terça-feira, 22 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4994: Notas de leitura (23): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte I (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 21 de Setembro de 2009:

Saúde e prosperidade para todos.
Levei as memórias do sargento Talhadas para férias e não estou nada arrependido. Afinal, ainda há muito a esperar da memória da geração combatente.

Dividi os elementos desta recensão em vários textos, para evitar ser mais enfadonho do que é usual.

Um abraço do
Mário


Um guerreiro colonial na primeira pessoa do singular
Beja Santos

Chama-se José da Conceição Gomes Talhadas, é Sargento-mor Fuzileiro Especial, tem uma folha de serviços invejável, desde condecorações a louvores.

Em Abril de 1964, com apenas 17 anos, pediu para ser incorporado na Marinha. Pediu uma especialidade, deram-lhe outra, a de fuzileiro. Foi primeiro para a Angola, fez duas comissões na Guiné-Bissau e com o 25 de Abril foi novamente destacado para a Angola onde viu os prelúdios da Guerra Civil. Resolveu passar todas as suas recordações a escrito, e o mínimo que se pode dizer do seu registo é que se trata de um relato de referência obrigatória para o conhecimento do papel dos fuzileiros em Angola e na Guiné-Bissau. Acresce que nas duas comissões que prestou na Guiné-Bissau profere considerações altamente polémicas que certamente merecerão aos estudiosos um exame muito atento para o conhecimento do moral das forças do Exército (Memórias de um guerreiro colonial, José Talhadas, Âncora Editora, 2009).

Uma questão prévia é posta pelo editor com todo o destaque. A colecção ora encetada com as memórias do sargento Talhadas têm o objectivo de dar voz aos que, tendo algo para contar, se refugiaram sempre na dificuldade de expor, de escrever, ou de serem pessoas “sem importância” em tudo o que se passou. Esta nova colecção acolherá todos aqueles que queiram dar a sua versão, a sua visão, e que tantas vezes não houve a coragem de as pôr por escrito. É este o desafio que eventualmente a Âncora Editora lança a todos nós.

O sargento Talhadas participou de uma forma activa na Guerra Colonial durante cerca de dez anos. O seu depoimento é de um homem que não quer esconder nos ideais que acreditou, assumindo-os com convicção. Toda a sua prosa espelha o sentido da disciplina e uma elevada consideração pela hierarquia militar. Começou por ser conhecido pelo Baixa da Banheira ou o 22, o que se prende com as suas origens humildes de que ele tanto se orgulha. Nascido em Moura, em 1947, veio com os pais para a Baixa da Banheira, era na cintura industrial de Lisboa que os pais buscaram melhores condições de vida. Depois da quarta classe, tinha o mundo do trabalho à sua espera: aprendiz de balcão numa loja de venda de tecidos, depois ajudante electricista, mais tarde operário corticeiro, por fim empregado de escritório em Alfama. Depois sonhou ir para a Marinha tirar um curso de electricista ou radarista. Mas o médico na inspecção foi bem claro: “Esse dá um bom fuzileiro”. Seguiu para a Escola de Fuzileiros de Vale do Zebro, feita a recruta tirou o curso geral de fuzileiro e depois foi convidado para o curso de fuzileiro especial. Aos 17 anos foi mobilizado para a Angola, onde esteve de 1965 a 1967, mobilizado para um destacamento de fuzileiros especiais. Regressa a Portugal e dois meses depois junta-se a outro destacamento de fuzileiros especiais embarcando para a Guiné onde esteve desde finais de 1967 a Outubro de 1969. Nos finais de 1969 volta à Guiné de onde regressou em Dezembro de 1971. Com quase 24 anos é um combatente veterano. Depois do 25 de Abril regressa à Angola com uma missão especial: fazer a entrega aos guerrilheiros dos postos ao longo do rio Zaire.

O sargento Talhadas manifesta (e escreve repetidamente) que na sua ideia de nação, Portugal ia do Minho a Timor. Quando chega a Luanda, em 1965, como simples grumete, deslumbra-se, descobre o camarão e a lagosta, os bordéis, a ânsia de viver o mundo. Mas descobre também a camaradagem e o fascínio da mata, na região dos Dembos. O seu relato é tocante pela simplicidade, o verdor e a brutalidade das experiências da morte, a dor dos feridos e dos mortos. Sentiu sensações dúbias no Zaire, entre o deslumbramento e a decepção.

O registo das memórias torna-se mais intenso, viril e doloroso na primeira comissão da Guiné onde, diz ele, se tornou um guerreiro colonial. Foi na Guiné que adquiriu a capacidade de respeitar os guerrilheiros que lutavam sem desfalecimentos e enfrentando o inimigo sem virar a cara. A adaptação não foi fácil, nada se comparava a Luanda, em Bissau ouviam-se perfeitamente as armas do PAIGC. A primeira operação foi na região de Tombali. Não a esqueceu, tal a impressão que lhe deixou, um inferno de metralha e tiros, gritos lancinantes, ordens que não conseguia perceber, a fúria de um envolvimento, e o primeiro morto, o Escritas, o grumete que tinha a especialidade de escriturário e que foi atingido com um tiro na testa. Abandonado o local, avançou-se em ciclo, um truque para despistar o inimigo. Seguiram depois para o rio Cacheu, para a base de Ganturé. Nunca se esqueceu de quartéis constituídos por improvisadas habitações e a real falta de controlo da fronteira por parte das tropas portuguesas. A missão dos fuzileiros era fazer patrulhamentos de bote diários no rio Cacheu. Era a partir daqui que se faziam operações em locais tão ásperos como Sambuiá, Cumbamory ou Morés. As operações em Canjaja Mandinga revelaram-se um êxito: é apanhado um comandante, o PAIGC sofre mortos, os fuzileiros foram obrigados a retirar, seguiu-se a desforra, que foi brutal.

Em certos momentos, o sargento Talhadas deplora a falta de qualidade do comando, mas depois contém-se, era um militar altamente disciplinado, aprovou e promoveu as virtudes da estrutura hierarquizada. Em Bissau, no desfastio do guerreiro, os fuzileiros envolvem-se à porrada com civis, logo a seguir vem a guerra, novas patrulhas no rio Sambuiá, de vez em quando as minas matavam ou feriam gravemente os fuzileiros. “Ganturé era um campo de arame farpado, encostado ao rio Cacheu. Do outro lado do rio, a 100 metros, mais metros, menos metro, estendia-se uma extensa zona que ficava em permanência à mercê da guerrilha. Quando se saía desse quartel pela via fluvial, a primeira preocupação era estar atento ao que podia surgir da margem sul. E dela surgiu fogachal muitas vezes”. A vida em Ganturé era feita de muita tensão, dali se partia para o interior das matas, à procura dos santuários do PAIGC. É nestas operações que o sargento Talhadas é considerado um herói. Naquela guerra, diz ele, o que contava eram os guerrilheiros mortos e as armas capturadas. Chega o Natal, ele aí revive a camaradagem e recorda todos aqueles que viveram essa época em quartéis e acampamentos. São sempre os seus camaradas que ele recorda com carinho e saudade em todas as passagens do Natal.

Em finais de 1967, surge a ameaça de infiltração de guerrilha nos arredores de Bissau, os fuzileiros recebem a missão de patrulhar o rio Mansoa. Surgem novas refregas, o sargento Talhadas descobre a população que dramaticamente tem que conviver com a presença do inimigo e com a vigilância das tropas portuguesas. E deixa uma nota emotiva de um desses desenlaces dramáticos:

“De todos os episódios que me ficaram desse combate, houve um momento marcante que ainda hoje me persegue como tragédia de guerra: o choro convulsivo de um miúdo dos seus 4 anos, completamente assarapantado no meio de rebentamentos, tiros e gritos.

Já tinha atravessado o curso de água, os tiros a convergirem para a posição onde nos encontrávamos, quando me apercebi da criança, acanhada, desorientada, apanicada, gritando junto à água. Mexeu-me com os nervos e, não estive com meias medidas, corri e consegui retirá-lo da linha de fogo e meti-o detrás de um tronco, que também me abrigou.

Chorou, chorou, mesmo depois do tiroteio terminado. Procurei acalmá-lo, fiz-lhe festas, falei-lhe suavemente. Nada teve efeito. Lembrei-me então de lhe dar de beber da água do meu cantil. Sofregamente, empanturrou-se de água e, remédio santo, apaziguou-se.
Desliguei-me dele... nunca mais vi o miúdo, mas a sua recordação perdurou todos estes anos”

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4913: Notas de leitura (22): Gilberto Freyre na Guiné, em 1951 (Beja Santos)

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