domingo, 20 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

1. Nono poste da série Cartas, (JAN a MAR66), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 04 Jan. 1966
Espero a visita de um coronel de Bafatá, o chefão cá do sítio e isto tem de ficar tudo a brilhar. O pior é que os soldados estão outra vez a perder o hábito de trabalhar.
Neste fim de mês de Dezembro, vivi atulhado em contas da Cantina. Fui obrigado a deslocar-me a Pirada, para na máquina de calcular de Secretaria, conseguir acertar as contas. Felizmente que tudo deu certo e até com um lucro bastante satisfatório.
As distracções continuam sempre as mesmas. Às segundas-feiras, um passeio matinal pela aldeia para ver a feira. À noite joga-se à Sueca ou às Copas. Perco quase sempre, porque não dou atenção às cartas que vão saindo, nem conto os trunfos já jogados. Agora, com esta mania das cartas, já não nos deitamos com as galinhas. Dá para passar o tempo, mas não me entusiasma muito.

Ao Sábado à tarde e ao Domingo parece que o quartel fica deserto pois toda a gente se deita na Caserna a dormir a sesta ou a ouvir rádio.
Quanto à Passagem do Ano, aconteceu sem novidade de maior. Quase sem darmos por isso, estávamos já em 1966.
À meia-noite do dia 31 de Dezembro, fizemos um arraial de trinta demónios e até disparámos, para o ar, foguetões luminosos de várias cores (os very lights). Mesmo assim a festa durou pouco tempo e antes das 02H00 da madrugada já todos dormiam sossegadamente.
Os soldados estão todos chateados comigo por ter comprado uma camisa verde do novo fardamento, mas não tive outro remédio porque as amarelas estão a desfazer-se aos bocados e já não existem à venda. Dizem que os atraiçoei, pois a farda antiga é que nos dá o valor de veteranos.

Paúnca, 17 Jan. 1966
Percorremos toda a região banhada pelo maior rio da Guiné, o Gêba, que entra no território da Província, aqui por esta zona.
O silêncio e a serenidade das margens, onde se escondem numerosos crocodilos, quase nos retinham ali, especados para sempre.
Éramos só 12 homens, 6 brancos e 6 pretos e na primeira paragem, acampámos no local de uma antiga tabanca, um grande espaço ainda limpo de mato, apenas com duas ou três árvores frondosas no centro. Ainda se viam por aqui e por ali, as ruínas de antigas vedações, paus e estacas que sustentavam as palhotas.
Deitámo-nos debaixo de dois mangueirais e fizemos uma fogueira enorme com algumas estacas das ruínas que, como estavam muito secas, arderam às mil maravilhas. Não tivemos que recear o frio, pois toda a noite a fogueira ardeu com força.
Apenas fomos importunados pelas formigas de um monte de bagabaga que inadvertidamente destruímos, quando limpávamos o chão junto das árvores. A nossa intenção era a de passarmos despercebidos por entre as tabancas que há nesta região, mas por nosso azar, ou apenas por imprevidência, quando estávamos a montar o acampamento apareceram quatro crianças vindas do mato, possivelmente em trânsito de uma tabanca para outra. Tentámos pregar-lhes um susto, dizendo-lhes que não éramos da tropa, mas sim guerrilheiros a caminho do Senegal. Por isso não os podíamos deixar seguir, teriam de ficar prisioneiros para não irem contar que nos viram. Mas os miúdos não acreditaram muito, talvez porque até já tivessem conhecido alguns de nós em Paúnca.
De modo que, ao fim de algum tempo, vendo que o ardil não resultava, optámos por deixá-los ir embora, não sem antes nos prometerem que, logo que chegassem à tabanca para onde iam, nos mandariam laranjas.
E na verdade, daí a um grande bocado, apareceu outro rapaz, de bicicleta, com um saco de laranjas e mandioca. Dei-lhe dinheiro e ele lá foi todo contente e ao mesmo tempo muito admirado.

No dia seguinte, como já não estávamos mais na clandestinidade, fomos direitos a uma outra tabanca, mais a Norte. Ao longo do rio a paisagem continuava soberba. Tirei inúmeras fotografias.
O chefe da tabanca é um velho amigo (pelo menos assim me parece) e, apesar de ele não perceber quase nada do que nós dizíamos, esteve um grande bocado a conversar connosco.
Passámos ali o resto do segundo dia a descansar, sempre rodeados de miúdos curiosos que enxameavam à nossa volta como moscas teimosas. Alguns eram muito engraçados, mas também havia muitos sofrendo de doenças nos olhos. Os mais fortes e desembaraçados eram com certeza os sobreviventes de toda uma enorme mortalidade infantil. Dormimos nas palhotas deles e, no dia seguinte, num local previamente combinado, apareceram as viaturas que nos levaram de volta ao quartel.

Nada de importante se tinha descoberto, a não ser que aquela zona, conhecida pelo nome de Mata do Sacaio, não era tão cerrada e inóspita como se dizia, pois afinal qualquer grupo de pessoas que, passasse por lá, seria facilmente detectado.
Fiquei no entanto com vontade de lá voltar, mas tão cedo não o poderei fazer porque, infelizmente dos meus 30 homens já só posso contar com 18 de boa saúde, o resto está, na maioria dos casos, com paludismo e outras doenças mais graves. Não têm o mínimo cuidado e apanham todas as doenças.
Com a milícia Fula não tenho problemas. Aquartelados num barracão ao lado do quartel, vivem felizes e despreocupados, alguns acompanhados pelas mulheres e os filhos.

No sábado à noite estava lá sentado ao pé da fogueira, conversando com eles, quando apareceram dois carros militares cheios de pessoal, numa grande algazarra. Prevendo o pior, voltei logo ao meu aquartelamento para ver do que se tratava.
Afinal vinham só divertir-se. O Capitão, o Alferes Castro que ainda julga que isto tudo é dele e o Doutor que nunca diz que não a uma promessa de farra.
Quando lhes perguntei o significado de tão inesperada visita, o Capitão explicou que tinham vindo ensinar o caminho a uma equipa de trabalhadores das Obras Públicas que anda a arranjar as estradas e que convidara o Castro e o Doutor para nos fazer uma visita informal

- E para bebermos uns copos! - acrescentaram logo o Castro e o Doutor, rindo às gargalhadas.

Como não achei muita graça, ripostei, perguntando se por acaso já estaríamos no Carnaval, para se fazerem assaltos. Mas perante a insistência dos foliões, não tive outro remédio senão abrir a Cantina. Acabaram por beber tudo o que havia e gastaram-me mais de 300$00 que, agora nesta altura me fazem muita falta, pois os negócios andam fraquinhos. Mas o que mais me irritou foi a atitude de gozo do Capitão, compactuando nesta farra de bêbados o que nele não é nada o seu estilo.
Como habitualmente, o Doutor quando se foram embora já ia de rastos, disparatando e cantando fados à lua. E o pior foi que, depois de eles saírem, um dos soldados que, por acaso nem é do meu Pelotão, mas do Pelotão do Castro e está cá emprestado, aproveitando o mau exemplo do seu chefe, embebedou-se também e foi para a caserna fazer reboliço. Armado com um pau começou a distribuir cacetadas a torto e a direito, mas logo por azar (seu) acertou num soldado negro que estava a tentar descansar. O Jau (um dos meus melhores soldados negros) acordado tão inesperadamente, não esteve com meias medidas, saltou da cama, pegou na primeira coisa que lhe apareceu à mão… uma pá e, zás! Enfiou com ela na cabeça do rufia, fazendo-lhe um golpe na testa que lhe curou instantaneamente a bebedeira.
O indivíduo ainda andou por ali a rosnar umas ameaças, mas nessa altura cheguei eu e tudo serenou como tinha de ser. Mais uma vez se comprovou que estas farras dentro do quartel dão sempre mau resultado.

Paúnca, 17 Fev. 1966
Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade.
Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!
Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás, os chefões na sede do Batalhão.
Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…
Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem-disposto.
A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.
E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.
Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.
Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!
Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto?

Paúnca, 22 Fev. 1966
Hoje foi um dia extraordinário. Um dia de Carnaval como nunca gozei na minha vida. Resolvemos deitar fora as tristezas e brincar até fartar.
Felizmente, só houve um único caso de bebedeira, o soldado, o Facha, um pobre diabo que não faz mal a uma mosca, distraiu-se e bebeu mais do que a conta. Todos os outros, incluindo os furriéis, portaram-se sempre na linha, sem descarrilar nem perder a noção das realidades.
Começámos por organizar uma orquestra com os meus tambores, uma gaita-de-beiços, uma concertina, umas castanholas e um reco-reco, além dos já tradicionais ferrinhos. Dois dos soldados mascararam-se de casal de noivos, casados de fresco e um outro de polícia sinaleiro com um chapéu colonial na cabeça. Eu e um furriel pedimos umas vestimentas nativas e mascarámo-nos de fulas, simplesmente.
Formámos então um grande grupo e, logo depois do almoço, saímos pela povoação a fazer a nossa passeata. Foi um sucesso!
Rapidamente se juntou à nossa volta uma verdadeira multidão de crianças, de adultos e velhos primeiro julgando que nós teríamos endoidecido mas depois convencidos que aquilo era só festa aderiram também à pândega, acabando até a dançar o vira. Muitos acreditavam que nós tínhamos recebido a ordem de voltar para casa no dia seguinte.
Percorremos toda a povoação de casa em casa e foi um verdadeiro assalto carnavalesco às lojas que, àquela hora, estavam abertas como sempre. Mas tudo correu bem, sem excessos. Só muita brincadeira e muito ronco, muita festa e alegria.
À noite, repetiu-se a dose, agora com a orquestra mais afinada, só para fazer serenata no centro da povoação e não deixar os comerciantes irem cedo para a cama. Houve logo um deles que veio oferecer um garrafão de 10 litros de vinho que desapareceu em menos de um fósforo.
Eu, que de tarde me tinha mascarado, conseguindo não ser reconhecido por ninguém, desta vez limitei-me a assistir e a manter a ordem. Correu tudo bem e conseguimos contagiar de tal maneira os civis que, às dez horas da noite, Paúnca vivia num ambiente louco de Carnaval. Só se via gente a cantar e a dançar. Por todo o lado ouviam-se batuques e o som da nossa orquestra, mais conhecida como o Quinteto do Lopes que teve um sucesso inesperado. Quando tudo começou a esfriar, quem ainda bulia veio para o aquartelamento para um fim de festa rematado por um grandioso baile. Esgotaram-se as reservas da cantina para todo o mês.
Não sei como, desatei também a tocar desenfreadamente um tambor, enlouquecendo a multidão que pulava e se rebolava pelo chão numa completa histeria.
Curiosamente, ninguém se embebedou! Durante toda a noite bebi apenas um whisky, oferecido na casa de um dos comerciantes e naturalmente era o que estava mais lúcido.
Enfim, foi uma festa magnífica. Amanhã, Quarta-feira de Cinzas é dia de trabalho.

E eis que surgiram novas ideias ao nosso Capitão. Teremos de construir uma casa-abrigo para o novo gerador de energia eléctrica que, virá (ou não…) dentro de dez dias! Quer tudo feito em bidões cheios de terra, à prova de bala de canhão…
Falta saber quem é que amanhã se vai levantar mais cedo para começar a trabalhar nessa obra.
Eu cá, é que não!

Paúnca, 01 Mar. 1966
A estação da mancarra está quase a acabar. Já circulam menos camponeses pela estrada, puxando os seus burros, carregados com os enormes sacos cheios de mancarra, a caminho dos armazéns dos comerciantes daqui que, depois se encarregam de a fazer chegar a Bafatá para aí embarcar para Bissau.
A temperatura chegou a descer tanto que me vi forçado a dormir de pijama e cobertor. Mas agora já está a subir de novo.
Passo o tempo entretido a ler ou a jogar às cartas com os furriéis. Neste último fim-de-semana, pela primeira vez, tivemos a visita de dois turistas. A fama da boa vida em Paúnca está a tomar tal consistência que já aparecem pedidos do pessoal de Pirada para virem passar aqui os fins-de-semana. Os dois primeiros turistas foram uns furriéis, nossos especiais amigos que solicitaram ao Capitão licença para passar cá o sábado e o domingo numa espécie de mini-férias.
A razão principal sei eu qual é. A comida da nossa Messe é muito melhor que a de Pirada. Se acrescentarmos a isso, os ares mais puros, a convivência mais alegre e sadia, as bebidas frescas e à borla que, os donos da casa sempre acabam por oferecer, e sobretudo o facto de estarem longe do 1.º Sargento e do Capitão, está explicada a razão deste fenómeno que não deixa de ser curioso. E agora são também os soldados que querem fazer o mesmo.
Quase que chega a haver necessidade de se meter uma cunha para conseguir gozar uma pequena licença em, Paúnca!

Este mês a cantina ia ficando completamente vazia. A alegria de estarmos a chegar ao fim da comissão é talvez uma das razões, mas o calor também tem ajudado. Os refrigerantes desaparecem num ápice, tal é a venda. Continuo a ser o gerente da cantina e até agora só tem dado lucro. No fim deste mês entrego tudo a outra Companhia o que já representa alguma coisa. Quando aqui chegámos não havia nada. Estou em crer que até meados de Abril deveremos marchar para Bissau. Até que enfim!
Soube agora pela rádio que os soviéticos atingiram Vénus com uma nave não tripulada. Agora só nos falta a nós sairmos daqui.

Paúnca, 08 Mar. 1966
No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.
Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.
Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! Louça, lenços de seda e até cestas de vime colorido. Comprei ainda, antes da hora da partida uma espécie de rosário, ou simplesmente um colar de contas, que os fulas maometanos como são, usam constantemente, para os ajudar a recitar orações ou os versículos do Alcorão, julgo eu. Infelizmente, os indígenas de cá têm muito pouco artesanato para vender. As coisas mais bonitas vêm de fora, o que as torna mais caras, como é óbvio.

Como o Manel Jaquim agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. Quanto ao quinteto do Lopes, passou agora a octeto, com novos números e novas orquestrações.

Paúnca, 13 Mar. 1966
Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.
Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.
Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido. Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos.
Quando regressei, todos me vieram falar como se tivesse voltado de uma longa viagem. Na minha ausência tudo tinha corrido sem problemas. Hoje está marcado um almoço, aqui no quartel, para o qual foram convidados todos os comerciantes de Paúnca, uns furriéis de Bajocunda e ainda o nosso Alferes Médico que, agora se dá muito bem comigo e com todos os militares de Paúnca. Foi uma grande festa que só acabou às 6 da tarde, porque os furriéis de Bajocunda tinham de regressar a casa e ainda tinham de percorrer uns 40 kms por picadas de 3.ª categoria.
O almoço foi galinha de chabéu, um prato típico cá do sítio que, consiste em galinha cozinhada em óleo de palma, acompanhado de arroz branco. Tudo muito picante, como é da tradição. O nosso cozinheiro (um balanta que anda quase sempre bêbado) desta vez esmerou-se e toda a gente gabou e repetiu, embora para alguns, tivesse sido a primeira vez que comiam tal especialidade. Éramos 10 pessoas à mesa e consumiram-se 10 galinhas!
Depois, como estava muito calor, fomos até casa de um dos comerciantes comer bolinhos de bacalhau e umas frituras de pasta de camarão, de origem chinesa, e beber whisky com muito gelo. Finalmente para espairecer, fomos dar uma volta pela tabanca e mostrar os locais mais interessantes aos nossos visitantes que, como nunca tinham vindo até cá, se mostraram encantados. Nós, depois de nove meses de estadia, como é o nosso caso, é que já não achamos graça nenhuma.
Acabou-se a tarde a jogar as cartas em casa de outro comerciante. O Doutor ficou para jantar que, entretanto se foi atrasando, pois tivemos de esperar pelo Furriel Vicente que tinha ido levar os camaradas de Bajocunda. Só voltou depois das 10 da noite, mas, bem atestados como estávamos com o almoço, aguentámos bem a espera. Apesar, do jantar (Bacalhau à Gomes de Sá) já estar completamente frio àquela hora, mesmo assim até soube melhor.
Ao serão rematámos com um campeonato de King que só terminou às 03H00 da manhã!
O pior é amanhã, segunda-feira…

Paúnca, 21 Mar. 1966
As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.
Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto. Com o desenrolar da conversa, caiu na esparrela de se gabar que tinha uns paios no frigorífico em casa dele, em Pirada e, no meio do entusiasmo geral acabou por convidar toda a gente para ir lá prová-los.
Claro que nem foi preciso repetir, todos tinham ouvido perfeitamente bem. Corremos para os jeeps e depois de uma louca corrida por 30 kms de picada, caímos em casa dele. Em menos de um fósforo desapareceram três paios e uma garrafa de whisky. O pobre do homem ao ver aquela pressa toda, acabou por fugir para os fundos do quintal a pretexto que precisava de tomar banho.
Por acaso, nesse dia, o Capitão e o Alferes Castro tinham ido a Nova Lamego fazer um piquenique (!) e só voltaram à noite.
Imagine-se! Darem-se ao luxo de fazerem piqueniques aqui. Aposto que ninguém acredita.

Ah! É verdade, segundo os últimos boatos a nossa partida está marcada para 21 de Abril e seguiremos para Bissau no dia 5, mas nada é oficial ainda.
Aqui os dias permanecem sempre iguais. Se começa a chover é porque começou a estação das chuvas. Quando pára de chover, pronto, começou a estação seca!
E é tudo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

2 comentários:

Jose Freitas disse...

Eu pertenci a mesma ca 676 como o alferes Geraldo. Jose Guilherme Teixeira da Silva Freitas furriel miliciano (minas e armadilhas) e confesso muito surpreendido com as sua narracoes. O Alferes Geraldes conta muitas historias que eu nao concordo. So para dar um exemplo eu e que ajudei com a traducao em Frances varias vezes. Ate ensinei aos cabos que trabalhavam na secretatia com o 1 sargento na escola em Pirada. Tambem fui eu que usei granadas ofensivas como armadilhas para proteger os sargentos que moravam numa pequena casa fora do aquartelamento. Fui tambem com o Capitao Seco e mais 15 soldados fomos num unimog devido a informacao recebida dum grupo terrorista e fomos emboscados perdemdo a viatura e tivemos que desertar pois eles eram um grupo de 200 pelo menos. O que li de voce Alferes Geraldes e a SUA HISTORIA, mas ha outros que tiveram uma importancia tambem........

Unknown disse...

Camarada Freitas, tinta muito gosto que entrasse em contacto comigo. Pertenci à sua companhia e éra do 4 plutao mais conhecido por Pombinho. 917210475 e 214851068