
Queridos amigos,
Não surpreendo ninguém quando escrevo, na esteira dos comentários aqui expostos por Philip Havik, que naquelas duas primeiras décadas do século XX a Guiné não era ainda propriamente uma colónia, as tensões eram profundas, havia grupos constituídos, interesses instalados poderosíssimos. Haverá, no entanto, quem se mostrará estupefacto com a leitura que Havik faz do peso cabo-verdiano na Guiné, e certamente determinante no comércio e na administração, merecendo das populações nativas uma desconfiança e uma crescente hostilidade. Não será por acaso que o investigador aludirá à referência de que estas tensões irão pesar no período da luta pela libertação, procurava-se por parte dos guerrilheiros alterar completamente uma história de longa duração de hostilidade, viu-se que o quadro ideológico vitorioso, onde pesavam os cabo-verdianos, foi de curta duração. Toda esta leitura que o investigador faz, rigorosamente documentada, é suscetível de introduzir um elemento novo no estudo da Guiné colonial e pós-independência.
Um abraço do
Mário
Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
As turbulentas duas primeiras décadas na Guiné, ainda é difícil falar dela como colónia (6) – 1
Mário Beja Santos
Na publicação Caminhos Cruzados em História e Antropologia, Imprensa de Ciências Sociais, 2010, Philip Havik publicou o ensaio Esta ‘Libéria Portuguesa’: mudanças políticas e conflitos sociais na Guiné (1910-1920), lança um olhar esclarecedor sobre uma colónia que ainda não o era, num tempo em que na própria sociedade portuguesa havia quem opinasse que se devia despachar território tão incómodo, ou entregá-lo a empresas comerciais, com direitos de exclusividade, de modo a não trazer mais inquietações ao erário público. Havik dá-nos um contexto de uma sociedade em permanente tensão, uma conflitualidade que era aproveitada não só por potências estrangeiras, mas pelos interesses económicos instalados.
A cultura do amendoim merecera rasgados elogios, parecia Sol de pouca dura devido às guerras entre sociedades africanas, particularmente no Forreá. As casas de comércio criticavam a intervenção militar, ainda por cima não se traduziam em ganhos territoriais. Quem administrava ou recebia a incumbência de estudar a Guiné punha sempre no papel que era preciso reorganizar tudo antes que as nações poderosas tomassem conta do território. A França chegou mesmo a admitir que a compra da Guiné Portuguesa, ou a sua anexação era a melhor das soluções. As críticas internacionais também se prendiam com a fuga de populações rebeldes do Senegal para a colónia portuguesa, além do tráfico de armas e continuação da escravatura. Era nas missões luso-francesas da delimitação das fronteiras que se tornava bem visível a continuada falta de controlo e de conhecimento das zonas limítrofes por parte das autoridades portuguesas. Ninguém desconhecia que continuava a escravatura doméstica. Na opinião das autoridades inglesas, a Guiné era a colónia com a pior administração em África, a seguir à Libéria. Os militares portugueses também não poupavam críticas ao abandono e inoperância. Qualquer governador recém-chegado denunciava o estado de abandono do território, a falta de ocupação militar e os movimentos de rebelião sempre latentes.
Chegada a I República, não faltaram petições e diatribes contra os governadores nomeados por Lisboa; tudo se agudizou com as campanhas para eleger deputados, o que deu origem a fações. Vem depois o impacto da guerra, o encerramento das casas alemãs, a diminuição da exportação da borracha, amendoim e coconote, cuja produção estagnou, aumentando ainda mais o défice. Os grandes comerciantes locais queriam manter o privilégio de serem eles os intermediários, queriam manter as suas relações preferenciais com os indígenas, vê-los afastados o mais possível das autoridades. Os comerciantes nacionais apelavam para que o Governo proibisse casas estrangeiras com as populações do interior, insinuava-se que a Guiné era mais uma colónia estrangeira do que uma colónia portuguesa, à frente desta contestação também estavam os cabo-verdianos; e os comerciantes franceses queixavam-se que estes intermediários locais colaboravam com os alemães.
Falhou a tentativa do Governo de atribuir grandes concessões a empresas portuguesas. E quando aumentou de intensidade a campanha de pacificação as várias fações envolvidas deram sinais de conflito. Havia dois grupos, os cabo-verdianos que ocupavam lugares de destaque na administração e no comércio, e os grumetes que habitavam os principais portos e serviam como principais intermediários no comércio fluvial. Todo este conflito se manifestou bem vivo até à década de 1930, e virá a ser repescado no contexto da guerra colonial. Como observa Havik, enquanto os cabo-verdianos são tratados como “civilizados”, os segundos eram alvo de uma tremenda desconfiança das autoridades por causa da sua proximidade com as populações nativas. A crítica ao peso cabo-verdiano manifestou-se, por exemplo, quando se deu a substituição de um juiz europeu por outro de origem cabo-verdiana, o governador de então protestou; um outro governador informava os seus superior na metrópole que a Guiné estava contaminada de cabo-verdianos e de muitos pretos que se dedicavam unicamente ao roubo e à vadiagem, mas por outro lado também criticava os Grumetes, que dificultavam a missão civilizadora do europeu. Acusados de jogar com um pau de dois bicos, era questionada a eficácia e a lealdade dos Grumetes, foi notório até à década de 1910. Quando foi nomeado o novo chefe militar para comandar as operações na Guiné em 1912, abandonou-se a aliança com os Grumetes a favor de mercenários vindos das colónias francesas, será esta a estratégia que o capitão Teixeira Pinto adotará até à campanha na ilha de Bissau, em 1915. Houve quem entendesse que se estava a montar uma guerra surda dos Grumetes contra os mercenários, com o apoio dos cabo-verdianos.
Será esta luz que se deve procurar compreender o papel da Liga Guineense, “uma assembleia dos nativos da Guiné”. Campeava o favoritismo, os favorecimentos ilícitos; o chefe da alfândega de Bissau era ao mesmo tempo tesoureiro da mesma e diretor dos correios. Veio a inspeção, só encontrou dificuldades, como anota o investigador. As muitas rasuras nos registos mostraram a facilidade com que se substituía a fórmula do despacho por outro, sendo os valores dos despachos sempre inferiores aos verdadeiros, de vez em quando menos de 50 por cento. Não havia arquivos, favoreciam-se certas casas de comércio que recebiam as suas encomendas sem qualquer fiscalização, só pagando aquilo que declaravam. Até os capitães dos navios que sabiam destas práticas entregavam os documentos incompletos ou em mau estado, sem serem incomodados.
No relatório de inspeção escreve-se:
“A Guiné foi durante muitos anos um feudo de alguns influentes, que dispunham a seu bel-prazer de tudo e todos, e aqueles que não acediam aos manejos eram lançados à margem, sendo inúteis todas as suas reclamações. [...] Nenhum critério, nenhuma justiça havia nas colocações de pessoal, e assim para os piores lugares eram atirados aqueles que não tinham o valimento de algum poderoso.”
Havia, é certo, denúncias feitas por comerciantes lesados sobre negócios ilícitos conduzidos por funcionários de alfândega. Tendo ainda em conta o relatório deste inspetor, o único europeu que trabalhava nas alfândegas fora discriminado injustamente com base no ódio de cor. O chefe do círculo aduaneiro da Guiné, que é descrito pelo inspetor como um cabo-verdiano, comprazia-se em aviltar o funcionário que não é da sua cor ou da sua raça.
E Philip Havik termina assim esta leitura sobre as tensões sociais:
“No interior que ainda estava em grande parte sob o domínio das sociedades africanas, os comerciantes também dependeram em larga medida das relações de proximidade e de parentesco que os funcionários com estes mantinham. Porém, para a maioria das pessoas era ‘muito arriscado sair fora da praça, não podendo os negociantes entreter com o gentio outras relações comerciais que não sejam as realizadas em Bissau’.”
Ponte-cais de Bissau, construída pelo governador Carlos Pereira na década de 1910
Um aspeto do porto de Bissau com o Ilhéu do Rei ao fundo, 1908
Imagem da Imprensa Nacional em Bolama, fotografia de Francisco Nogueira, na obra Bijagós: Património Arquitetónico, Tinta da China, com a devida véniaQuando a capital da Guiné ainda possuía alguns sinais de esplendor
Mapa holandês de 1727 chamando Negrolândia na faixa acima do que seria a Guiné
(continua)
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Notas do editor:
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