sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5011: Notas de leitura (24): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte II (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 23 de Setembro de 2009:

Caríssimo Carlos,
Vejo que és tu que comandas as operações no navio almirante.
Aqui te envio o segundo texto da recensão do sargento Talhadas, o terceiro e último ainda seguirá esta semana.

Um abraço do
Mário


Memórias de um guerreiro colonial (2)

Beja Santos

Namoro, aerogramas, Teixeira Pinto e Buba


Em meados de 1969, o sargento Talhadas recebe o prémio “Governador da Guiné” (irá recebê-lo novamente em 1971), veio passar férias a Portugal e conheceu a sua futura mulher na Baixa da Banheira. Passou aqui dois meses, a namorar com a “conversada”, na coboiada com os camaradas, com um carro a caminho da sucata fazia ralis na Avenida da Praia, no Barreiro. Sentiu-se espicaçado para uma nova estada em África, em Janeiro de 1970 embarcou rumo à Guiné.

Para esta sua terceira comissão o navio de embarque de tropas destinado foi um petroleiro da Marinha de Guerra, o seu destino era um novo destacamento de fuzileiros especiais. Não haveria a tensão de despedida no cais da doca de Alcântara, acontece que o petroleiro “gripou” no Mar da Palha, acabaram por sair no cais de Alcântara.

O sargento Talhadas tem agora à mão o registo dos acontecimentos, os aerogramas enviados à “conversada”: “Encontro-me numa cidadezinha que tem por nome Teixeira Pinto. Tem o estatuto de cidade, mas para te ser franco é muito mais pequena que a Baixa da Banheira”. O PAIGC aumentara a sua influência na região, estabelecera bases na área do Churo, actuando com ataques a quartéis e emboscadas a colunas de viaturas numa faixa de terreno entre Teixeira Pinto, Bachile e Cacheu. A “tropa macaca” (as unidades do Exército), segundo ele, fazia a quadrícula, e a operacional tinha a grande participação de pára-quedistas, fuzileiros e comandos: as tropas “normais” ficavam cada vez mais agarradas aos quartéis, as unidades guerrilheiras só recuavam depois dos enfrentamentos com as tropas de elite portuguesas. Escreve textualmente: “As tropas especiais em território guineense agigantaram-se naquela ocasião e ainda mais nos anos subsequentes, quando a desmoralização no interior dos quartéis começava a ser evidente. Foram elas que romperam cercos, acorreram rapidamente a auxiliar e repelir tentativas de tomadas de unidades nas áreas fronteiriças, que impuseram respeito ao desafio crescente da guerrilha que se expandia e solidificava um pouco por toda a parte”. Incansável nas suas convicções, relembra-nos que estava ali para defender a Pátria, arriscava tudo em sua defesa. E escreve para a Baixa da Banheira: “Eu não estou aqui por gostar de matar. Disse-te que gostava disto, é verdade. Sou um tipo que sempre gostou da aventura. Mas não como tu compreendes-te. Eu não gosto de matar. Se o tenho feito é para não acabarem comigo. Ainda sabes o que é a guerra... Ainda na última missão, tivemos vários contactos com inimigo, em todos lhe causámos baixas. Em todos eles estive na primeira linha. Vi dois colegas serem feridos. Inclusive fui projectado para o ar com o rebentamento de uma bazucada. Se essa granada tivesse explodido uns metros mais à frente, talvez já não existisse. Agora diz-me: tenho, ou não tenho, razão? Mata-se ou morre-se, é assim a guerra”.

Em Teixeira Pinto havia sido criado um Comando de Agrupamento de Tropas, Spínola apostava fortemente no desgaste interno do PAIGC. Durante meses, centenas e centenas de soldados das tropas especiais e do Exército movimentaram-se por Churo, Coboiana, Pelundo, Jol, Jolmete. Vai relatando todos estes confrontos, não sem deixar o reparo que as forças do PAIGC retiravam e, semanas mais tarde, refaziam os seus acampamentos. A população era a grande sofredora, sempre intimidada, intranquila, por vezes famélica.

Depois, partem para a região de Buba, onde o aquartelamento era bombardeado com regularidade. Foram recebidos com júbilo pelos camaradas do Exército, encontrou mesmo um colega da escola da Baixa da Banheira. Nessa altura reconstruía-se e alargava-se a estrada para a Aldeia Formosa, tudo um tormento diário, desminavam-se as picadas de manhã à noite voltavam a ser semeadas minas. Os fuzileiros começam a fazer emboscadas nocturnas e vão interceptando as deslocações dos guerrilheiros: “Regressámos a Bissau um mês depois. O quartel de Buba esteve em relativo sossego mais uns tempos, mas assim que o PAIGC detectou que os fuzileiros já não voltavam, iniciou, novamente, a pressão quase diária. Outros destacamentos, meses depois, tiveram de zarpar para lá. A guerra estava a evoluir, com a introdução de nova tecnologia. Tinham chegado os foguetões Katiucha”.


O regresso ao Cacheu

Metidos a bordo de uma lancha de desembarque grande seguiram para a base de Ganturé, onde viveram dois meses de monotonia mas também de intensa preparação para as novas actividades operacionais. Os fuzileiros deslocavam-se em botes de borracha Zebro, saíam em equipas que se rendiam em pleno rio, na vã tentativa de dissuadir a movimentação dos guerrilheiros. Os ataques com artilharia do PAIGC aos aquartelamentos da zona militar eram constantes e até rotineiros. É nessa altura que se dá um grande ataque ao aquartelamento de Bigene em que os guerrilheiros avançaram para o arame farpado, foram os fuzileiros que levaram a força do PAIGC a recuar. A “nomadização” passara a ser feita pelas tropas especiais, substituindo a acção da tropa de quadrícula que “na prática, não saía, em actos ofensivos, do seu quartel ou do seu perímetro exterior”. Por vezes, as tropas especiais infiltravam-se em território senegalês, como em Nénecó ou Cumbamory. Em Cumbamory deu-se uma refrega violenta, as tropas do PAIGC deram uma resistência enorme, como habitualmente a guerrilha retirava e depois regressava. E foi assim que decidiu uma nova operação à reconstruída base de Cumbamory. Apanharam-se 10 toneladas de armas. Mas as forças locais do PAIGC ripostaram, chegou a temer-se o corpo a corpo, os T-6 lançaram bombas, os fuzileiros retiraram para Bigene. O sargento Talhadas regista que as duas batalhas de Cumbamory em que interveio colocaram frente a frente, na prática, unidades de guerra clássica, quase de trincheiras. Mas não deixa de referir que nessa altura ainda se fazia sentir a supremacia da frota aérea.

O destacamento de fuzileiros, nesta sua segunda comissão da Guiné, está completo com a chegada dos jovens grumetes, a unidade tornou-se numa unidade de guerra. Regista que o COP 3 entre Abril de 1970 e Janeiro de 1971 conheceu quatro comandantes efectivos e, pelo menos, um interino: “Quase todos eles tiveram comportamento negativo no que diz respeito à competência de liderança e gestão de homens, alguns deles altamente treinados, o que, naturalmente, se reflectiu no planeamento operacional e que só não trouxe um desgarramento na estrutura e no enquadramento prático no terreno porque as principais unidades tinham um alto espírito de disciplina e actuação”. O sargento Talhadas insiste que eram os fuzileiros as únicas unidades de toda a zona operacional a efectuar acções ofensivas, garantindo as tropas do Exército apenas a defesa dos quartéis. Nesta óptica, o PAIGC movimentava-se em crescendo por todo o território do COP 3, deslocava os seus foguetões, dispondo de uma capacidade de retirada imediata: “A guerra estava a entrar numa fase de maior sofisticação em termos de tecnologia. E tal não acontecia do nosso lado”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 22 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4994: Notas de leitura (23): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte I (Beja Santos)

1 comentário:

Julio Cesar Ferreira disse...

Foi por ess altura (janeiro de 70) que chagamos à Guiné ( B.Caç.2905) e dali para Teixeira Pinto. A C.Caç. 2659 (a minha Cª) foi para Cacheu. Lembro-me muito bem da tropa especial que ali havia e de outros que chegaram depois. Eram bons guerreiros,mas a verdade também deve ser dita (o que pode ser confirmado pelos homens do destacamento 21 e destacamento 3 de Fuzileiros especiais) e os homens dos Paras das Boinas Castanhas, como era conhecida a C.Caç. 2659 (http://www.cacheu.blogspot.com/) também não deixavam os seus créditos por mãos alheias.