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terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26507: Timor Leste: passado e presente (30): Elementos para a compreensão da revolta de Manufai, ao tempo da República (1911/12)


Timor Leste > Parque Dom Boaventura. Comemoração,  dos 20 anos do referendo sobre a independência da Indonésia (1999-2019). 

A estátua de Dom Boaventura foi inaugurada em 23 de novembro de 2012, por ocasião comemoração do 37° Aniversário da Proclamação da Independência (28 de Novembro de 1975 – 28 de Novembro de 2012) e do centenário da Revolta de Manufai, liderada por Dom Boaventura (1912 – 2012).


Foto: cortesia de Wikimedia Commons (editada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)



1. No tempo da República, Timor era, como as restantes colónias portuguesas, parte integrante de Portugal (segundo o artº 2º da Constituição de 1911). 

A desastrosa, mal planeada e sangrenta participação de Portugal na I Guerra Mundial, foi justificada pelos políticos da República como o  imperioso dever do país face ao imperalismo alemão que olhava, com olhos de rapina, territórios como Angola e Moçambique.  Timor ficava mais longe e podia ter menos interesse para as grandes potências coloniais europeias, com exceção da Holanda (hoje Países Baixos)...

A República (1910-19269)  sempre defendeu, para as colónias, um modelo de descentralização administrativa e financeira, com recurso a um Alto Comissário ou governador. A instabilidade política, militar, social e económica da República não permitiu o aprofundamento e aperfeiçoamento do modelo.

Com a  Ditadura Militar (a partir de 1926) e o Estado Novo (a partir de 1933), há um claro retrocesso na autonomia administrativa e financeira das colónias.  O Acto Colonial (1930) vai ser integrado na Constituição de 1933. É o triunfo da perspetiva imperial na relação metrópole-colónias.

A relação da República com Timor e os timorenses também não será pacífica... Há a  "revolta indígena"  de Manufai (1911/12),  cuja história merece um poste â parte. O triunfo das autoridades portuguesas e seus aliados vai marcar a consolidação da até então precária soberania  em toda a parte oriental da ilha.( A delimitação da fronteira só fica resolvida em 25 de junho de 1914, com a devcisão do tribunal de Haia sobre o diferendo relatibvamente ao enclave de  Oecussi-Ambemo: a demarcação no terreno só vai acabar em abril de 1915.)

Só para se ter uma ideia da pulverização do poder político, o território (do que é hoje Timor Leste) estava  dividido em 71 reinos !... 


Segundo o autor que lemos (Fernando Figueiredo, "Timor (1910-1955), in: "História dos Portugueses no Extremo Oriente", 4º volume: Macau e Timor no Períod0o Republicano", dir. A. H. de Oliveira Marques, Lisboa: Fundação Oriente, 2003, pp. 521-575), haveria alguns causas próximas para explicar a revolta, réplica de resto da iniciada em 1895, sob o governo de Celestino da Silva (desta vez liderada por Dom Boaventura da Costa Sottomayor, filho de Dom Duarte da Costa Sottomayor):

(i) a "troca de bandeiras" , com o fim da monarquia: os timorenses davam (e ainda dão) muita importància a simbolos nacionais como a bandeira:  a sua lealdade ia para o rei e para a bandeira "azul e branca" da monarquia, de repente (em 29 de novembro de 1910) substituída por uma outra, "verde e rubra", a da República, que lhes era totalmente estranha;

(ii) a instabilidade da transição política foi aproveitada pelos holandeses para incitar os timorenreses à revolta contra os "novos senhores" da metrópole, e pôr em causa as fronteiras do território:

(iii) substituição da "finta" pelo "imposto de capitação " (imposto de palhota na Guiné); vem afetar os poderes gentílicos, limitar o poder discriconário dos "régulos" (ou "liurais");

(iv) escassa presença militar portuguesa no território (agravada pela longa distância, por via marítima, entre Lisboa e Díli).

Sobretudo o aumento do imposto de capitação (implicando também o arrolamento de coqueiros e gados, a principal riqueza dos timorenses), a par da proibição do corte de árvores de sândalo (prática sancionada com multas), é uma das razões fortes para a revolta de Manufai (ou a sua segunda edição) que ocorreu, em grande parte,  durante o governo de Filomeno da Câmara Melo Cabral (1911-1917). A partir do reino de Manufai, a revolta conquista grande adesão das populações e levará mais tempo a ser debelada. 

A resposta foi militar, com o envio de tropas  oriundas da metrópole, de Goa, de Macau e sobretudo de Moçambique (os "landins"). A artilharia fez grandes razias. As baixas entre os revoltosos vão reflectir-se mais tarde na demografia do território. Fala-se em 5 mil a 20 mil mortos, números difíceis de confirmar. 

A par disso, e como seria de prever, a forte repressão vai agravar as relações entre colonizados e colonizadores... O Estado anexa terras dos vencidos (caso da futura Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho). O poder dos "liurais" passou a ser mais simbólico, mas mesmo assim o governador Filomeno da Câmara soube depois imprimir uma dinâmica de desenvolvimento e pacificação efetiva do território, política que será prosseguida com algum êxito até à II Guerra Mundial.

A revolta do régulo de Manufai será o último dos grandes levantamentos contra a autoridade colonial. E tende hoje a ser vista como uma "revolta protonacionalista", de cariz anticolonialista, "avant la lettre".

Carlos Bessa ("Timor. Do Domínio Liurai â Pacificação Portuguesa", in Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, ed. lit - Nova Históriaa Militar de Portugal. Vol. 3. S/l: Círculo de Leitores. 2004. 323-333), tirou deste período trágico da história de Timor a  seguinte conclusão:

(...) A nobreza nativa sairá muito enfraquecida destas campnhas, mas, mesmo assim, a autoridade portuguesa continuou a não pretender ser mais do que superestrutura aglutinadora e arbitral das autoridades nativas dos vários reinos, embora se tornasse marcante factor de identidade e unificação política através da influência de uma cultura luso-timotense e do catolicismo,  contrapostos ao islamismo e à influência calvinista holandesa excercida na restante Indonésia, do que resultou o tão impressionante e conhecido culton dos Timorenses pela bandeira portuguesa" (pág. 333).

PS - Num próximo poste apresentaremos alguns dados sobre a demografia do território antes da II Guerra Mundial.



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Nota do editor:

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26504: Notas de leitura (1773): "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
José Maria Monteiro permaneceu 4 anos na Guiné, ligado à telegrafia. A sua ambição é mostrar a exemplaridade da Marinha de Guerra na Guiné, em Angola e Moçambique, referindo que esta geração de todas as gerações foi a mais combatente, a mais sacrificada e a mais revolucionária. Temo que exagere nas laudes que faz ao desempenho dos fuzileiros (cuja bravura jamais alguém contestou), e faz-se uma síntese, de acordo com os elementos que ele apresenta da intervenção dos fuzileiros e da Marinha de Guerra em geral a partir de 1961. Ele recorda que no segundo semestre de 1962 já havia confrontos com a guerrilha, na região Sul, faz uma menção detalhada da operação Tridente e de outras que se seguiram, vamos proximamente continuar com a síntese das atividades que ele apresenta entre 1964 e 1968, as alterações impostas por Spínola à atividade da Marinha, haverá mesmo espaço para se falar da operação Mar Verde.

Um abraço do
Mário



Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro, Chiado Books, 2019. O autor alistou-se em 1967 na Marinha, ofereceu-se como voluntário para a Guiné, nos dois primeiros anos desempenhou as funções de radiotelegrafista de uma lancha de fiscalização pequena; terminados os dois primeiros anos, passou para o Comando da Defesa Marítima da Guiné, continuando mais dois anos como marinheiro telegrafista. Foi aumentando as suas habilitações, concluiu o curso de Economia e, mais tarde, o de Direito.

Começa por lamentar a indiferença com que o país no seu geral trata os que combateram pela pátria, refere o sentimento de revolta que atinge os ex-combatentes; depois faz um esboço dos inícios da guerra colonial, uma descrição do recrutamento dos mais jovens combatentes, como se processava a partida para os teatros de operações e entramos propriamente na guerra de guerrilhas da Guiné, tudo matéria bem conhecida dos leitores, incluindo o mantra que as coisas na Guiné não correram nada bem durante a governação de Arnaldo Schulz, que em 1968 os relatórios não escondiam avanços e sucessos dos guerrilheiros, esperava-se uma mudança providencial com o brigadeiro António de Spínola, refere as primeiras diretivas do novo comandante-chefe, também matéria conhecida dos nossos leitores.

E lança-se então na gesta da Marinha de Guerra na Guiné, então encomiástico, assim, enaltecendo os fuzileiros:

“Penetraram nas matas africanas até ao fim do mundo, com uma vontade férrea de um povo que insistia em manter viva a herança de séculos e séculos, sem pensar que, um dia, as Forças Armadas portuguesas viriam a pôr fim a uma guerra suicida. No final do ano de 1961 embarca um pelotão de fuzileiros para a Guiné. Em junho do ano seguinte, embarca, por via aérea, o Destacamento de Fuzileiros Especiais (DFE) N.º 2, no final de dezembro de 1962 registaram os primeiros feridos entre os fuzileiros. Com o ataque a Tite em 20 de janeiro de 1963, começam as grandes façanhas dos guerrilheiros em terras da Guiné, uma vez que eram os homens mais bem preparados para este tipo de guerrilha. Existindo no Sul do território algumas áreas sobre o controlo do IN, os DFE, apoiados por diversos meios navais, a fragata Nuno Tristão, a LFP Argos, a LFP Escorpião e a LFP Dragão, entre outras, iniciam no Sul da Guiné, concretamente nas ilhas de Como, Caiar e Catunco, penetrando pelas matas serradas naquelas ilhas. Nas operações Trevo, Seta e Lima, competia ao DFE n.º 2 e DFE n.º 8 bater toda a zona envolvente a Darsalame, ocupando-a, tendo em vista içar de novo a bandeira portuguesa, facto que veio a acontecer em novembro de 1963.”

Não terá sido exatamente assim pois o comandante-chefe Louro de Sousa começou a arquitetar a operação Tridente para expulsar os guerrilheiros destas ilhas. José Maria Monteiro descreve a operação Tridente até à sua finalização, ficou a partir de março de 1964 uma unidade do exército na mata do Cachil, a Norte da ilha do Como, com a missão de patrulhar a ilha, controlar a margens do rio Cobade, de modo a assegurar o abastecimento aos operacionais de Catió. Ainda sob o comando de Louro de Sousa, o DFE n.º 2 participa com forças terrestres na operação Alvor, na península Gampará, em busca do quartel-general de Rui Djassi, esta península nunca tinha sido percorrida por forças militares; o relato não deixa claro o que aconteceu.

Com a nomeação de Arnaldo Schulz o Comando da Defesa Marítima da Guiné é alterado e descentralizado, criando-se quatro comandos sediados em quatro zonas distintas: Bacia hidrográfica do rio Cacheu; Bacia hidrográfica dos rios Geba, Mansoa e Corubal; Bacia hidrográfica dos rios Grande de Buba e Tombali; e Bacia hidrográfica dos rios Cumbijã e Cacine. O autor volta a desfazer-se em elogios aos fuzileiros: “Todos os movimentos independentistas só tinham medo e temor aos homens brancos ou negros, com a boina azul-ferrete pertencente aos destacamentos de fuzileiros especiais, em qualquer frente de batalha.”

E vem a seguir novos parágrafos de exaltação:
Se
“Dada a elevada preparação destes jovens combatentes, os DFE eram chamados para participarem nas operações de maior envergadura, tendo no mês de setembro de 1964 participado nas operações Touro, Hitler e Tornado, em que, nesta última, além dos quatro DFE, também participaram três companhias de cavalaria, uma de artilharia, uma de caçadores e um pelotão de paraquedistas, apoiados por duas LFG, duas LFP, oito LDM, três LDP e um ferryboat, sem, no entanto, encontrar qualquer resistência da guerrilha na zona do Cantanhez. A atuação quase permanente das forças especiais da Marinha de Guerra em toda a zona Sul, mormente na região do Corubal e Cacine, conduziu a um notório abrandamento da atividade inimiga, obrigando o PAIGC a deslocar-se para Leste e para Norte, em que os guerrilheiros do PAIGC tiveram de alterar os seus corredores habituais.”

Compreende-se que o autor tenha um elevado espírito corpo, mas os factos históricos desmentem esta gesta laudatória. Mas vale a pena continuar a acompanhar esta escrita:
“Na sequência da operação Tridente, os contactos com o inimigo continuavam a ser frequentes, pelo que havia necessidade de efetuar operações de reconhecimento no extremo sul, a ideia das operações no rio Camexibó e da operação Hitler era estancar e intersetar os corredores intervenientes da Guiné-Conacri, nomeadamente através do corredor de Gadamael. A LDM 305 entrou na foz do rio Camexibó no dia 6 de fevereiro de 1964, em fase de preia-mar com o objetivo de efetuar uma fiscalização àquele rio durante cinco dias. Para o efeito, foi reforçada com uma secção de fuzileiros da CF 3. Dois dias depois, quando se preparava para fundear a montante do rio, um dos elementos da companhia de fuzileiros apercebeu-se de um grupo numeroso de homens armados na margem direita daquele rio. Inicialmente, houve troca de palavras entre os elementos da companhia de fuzileiros e um comandante dos guerrilheiros do PAIGC, conversa que durou pouco tempo uma vez que o oficial que comandava a companhia de fuzileiros deu ordem à guarnição da lancha e aos fuzileiros para dispararem, tendo os guerrilheiros fugido para o interior da mata com baixas muito pesadas. A lancha de desembarque continuou a subir o rio Camexibó, a intenção era patrulhar todo o rio até à confluência com o rio Nhafuane, não só para certificar que comunicaria com o rio Inxanche, mas também verificar se aquelas zonas permitiriam a navegação fluvial a lanchas como a LDM 305 ou mesmo a de porte superior. No dia 29 de fevereiro de 1964, a LDM 305 iniciou a descida do rio Camexibó, sempre na expetativa de ataques dos guerrilheiros, perto das oito da noite foram atacados perto das margens do rio, sem provocar danos humanos, mais adiante foram localizadas cinco canoas, que foram destruídas. A partir do conhecimento obtido no local e das experiências adquiridas naquelas intervenções, foi decidido levar a bom porto uma nova operação, a qual teve o nome de operação Hitler, entregue ao DFE 8, sob o comando de Alpoim Calvão.”

Observa o autor que nenhuma destas intervenções foi bem-sucedida. Vamos ver seguidamente o que o autor tem para nos dizer quanto à síntese das atividades da Marinha de Guerra entre 1964 e 1968.

Ilustração do livro de José Maria Monteiro

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 14 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,~

Philip Havik já com o estatuto de reformado, prestou e está a prestar um relevantíssimo trabalho em prol da cultura portuguesa, e em diferentes domínios. Recordo o trabalho que ele fez com o António Estácio, de saudosa memória, sobre os chineses em Catió; este nosso confrade António Estácio que escreveu sobre Nha Carlota e Nha Bijagó, duas senhoras de grande peso da sociedade guineense, crioulas muito apreciadas e com grande poder comercial. Achei por bem publicar aqui algumas intervenções que ele deixou em trabalhos e dizer que quando quiser intervir no nosso blogue é só bater à porta, não precisa de pedir licença, aqui a Guiné é soberana, pelo amor que lhe dedicamos.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1)


Mário Beja Santos


Vamos a partir de hoje publicar um conjunto de trabalhos assinados por um distintíssimo investigador, há muito ligado a Portugal, com ênfase na medicina tropical e em estudos orientados para a Guiné colonial. 
Um pouco do seu currículo:

Philip J. Havik (doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Leiden, Países Baixos) foi investigador principal do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade NOVA de Lisboa. 

Trabalhou como investigador na Research School for African, Asian and Amerindian Studies (Universidade de Leiden, Países Baixos) e no Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) em Lisboa. Ensinou antropologia colonial e pós-colonial na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa.

Foi Research Fellow no African Studies Centre (ASC) da Universidade de Leiden e investigador associado do Centro de Estudos de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Autor/coautor de mais de 80 publicações, incluídas dezenas de artigos em revistas e capítulos de livros.

O trabalho a que hoje vamos fazer referências intitula-se Matronas e Manonas: Parentesco e Poder Feminino nos Rios da Guiné (Século XVII)

Começa por sumariamente historiar a condição da mulher, o seu escasso poder de decisão fora do meio doméstico e como a partir da abertura do espaço atlântico e com a presença de africanas ativas em todo o tipo de serviços em cidades como Lisboa e Sevilha, verdadeiras bestas de carga, se deu uma barafunda de géneros que foi aproveitada por mulheres que souberam criar espaços de manobra ao nível do trabalho, da religião e em rituais de toda a ordem. Seja como for, o desempenho da mulher nas sociedades africanas foi relegado para dois domínios fundamentais: a reprodução e a força de trabalho. Daí a herança e a identidade do grupo passarem geralmente pela linha feminina.

Quando a África Subsariana entrou no imaginário Ocidental, o comércio de escravos já era bem conhecido, mediado exclusivamente por berberes e árabes no espaço do Mediterrâneo. Deu-se depois a interação afro-atlântica, as notícias deste continente começaram progressivamente a ocupar um lugar na realidade em que as lendas de monstros e feras do Mar Ignoto se transformaram em ouro, marfim e outras preciosidades. 

Escravas africanas inundaram cidades europeias, no continente africano as relações afro-atlânticas produziram povoações mercantis, assistiu-se, mesmo que superficialmente, à cristianização dos quadros das redes comerciais, falava-se em cristãos e gentios. Estes cristianizados, descendentes afro-atlânticos, nascidos nas capitanias ou presídios, elevaram a importância da mulher, que nos chamados rios do Guiné do Cabo Verde, que passou a ter um papel chave nestes ambientes comerciais, assimilando diferentes papéis como curandeiras e conselheiras e mães dos “filhos espúrios”. 

A mulher passou a ser a garantia de sobrevivência em terras alheias, era um mundo com repartição de tarefas que se veio a estruturar nas redes comerciais da Costa Ocidental Africana a partir do século XVI e até fins do século XIX; e, claro está, veio a ter fortes incidências no século XX em que a Nhá ou Sinhara substituía, como Mindjer Garandi, o comerciante, por qualquer razão ausente.

 Philip Havik estuda a figura de Bibiana Vaz de França, nascida em Cacheu, membro de um clã poderoso da localidade. Ela é assumidamente uma das poucas vozes femininas que se fazem ouvir no universo limitado da palavra escrita. Cacheu era então um centro importante da rede comercial atlântica do tráfico de escravos, povoação elevada a vila em 1605; foi fundada por tangomaos, ou seja, aqueles que negociavam por conta própria, em colisão frontal com a política do monarca. Cacheu era um pequeníssimo entreposto de onde saiam aproximadamente 3 mil escravos por ano.

Um bom número de comerciantes tinha ascendência sefardita e cabo-verdiana, daí a designação pejorativa de tangomaos. Quando, por decisão régia, se criaram companhias de comércio com pretensões monopolistas, como a Companhia de Cacheu e Rios de Guiné, em 1676, o meio local recebe-o muito mal, os moradores iniciais denunciar os desvios e a prepotência de notáveis nomeados por Lisboa. 

O clã dos Vaz de França e dos Gomes eram muito influentes em Cacheu, de modo que o casamento de Bibiana com Ambrósio Gomes, este com ascendência sefardita e africana, trouxe vantagens mútuas. Ambrósio ocupara o lugar de capitão-mor durante alguns anos, e com o fim do contrato da companhia, Bibiana, um seu irmão e sobrinhos, constituíram um forte núcleo local, era uma rede de negócios que se estendia do Rio Gâmbia até à Serra Leoa. Quando o conselho Ultramarino deliberou que Bibiana devia fazer partilhas, ela já havia colocado maior parte dos bens fora do alcance do novo capitão-mor. Atenda-se agora a estas observações de Philip Havik:

“O novo comandante da praça de Cacheu, seguindo à letra o antigo contrato da companhia, proibiu a vinda de embarcações estrangeiras. A revolta do povo não tardou: em 25 de março de 1684, prenderam o dito capitão à saída do hospital enviando-o para Farim, para uma casa de Bibiana, onde permaneceu por espaço de 14 meses. Bibiana encabeçou o movimento de revolta, ela, seguida pelo povo ‘cristão’, decidiram não mais admitir capitães do reino nem das ilhas de Cabo Verde, nem portugueses negociando com o gentio, mas só com moradores da praça. Foi um duro golpe para os interesses dos portugueses; os moradores de Cacheu fizeram muitas petições contra os efeitos nefastos resultando-se da criação da comissão da companhia majestática, e passar a negociar n mato, esquivando-se a pagar direitos aos cofres reais – na realidade os bolsos dos capitães-mores e da companhia. Cacheu não era mais do que um entreposto empobrecido, desprovido de contribuintes e fontes de receita, cuja administração se encontrava no meio hostil, assolado, judeus, crioulos e gentios.”

Deu-se a reação das autoridades em Lisboa, Bibiana, o irmão e outro cúmplice no levantamento foram presos da cadeia da Ribeira Grande. O ponto curioso da historiografia anda à volta do facto de só muito tarde se ter vindo a conhecer os tramites desta sublevação. Presa em Cabo Verde, doente e iletrada, enquanto as autoridades procuravam secretariar e apreender os bens de Bibiana e família, ela e o irmão receberam um perdão real, a Corte, ciente da situação catastrófica do comércio português na costa receava perder ainda mais influencia. Daí a reabilitação de Bibiana. 

Mas havia outros pontos a favor dela. Depois de reabilitada, em sinal de agradecimento, ofereceu-se para construir um forte em Bolor, local estrategicamente situado na entrada do rio Cacheu, deu como garantia a sua pessoa e todos os seus bens.

Em jeito de conclusão, o investigador recorda o mundo de intriga que acompanhou o caso Bibiana Vaz, mulher africana, cristã, viúva, comerciante, armadora/parente de linhagens da terra dos donos di chon, ela liderou uma revolta contra uma autoridade alheia.

Enfatize-se um outro ponto que o autor chama a atenção: “Apesar das múltiplas petições feitas pelos moradores de Cacheu contra os efeitos nefastos resultantes da criação da companhia e contra e prepotência dos capitães-mores que chamaram todo o comércio para sim, não houve, por parte da Metrópole nem das ilhas, intervenção alguma. A resistência dos moradores ficou patente no facto da maioria andar a negociar e a morar no mato, esquivando-se de pagar direitos aos cofres reais.”

Voltando a comentários de Philip Havik:

“O governador de Cabo Verde e os capitães-mores saem-se mal desta história, muitas vezes agindo com base em raciocínios mesquinhos e vingativos. Cúmplices da crise em que mergulhou o tráfico português ao longo dos anos, as autoridades de Lisboa e da Ribeira Grandes, tinham perdido todo o controlo sobre a situação. A fraqueza da posição portuguesa no comércio da Costa da Guiné não permitia mais que o perdão de Bibiana".

Este artigo vem publicado em:
https://www.academia.edu/42757187/Matronas_e_Mandonas_parentesco_e_poder_feminino_nos_rios_de_Guin%C3%A9_s%C3%A9culo_XVII_

Nha Bijagó (1871-1959)
Nha Carlota (1889-1970)
Arredores de Cacheu, ida à fonte, 1900
O Forte de Cacheu e a estátua de Diogo Gomes, mutilada
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Nota do editor

Último post da série de 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26481: Notas de leitura (1771): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26481: Notas de leitura (1771): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
O historiador Hermann Kellenbenz faz um tipo de relatório de situação sobre aspetos histórico-económicos da expansão ultramarina portuguesa, não emite juízos quanto a um sugerido balanço. Reconheça-se o interesse pelo que escreve quanto a formas de povoamento, de presença portuguesa em fortalezas e postos de África, a natureza do comércio oriental, as etapas da colonização brasileira, o modo como os portugueses influíram no comércio mundial devido ao açúcar, às especiarias, ao ouro, às madeiras e ao comércio negreiro. O autor observa a falta de recursos humanos, e daí o abandono das praças do Norte de África, onde a beligerância era constante e os proventos baixos; como a presença portuguesa em África foi alterando as redes de negócio do ouro; as mudanças operadas após o descobrimento da rota do Cabo que trouxe uma cascata de preciosidades a Lisboa; e o bom exemplo da pimenta que era distribuída por toda a Europa, se bem que Portugal não possuísse o monopólio das especiarias e muito menos dos metais preciosos. Enfim, uma estimulante análise da vertente histórico-económica dos Descobrimentos portugueses. E assim se chegou ao fim da apreciação do livro Balanço da Colonização Portuguesa, que nos suscitou a curiosidade por ter sido editado precisamente em 1975.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada, dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Lançou um projeto aliciante, o de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da expansão/colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço, estávamos no ano de 1975.

Responderam ao pedido vários historiadores e investigadores, já aqui se falou dos textos de Banha de Andrade, Frédéric Mauro, Charles Ralph Boxer e Joel Serrão. Vamos hoje despedirmo-nos com o contributo do historiador alemão Hermann Kellenbenz, intitulado Aspetos histórico-económicos da expansão ultramarina portuguesa.

Ele começa por várias interrogações: como foi possível a um país tão pequeno criar condições de povoamento nas suas possessões ultramarinas? Como foi financiada a expansão ultramarina? O que significou a expansão para a economia portuguesa? De que modo se enquadrou a expansão na economia europeia? Qual o seu significado para os territórios ultramarinos?

Procurando responder, conduz-nos às condições climático-geográficas do país, de terra pobre, com períodos consideráveis de seca e de chuva irregulares, o que pode explicar a concentração demográfica nas zonas costeiras; foi sempre permanente a escassez demográfica, apesar das conquistas feitas no Norte de África não foi possível penetrar no Norte de Marrocos, mas tudo sempre numa cadeia infindável de dificuldades, e a partir de 1541 perderam-se uma a uma as possessões conquistadas; os arquipélagos da Madeira e dos Açores eram áreas relativamente pequenas, suscitou poucos problemas, mas vieram colaborações do continente europeu e cedo se começou a utilizar a mão-de-obra escrava; os flamengos tiveram um papel importante no povoamento dos Açores e foram feitas concessões no povoamento de Santiago e outras ilhas de Cabo Verde; os povoadores que se apresentaram na Senegâmbia e S. Tomé eram descendentes dos judeus degredados; não havendo, pois, condições de povoamento intensivo e alargando-se o espaço da presença portuguesa em África e depois no Oriente, encontrou-se solução a criação de postos de apoio tanto militares como comerciais, caso de Arguim ou São Jorge da Mina; a partir de 1503, Cochim na zona orienta da Índia, tornou-se o principal reduto dos portugueses, o governador-geral Afonso de Albuquerque, o primeiro vice-rei da Índia, favoreceu a mistura de mulheres muçulmanas hindus em casamentos com portugueses.

Proposto escrever em que termos os portugueses estavam presentes no longínquo oriente, o historiador observa que a situação do Brasil era completamente diferente, recorreu-se aos sistemas de donatorias e sesmarias, os donatários eram principalmente mercadores, funcionários públicos, gente que se tinha distinguido na Índia, sem necessariamente descenderem de famílias aristocráticas. Passando para a questão do financiamento, o autor releva o espírito empreendedor dos portugueses, nomeadamente os da costa algarvia e o povo de Lisboa, chamo a atenção para a contribuição de burgueses como Fernão Gomes e Martim Anes Boa Viagem, no entanto, o financiamento dos Descobrimentos competia em primeiro plano à Coroa, e tece a seguinte consideração: “Os reis portugueses demonstraram um alto grau de inteligência acolhendo estrangeiros com capital e espírito empreendedor e dando-lhes a possibilidade de participar nos Descobrimentos.” – e refere nomes como o do veneziano Cada Mosto, o de genovês Antonio de Nola, e enumera também outros nomes de italianos e de alemães. A sede da organização da Coroa era a Casa da Índia que foi dissolvida em 1549, para facilitar a entrada de capital estrangeiro. Mas havia um senão: o aparelho financeiro da Coroa não se desenvolvera de acordo com as exigências crescentes das expedições ultramarinas – daí a dívida galopante e a incapacidade de lhe pôr termo dada a vida luxuosa que se praticava.

Qual o significado económico destas possessões ultramarinas? Ceuta rapidamente perdeu importância comercial que até aí detivera; as ilhas do Atlântico revelavam-se economicamente importantes, a Madeira fornecia madeira, urzela e peixe, o açúcar virá depois, será exportado para os mercados da Europa Central; os Açores tornaram-se produtores de cereais, exploravam a produção de tinta-pastel que era exportada sobretudo para os flamengos; Cabo Verde não se prestava muito à cultura da cana do açúcar, na Ilha do Fogo desenvolveu-se a cultura do algodão bem como a criação de gado bovino e cavalar e em ilhas inabitadas praticou-se a criação de gado caprino; em S. Tomé, em 1512, desenvolveu-se a cana açucareira, havia um total de 60 engenhos e 300 escravos; mas é importante relevar que Cabo Verde passou a ter um importante papel no comércio ultramarino português, devido ao ouro e aos escravos. Kellenbenz alarga-se na descrição deste fenómeno económico na costa ocidental africana, mas também no reino de Monomotapa, na África Oriental, aqui se adquiriu muito ouro que também vinha do longínquo oriente, de Sumatra e da Malásia. E dá enfâse ao tráfico africano de escravos, da maior importância a partir do último quartel do século XV, não deixando igualmente de mencionar o comércio da pimenta e a malagueta, mas não deixa de referir que a pimenta africana ficava muito aquém da pimenta vinda da Índia Oriental. Tece uma larga exposição sobre todo este comércio para depois mencionar o Brasil, primeiro pela exploração açucareira, com destaque para Pernambuco e Baía, depois o comércio do pau-brasil, muito apreciado em Lisboa, Antuérpia e Amesterdão.

Outra questão a responder à pergunta das consequências da expansão portuguesa na economia europeia. O autor afirma que é difícil estabelecer uma nítida separação entre a parte portuguesa e a espanhola, procura, no entanto, aferir o carregamento dos barcos e os portos a que se destinava tal carga, de Antuérpia a Danzig, e indiscutivelmente traziam novidade: “Os produtos que chegavam à Europa, as mercadorias africanas e asiáticas, alteraram completamente a antiga rota do Mediterrâneo. Os produtos vindos das ilhas do Atlântico e Brasil eram completamente novos. A importação de especiarias orientais é o setor mais interessante na rota do Cabo, alteravam-se as regras da concorrência e com o tempo o comércio no Mediterrâneo foi-se desvanecendo. E importa não esquecer que Portugal não possuía o monopólio das especiarias, Portugal era forçado a vendê-las para comprar os produtos apetecidos em África e na Ásia, acontecerá o mesmo com os nossos metais preciosos.” E daí a nova questão: como é que se verificou o domínio português na economia das regiões subjugadas: nas ilhas atlânticas houve povoamento, eram terra-virgem; nos pontos africanos era necessário apoio militar, e o autor recorda que os portugueses que vivam fora das fortalezas eram na sua maioria exilados, reclusos ou ventureiros, caso dos tangomaos na Guiné; e no tráfego de escravos faziam-se acordos com chefaturas africanas; recorda que o movimento comercial português no Índico devem ser observadas à luz da ligação com a viagem ao Oriente, era simultaneamente um sistema de alianças mas também podia envolver crueldade e intimidação; e tece considerações sobre a missionação fundamentalmente no Brasil e nalgumas parcelas do Oriente. Kellenbenz não formula qualquer juízo sobre qual o balanço da colonização portuguesa, a não ser estes tópicos de interações socioeconómico-culturais, tanto em África como no Oriente e Brasil.

Damos assim por findo um conjunto de sumulas em torno de uma iniciativa bem curiosa de se fazer um balanço da colonização portuguesa em pleno ano de 1975.

Para que conste.

Hermann Kellenbenz
Exploração açucareira no Brasil
Vista do Castelo de São Jorge da Mina, figura do século XVII, a fortaleza já está em poder dos holandeses
O tão apetecido pau-brasil comercializado por toda a Europa
Como se organizava uma missão jesuítica no Brasil, século XVII
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Notas do editor:

Vd. post de 3 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26455: Notas de leitura (1769): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 7 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26471: Notas de leitura (1770): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, a governação de Vellez Caroço, totalmente distinta das anteriores (13) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26471: Notas de leitura (1770): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, a governação de Vellez Caroço, totalmente distinta das anteriores (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
Finda aqui a digressão pelo livro de Armando Tavares da Silva, "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, foi a nossa bengala como contraponto à rotina burocrática do Boletim Official da Guiné Portuguesa. Com efeito, o Boletim Official, talvez tirando o período da governação do tenente-coronel Vellez Caroço, é meticuloso quanto à publicação dos diplomas emanados pelo Governo em Lisboa, elenca nomeações, movimento marítimo, aforamentos e concessões de terrenos, etc., etc., mas sonega-nos informações da vida quotidiana, conflitos interétnicos; é evidente que nos vamos apercebendo da gradual presença portuguesa dentro da colónia e como se está a alterar o movimento import-export, vão saíndo empresas estrangeiras, a CUF tem um papel dominante e, já mais atrás, a Sociedade Comercial Ultramarina. Sinto falta a partir de agora de uma obra que me permita o contraponto ao Boletim Oficial, usarei como recurso a História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936, de René Pélissier, mas sinto que há um vácuo entre 1928 e 1933, isto a despeito do golpe revolucionário republicano que eclodiu na Guiné entre maio e abril de 1931. A ver vamos como se poderá tapar esta lacuna.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, a governação de Velez Caroço, totalmente distinta das anteriores (13)

Mário Beja Santos

Chega à Guiné em junho de 1921, a colónia tinha estado durante um ano entregue ao secretário-geral Sebastião Barbosa, tinham-se praticado muitas irregularidades. Vellez Caroço tinha apostado em sanear a vida pública da província, faz-se acompanhar do seu sobrinho, que irá exercer as funções de seu chefe de gabinete. Prontamente inicia as visitas pelo território, reconhece que era necessário dissolver a Comissão Municipal de Bissau, o ministro também lhe propõe o restabelecimento do Conselho de Governo. Este oficial de Infantaria conheceu seguramente inúmeros desagradáveis conflitos, é firme e enérgico, anuncia publicamente que não se afastaria uma linha de cumprimento dos seus deveres, indica uma série de ligações que considera prioritárias; Brames a Cacheu, Farim e Bafatá; Mansoa a Bafatá, S. João a Buba, entre outras. É aprovada a criação da circunscrição de Cacine. Já em rota de colisão com Sebastião Barbosa, anula disposições por este tomadas, mas punha-se um problema concreto relativamente à concessão de terrenos, o governador temia as especulações.

Os problemas não se ficaram por aqui: o ex-governador Carlos Pereira havia requerido a concessão por aforamento de 25 mil hectares de terreno na Costa de Baixo, os indígenas protestaram contra esta concessão, nasce processo, o ministro não vê condições para anular a decisão, o governador não desanima, sempre que suspeita de indícios de corrupção manda fazer sindicâncias, não faltou uma sindicância ao coronel Quinhones de Matos Cabral, é suspenso Sebastião Barbosa, vai decorrendo a moralização da vida pública, o governador tem amigos e inimigos, a intriga chega a Lisboa, o ministro resiste e congratula-se com a ação governativa.

Em agosto de 1922, Vellez Caroço elabora o seu primeiro relatório, exprime a sua preocupação com o saneamento da província, já que altos funcionários eram acusados de faltas que iam desde o abuso de autoridade até aos crimes de peculato. Lembra o ministro que há uma tentativa surda de afastamento da colónia da esfera da influência portuguesa. A campanha de difamação contra o governador chega ao Parlamento e à imprensa de Lisboa. Nesse mesmo primeiro relatório, sempre pondo o seu lugar à disposição do Governo, Vellez Caroço fala num período de estabilidade, lembra que era preciso fazer um regulamento do trabalho indígena que estabelecesse um mínimo de trabalho para cada indivíduo. Não poupando a verdade dos factos, o governador afirma que a província se encontrava enxameada de empregados recrutados em Cabo Verde, com pouquíssimas habilitações.

Outros escolhos pendiam sobre a Guiné, a situação financeira, a questão das cambiais e o imposto de palhota. O ministro decidira que fosse adotado na colónia o estabelecimento de uma sobretaxa a que ficariam sujeitas as mercadorias exportadas; tal valor seria devolvido se dentro dos dez dias subsequentes o exportador entregasse na agência do BNU todo o valor, em moeda estrangeira, da sua exportação ou reexportação. Cresceu o descontentamento, o comércio da Guiné sentia-se altamente prejudicado com as disposições deste decreto, dizendo que havia uma escandalosa proteção à CUF. Logo no início de 1923 se verificou que o BNU não tinha numerário suficiente para permitir as transações. O problema vai-se agudizando, em agosto de 1924 Vellez Caroço torna a pedir providências, mantinham-se as dificuldades em fazer transferências para Lisboa, a agência do BNU não tinha recebido ordens de acesso para as fazer. Na ausência de moeda, o governador foi obrigado a procurar meios de aumento das disponibilidades, aumentou a taxa de imposto de palhota, mas foi manifestamente insuficiente. Novas cartas ao Governo, Vellez Caroço pede a demissão e foi-lhe dada, o governador regressa amargurado, em Lisboa sucedem-se os governos, Vellez Caroço acaba por ser nomeado de novo governador, quando chega, ele que se referia aos seus primeiros anos da Guiné como de paz, chega e encontra tumultos para resolver. Tudo começa na região de Nhacra, é decretado estado de sítio, o governador avança para o local dos incidentes com cem homens e peças de artilharia, a população apresenta-se, mas é mantido o estado de sítio, as operações só acabam dias depois.

Em 1925, nova operação em Canhabaque, bem-sucedidas, pelo menos temporariamente.

Esta ação de fomento do governador é notória, são melhoradas as estradas, é inaugurada uma linha telegráfica Farim – Kolda – Dacar. São tomadas medidas de fomento educativo, é criada uma escola noturna de ensino primário, retificam-se fronteiras e reconstroem-se antigos marcos que se achavam danificados. Graça Falcão continuava a ser uma figura controversa; demitido o Exército, mantivera-se ativo na vida da província, propusera-se como candidato a deputado pela Guiné, não tem sucesso mas consegue uma carreira na administração local, conhece castigos, transferências, inquéritos, sai sempre ilibado. Tavares da Silva dá nota da crise fiduciária em 1925, não há possibilidade de manter o equilíbrio orçamental e o delegado do BNU em Bolama recebera ordens da sede para não continuar a fazer transferências para a conta da colónia no Ministério, por falta de cobertura de Lisboa porque tal medida significativa a paralisação dos fornecimentos e dos pagamentos da colónia.

A tensão vai crescendo entre Bolama e Lisboa, o BNU fez a proposta segundo a qual o comércio exportador obrigava-se ao depósito na colónia de 50% do valor da exportação, mas não chegava o dinheiro para pagar os vencimentos aos funcionários. Em Lisboa sucediam-se alterações ministeriais umas atrás das outras. Vellez Caroço novamente pede a demissão, as dificuldades financeiras com que se deparava a província foram aproveitadas pelos adversários de Vellez Caroço, lançaram-lhe novos ataques. Em Lisboa, o jornal O Século também o destrata, refere-se que tinha mandado abrir sem plano nem critério estradas pessimamente construídas e por indígenas que ainda não tinham sido renumerados, a CUF apostava na saída do governador. Ele vem a Lisboa, dirige ao ministro uma exposição relatando todo o problema das transferências, para obviar as reclamações do comércio, o governador propõe que o Governo da metrópole ceda 50% das cambiais provenientes da exportação e reexportação da Guiné; publica-se uma portaria em que o Governo dispensa chamar a si as cambiais correspondentes aos produtos reexportados, satisfazia-se assim a Casa Gouveia.

Tudo isto ocorre nas vésperas do 28 de maio, o comércio de Bolama pede insistentemente ao Governo o regresso imediato do “honesto de Vellez Caroço”, segue o pedido da Câmara Municipal de Bolama, em 23 de junho Vellez Caroço reassume o Governo e elabora um diploma de acordo com o que tinha sido estabelecido com o Governo Central, procura-se uma solução para a questão das transferências. A associação comercial de Bissau manifesta-se em oposição ao governador, este discute a situação com o comércio exportador, os comerciantes de Bolama e Bissau estão divididos. Continua a faltar numerário na circulação da Guiné. Tudo acabará com a verdadeira exoneração de Vellez Caroço em dezembro de 1926.

O trabalho de Tavares da Silva termina com a referência de que Vellez Caroço regressado a Lisboa envolve-se nas sublevações militares de fevereiro de 1927, vindo a ser preso e deportado para a Angola. Resta o epílogo. Vale a pena reter alguns parágrafos.

“As dificuldades financeiras da Guiné e a falta de cambiais continuariam ainda por vários anos a afetar o comércio, sendo o de menor dimensão o mais prejudicado. Igualmente as atividades de fomento, que tiveram um assinalável incremento durante a governação de Vellez Caroço, iriam ser afetadas, assim como os serviços de administração local. Porém, a partir de meados dos anos 30 as contas da colónia passaram a apresentar saldos positivos, aliviando as dívidas ao exterior.
A Casa Gouveia, onde a CUF tinha uma participação, ia adquirindo uma posição cada vez mais dominante no comércio local, quase monopolizando a atividade exportadora e comercial da província. Desde a pacificação da ilha de Bissau com a campanha de Teixeira Pinto, em 1915, que a província vivera sem que operações militares de envergadura ocorressem, excetuando a campanha de Canhabaque de Vellez Caroço. Novas operações só vêm a ter lugar em 1933 na região dos Felupes, prolongando-se pelo ano seguinte; e, em 1935-l936 ocorre uma outra campanha nos Bijagós, também na ilha de Canhabaque. Era, porém, a última grande operação militar na Guiné. A partir desta, e terminada a Segunda Guerra Mundial, a Guiné viverá um período de paz que lhe vai possibilitar notável desenvolvimento, sobretudo sob o Governo de Sarmento Rodrigues.”


Armando Tavares da Silva
Bilhete-postal de 1900
Bilhete-postal de 1900
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Notas do editor:

Vd. post de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 3 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26455: Notas de leitura (1769): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26455: Notas de leitura (1769): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Um belo texto, uma visão singular numa síntese da história da expansão portuguesa e o que nela houve de peculiar e marcante para a nossa identidade. Dir-se-á que são observações consabidas pelas razões da expansão: quando, em tempos medievais, a Europa se guerreava e nós com as fronteiras definidas e ambições no Norte de África, aquela dinastia de Aviz possuía uma nova nobreza de origem burguesa-popular, aberta à inovação e à curiosidade, nascia um projeto nacional entre o Meditterãneo e o Atlântico, as expedições henriquinas foram o gatilho para se desencravar o mundo; a importância de Lisboa e a carreira da Índia, o desabrochar de um pensamento científico e as expedições à procura de mais mundo, daí Garcia da Orta, Fernão Mendes Pinto, os negócios no Extremo Oriente; e depois a exaustão, a inversão do Índico para o Atlântico, o Brasil do açúcar, do ouro e das pedras preciosas, a consolidação do Antigo Regime e a recusa da modernidade; com a independência do Brasil, a "África", ou o Terceiro Império, exaltado por sucessivas gerações, teimosamente alheado às mudanças de rumo, cuja expressão máxima foi o antigo colonialismo. Este belo texto intitulado Políptico, escrito em janeiro de 1975, tece considerações, hoje compreensivelmente extemporâneas, mas este professor que foi exemplar não prescindiu de nos convocar para um esforço enorme no campo da educação para que o país se transformasse numa escola de trabalho, de iniciativa inteligente e responsável, de efetivo amor ao próximo, não ao nível da palavra, mas da mão fraternalmente estendida. Meio século depois, a convocatória está de pé.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada, dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Lançou um projeto aliciante, o de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da expansão/colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço, estávamos no ano de 1975.

Responderam ao pedido vários historiadores e investigadores, já aqui se falou dos textos de Banha de Andrade, Frédéric Mauro e Charles Ralph Boxer, damos hoje a palavra a Joel Serrão, o seu texto é singularíssimo, intitula-se Políptico, subdividido em cinco capítulos. O 1.º intitula-se A Alba, e escreve assim:

“Era uma vez um pequeno povo de camponeses, pescadores, mesteirais modestos, e negociantes, fixado no extremo ocidental da Europa, onde a terra se acaba e o mar começa… País-finisterra, o seu litoral condicionava-o, direta ou indiretamente, impelia-o para os rumos históricos que viriam a ser os seus. O vai-e-vem das primeiras cruzadas dinamiza os pequenos portos e permite a criação de um modo de vida nacional, centrado no litoral, que será um poderoso fator de consciência coletiva, desejosa de talhar um espaço de viável para a nacionalidade que assim se esboçava.”

E lá se foi definindo o espaço de Portugal, ganha importância o mediterrâneo e por aqui os portos algarvios e os de Lisboa e Porto, assim nascia, talvez modestamente uma placa giratória entre gente das repúblicas italianas, Biscaia e até à Flandres, a seu tempo os nossos barcos irão até à Inglaterra e mesmo às águas frias do Labrador. A Europa vive tensões sociais agudíssimas, não só a guerra do Cem Anos, rivalidades e conflitos entre as cidades italianas e há mesmo guerras entre os povos eslavos. 1383-85 trouxe a redefinição de Portugal no seu estatuto de Estado independente, surgiu uma nova nobreza de origem burguesa-popular, e com ela a avidez de ocupar posições no mediterrâneo. Assim se chegou a Ceuta e logo a seguir a Madeira. Abria-se assim, com conhecimentos de ciência náutica, a aventura de nos embrenharmos no Atlântico.

Novo capítulo, intitulado Meio-dia, enceta-se neste lento e cuidadoso apalpar do terreno a procura do encontro e do achamento que culminará com a viagem de Vasco da Gama e a sua chegada a Calecute. Portugal está na vanguarda do domínio das rotas atlânticas, aqui circulam ouro, escravos, açúcar, malagueta, os veleiros portugueses devassam as paragens do Índico e dos mares da China e do Japão, a chamada carreira da Índia atrai os negociantes a Lisboa. 

Mas que lição tirar desta gesta tão aventureira? 

“Nem Portugal enriqueceu com o monopólio da rota do Cabo nem os povos e as civilizações orientais beneficiaram coisa que se visse com a presença ali quer de portugueses, quer de holandeses e ingleses.“ 

Joel Serrão cita O Soldado Prático de Diogo Couto e mesmo Garcia da Orta, questiona as razões porque abortou a originalidade do renascimento português, esse começo sem conclusão, é um Portugal que vai à frente da expansão europeia, rapidamente fica exaurido, mas ainda não é o fim da história.

E estamos no 3.º capítulo, intitulado Tarde. Pequeno país, população rara, máquina comercial primitiva. E em meados do século XVI assiste-se a uma viragem estrutural, uma translação do centro de gravidade do império português para o Atlântico, polarizado pelas terras brasileiras.

“Enquanto o Império Oriental desfalece, a colonização do Brasil inicia-se e prossegue: em 1536, as capitanias de terra, e em 1549 a criação do Governo geral, com sede na Baía de Todos os Santos, é a mudança.” 

E sem esta mudança, que futuro poderia ter tido Portugal com a desanexação de Espanha, em 1640? O Brasil vai desempenhar um papel fundamentalíssimo: o grande comércio internacional português de então principia na colónia; e a indústria, especialmente na segunda metade do século XVIII, são os horizontes coloniais que ou a estimulam ou a limitam. E geram-se sentimentos-forças com marca indelével: saudade do passado de glórias orientais, a eficácia da Contrarreforma, as frotas de açúcar e de ouro sulcam o Atlântico, a recusa portuguesa da modernidade, é por arrastamento que o país segue para a contemporaneidade, mas o pensamento liberal é o ar do tempo: os EUA libertam-se do jogo colonial em 1776 e as certezas de estabilidade serão abaladas pela Revolução Francesa.

Novo capítulo, Sol poente, a Corte no Brasil em 1807 irá acelerar o processo de autonomia da colónia, o Reino fica colocado numa mais serrada dependência inglesa. E quando chega a independência do Brasil, homens como Mouzinho da Silveira entendem que a única opção que restava era a de revolver de alto a baixo a estrutura do Antigo Regime. O império português não ficara ainda completamente liquidado. Restava-lhe, além da presença mais ou menos simbólica no Índico, a “África”, até então pouco mais que manancial de escravatura. A primeira metade do século XIX será dramática para o nosso desenvolvimento socioeconómico; então o país é empurrado para a “África”, sucedem-se viagens de exploração, campanhas de ocupação militar, entraremos na Primeira Guerra Mundial com vista a conservar o património histórico africano. E a dependência da economia metropolitana, relativamente ao capitalismo estrangeiro, repercutiu-se na exploração de Angola e Moçambique; e vieram os ventos da história, Portugal fechava-se ao mundo, e assim aconteceu o termo do longo dia que, nos entrecruzados rumos das civilizações, coube a Portugal assumir.

Derradeiro capítulo, na noite, esperando, e Joel Serrão cita o poema “Prece” do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, que assim começa:

“Senhor, a noite veio e a alma é vil./Tanta foi a tormenta e a vontade!/Restam-nos hoje, no silêncio hostil,/o mar universal e a saudade”

Depois de se viajar há cinco séculos pelas sete partidas do mundo, regressava-se a casa, acabavam-se os Brasis e as Áfricas. E Joel Serrão volta a questionar:

“Valeu a pena ter esse povo partido, há séculos, para as terras de além-mar? Em boa verdade, não há resposta pertinente para tal pergunta, destituída de sentido em termos de compreensão histórica. O que importa, isso sim é desmontar, criticamente, os mecanismos de toda a ordem – desde os socioeconómicos aos mentais e culturais – que condicionaram dado trajeto histórico. É que só é possível enterrar o passado compreendendo-o e explicando-o; e tal tarefa, em grande parte ainda por levar a efeito, se exigem árduo trabalho e adequada preparação científica, não dependerá menos do projeto de futuro que, desde já, sejamos capazes de ir formulando, assumindo-o.”

E Joel Serrão tece considerações para as prioridades que entrevia, tem pouco sentido aqui as enunciar, passado meio século, ele põe como imperativo o desafio permanente na educação para termos um país de iniciativa inteligente e responsável, de efetivo amor ao próximo, não ao nível da palavra, mas da mão fraternalmente estendida. E cita em jeito de despedida os dois últimos versos do poema “Prece”:

“E outra vez conquistemos a Distância -
Do mar ou de outra, mas que seja nossa”


Falta-nos, por último, uma referência ao historiador Hermann Kellenbenz e ao seu artigo intitulado “Aspetos histórico-económicos da expansão ultramarina portuguesa”.

Joel Serrão (ao centro) no quadro de Nikias Skapinakis, Tertúlia, 1960
Vasco da Gama perante o Samorim de Calecute, por Veloso Salgado, pode ser visto no átrio da Sociedade de Geografia de Lisboa
Terreiro do Paço e a Ribeira das Naus, imagem anterior ao terramoto
Barra de ouro com origem no Brasil, século XVIII
Prisioneiros de guerra portugueses, Primeira Guerra Mundial, imagem dos arquivos alemães

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 27 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26432: Notas de leitura (1767): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Desde a governação interina de Manuel Maria Coelho, em 1917, até à chegada de Velez Caroço, em 1920, parece que a Guiné está a sofrer um enguiço, carências, desacatos, medidas de governação contraditórias, rebeliões, autos de vassalagem de curta duração, uma Carta Orgânica da Guiné, aprovada, depois revogada, depois reposta com emendas; de território Felupe aos Bijagós, não param as tensões. Parece que a Guiné é espelho do que se vive na metrópole, onde se sucedem os governos, há o golpe de Sidónio Pais, que acabará assassinado no final do ano de 1918. O pomo das grandes discórdias passa por Canhabaque, os Bijagós resistem, submetem-se e voltam a rebeliar-se; o major Ivo Ferreira, que sucedeu a Manuel Maria Coelho, não combate mas manda combater, mas chama a si o resultados, zanga-se com o encarregado do Governo, Josué d'Oliveira Duque volta à governação, sucede-lhe o capitão Sousa Guerra, os órgãos legislativos e administrativos estavam praticamente paralisados. Abdul Indjai é destituído de régulo do Oio, fez tantas e tão poucas que se tornou uma criatura insuportável. As coisas vão mudar de feição, chegou o tenente-coronel Velez Caroço, vai procurar pôr a casa em ordem, como vamos ver.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12)

Mário Beja Santos

Não é demais insistir que este poderoso acervo documental organizado por Armando Tavares da Silva nos ajuda a compreender este período histórico da I República e que serve de excelente contraponto ao Boletim Official da Província da Guiné Portuguesa, no que este é omisso no campo sociopolítico económico e cultural. Voltemos a 1917, Manuel Maria Coelho foi exonerado e na mesma data foi nomeado o tenente-coronel Carlos Ivo de Sá Ferreira, este pretendeu nomear para secretário-geral o tão problemático Graça Falcão, o ministro das Colónias Ernesto de Vilhena opôs-se, quem veio para ocupar o cargo foi Sebastião Barbosa, uma presença regular na administração. O novo governador desloca-se a Canhabaque, faz alterações nos dois postos militares existentes, envolve-se depois na constituição de um comando militar em S. Domingos, mas o governador, face ao agravamento da situação dos Bijagós aqui regressa, é recebido a tiro no posto de Bini, irá nomear o alferes Alberto Soares para comandante do posto militar de In-Orei, quando este ali chega foi confrontado com uma epidemia de beribéri e um inimigo fortemente hostil. Quem com ele colabora é Abdul Indjai, há perdas num violento combate, só em dezembro os rebeldes vão desistir dos seus atos de guerra. Armando Tavares da Silva dá minuciosamente conta das operações dos Bijagós que levaram ao ato de vassalagem do povo de Canhabaque.

É Ivo Ferreira que eleva Bolama à categoria de cidade, aprova os estatutos de uma nova associação do tipo recreativo, o Club Fraternidade de Farim, manifesta-se interessado no projeto de um caminho de ferro partindo de Bolama, ou pelo menos S. João, seguindo por Bafatá até à fronteira norte. É neste intervalo de tempo que ocorre a revolução de 5 de dezembro de 1917, um golpe chefiado por Sidónio Pais, forma-se uma junta revolucionária, a pasta das Colónias passa para Tamagnini Barbosa. Ivo Ferreira fará uma extensa visita a vários pontos do interior, fica como encarregado do Governo o coronel Guedes Quinhones, Ivo Ferreira demora-se na região do Geba pela necessidade de resolver várias questões da política indígena, caso do régulo Monjur, do Gabu, e Abdul Indjai, do Cuor. Entendeu-se dividir o território de Geba em pequenos regulados e destituir Abdul Indjai do Cuor. Regressado a Bolama, o governador envolve-se em atritos com Guedes Quinhones. Entretanto, o novo ministro das Colónias nomeou novo governador o coronel Josué d’Oliveira Duque. O autor observa a situação problemática vivida:
“Tinha sido atribulada e sinuosa a presença de Ivo Ferreira na Guiné. Sobrepusera-se e ultrapassara no tempo a governação interina de Manuel Maria Coelho, e correspondera a um período de quase dois anos em que o governador efetivo, Andrade Sequeira, se mantivera em Lisboa, sem ser demitido e sem mesmo pedir a demissão. Como resultado primeiro da sua governação, Ivo Ferreira, que não tomara parte em qualquer operação militar, ufanava-se, com a ocupação de Canhabaque, de ter conseguido a pacificação completa da Guiné. Mas teria esta, de facto, sido atingida?”

Oliveira Duque chega à província, um decreto revogou a Carta Orgânica da Guiné, são tomadas disposições legais para a vida administrativa e financeira da colónia. Em outubro de 1918 realiza-se uma operação contra os Felupes de Varela; são tempos de uma apreciável concessão de terrenos, assiste-se a um crescente aumento da população de Bissau, devido à afluência de numerosas companhias nacionais e estrangeiras, o que motiva o novo ciclo de urbanização de Bissau. A agitação continua em Portugal, culmina com o assassinato de Sidónio Pais em dezembro de 1918. Tamagnini Barbosa para a presidente do ministério, afasta da Guiné Oliveira Duque, virá a ser nomeado governador Sousa Guerra, capitão de Infantaria.

Um dos acontecimentos mais marcantes de 1919 é a campanha contra Abdul Indjai, sucediam-se as queixas pelas suas extorsões, raptos, pilhagens descaradas. Desde a chegada de Oliveira Duque que era reconhecida a inconveniência de Abdul Indjai continuar no regulado do Oio, segue-se um período de elevada tensão que o autor descreve ao pormenor, seguir-se-á a deportação de Abdul para Cabo Verde, daqui o antigo régulo do Oio fará exposições ao ministro das Colónias, irá morrer na cidade da Praia, em junho de 1921. Também em 1919 é declarada em vigor a Carta Orgânica da Guiné, mas com alterações, nomeadamente tendentes a restringir a possibilidade de os governadores alterarem as Cartas Orgânicas.

Não obstante a contínua sucessão de Governos na metrópole, Sousa Guerra mantém-se no Governo da Guiné e manifesta a sua preocupação com o desenvolvimento, escrevendo mesmo ao ministro que devia ser feito o aproveitamento das riquezas da Guiné, fez propostas de criação de colónias agrícolas com o fim de repovoar o Rio Grande através de concessões gratuitas a colonos europeus e cabo-verdianos, e a demarcação de reservas territoriais para os indígenas, em regime de culturas obrigatórias, com prémios pecuniários e aquisição de reprodutores para melhoria da pecuária. Sousa Guerra também fez alteração da divisão administrativa. Face à carestia de vida aumentou os vencimentos do funcionalismo, os critérios não terão sido os melhores, houve greve, aumentaram as taxas fiscais, houve que fazer alterações ao orçamento, pensou-se mesmo em revogar as portarias que tinham alterado os vencimentos, depois de muitas peripécias a situação ficou esclarecida com a aprovação dos vencimentos dos funcionários. Sucedem-se os Governos na metrópole, negociantes e proprietários de Bissau enviam telegrama pedindo ao ministro que mantivesse Sousa Guerra no Governo da província, mas ele foi exonerado em novembro de 1920, Sebastião Barbosa volta novamente a ser Encarregado do Governo. Entrara-se num período ziguezagueante, a situação só ficará esclarecida em junho de 1921 com a nomeação do tenente-coronel de Infantaria Jorge Frederico Velez Caroço.

Como se fará referência a propósito do Boletim Official da Província da Guiné, Velez Caroço tem estratégia militar e administrativa, procurou pôr em funcionamento os órgãos legislativos e executivos da colónia, anulou várias nomeações que Sebastião Barbosa tinha feito para os Conselhos Legislativo e Executivo; começa a visitar o território, para se inteirar da situação nas principais circunscrições. Observa a autora: “Devem ter sido inúmeros, importantes e desagradáveis os conflitos que Velez Caroço veio encontrar entre o funcionalismo nos diversos locais que já visitara, pelo que se vê na necessidade de mandar publicar uma portaria em que lembra as palavras que tinha proferido no ato de posse. Nela afirmava que, admitindo conflitos entre os funcionários por diferenças de critério ou erradas apreciações dos atos de serviço, não tolerava o uso de uma linguagem despejada ou o emprego de termos injuriosos". E acrescentava que a correção e porte exigia ao funcionalismo era extensivo às relações sociais e ao convívio com as outras classes. Ficando clara a maneira como o governador encarava este problema de ordem, reafirmava que não se afastaria uma linha do cumprimento dos seus deveres, aplicando sem tergiversar o rigor dos regulamentos.

Armando Tavares da Silva
Tenente-coronel Velez Caroço
Abdul Indjai
Selos da Guiné Portuguesa de diferentes períodos
Guiné Portuguesa, aldeia Mancanha, bilhete-postal de 1910
Bissau, um trecho da Avenida, bilhete-postal, 1920
Rua General Bastos, Bissau, 1920

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 24 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26421: Notas de leitura (1766): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, os acontecimentos posteriores à campanha de Teixeira Pinto, 1917-1919 (11) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26432: Notas de leitura (1767): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (3) (Mário Beja Santos)