quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso

1. Décimo e último poste da série "Cartas" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


Epílogo: O Regresso

Paúnca, 03 Abril 1966
Hoje, domingo, apareceram cá, o Médico, o Castro, o 2.º Sargento Sousa e o Furriel Hugo. Só o Médico é que veio almoçar, os outros vieram cortar o cabelo. Acontece que o melhor barbeiro da Companhia pertence ao meu Pelotão. É sempre ele que nos corta o cabelo a todos, à borla claro! O pobre do rapaz não tem mãos a medir. Encara esse trabalho como mais uma das tarefas que lhe calhou na vida militar.
O Sargento Sousa veio para conferir o Depósito de Material existente e elaborar as respectivas guias de entrega ao pessoal que nos vier render.
Também já fechei as contas da cantina que, afinal pouco ou nenhum lucro deu, pois o cantineiro costumava enganar-se nos trocos… acabei por distribuir os livros de extinta Biblioteca (na maioria fotonovelas todas estafadas de tanto serem lidas e relidas), por aqueles que se mostraram mais interessados, pois não era um património que valesse muito a pena legar aos vindouros. Eles trarão com certeza coisas mais actualizadas e, se quiserem, rapidamente poderão ter também a sua própria Biblioteca.
Começámos a fazer as despedidas pelos comerciantes e houve um que por força queria que lá ficássemos toda a tarde a beber e a petiscar. O Doutor (claro!) e os furriéis ficaram, mas eu logo que apanhei uma aberta, raspei-me para o quartel para tratar da entrega do material com o Sargento Sousa.

Tinha acabado de tomar banho, já passava das 18 horas, quando me vieram chamar para ir continuar a festança. Contrariado mas curioso fui só ver como paravam as modas. E lá estavam eles como de costume a amparar o Médico que já não se segurava em pé, com a habitual carraspana. Assim não há pachorra e como não conseguia achar graça nenhuma àquilo, regressei ao aquartelamento.
São agora 11 da noite e eles ainda não apareceram. E o que mais me chateia é que o Doutor vai com certeza ter de dormir cá esta noite. Aqui no meu quarto onde é capaz de vomitar por tudo o que é sítio que nem um desgraçado.
Já estou farto de aturar este tipo de gente!
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Finalmente já se sabe qual o dia em que seremos rendidos.
Começaremos aqui pelo destacamento de Paúnca, primeira fracção da Companhia a seguir para Bissau no próximo dia 6 logo pela manhã.
As malas já estão feitas, quase tudo arrumado e pronto para ser entregue aos maçaricos que vierem para cá e que, diga-se de passagem, estão cheios de sorte. Não há dúvida que foi uma temporada bem passada!
Mas que estou a dizer? Até parece que fiquei com saudades disto, a gostar disto! Raios me partam!
Depois de chegarmos a Bissau ficaremos a aguardar a chegada do navio. Vão ser mais uns longos 15 dias de espera. Mas que, caramba, também vão passar!
Quando aqui desembarcámos, pensava que 24 meses eram uma eternidade e, afinal já passaram, já chegámos ao fim.
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Mas bem ao nosso estilo, surgem sempre as alterações de última hora. Agora não seremos nós, os primeiros a ser rendidos mas sim, os de Pirada.
Só daqui a uma semana (dia 11 talvez) é que marcharemos para Bissau. Espero que ainda cheguemos a tempo de apanhar o barco…

Bissau, 15 Abr. 1966
Finalmente em Bissau.
Saímos de Pirada e Paúnca pelas 15H00 de terça-feira (dia 12) e chegámos a Bambadinca, onde dormimos, cerca das 11 da noite.
Às 4 da madrugada do dia seguinte, embarcámos num batelão para Bissau.
Viagem horrível. O batelão vinha cheio de vacas e de nativos que tinham entrado primeiro que nós. Viemos durante quase todo o dia de pé ou sentados em caixotes à torreira do sol. Chegámos finalmente a Bissau às 15H30.
O alferes que me foi render a Paúnca era um tipo estupendo. Foi locutor na rádio Huila em Sá da Bandeira, Angola e também já é casado. Mas deixou a mulher lá, o que fez muito bem, pois as mulheres dos oficiais que por cá passaram, só têm dado barraca. Temos ouvido histórias inacreditáveis.

Embarcaremos, até ordens em contrário, no dia 27 e deveremos chegar a Lisboa no dia 3 de Maio. Agora estamos instalados no mesmo quartel em que estivemos antes de irmos para o mato. O velhinho Batalhão 600. Os soldados até estão a dormir na mesma caserna.
Os oficiais que viemos encontrar são todos periquitos, muito mal encarados. Nem falam com a malta. Eu também nem lhes dou os bons dias ou boas tardes.
Hoje estou de serviço, como oficial de piquete e prevenção. Um outro oficial que, também veio do mato e tem o mesmo tempo que eu, está de oficial de dia. Assim vou ter, felizmente, o fim-de-semana livre.

Ontem jantei no Grande Hotel, na companhia do Cardoso que, desde que aqui chegámos não me tem largado a perna pois mais ninguém lhe liga. Acabámos por ir ao cinema ver “Fanny”, com a Leslie Caron. Gostei. Foi uma noite bem passada. A temperatura na capital é mais fresca que a do mato. As ruas aumentaram e parece que os prédios cresceram de um dia para o outro. São os efeitos da guerra. Os preços nas lojas também subiram. Este mês creio que o ordenado fica cá todo.

Bissau, 19 Abr. 1966
Todas as noites, depois de jantar, reunimo-nos e vamos até qualquer bar ou esplanada da baixa, petiscar camarão ou ostras.
No quartel temos mantido um comportamento tão acima da média que toda a gente está bem impressionada connosco. Acabaram-se os problemazinhos quotidianos que surgiam constantemente, quando estávamos no mato, em Pirada e em Paúnca. Agora acordamos todos os dias, alegres e descontraídos, pensando sempre que falta menos um dia.
Uma das coisas que mais me impressiona no comportamento que os nossos soldados estão a ter agora é precisamente a calma com que estão a encarar estes últimos dias de comissão. Até parece que reina entre nós uma certa nostalgia por deixarmos estes lugares.
A nossa despedida de Pirada foi extraordinariamente comovente. Todos os amigos que lá fizemos e que por lá ficaram, o M. Santos e a família, o velhote Gomes e os outros comerciantes, a Ti Clara, a Cumba e todas as outras meninas do régulo Solo Só, vieram despedir-se com lágrimas nos olhos e correram atrás dos camiões até os perderem de vista no pó da picada.
Foi até hoje, uma das despedidas mais dolorosas que vivi. Deixámos ali abandonada para sempre (?) aquela gente que não tem outro modo de existência senão ficar ali, expondo-se a uma ameaça eminente, desaparecendo aos poucos da nossa memória.

(A ameaça eminente a que me referia, era a das presumíveis retaliações, logo que a guerra terminasse, pois os guerrilheiros, futuros vencedores iriam, certamente tratá-los como gente traidora, como cobardes que nunca fizeram qualquer sacrifício em favor da causa. O que infelizmente veio a acontecer, nos primeiros anos de euforia da independência)

Confesso que também me vieram as lágrimas aos olhos.
Agora aqui em Bissau levamos uma vida regalada, pois o serviço até nem é muito e a camaradagem com aqueles que, como nós, também vão regressar, é entusiasta e franca.
Estes últimos dias são de uma emoção fora de todos os limites. Estou ansioso de subir para o barco.

Bissau, 26 Abr. 1966
O Uíge já chegou!
Embarcamos hoje às 17H00 e largaremos de Bissau durante a noite. Estes últimos momentos têm sido fantásticos. A balbúrdia parece reinar, mas o que existe de facto é apenas uma alegria esfuziante em cada rosto dos que partem.
Ontem tivemos a cerimónia da entrega das medalhas comemorativas das Campanhas da Guiné e agora pavoneamo-nos por Bissau com a fitinha verde e vermelha no peito.
Quanto aos soldados estão todos a portar-se muito bem. Não tem havido qualquer contratempo e até estamos (nós os oficiais) admirados com isso.
Ontem à noite, o Quartel-General ofereceu um espectáculo de variedades que agradou em cheio e serviu de relax para todo o pessoal.
Enfim, estou a viver a maior alegria da minha vida.
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Nota de CV:

Vd. postes da série:

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo

21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966

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