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Carlos, Luís:
Para compensar o nosso afastamento do blogue por um período de férias dilatado (na verdade ainda continuam...) envio-vos duas pequenas histórias - uma minha ("Correio ao domicílio"), outra da Giselda ("Fartote de legumes").
Como é habitual são ligeirinhas, mas talvez não faça mal, para compensar a caloraça que este Verão trouxe ao blogue...
Um abraço
Giselda e Miguel Pessoa
CORREIO AO DOMICÍLIO
Nas missões que efectuavam por todo o território da Guiné os pilotos sabiam da importância que a chegada do correio tinha para o pessoal exilado nos locais mais recônditos, por ser o principal (às vezes o único) elo que tinham com a civilização.
Sucedeu comigo por várias vezes quando voava no DO-27 que, sobrevoando o território no percurso para o aeródromo de destino, ao passar sobre um aquartelamento, era interpelado por um operador de rádio mais ansioso, de que geralmente resultava uma conversa encriptada, mais ou menos nestes termos:
- Águia, Águia (ó aviador), aqui XX (código do quartel), informe se tem Sierra (serviço) para este?
- XX, Águia, negativo
- OK. Confirme que não tem Charlie (correio) para este?
- XX, Águia, negativo
- OK, Águia, Óscar Bravo (obrigado), o Charlie (comandante) manda um Alfa Bravo (abraço) e uma Bravo Victor (boa viagem)
- XX, Águia, um Alfa Bravo para vocês. Terminado. (**)
E lá continuava eu para o meu destino deixando para trás um interlocutor desiludido.
Deve-se reconhecer que os SPM (Serviços Postais Militares) tinham em consideração, sempre que possível, a necessidade que o pessoal tinha de receber notícias fresquinhas - das famílias, das namoradas, dos amigos. Por isso, estava bem organizada a distribuição dos sacos do correio, de modo a embarcarem no primeiro avião disponível para o local.
Para além de embarcarem o correio de acordo com as missões planeadas, sempre que surgiam missões inopinadas (como as evacuações ou um transporte inesperado), as Operações do GO1201 alertavam os SPM e estes, na medida do possível, levavam à placa onde se encontrava o AL-III ou o DO-27 o correio para o aquartelamento em causa, por vezes também para outros aquartelamentos próximos, a quem o correio seria enviado por terra, a partir do primeiro.
Também por vezes os pilotos tinham a iniciativa de mandar embarcar os sacos de correio dirigidos a outros locais em que não iríamos aterrar, mas que sobrevoaríamos; claro que não se adequava levar encomendas frágeis, que se pudessem partir, pois a ideia era desembarcarmos o saco pela porta lateral quando passássemos a baixa altitude por cima da área do aquartelamento. Mas para o simples correio era uma boa solução de recurso, principalmente em locais isolados sem pista.
Claro que por vezes as coisas podiam não correr tão bem como gostaríamos - o correio podia cair mais longe do que pretendíamos (e o pessoal do quartel também...) e alguns incidentes também ocorreram: por exemplo, um dos sacos que o meu ajudante de carga atirou levou consigo uma antena lateral do DO, outro piloto levou aguerridamente a antena de rádio do quartel. Enfim, foi tudo por uma boa causa, que era afinal a de mitigar as saudades dos nossos camaradas em terra por tudo aquilo que tinham deixado lá longe.
Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006)
Uma vez, um aviador de Fiat G-91, depois de executar uma missão no sul do território onde largou o ferro que levava, quando regressava a Bissalanca detectou uma anomalia suficientemente grave para o fazer dirigir-se de imediato para o sítio mais próximo que fosse apropriado para pôr o estojo no chão. Lá fez uma aproximação cuidadosa à pista, conseguindo parar o avião dentro do espaço disponível, sem mais problemas para além do susto inicial.
Ainda a recuperar do stress, enquanto saía do avião, vê que a capacidade de apoio do aquartelamento era superior à que esperaria, pois de imediato se aproximam rapidamente do local vários militares. Só então se apercebe das suas intenções quando um deles lhe dispara a pergunta sacramental:
- Traz correio?!
Miguel Pessoa
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Foto de Soares da Silva, com a devida vénia
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4676: FAP (32): Defendendo a minha dama (Miguel Pessoa)
(**) Código Fonético Internacional
A - Alfa
B - Bravo
C - Charlie (lê-se tchar-li)
D - Delta
E - Eco (lê-se: é-cô)
F - Foxtrot (lê-se: focs-trote)
G - Golf
H - Hotel
I - Índia
J - Juliet (lê-se: dju-liete
K - Kilo (lê-se: qui-lô)
L - Lima
M - Myke (lê-se: mai-que)
N - November
O - Oscar
P - Papa
Q - Quebec (lê-se: qué-beque)
R - Romeo (lê-se: ró - mi - ou)
S - Sierra
T - Tango
U - Uniform
V - Victor
W - Whisky (lê-se: uís-qui)
X - Ex-Ray (lê-se: ecs-rei)
Y - Yankee (lê-se: ian-que)
Z - Zulu
1 comentário:
Caro Miguel, essa do "traz correio?" era mesmo "fatal como o destino"...
Nas actividades de radiolocalização que o serviço onde estava desenvolveu, calhou um dia um camarada ir até um "buraco" chamado Bissum, já aqui bem retratado no Blogue. O acesso a esse local era muito difícil, era mesmo um "buraco", onde por vezes se passavam longos dias sem que lá chegasse algo de fora.
Pois quando esse meu camarada, o Fur. Mil Eduardo Pinto, lá chegou para montar o equipamento para a acção de radiolocalização, mal o transporte (não me lembro agora se foi um heli ou uma DO) a verdade é que fizeram exactamente o que descreves, correram para o piloto e perguntaram "traz correio?".
Nem mais!
Um abraço
Hélder S.
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