos Geraldes (1941-2012).

Foto (e legenda): 
© Carlos Geraldes (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, Todos os direitos reservados.


1. Comentário de José Freitas, com data de 16 de maio último, ao poste P4980 (*):

Eu pertenci à mesma CART  676  (**) como o alferes Geraldo [sic]. Sou o José Guilherme  Teixeira da Silva Freitas,  furriel miliciano de minas e armadilhas,  e  confesso-me  muito surpreendido com as suas narrações. 


O Alferes Geraldes  conta muitas histórias com que eu não concordo. Só para dar um exemplo: eu é que ajudei com a tradução em francês várias vezes [, nos contatctos com as autoridades senegalesas]. Até ensinei aos  cabos que trabalhavam na secretaria com o 1º sargento,  na escola em  Pirada. 

Também fui eu que usei granadas ofensivas como armadilhas para  proteger os sargentos que moravam numa pequena casa fora do  aquartelamento, [em Pirada]. Fui também com o Capitão [Álvaro Santos Carvalho]  Seco e mais 15 soldados,  fomos num Unimog devido a informação recebida dum grupo terrorista e fomos  emboscados,  perdendo a viatura. Tivemos que desertar [sic] pois eles eram um grupo de 200,  pelo menos. 

O que li de você,  Alferes Geraldes,  é a SUA HISTÓRIA, mas há outros que tiveram uma importância também...

2. Comentário do editor:

Obrigado, José Freitas, nosso leitor e camarada, pela visita ao blogue e pelo comentário ao poste do Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66. Trata-se de um série, Cartas, que cobrem o período da vossa comissão de serviço (maio de 1964 a março de 1966), e de que se publicaram dez postes. Espero que os tenha lido todos (*).


Certamente por lapso de memória, você - que presumo viva no Brasil, não ? - começou por tratá-lo por Geraldo. O seu nome é Carlos Adrião Geraldes. Ou melhor, era: o Carlos já não está entre nós, faleceu de ataque cardíaco, em Viana do Castelo,  no princípio deste ano. Infelizmente ele já não poderá acrescentar mais nada ao que deixou escrito no nosso  blogue, e que é muito e é valioso. Às vezes quando lemos os escritos dos outros, "vemos a árvore mas não a floresta". 


De qualquer modo, o José Freitas fica desde já convidado a integrar o nosso blogue, bastando para tal mandar-nos duas fotos da praxe e contar-nos uma ou mais histórias, as suas histórias. O nosso blogue existe (desde há 8 anos), justamente por que todos fomos e somos  importantes. Todos, sem exceção. Você, o Carlos, eu, todos os camaradas de armas que passaram pelo TO da Guiné. (***)


Alguns camaradas nossos fizeram comentários elogiosos,  a propósito desta série epistolar, em que o Carlos Geraldes descreve, entre a ternura e a ironia, o seu quotidiano nos sítios do setor por onde passou (Pirada, Bajocunda, Paunca), as relações entre camaradas e as relações dos militares da CART 676 com os comerciantes e as autoridades locais... Alguns destes comentadores conhecem a região, por lá terem estado em data posterior à vossa saída. Aqui ficam uma seleção desses comentários:


(...) Uma série de altíssima qualidade, que, a meu ver, prestigia o blogue (Carlos Cordeiro, 16/9/2009);

(...)  A tua guerra está cheia de episódios fortes e delicados. Talvez esta chuvada possa serenar o ambiente, ademais a senhora já abalou. Quanto às libertinagens referidas, eram frequentes nos vinte aninhos, e punham a nú a fragilidade da NT. Acho eu que isso ainda vai acabar bem. Continua (José Manuel Diniz, 11/9/2009);

(...) Não há duvida que os nomes maçaricos e piriquitos se deve a duas espécies de pássaros muito comuns na Guiné, os maçaricos amarelos os periquitos verdes.
Mas a razão de a tropa portuguesa ser cognominada com esses termos. As madrinhas foram as nossas ex-lavandeiras que iam esperar os militares e oferecerem os seus préstimos de lavandeira. De tal modo a malta formada a preceito de farda amarela mais pareciam os tais bandos de maçaricos. Então elas diziam, 'jubi chegaram mais manga de maçaricos'. Mas eis que em mais uma nova chegada de militares mas todos de farda verde, surpresa total nas lavandeiras, 'jubi agora maçarico cá tem! Agora só manga de piriquito'. Se há outros motivos quem sou eu para discordar.
(José Colaço, 9/9/2009)

(...) Com que então sardinha assada? Como dizia o outro: ele há guerras... e guerras! Mas as descrições que fazes compensam com delícia as dificuldades passadas. Um Ford T? Outra maravilha só possibilitada em África. Aguardo os próximos episódios. (José Manuel Dinis, 3/9/2009)

(...) estive lendo o teu P4892 e quando falas de Bajocunda deixa-me uma grande alegria pelo tempo que lá estive se bem que com oito anos de diferença, mas o engraçado é que quando lá cheguei em Nov 73 havia três frigoroficos a petróleo um maior que os outros já não funcionava e se calhar era o mesmo que tu lá encontraste no dia 8 Fev 65. (Amílcar Ventura, 2/9/2009);


(...) Bela vida e boa descrição. Já não conheci Pirada com essa tranquilidade, mas sei que era assim, e que o Soares era homem-grande. Sei que, dessas cumplicidades, foi permitido viver com tranquilidade. E sei de uma senhora que se deslocava de Bajocunda usando um jeep. Ali vivia-se como em África, romântica, misteriosa, solidária.
Manda mais sff.
(José Manuel Dinis, 28/8/2009)

(...) Aqui o Carlos, por meio de períodos claros e sucintos, faz descrições muito interessantes sobre a saga da nossa tropa por matos e bolanhas da Guiné.  Quando pode ainda dá umas ferroadas, ora no regime, ora na estrutura repressiva. Não nos dignifica, mas retrata comportamentos de mal-amados.  Tem havido manifestações exageradas na defesa da honra no convento, mas para a história verdadeirq não podemos ignorar as nossas fraquezas e alguns comportamentos deploráveis.Os meus parabéns. (José Manuel Dinis, 25/8/2009) (...) Curiosamente ao ler os aerogramas que fui trocando com a familia, também sou levado a chegar à conclusão que a guerra da Guiné era um mar de rosas, mas era de tal maneira que nem os familiares acreditavam. Como nós haverá muitos camaradas que o fizeram. (César Dias, 14/8/2009)

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966


Vd. os restantes postes da série (no total são dez):


23 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso

15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo


(**) CART 676:  Mobilizada pelo RAP 2. Partida: 8 de maio de 1964. Chegada: 27 de abril de 1966. Localização: Bissau, Pirada, Bissau. Comandante: Cap Art Álvaro Santos Carvalho Seco.

(***) Último poste da série > 30 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9965: (Ex)citações (180): Defendendo a honra do BCAV 8320/72, Bula, 1972/74, que foi acusado de rebelião, em agosto de 74, e cujo pessoal vai fazer sábado, dia 2 de junho, na Trofa, o seu XXVI Encontro anual (Zeca Pinto)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7894: Estórias avulsas (50): Encontro com o nosso Camarada Liberal Correia (Mário Fitas)


1. O nosso camarada Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 763, “Os Lassas”, Cufar, 1965/66, enviou-nos em 1 de Março pp a seguinte mensagem:
Camaradas,
Envio resumo de encontro com o nosso camarada Liberal Correia. Se for de publicar é convosco. O Liberal, está agora em viagem por cá pois reside no Canadá, apesar de ser Açoriano Micaelense dos sete costados.
O Liberal Correia, já teve um contacto com a Tabanca Grande (ver o poste P3819 - Liberal Correia/José Martins).
Prometeu-me agora enviar as fotos de identificação, o que ainda não tinha feito dada a sua vida repartida.
Os meus contactos com o Liberal foram feitos através de notícias no blogue, onde chegámos à conclusão que tínhamos tido contactos nas empresas onde trabalhámos, ele na SATA e eu na TAP. Tendo frequentado o CISMI no mesmo turno embora em companhias diferentes.
E claro falamos do trabalho e das nossas antigas empresas e colegas, mas a conversa girou principalmente sobre a Guiné com a história da sua CART 676 em Pirada, Bajucunda e Paunca, e da minha CCAÇ 763. No entanto os momentos mais hilariantes foram os dos tempos passados em Tavira no último curso de 1963 do CISMI, de que passo a contar alguns episódios:
Nesse curso veio uma grande malta dos Açores, e como já chegaram a Tavira com três dias de atraso, foram todos parar à mesma companhia de instrução, a quarta.
É claro que este grupo ficou famoso no CISMI, a malta que por lá passou deve recordar-se das malandrices desta malta porreira e unida. Não vou aqui descrever as aventuras do "Arsene Lupin" que o Liberal descreveu a bandeiras despregadas, mas não posso deixar de relembrar à malta daquela altura, o célebre caso dos frangos.
Tinha certo dia, o sargento do rancho, Pernas Anão, determinado ser o almoço frango.
Só que, quando o Pernas Anão foi ver dos frangos, grande quantidade tinha desaparecido.
Grande bronca!
Segredo total! Mais tarde soube-se que a malta dos Açores tinha ido aos frangos do sargento do rancho, mas mantiveram-se unidos sem sair nada.
Outras aventuras de Tavira foram focadas, mas por agora espero que seja o Liberal Correia a quem envio um abraço, a contar as outras.


Liberal Correia e Esposa



Liberal Correia e Mário Fitas
Mário Fitas
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 763
____________
Nota de M.R.:
Vd. o último poste desta série em:
22 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7843: Estórias avulsas (104): Passeio turístico a um acampamento do PAIGC em Satecuta em 1971 (Jorge Silva, ex-Fur Mil Art, CART 2716 / BENG 447, Xitole e Bissau, 1971/73)

domingo, 15 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

1. Texto de Carlos Geraldes, membro da nossa Tabanca Grande, de 69 anos, residente em Viana do Castelo, ex-Alf Mil, CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66):


A Guerra Colonial: Todos Querem Ser Heróis! (*)

E nem se lembram de que tudo partiu de uma mentira, com mais de quinhentos anos. Mentira piedosa dirão alguns, mentira necessária, dirão outros, mas na verdade não passou de uma redonda e grosseira mentira, repetida vezes sem conta! Foi a nossa epopeia!

– Mas descobrimos novos mundos!
– Como? Não existiam já antes?
–  Desbravámos novos caminhos, novas rotas! Evangelizámos!
– Mas onde plantámos os nossos Padrões (quais marcos de propriedade), e nos estabelecemos com fortificações, não foi para mais facilmente assaltar, roubar e reduzir à mais cruel escravidão outros seres humanos como se fossem gado para exploração, abate e consumo?

 Desde tempos imemoriais que a regra foi sempre a mesma. Quem tinha a força tinha o direito. E como povo “civilizado” que éramos (!?) considerávamo-nos também superiores aqueles que não tinham os nossos costumes e que até nem praticavam nem conheciam a nossa religião. Eram os “infiéis, os gentios, gente bárbara e sem a alma que apenas a fé cristã proporcionava aos convertidos, conforme então piamente se acreditava.

E a pretexto que era urgente converter essas multidões de gentios, aproveitava-se, já agora também, para os aligeirar dos bens que possuíam e até de outras riquezas que eles nem sabiam serem objecto da nossa cobiça, só porque nos considerávamos com muito mais direitos a essas riquezas do que eles. Assim devastámos tudo o que de tentador se nos aparecia pela frente. Ouro, pedras preciosas, especiarias, minério, tudo era avidamente carregado a bordo de caravelas, naus, e todos os navios mercantes que vieram depois. Como paga deixávamos algumas bugigangas, espelhos, facas, aguardente… e os nossos rudes costumes também, nunca conforto e civilização!

Mas mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, já dizia o poeta sábio. E os povos das nossas colónias ganharam coragem e sublevaram-se. Veio por isso a guerra colonial.

Dos altares da Pátria teceram-se louvores, cânticos e hinos aos soldados que rumaram em armas para as terras africanas. A juventude de um povo analfabeto e desinformado, cego e magnetizado por tanto aparato, seguia como uma legião de cordeiros para uma matança sem fim à vista. Quando lá chegavam, com as G-3 em riste, assaltavam as tabancas, as moranças, correndo pelas picadas mais distantes, disparando a torto e a direito. O que é que interessava uma ou duas centenas de pretos a mais ou a menos? Ninguém lhes pedia contas disso, só tinham de lhes dar uma “ensinadela”, de os meter na “ordem”. Estavam “superiormente” autorizados a matar, dizimar, desfazer tudo quanto lhes desse na real gana. Não era a ali a África selvagem, o lugar de todos os infernos, o cenário perfeito onde os brancos podiam praticar impunemente todas as espécies de atrocidades? Então…?

Inchados de orgulho pateta, contam como eles trataram como “vinha vindimada” as terras dos “pretos”, como corriam atrás das raparigas de impudicos peitos nus, como suaram as estopinhas, mergulharam na lama até aos peitos, passando pelos maiores perigos e tormentas, como só eles passaram!

Mas não admitem, nunca, como tremeram de medo no meio da escuridão da mata e que, sempre que sentiam as “costas quentes”, também fizeram o gosto ao dedo, só para aliviar um agora denominado de “stress” (para não lhe chamarmos “pura selvajaria”), chacinando velhos, crianças e mulheres indefesas, galinhas, cabras, vacas e, até morros de “baga-baga” tudo varrido na frente, com umas boas rajadas da velha G-3, tiros de “bazooka” ou granadas de morteiro atiradas ao acaso.

E agora, porque voltaram, até já se julgam heróis, apenas porque também lá estiveram. Só porque fizeram aquela viagem por um mundo que não entendiam, escondidos atrás de uma arma, cumprindo “ordens” que não compreendiam nem discutiam, julgam ter direito a um estatuto de heróis!

Periodicamente, os que ainda restam dessas “expedições” reúnem-se para confraternizar à mesa de um qualquer restaurante. Pançudos, com os ralos cabelos já esbranquiçados exibindo, por vezes, as velhas boinas das “Campanhas de África”, contam chalaças marialvas, recitam os nomes das velhas armas que usaram, riem-se e choram com saudades dos tempos que já lá vão. No fim fazem juras e saudações militares. Qual Vietname, qual carapuça! Ninguém é mais digno de crédito e admiração do que eles!

.../...

Ao chegar a casa, dão um beijo na mulher, calçam as pantufas e com um profundo suspiro de alívio e sentimento do “dever cumprido”, ficam para ali a “ruminar” o inevitável Telejornal, porque a seguir vai dar a bola!

E não é que agora, vêm todos dizer que foram uns heróis?!

Carlos Geraldes
carlos.geraldes@live.com.pt

2. Nota do editor L.G.:

Este texto, com data de 7 de Julho,  vem no contexto de algumas reacções à publicação do conto do Mário Cláudio, Para o livro de ouro do Capitão Garcez.

O Carlos queixou-se de ter sido "silenciado"... Ora não é prática nossa silenciar ninguém, muito menos um camarada que costuma cumprir com lealdade e fair play as regras de convívio do nosso blogue, e é um activo colaborador. O que aconteceu é que os editores foram de certo modo surpreendidos pela "crueza" da sua linguagem e pelas considerações (menos felizes) que faz da generalidade dos antigos combatentes da guerra colonial... Ora essa generalização é abusiva, meu Caro Carlos, na falta de um verdadeiro retrato, sócio-antropológico,  a corpo inteiro,  da nossa geração que combateu em África...

O próprio autior entendeu meter esse texto, inicialmente na gaveta,  por o achar "um pouco forte"... Três meses depois de o terescrito, decidiu reenviá-lo em 7 de Jullho...

Arrefecida, entretanto, a polémica à volta do conto do Mário Claúdio, perdeu-se a oportunidade (editorial) de publicar o texto do Carlos Geraldes... Mas, enfim, nunca é tarde para o fazer... O texto fica postado (bem como as explicações das a seguir pelo autor):

Olá queridos amigos:

Tenho estado de facto a "hibernar" se bem que a estação não seja muito propícia a isso.

Fui despertado pela "polémica" sobre um belíssimo texto, inédito (?), de Mário Claudio, escritor que mal conheço, apenas pela notoriedade que lhe advém dos inúmeros trabalhos que publicou e consequentes prémios arrecadados. Aliás, sinto até um certo orgulho por me ter cruzado com ele duas ou três vezes numa pastelaria em Paredes de Coura, onde ele, me parece, deve ter residência temporária. Facto que muito enobrece tais idílicas e serenas paragens do nosso Minho profundo. Mas nunca me atrevi a falar-lhe, nem sabia tão pouco que também tinha estado na Guiné a cumprir o serviço militar.

Estamos todos de parabéns, portanto. A Tabanca Grande ficou MAIOR!

Quanto à tal "polémica", deixem que vos diga que não vale nada! Até faz lembrar as "bacocadas" à volta da obra do Saramago. Como sempre, quando a caravana passa, ficam cães a ladrar. Não é que não tenham o direito de ladrar. É a maneira de eles se expressarerm e, o direito à livre expressão, foi uma das mais importantes conquistas de Abril. Mas atenção à responsabilidade! Responsabilidade para com os outros, para os que estiveram, os que estão e os que estarão nesta terra que nos criou. Responsabilidade pelo futuro que construímos com os nossos exemplos pois isso, infelizmente, ainda não é muito perceptível pela maioria. Apenas nos interessamos pela notoriedade de aparecer, de dizer coisas, muitas delas toscamente apreendidas, imitadas sem delas nos apercebermos totalmente, sequer. E assim se cria agora esta estéril "polémica" que já cheira a coisa morta logo à nascença.

Nos princípios deste ano tinha escrito um pequeno texto, inspirado num comentário pouco abonatório sobre o nosso blogue.  Declarava alguém que a existência deste e de outros blogues do género, só serviam para certos indivíduos fanfarrões se virem pavonear de hipotéticos feitos nas guerras de Àfrica.

Como achei, depois, que o texto estivesse um pouco forte, guardei-o na gaveta. Mas agora perante as palavras de Mário Cláudio e as consequentes reacções, vou servir-me dele como mais uma testemunha de defesa do "réu", embora nunca tivesse sido para aqui chamado, apenas porque assim sempre foi a minha percepção da realidade vivida na Guiné.

Também eu fui testemunha (ainda nos benévolos tempos de 1964/66) do ambiente denso que a guerra arrastava atrás de si. Nunca a leitura de Joseph Conrad me parecera tão real ("O Coração das Trevas"). Estavamos ali a viver num cenário quase idêntico, emoções de tal maneira semelhantes, que a nossa mentalidade ia-se moldando a pouco e pouco à tenebrosa lógica da guerra com as suas obscenas crueldades tornadas puras banalidades. O acto de maltratar outro ser humano, mutilá-lo, matá-lo, esventrá-lo, esmagá-lo contra uma parede, trazia tanta impacto moral, tanto remorso, como matar um insecto importuno. E além disso até era um acto legal! A guerra tudo justifica!

Matar uma jovem mãe, com um tiro certeiro de G-3 que a atravessasse de lado a lado e esmigalhasse também a cabeça do bebé que ela transportava à costas numa fuga alucinada, era um acto merecedor de aplausos pela pontaria certeira do bravo soldado ansioso de mostrar uma valentia que nunca iria ter de outro modo.

Quem falou mais nesse crime? E em muitos outros que se seguiram? E os prisioneiros mantidos em Nhacra ( a "idílica" Nhacra!) dentro de uma jaula de arame farpado? E o prisioneiro morto com um canivete sucessivamente espetado no pescoço, só para o calar, na atrapalhação de uma noite de operação em território IN?

Bom, a guerra tem os seus fantasmas e é bom que os saibamos enfrentar de uma vez por todas.

Hoje parece que lidamos ainda com essas recordações, como se se tratassem de bilhetes postais de um passado heróico, feliz e distante. Por isso me repugnam certas basófias, certas festanças e jantaradas como se quisessem comemorar factos gloriosos do nosso passado comum. Feitos glorificados por uma "história" embelezada por uma certa doutrina política e nada interessada em mostrar a pura realidade.

Desculpem-me este desabafo mal amanhado, mas assim de repente é o que sinto cá por dentro.

Um grande abraço. Viva Àfrica, viva a Humanidade!
Carlos Geraldes

PS. Em Anexo envio o tal texto escrito em Abril deste ano [A guerra colonial: todos querem ser heróis]
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4357: Questões politicamente (in)correctas (39): Havia racismo nas Forças Armadas Portuguesas ? ... E no PAIGC ? (Nelson Herbert)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5037: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (9): Súmula sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

1. Publicamos hoje um trabalho escrito pelo então Alf Mil Carlos Geraldes (*) da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, à ordem do seu CMDT, sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu), enviado em mensagem de 26 de Setembro de 2009.


Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)

(Súmula dos conhecimentos adquiridos no período de Out. 1964 a Abr. de 1966)

Situação Geral:


Presentemente, não existem “tabancas” (aldeamentos indígenas) aliciadas pelo “IN” (Inimigo), embora em 1963, um grupo de terroristas que pretendia actuar na zona de Paúnca se tivesse acoitado em Madina Mamadu Sanússi (da etnia “Fulas-pretos”).

Foram escorraçados e mantida a população da tabanca sob vigilância, tendo-se criado lá um posto de cipaios. Todavia, tendo, os elementos suspeitos da tabanca, procurado refúgio no Senegal, nunca mais a referida população manifestou tendências suspeitas.

Durante o período 64/66, não se registaram quaisquer infiltrações ou tentativas de aliciamento por parte do IN.

Poucas são as tabancas e os caminhos que não estão devidamente assinalados na carta de 1/ 50.000, sendo, no entanto, de chamar a atenção para o traçado do caminho que vai de Fasse à ”cambança” (sítio onde se atravessa um rio), que não é o que vem indicado na carta. Na realidade, o caminho inflecte para Norte, cerca de 45 graus, atravessando por completo o Mato de Sacaio e localizando-se a cambança no ponto de intersecção de uma linha que fosse traçada de Fasse a Sare Bacar, com o rio Gêba.

Pelo facto de quase toda a região estar protegida, a Norte pelo rio Bidigor, a Oeste pelo rio Gêba e a Sul pelo rio Cumtimbo, goza naturalmente de certos privilégios no que diz respeito às defesas naturais contra possíveis acções do IN. Apesar disso, apenas na época das chuvas se poderá confiar nessas “muralhas”, pois somente o rio Gêba mantém, durante todo o ano, um nível de caudal suficiente para impedir a passagem a vau.

Existem três tabancas-chave, situadas junto de outras três cambanças utilizadas por quem vai ou vem do Senegal: Guiro Iero Bocari (Sinchã Queuto), Madina Mamadu Sanússi e Fasse.

Em todas elas a população tem-se mostrado digna de confiança, colaborando activamente com as “NT” (Nossas Tropas), no controle e vigilância das respectivas cambanças. Todas as canoas, durante a noite, ficam presas a cadeado, na margem de cá.

Em Guiro Iero Bocari existe uma ponte feita com troncos e “carentins” (grandes esteiras feitas de entrançado de bambu), de construção recente, mas apenas utilizável em tempo seco. É também de fácil controlo, pois só permite a passagem, em fila indiana, de três pessoas de cada vez, no máximo.

Todo o “chão” (território, nação) tem demonstrado estar incondicionalmente do lado da tropa, posição que não deixa de aproveitar largamente em seu favor, com constantes pedidos de transporte dos seus haveres, além de ajuda material em armas e munições, medicamentos, etc. No entanto, evidenciam um forte sentido de hospitalidade, notando-se até uma certa rivalidade entre as tabancas mandingas e fulas, nos actos de bem receber os visitantes.

A tabanca do interior, de maior importância, é, sem dúvida, Fasse, não só pelo valor estratégico, como pelo valor que tem por ser o centro mais importante no ensino do Alcorão, em todo o regulado. O “mouro” (sacerdote) da mesquita de Fasse é tido como uma das personagens mais importantes da região. O próprio traçado das ruas do interior da tabanca de Fasse, chama a atenção pelo seu traçado geométrico, pela largueza e higiene, denotando um elevado nível cultural da população, relativamente a todos os habitantes do resto do “chão”.

Existe uma mesquita, coberta com folhas de zinco, oferta do Governo da Província.

Pertencendo à etnia “Fula-Forro”, dedicam-se com êxito às culturas tradicionais, assim como à manutenção de um Horto de bananeiras e outros frutos comestíveis.


Situação Particular: Paúnca

1) A Povoação:

É um dos centros populacionais e comerciais mais importantes da zona de Gabu e Bafatá. Com um perímetro de pouco mais de 4 mil metros, está cercada por uma rede de arame farpado c/ aba.

Todas as casas ficam situadas no interior da rede e existem abrigos para atiradores deitados ao longo da face Norte e Oeste.

De Paúnca partem caminhos, para todas as tabancas da periferia, perfeitamente transitáveis pelos carros militares em qualquer época do ano.

As vias mais importantes são: Paúnca-Fasse; Paúnca-Sinchã Queuto e Paúnca-Sinchã Molele. A mesquita de Paúnca é uma das maiores e mais característica da região, pois obedece a um estilo de construção já pouco comum neste género de edifícios.

Outra casa que se destaca, no interior da tabanca, é a casa do régulo, de forma rectangular e com um mastro para hastear a bandeira nacional em dias de festa.


2) A População:

É quase toda constituída por indivíduos de etnia “Fula-Forro”, seguindo-se por ordem numérica, os de etnia “Saracolé” e os “Mandingas”, estes em menor número. Existe também uma numerosa colónia de “Balantas”, “Papéis” e “Manjacos” que constituem os grupos de trabalhadores das casas comerciais. Vivem separados numa espécie de bairro, situado nas traseiras do aquartelamento. São ordeiros, embora se embriaguem frequentemente, pois não praticam a religião muçulmana, como o resto da população.

Os fulas dedicam-se ao cultivo da “mancarra” (amendoim), do milho, do arroz e da mandioca, além da secular criação de gado vacum. Outros dedicam-se ainda ao pequeno comércio e outros são alfaiates.

São amigos de festas, que promovem com assiduidade, pedindo sempre a prévia autorização, à tropa.

Existem 3 ferreiros situados junto das entradas da povoação e o mais importante é o que tem a oficina à entrada do caminho que vem de Sinchã Queuto.

O “cherno” (pessoa de respeito) é o velho Amadu Bari, que apesar de idade avançada (mais de 80 anos) mantém uma excelente saúde e um humor muito especial. É um grande amigo da tropa e, sempre que pode, não deixa de visitar o quartel. O filho, Iaia Bari tornou-se um excelente colaborador da tropa como intérprete e informador. Domina com facilidade o dialecto Mandinga, o dialecto Saracolé, assim como alguns outros dialectos do Senegal e da Gâmbia. Fala e escreve bem o Português e dedica-se à prática de enfermagem, auxiliando o 1º Cabo Enfermeiro do Destacamento, no tratamento de civis, com os medicamentos destinados ao serviço da “Psico”. Tem um irmão, quase cego, que goza da fama de ser informador directo do Governador.


3) O Comércio:

Reveste-se de características especiais, diferente do que é praticado noutras localidades da fronteira, pois não depende do trânsito dos “gilas” (contrabandistas semi-autorizados), nem dos senegaleses que vêm ao nosso lado fazer compras. O comércio mantém-se sempre em qualquer altura do ano, abastecendo, tanto a população deste regulado como a dos outros, situados no interior. Durante a campanha da mancarra (Janeiro a Março) é muito intensa a circulação de burros carregados com os habituais dois sacos e a das camionetas de caixa aberta que depois os transportam para Bafatá. Não existem, durante todo o ano, períodos mortos, mas apenas pequenas flutuações.

As casas comerciais existentes são seis, com representação das firmas, “Barbosas”, “Gouveia” e “Pinheiros”. Todos os comerciantes mantêm boas e cordiais relações com a tropa, sendo de destacar o que dirige a filial dos “Barbosas”, o Sr. Correia. É o comerciante mais antigo de Paúnca, com amplos conhecimentos sobre os problemas do regulado. É, também, o único comerciante que se preocupa em manter uma certa rede de informações, que tem sido muito útil à tropa. No entanto, tem medo de prováveis represálias do IN sobre a sua pessoa, pois em 1963 foi alvo de um atentado na estrada Paúnca-Bafatá. Actualmente tem adoptado, por isso, uma atitude fria e de quase completo mutismo, quando a tropa o aborda directamente ao balcão da loja. Mas abre-se em confidências se a “entrevista” for mantida num clima de discrição.

Por vezes o receio dele chega a parecer excessivo e até infundado.

É muito amigo do Administrador Barros, de Gabu, a quem fornece sempre em primeira mão as informações que recebe, algumas de interesse apenas militar e que, não raras vezes, têm servido para criar situações falsas, à tropa, que se encontra destacada.

É de evitar fornecer-lhe quaisquer informações referentes ao IN, de acção imediata.


4) O Régulo:

É um velho sem energia e espírito de mando. É pouco conceituado pelos súbditos, pela fraqueza de ânimo dele. No entanto é apoiado por alguns homens “grandes” de grande poder e prestígio.

Nas relações com a tropa mostrou-se sempre de grande humildade, fazendo amiudadas visitas para “partir mantenhas” (apresentar cumprimentos) e também com o fito, menos louvável, de pedinchar um pão ou um pouco de açúcar.

Colaborou sempre de forma eficiente quando o furriel encarregado do rancho necessitava de comprar galinhas ou cabritos.

Tem muito medo da guerra, da qual nem gosta de ouvir falar.

Cavaleiro Embaló, um chefe terrorista, de pouca importância, é seu sobrinho, mas ele renegou esse parentesco, ameaçando-o de morte.


5) Os Cipaios:

Existe um corpo de cipaios comandados por um Cabo, directamente dependentes do Chefe de Posto de Sónaco. Têm uma actividade bastante reduzida, limitando-se à cobrança dos impostos e à resolução de pequenos litígios entre os civis. São muito reservados em relação à tropa.


6) A Milícia:

É uma força constituída por 18 elementos, comandados por um “alferes” e por um “cabo”.

Fornecem, para o serviço de transporte de água e lenha para o aquartelamento, 3 homens por dia, que durante a noite fazem também um posto de sentinela à entrada da Casa da Milícia. São integrados nas Secções do Pelotão, quando estas efectuam patrulhamentos. Psicologicamente são pouco aguerridos e bastante preguiçosos. Contraem dívidas sem grande dificuldade e abusam facilmente se lhes são concedidos alguns favores.

Quase todos se ofereceram para cumprir o serviço militar, na próxima incorporação. Os que são casados são bastante ciumentos, surgindo atritos entre eles e os soldados europeus que estão menos esclarecidos quanto ao modo de tratar a mulher indígena.

Constituição do grupo:

Comandante: Samba
1.º Cabo – Bamba Jamanca
N.º 61 – Manca Baldé
N.º 64 – Demba Embaló
N.º 65 – Aliu Candé
N.º 67 – Bobo Jau
N.º 70 – Puloro Candé
N.º 75 – Samu Baldé
N.º 76 – Jarga Jaló
N.º 80 – Turá Baldé
N.º 82 – Bobo Quitá
N.º 85 – Umaro Jau
N.º 86 – Braima Jaló
N.º 87 – Aliu Embaló
N.º 89 – Ussumane Camará
N.º 90 – Sare Jaló


7) Os Soldados Africanos:

São quatro: Sadú, Jau, Santos e Sáco. Os dois primeiros são fulas, os outros balantas. O Santos é natural de Bissau, onde foi empregado comercial. É o mais culto e o mais pretensioso. Tanto ele como o Saco embriagam-se com frequência se não forem reprimidos. Os outros dois são mais sossegados e nunca deram origem a qualquer distúrbio. Estão todos desarranchados.


8) A Escola:

É um edifício de construção recente, com apenas uma sala de aula e alojamento para o professor que, em caso de necessidade, já tem albergado um pelotão de reforço, durante dois ou três dias.

A frequência é bastante reduzida, devido ao natural costume do fula de evitar que os filhos tenham outra educação que não a tradicional.

O professor, Timóteo, é de etnia manjaco, protótipo de negro meio civilizado, arrogante com a pouca sabedoria que adquiriu sem a necessária profundidade e preparação, mas que julga ser muita. Tem grande dom de palavra e gosta de organizar festas onde se possa evidenciar. Levando uma vida de estroina, descura por completo as suas funções de ensino, tendo até criado a fama de tratar brutalmente os alunos.

É um elemento de forte poder aliciante, imiscuindo-se entre os soldados de quem, facilmente, conquista a confiança. Por mais de uma vez, e por motivos diversos, se mostrou suspeito, embora nunca tenha havido provas concretas. Todavia evidencia uma forte tendência racista.


9) A Taberna:

Situa-se em frente do quartel e é propriedade de João Vieira (por alcunha “O Passarinhas”), casado com uma cabo-verdiana. O resto da família é constituído por duas filhas e uma sobrinha, que o auxiliam no balcão. Alberga também hóspedes ocasionais.

Todos têm procurado, sempre, captar as simpatias das tropas recém-chegadas, na mira de benefícios futuros, pois vivem na expectativa de poder explorar, o mais possível, quem lhes frequenta o estabelecimento.

Os conflitos entre esta família e os soldados são pois inevitáveis e frequentes, provocados quase sempre pela existência das raparigas, utilizadas pelo “Passarinhas” como um autêntico chamariz.

Em 1963 levantaram suspeitas de colaborar com o grupo IN acoitado em Madina Mamadú Sanússi, mas não apareceram provas.

O “Passarinhas” dedica-se também à prática ilegal de dar injecções, deslocando-se até às tabancas do interior.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (128): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso

1. Décimo e último poste da série "Cartas" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


Epílogo: O Regresso

Paúnca, 03 Abril 1966
Hoje, domingo, apareceram cá, o Médico, o Castro, o 2.º Sargento Sousa e o Furriel Hugo. Só o Médico é que veio almoçar, os outros vieram cortar o cabelo. Acontece que o melhor barbeiro da Companhia pertence ao meu Pelotão. É sempre ele que nos corta o cabelo a todos, à borla claro! O pobre do rapaz não tem mãos a medir. Encara esse trabalho como mais uma das tarefas que lhe calhou na vida militar.
O Sargento Sousa veio para conferir o Depósito de Material existente e elaborar as respectivas guias de entrega ao pessoal que nos vier render.
Também já fechei as contas da cantina que, afinal pouco ou nenhum lucro deu, pois o cantineiro costumava enganar-se nos trocos… acabei por distribuir os livros de extinta Biblioteca (na maioria fotonovelas todas estafadas de tanto serem lidas e relidas), por aqueles que se mostraram mais interessados, pois não era um património que valesse muito a pena legar aos vindouros. Eles trarão com certeza coisas mais actualizadas e, se quiserem, rapidamente poderão ter também a sua própria Biblioteca.
Começámos a fazer as despedidas pelos comerciantes e houve um que por força queria que lá ficássemos toda a tarde a beber e a petiscar. O Doutor (claro!) e os furriéis ficaram, mas eu logo que apanhei uma aberta, raspei-me para o quartel para tratar da entrega do material com o Sargento Sousa.

Tinha acabado de tomar banho, já passava das 18 horas, quando me vieram chamar para ir continuar a festança. Contrariado mas curioso fui só ver como paravam as modas. E lá estavam eles como de costume a amparar o Médico que já não se segurava em pé, com a habitual carraspana. Assim não há pachorra e como não conseguia achar graça nenhuma àquilo, regressei ao aquartelamento.
São agora 11 da noite e eles ainda não apareceram. E o que mais me chateia é que o Doutor vai com certeza ter de dormir cá esta noite. Aqui no meu quarto onde é capaz de vomitar por tudo o que é sítio que nem um desgraçado.
Já estou farto de aturar este tipo de gente!
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Finalmente já se sabe qual o dia em que seremos rendidos.
Começaremos aqui pelo destacamento de Paúnca, primeira fracção da Companhia a seguir para Bissau no próximo dia 6 logo pela manhã.
As malas já estão feitas, quase tudo arrumado e pronto para ser entregue aos maçaricos que vierem para cá e que, diga-se de passagem, estão cheios de sorte. Não há dúvida que foi uma temporada bem passada!
Mas que estou a dizer? Até parece que fiquei com saudades disto, a gostar disto! Raios me partam!
Depois de chegarmos a Bissau ficaremos a aguardar a chegada do navio. Vão ser mais uns longos 15 dias de espera. Mas que, caramba, também vão passar!
Quando aqui desembarcámos, pensava que 24 meses eram uma eternidade e, afinal já passaram, já chegámos ao fim.
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Mas bem ao nosso estilo, surgem sempre as alterações de última hora. Agora não seremos nós, os primeiros a ser rendidos mas sim, os de Pirada.
Só daqui a uma semana (dia 11 talvez) é que marcharemos para Bissau. Espero que ainda cheguemos a tempo de apanhar o barco…

Bissau, 15 Abr. 1966
Finalmente em Bissau.
Saímos de Pirada e Paúnca pelas 15H00 de terça-feira (dia 12) e chegámos a Bambadinca, onde dormimos, cerca das 11 da noite.
Às 4 da madrugada do dia seguinte, embarcámos num batelão para Bissau.
Viagem horrível. O batelão vinha cheio de vacas e de nativos que tinham entrado primeiro que nós. Viemos durante quase todo o dia de pé ou sentados em caixotes à torreira do sol. Chegámos finalmente a Bissau às 15H30.
O alferes que me foi render a Paúnca era um tipo estupendo. Foi locutor na rádio Huila em Sá da Bandeira, Angola e também já é casado. Mas deixou a mulher lá, o que fez muito bem, pois as mulheres dos oficiais que por cá passaram, só têm dado barraca. Temos ouvido histórias inacreditáveis.

Embarcaremos, até ordens em contrário, no dia 27 e deveremos chegar a Lisboa no dia 3 de Maio. Agora estamos instalados no mesmo quartel em que estivemos antes de irmos para o mato. O velhinho Batalhão 600. Os soldados até estão a dormir na mesma caserna.
Os oficiais que viemos encontrar são todos periquitos, muito mal encarados. Nem falam com a malta. Eu também nem lhes dou os bons dias ou boas tardes.
Hoje estou de serviço, como oficial de piquete e prevenção. Um outro oficial que, também veio do mato e tem o mesmo tempo que eu, está de oficial de dia. Assim vou ter, felizmente, o fim-de-semana livre.

Ontem jantei no Grande Hotel, na companhia do Cardoso que, desde que aqui chegámos não me tem largado a perna pois mais ninguém lhe liga. Acabámos por ir ao cinema ver “Fanny”, com a Leslie Caron. Gostei. Foi uma noite bem passada. A temperatura na capital é mais fresca que a do mato. As ruas aumentaram e parece que os prédios cresceram de um dia para o outro. São os efeitos da guerra. Os preços nas lojas também subiram. Este mês creio que o ordenado fica cá todo.

Bissau, 19 Abr. 1966
Todas as noites, depois de jantar, reunimo-nos e vamos até qualquer bar ou esplanada da baixa, petiscar camarão ou ostras.
No quartel temos mantido um comportamento tão acima da média que toda a gente está bem impressionada connosco. Acabaram-se os problemazinhos quotidianos que surgiam constantemente, quando estávamos no mato, em Pirada e em Paúnca. Agora acordamos todos os dias, alegres e descontraídos, pensando sempre que falta menos um dia.
Uma das coisas que mais me impressiona no comportamento que os nossos soldados estão a ter agora é precisamente a calma com que estão a encarar estes últimos dias de comissão. Até parece que reina entre nós uma certa nostalgia por deixarmos estes lugares.
A nossa despedida de Pirada foi extraordinariamente comovente. Todos os amigos que lá fizemos e que por lá ficaram, o M. Santos e a família, o velhote Gomes e os outros comerciantes, a Ti Clara, a Cumba e todas as outras meninas do régulo Solo Só, vieram despedir-se com lágrimas nos olhos e correram atrás dos camiões até os perderem de vista no pó da picada.
Foi até hoje, uma das despedidas mais dolorosas que vivi. Deixámos ali abandonada para sempre (?) aquela gente que não tem outro modo de existência senão ficar ali, expondo-se a uma ameaça eminente, desaparecendo aos poucos da nossa memória.

(A ameaça eminente a que me referia, era a das presumíveis retaliações, logo que a guerra terminasse, pois os guerrilheiros, futuros vencedores iriam, certamente tratá-los como gente traidora, como cobardes que nunca fizeram qualquer sacrifício em favor da causa. O que infelizmente veio a acontecer, nos primeiros anos de euforia da independência)

Confesso que também me vieram as lágrimas aos olhos.
Agora aqui em Bissau levamos uma vida regalada, pois o serviço até nem é muito e a camaradagem com aqueles que, como nós, também vão regressar, é entusiasta e franca.
Estes últimos dias são de uma emoção fora de todos os limites. Estou ansioso de subir para o barco.

Bissau, 26 Abr. 1966
O Uíge já chegou!
Embarcamos hoje às 17H00 e largaremos de Bissau durante a noite. Estes últimos momentos têm sido fantásticos. A balbúrdia parece reinar, mas o que existe de facto é apenas uma alegria esfuziante em cada rosto dos que partem.
Ontem tivemos a cerimónia da entrega das medalhas comemorativas das Campanhas da Guiné e agora pavoneamo-nos por Bissau com a fitinha verde e vermelha no peito.
Quanto aos soldados estão todos a portar-se muito bem. Não tem havido qualquer contratempo e até estamos (nós os oficiais) admirados com isso.
Ontem à noite, o Quartel-General ofereceu um espectáculo de variedades que agradou em cheio e serviu de relax para todo o pessoal.
Enfim, estou a viver a maior alegria da minha vida.
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Nota de CV:

Vd. postes da série:

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo

21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4988: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (7): A Mina

1. Mais um episódio de Gavetas da Memória de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


A Mina

Era meia-noite em Pirada, pequeno povoado situado na fronteira norte, algures na Guiné Portuguesa.

A lua ainda tardava e um céu de veludo negro salpicado de jóias brilhantes pesava sobre as habitações, os homens, os animais e as coisas.
Há muito que reinava o mais profundo silêncio. A tabanca dormia tranquila. O nativo regula sempre todas as suas tarefas pelo nascer e pelo pôr-do-sol. Não precisa de outros horários.

Apenas, no quartel, se notavam alguns indícios de actividade. Rendiam-se as sentinelas, aqui e acolá, nos postos respectivos. Pela única rua da aldeia, regressava ainda o último grupo de retardatários. Dois oficiais, dois jovens alferes, confraternizavam com alguns sargentos, jovens também, companheiros desde os centros de instrução na Metrópole. Fumavam-se os últimos cigarros na perspectiva de uma noite sem história.

Foi nessa noite, uma noite vulgar, igual a tantas outras que a primeira surpresa viria a surgir.
No início, mais parecia ser o eco surdo de alguma trovoada seca, bem longe, para leste, ou nordeste, lá para as bandas de Bajocunda ou do Senegal, mas depressa chegaram à conclusão que os sons que o telégrafo do vento lhes trazia, eram na realidade detonações, tiros de armas de guerra. Tiros que estavam a ser disparados a poucos quilómetros dali.

E de facto ouviu-se, agora perfeitamente, o som inconfundível do matraquear de uma metralhadora ligeira, a arma preferida pelo inimigo. Desfeitas as dúvidas, todos se quedaram imóveis à escuta, perplexos, procurando uma explicação.

Alguém correra já a chamar o capitão que rapidamente também se veio juntar ao pequeno grupo que continuava a tentar perscrutar os sons que, a ligeira brisa da noite, conseguia fazer-lhes chegar. Entretanto, mais soldados, alertados pela movimentação inédita, foram-se juntando no meio da praceta da entrada do quartel, alguns, já com a arma segura numa das mãos, enquanto com a outra apertavam o cinto das calças, outros, espreguiçando-se lentamente, tentando perceber o que é que se estava a passar, perguntavam sem cessar:

- O que foi? O que foi? Aquilo são tiros mesmo?

Tão repentinamente como começaram, as detonações deixaram de se ouvir. Quando já se começavam a aventurar algumas hipóteses de explicação para tão insólito caso, uma sentinela, chamou baixinho:

- Meu Alferes! Meu Alferes! Pareceu-me ouvir um ruído qualquer, ali para os lados da estrada que vem de Bajocunda. Oiça! Oiça! Já se ouve melhor! Não está a ouvir?

De facto, um ligeiro rumor começava a deixar-se aperceber, entre a sinfonia monótona de todos os insectos nocturnos.
Um ligeiro roçagar que se ia tornando cada vez mais audível.

- É alguém que vem aí de bicicleta, meu Alferes! - Afirmava convicto a sentinela.

Distinguiu-se então, perfeitamente, um vulto branco a deslocar-se velozmente pelo caminho que vinha desembocar no largo, onde todos estavam. Seguiam-no um grupo de homens negros que resolutamente se dirigiam para o quartel. Entre eles distinguia-se a figura alta e esguia do régulo Solo Só. Chegando junto do capitão, rapidamente contou o que tinha chegado ao seu conhecimento. O jovem da bicicleta era um morador da tabanca de Sinchã Samba, aquela que ficava ali mais perto, cerca de uma hora de caminho pela estrada que levava a Bajocunda.

Segundo ele, quando regressava a casa, depois de uma noite de caça infrutífera, reparara nuns vultos estranhos que, no meio da estrada que passa mesmo junto à sua aldeia, pareciam estar a escavar o chão. Julgando que seria alguns dos seus vizinhos, chamou. Mas quando lhe responderam, notou logo se tratava de gente estranha e que algo de muito suspeito se estaria a passar. Rapaz avisado, como era, não hesitou, meteu a arma à cara, a fiel longa e fez um aparatoso disparo.

Como por encanto o grupo eclipsou-se, mas deixando como aviso uma rajada de pistola-metralhadora. Os habitantes da aldeia, por sua vez, já despertados pelo primeiro disparo, acorreram também com as suas longas e um pouco às cegas, na densa escuridão da noite, responderam aos tiros de armas automáticas que vinham do outro lado da estrada.

Quando tudo serenou e se deixaram de ouvir mais tiros, montou na bicicleta e viera para Pirada buscar auxílio e contar tudo à tropa. Não conseguia dizer ao certo quantos elementos teria aquele grupo terrorista, pareceu-lhe que seriam poucos, mas que de certeza estavam a fazer um buraco no meio da estrada.

Perante tais declarações e perante o olhar inquieto dos nativos que escutavam, ofegantes, tudo o que o bravo Braima (assim se chamava o rapaz da bicicleta) então dizia, o comandante do destacamento tomou rapidamente duas decisões:

- Primeiro, enviar um Grupo de Combate o mais urgentemente possível, fazer um reconhecimento, sem alarido, à zona afectada e atacar, se possível, o grupo inimigo que se infiltrara.

- Segundo, manter o destacamento em estado de alerta durante toda a noite, enviando para os caminhos da mata, que davam acesso à fronteira, alguns elementos da auto-defesa nativa, jovens decididos que, por sua própria decisão, tinha armado.

Tinha tido conhecimento, já há alguns dias, que um grupo inimigo se localizara do outro lado da fronteira. Era de prever qualquer tentativa de infiltração e talvez aquele pequeno grupo surpreendido pelo Abdulai Braima pretendesse de facto instalar uma mina que isolasse o aquartelamento, do lado nascente, para, no caso de resolverem atacar, ficarem com um caminho de fuga protegido.

Sem hesitações, os homens do 1.º GCOMB prepararam-se para partir. Ninguém falava ou gracejava e todos se mostravam interessados apenas no armamento a levar, que se queria leve, mas poderoso. Fixaram-se as últimas instruções, estudaram-se pela última vez, os mapas. O Sargento de Transmissões afinou os rádios, fixou as frequências indispensáveis. Todos os minutos eram preciosos. Não se poderia desperdiçar o efeito surpresa.

A um sinal do alferes, o grupo de combate embrenhou-se silenciosamente na escuridão do caminho, precedido por dois guias nativos que, ligeiros, ardiam de impaciência. Um a um deslizaram, como felinos, guiando-se pela estreita faixa clara da estrada, até que se deixaram de ver. O silêncio quase que não fora perturbado. O ar frio da noite que, de repente, começara a correr numa aragem fina, parecia querer impelir aqueles homens, sempre para a frente, de encontro ao negrume da mata.

Após os primeiros momentos de habituação, cada homem procurava não perder de vista o que lhe ia na frente, perscrutando ao mesmo tempo as sombras da noite em todas as direcções. Respiravam a curtos espaços, com os músculos tensos, prontos a qualquer reacção necessária. Em frente sempre aquela estrada branca, que mais parecia um estranho fantasma pairando diante deles.

Quando já estavam longe do aquartelamento, como medida de precaução, fizeram então o primeiro alto e todos se agacharam na berma do caminho, no lado mais escuro. O jovem alferes consultou os guias, confirmou, mentalmente, as distâncias e, depois de passar palavra, deu início a uma manobra de envolvimento, evitando o contacto directo com o desconhecido, e qualquer possível emboscada. Todos os cuidados não seriam demais.

Desta vez, o grupo embrenhou-se, depois de seguramente localizada pelos guias, por uma antiga picada que seguia paralela à estrada e que os levaria directamente à tabanca ameaçada. Esta, que se localizava um pouco a Sul da estrada, poderia ser assim atingida sem se ser visto da estrada. Era uma zona de mata densa, pela proximidade de um curso de água, propícia ao aparecimento de bolanhas, zonas alagadiças, locais de preferência para quem se quisesse ocultar.

Daí a pouco começavam a distinguir-se as copas arredondadas dos mangueiros, árvores de fruto, quase sempre identificadoras da proximidade de algum povoado.

A coluna redobrou de atenções e cuidados. Contra a impetuosidade dos guias, o oficial contrapunha calma e precaução. A aproximação deveria ser feita com o máximo de eficácia, pois o imprevisto poderia ser fatal.

Finalmente, a tabanca surgia no meio de uma imensa clareira. A Lua começava a despontar e iluminava já o cume das cubatas o que tornava, daí em diante, de certo modo arriscada a progressão daquele grupo de homens. Felizmente o vento vinha de frente e os cães não dariam pela aproximação deles.
O oficial fez um curto sinal com o braço e todos estacaram, ouvindo o vento, fixando os pontos característicos do terreno. Um silêncio de beatitude parecia querer desmentir todo aquele aparato de guerra.

Após uma ligeira troca de impressões, um dos guias partiu lesto na direcção da tabanca, confundindo-se com as sombras.

Os homens dividiram-se e uma secção embrenhou-se de novo na mata, com o outro guia, rodeando a tabanca pelo lado Sul, numa tentativa de conhecer melhor o terreno. O resto do grupo aguardou notícias do primeiro guia. Este não se fez esperar muito e, daí a pouco, estava já de volta, acompanhado por outro indígena que cumprimentava o alferes dando mostras de já o conhecer, de anteriores visitas, à tabanca.

Comunicou que os bandidos tinham feito muito fogo sobre eles, mas que se foram embora ao verem que da tabanca lhes respondiam também com tiros de espingarda. Todo o pessoal da aldeia estava de vigia e ninguém tinha fugido, acrescentou com um certo ar de vaidade. Só tinham pena que as munições tivessem acabado, senão tinham ido atrás deles. A tropa devia dar-lhes mais espingardas e mais balas, pois assim ficavam com medo que os bandidos voltassem para se vingarem.

Tranquilizado com estas informações, o alferes deu então ordem de avançar até à tabanca, deixando, no entanto, uma secção a proteger a retaguarda.
A tabanca parecia deserta, só aqui e ali se via uma cabeça a emergir de dentro de uma cubata. No largo central da aldeia, dois velhos e algumas mulheres. Um deles era o jarga, o chefe da tabanca. Acolheu a tropa com evidentes sinais de alegria e as mulheres, ao princípio atemorizadas, em breve começaram a tagarelar e a rir.
Surgiram depois os soldados da secção que fizera o envolvimento pelo sul, assustando algumas crianças desprevenidas, que correram a refugiar-se debaixo das saias das mães.

Nada de anormal do lado Sul. Restava portanto fazer o reconhecimento da estrada junto da tabanca, no local onde tinha sido avistado o grupo inimigo. Depois de uma breve comunicação rádio com o comando, o grupo espalhou-se, procurando então acercar-se da estrada. O silêncio continuava, interrompido apenas por um ligeiro rumor do vento nas copas frondosas dos grandes mangueirais. Os soldados esperavam, de armas prontas para uma qualquer reacção de um inimigo que poderia ainda estar presente por ali, emboscado.

Lentamente, atingiram a berma da estrada sem que nada acontecesse. A noite continuava a esconder os seus mistérios.

Um dos nativos indicou o local exacto onde tinham avistado os vultos suspeitos, uma cova escura, mesmo ali onde ficava a fonte da aldeia, segundo também informava.
A título preventivo e depois de prevenir o aquartelamento pelo rádio, dispararam-se algumas rajadas nas direcções mais prováveis, mas não houve qualquer resposta. Não havia dúvida, o campo estava livre.

Alguns soldados atravessaram a estrada e colocaram-se na outra berma. Outros, seguindo um dos nativos, embrenharam-se cautelosamente na mata que rodeava a fonte. Um deles, tropeçou num objecto duro e logo verificou tratar-se de uma caixa de ferro. Por precaução, tacteou a toda a volta com cuidado, certificando-se que não estaria armadilhado. Era um simples cunhete de munições abandonado talvez na precipitação da fuga

O guia regressava também com qualquer coisa na mão. Uma sandália de plástico e um boné de caqui.
Ali estavam, portanto, as provas definitivas de que, de facto, um grupo inimigo estivera naquele local e que teria retirado precipitadamente, abandonando, inclusive, uma pesada caixa de munições.

O alferes, entretanto, tinha localizado o sítio da estrada, onde o Braima tinha visto os suspeitos a cavar um buraco. Realmente, na parte onde a estrada descia para a bolanha, à luz fraca da lanterna eléctrica, conseguia notar-se uma ligeira depressão formando um quadrado, onde a terra parecia mais fofa e remexida. Como o local era muito escuro, não se fizeram todavia mais averiguações.

O inimigo, àquela hora estaria certamente do outro lado da fronteira e, não serviria de nada persegui-lo. Contactando novamente o Comando, ficou decidido então que metade do grupo permaneceria no local, guardando a estrada e impedindo a circulação de quaisquer veículos.
O resto regressaria ao quartel, trazendo tudo aquilo que tivesse sido encontrado, abandonado pelo inimigo.
Quando o pequeno grupo de soldados reentrou no quartel, todos ainda se mantinham na mesma expectativa aquando da saída deles.
A caixa metálica continha vários carregadores de espingarda metralhadora de origem soviética, ainda por utilizar e em perfeito estado de conservação.

Naquela noite, ainda, a sentinela deixada junto à estrada, perto do local onde se supunha estar a mina, deteve o condutor de uma pesada camioneta carregada de mancarra, vinda dos lados de Canquelifá, na ponta leste e que nada sabia do que tinha acontecido.
O motorista e algum pessoal que o acompanhava, encavalitado em cima das sacas do amendoim, tiveram mesmo de pernoitar ali na tabanca de Sinchã Samba, esperando que a tropa, mal amanhecesse, limpasse a estrada, assegurando-lhes uma passagem segura.

Logo que o dia clareou, uma força composta, então, por outro Grupo de Combate dirigiu-se ao sítio onde estaria a suposta mina. Cuidadosamente, foram picando o solo e mesmo no local onde o alferes estivera na noite anterior, detectou-se uma depressão coberta por terra fofa. Afastada a areia, destaparam uma caixa quadrangular de madeira. Era de facto uma mina anti-carro. Os turras, afinal, sempre tinham tido tempo para terminar o trabalho.

Com uma pequena carga de trotil, o Sargento Especialista rebentou o engenho, que fez um estrondo tremendo, perfeitamente ouvido a vários quilómetros de distância.

O motorista do camião de mancarra limpou o suor da testa e soltou um profundo suspiro de alívio. Profissional experiente, de muitas campanhas, nunca tinha sentido tão perto a perspectiva de poder vir a saltar com o rebentamento de uma mina. E daquela, escapara quase por milagre.

Pirada, 15 e 16 de Janeiro de 1965
(Publicado no “A Aurora do Lima” em 14.01.2009)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença