1. Mensagem de Giselda e Miguel Pessoa (*), ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado, com data de 18 de Setembro de 2009:
Carlos, Luís:
Para compensar o nosso afastamento do blogue por um período de férias dilatado (na verdade ainda continuam...) envio-vos duas pequenas histórias - uma minha ("Correio ao domicílio"), outra da Giselda ("Fartote de legumes").
Como é habitual são ligeirinhas, mas talvez não faça mal, para compensar a caloraça que este Verão trouxe ao blogue...
Um abraço
Giselda e Miguel Pessoa
CORREIO AO DOMICÍLIO
Nas missões que efectuavam por todo o território da Guiné os pilotos sabiam da importância que a chegada do correio tinha para o pessoal exilado nos locais mais recônditos, por ser o principal (às vezes o único) elo que tinham com a civilização.
Sucedeu comigo por várias vezes quando voava no DO-27 que, sobrevoando o território no percurso para o aeródromo de destino, ao passar sobre um aquartelamento, era interpelado por um operador de rádio mais ansioso, de que geralmente resultava uma conversa encriptada, mais ou menos nestes termos:
- Águia, Águia (ó aviador), aqui XX (código do quartel), informe se tem Sierra (serviço) para este?
- XX, Águia, negativo
- OK. Confirme que não tem Charlie (correio) para este?
- XX, Águia, negativo
- OK, Águia, Óscar Bravo (obrigado), o Charlie (comandante) manda um Alfa Bravo (abraço) e uma Bravo Victor (boa viagem)
- XX, Águia, um Alfa Bravo para vocês. Terminado. (**)
E lá continuava eu para o meu destino deixando para trás um interlocutor desiludido.
Deve-se reconhecer que os SPM (Serviços Postais Militares) tinham em consideração, sempre que possível, a necessidade que o pessoal tinha de receber notícias fresquinhas - das famílias, das namoradas, dos amigos. Por isso, estava bem organizada a distribuição dos sacos do correio, de modo a embarcarem no primeiro avião disponível para o local.
Para além de embarcarem o correio de acordo com as missões planeadas, sempre que surgiam missões inopinadas (como as evacuações ou um transporte inesperado), as Operações do GO1201 alertavam os SPM e estes, na medida do possível, levavam à placa onde se encontrava o AL-III ou o DO-27 o correio para o aquartelamento em causa, por vezes também para outros aquartelamentos próximos, a quem o correio seria enviado por terra, a partir do primeiro.
Também por vezes os pilotos tinham a iniciativa de mandar embarcar os sacos de correio dirigidos a outros locais em que não iríamos aterrar, mas que sobrevoaríamos; claro que não se adequava levar encomendas frágeis, que se pudessem partir, pois a ideia era desembarcarmos o saco pela porta lateral quando passássemos a baixa altitude por cima da área do aquartelamento. Mas para o simples correio era uma boa solução de recurso, principalmente em locais isolados sem pista.
Claro que por vezes as coisas podiam não correr tão bem como gostaríamos - o correio podia cair mais longe do que pretendíamos (e o pessoal do quartel também...) e alguns incidentes também ocorreram: por exemplo, um dos sacos que o meu ajudante de carga atirou levou consigo uma antena lateral do DO, outro piloto levou aguerridamente a antena de rádio do quartel. Enfim, foi tudo por uma boa causa, que era afinal a de mitigar as saudades dos nossos camaradas em terra por tudo aquilo que tinham deixado lá longe.
Um Dornier, DO 27, na pista, de terra batida, do aquartelamento.
Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006)
Uma vez, um aviador de Fiat G-91, depois de executar uma missão no sul do território onde largou o ferro que levava, quando regressava a Bissalanca detectou uma anomalia suficientemente grave para o fazer dirigir-se de imediato para o sítio mais próximo que fosse apropriado para pôr o estojo no chão. Lá fez uma aproximação cuidadosa à pista, conseguindo parar o avião dentro do espaço disponível, sem mais problemas para além do susto inicial.
Ainda a recuperar do stress, enquanto saía do avião, vê que a capacidade de apoio do aquartelamento era superior à que esperaria, pois de imediato se aproximam rapidamente do local vários militares. Só então se apercebe das suas intenções quando um deles lhe dispara a pergunta sacramental:
- Traz correio?!
Miguel Pessoa
Fiat G-91 da FAP
Foto de Soares da Silva, com a devida vénia
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4676: FAP (32): Defendendo a minha dama (Miguel Pessoa)
(**) Código Fonético Internacional
A - Alfa
B - Bravo
C - Charlie (lê-se tchar-li)
D - Delta
E - Eco (lê-se: é-cô)
F - Foxtrot (lê-se: focs-trote)
G - Golf
H - Hotel
I - Índia
J - Juliet (lê-se: dju-liete
K - Kilo (lê-se: qui-lô)
L - Lima
M - Myke (lê-se: mai-que)
N - November
O - Oscar
P - Papa
Q - Quebec (lê-se: qué-beque)
R - Romeo (lê-se: ró - mi - ou)
S - Sierra
T - Tango
U - Uniform
V - Victor
W - Whisky (lê-se: uís-qui)
X - Ex-Ray (lê-se: ecs-rei)
Y - Yankee (lê-se: ian-que)
Z - Zulu
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Miguel, essa do "traz correio?" era mesmo "fatal como o destino"...
Nas actividades de radiolocalização que o serviço onde estava desenvolveu, calhou um dia um camarada ir até um "buraco" chamado Bissum, já aqui bem retratado no Blogue. O acesso a esse local era muito difícil, era mesmo um "buraco", onde por vezes se passavam longos dias sem que lá chegasse algo de fora.
Pois quando esse meu camarada, o Fur. Mil Eduardo Pinto, lá chegou para montar o equipamento para a acção de radiolocalização, mal o transporte (não me lembro agora se foi um heli ou uma DO) a verdade é que fizeram exactamente o que descreves, correram para o piloto e perguntaram "traz correio?".
Nem mais!
Um abraço
Hélder S.
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