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segunda-feira, 24 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26611: Notas de leitura (1783): "Futuros Criativos"; edição da Associação para a Cooperação Entre os Povos, Fundação Portugal-África e Instituto Camões, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Aconteceu andar a passear pelo Campo dos Mártires da Pátria e resolvi entrar no Goethe-Institut, aqui se promove a língua e cultura alemãs, tem permanentemente livros em saldo, dirigi-me em primeiro lugar à biblioteca, se tinha vindo alguma coisa sobre a Guiné-Bissau, que não, mas lembrava-se que havia ali uns expositores de livros em segunda-mão qualquer coisa que falava da Guiné-Bissau. Matei a barriga de misérias, encontrei um cd com os concertos de flauta de Georg Philipp Telemann, interpretações prodigiosas, livros de fotografia e, cá está, este Futuros Criativos que me encheram a alma, naquele dia em que vinham notícias tão sombrias de uma terra que tanto amo, e aqui fica esta minha homenagem àquele povo que não desfalece com sucessivos piratas em lideranças políticas, são a estes futuros criativos que mando o meu abraço e votos de resiliência, haverá um dia em que este povo amável encontrará lideranças justas.

Um abraço do
Mário



Futuros Criativos da Guiné-Bissau (1)

Mário Beja Santos

Futuros Criativos tem a ver com economia e criatividade em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, e Timor-Leste, acolhe um conjunto de atividades desenvolvidas pela ACEP – Associação para a Cooperação Entre os Povos, edição da ACEP, Fundação Portugal-África e Instituto Camões, 2019. Aqui são repertoriadas atividades em parceria com organizações e pessoas destes países de língua portuguesa ao longo dos últimos quatro anos, com o objetivo de conhecer e valorizar a inovação e a criatividade como fatores de desenvolvimento.

A criatividade e inovação estão cada vez mais na base da valorização de recursos endógenos e até identitários, de descoberta de novas soluções para uma multiplicidade de desafios, assistimos à criação de oportunidades para jovens, uma maior igualdade na inserção das mulheres no trabalho e nas comunidades, inclusão de populações rurais envelhecidas, uma gestão de recursos de forma sustentada, valorização de culturas nacionais, com o recurso a inovações da ciência e da técnica. A economia criativa é um conceito baseado nos recursos criativos que potencialmente geram crescimento e desenvolvimento económico. Aqui se passam em revista experiências em território da Guiné-Bissau que abarcam diferentes áreas, mas que certificam que a economia criativa permite o desenvolvimento de atividades económicas suportadas pelo capital cultural, criativo e artístico, transversal aos contextos culturais, artísticos, sociais e económicos e que conferem um caráter único aos bens e serviços gerados.

Escrevo este texto numa ocasião uma vez mais tão dolorosa para o povo da Guiné-Bissau, o que aqui mostro, retirado deste esplêndido livro, é a minha rendida homenagem a um povo que tanto amo, tem a sorte madrasta de ser dirigido por classes políticas cúpidas, dominadas pela agiotagem, expedientes de corrupção, tenebrosos compadrios de negócios, incluindo os da droga. Um povo que nos deslumbra pela capacidade de superara adversidade e de usar a inovação e o criativo como recursos ilimitados.


Os Netos de Bandim: amigos das crianças e das artes

São crianças e jovens entre os 4 a 30 anos de idade e todos têm uma paixão pelas artes culturais e tradicionais dos diferentes grupos étnicos que representam a cultura guineense. Surgem da iniciativa da organização não-governamental guineense Amigos das Crianças, em 2000, com o objetivo de sensibilizar para a maior promoção da cultura guineense, recolhendo e divulgando elementos de expressão dos diversos grupos étnicos do país. Rapidamente se transformou também em instrumento de sensibilização através da dança, música e teatro, reunindo cerca de 120 associados jovens, do bairro de Bandim, em Bissau. As receitas provenientes das atuações revertem para a educação dos seus associados e para o apoio em despesas de saúde. Os Netos de Bandim são uma presença assídua no Carnaval e já representaram o país na maior manifestação de Carnaval do mundo – o Carnaval do Brasil.
Imagens dos Netos de Bandim

Irmão Unidos, pelo sangue e pelas artes plásticas

Começaram por pintar cabaças, no início dos anos 2000. Criaram então o grupo “Irmãos Unidos”. A pintura foi-se tornando uma forma de contribuir para a dinamização da cultura guineense. Neste sentido envolveram-se na Associação de Artistas Plásticos, onde Lemos Djata tem exercido funções como presidente. Já apresentaram o seu trabalho em exposições individuais e coletivas na Guiné-Bissau, Cabo Verde, Senegal e Egipto, Portugal, França, Bélgica e Espanha. Foram galardoados como os melhores pintores do ano em Bissau, em 2005, tendo recebido prémios e distinções por organizações da Polónia, de Portugal e da diáspora guineense. Sentido que as artes plásticas têm ainda pouco espaço na Guiné-Bissau, procuram divulgar o seu trabalho num espaço de exposição coletiva em Bissau, onde apresentam o seu trabalho, com outros artistas plásticos nacionais.
Os Irmãos Unidos, Ismael e Lemos Djata
Imagem de um dos seus trabalhos

A deslumbrante panaria que sai dos panos de pente

Fundada em 2004, a Artissal é uma associação guineense que trabalha na recuperação e valorização da panaria guineense. Os panos de pinti (de pente, o tipo de tear utilizado) são tradicionalmente utilizados nas mais importantes cerimónias das pessoas e comunidades, principalmente das etnias Papel e Manjaca, e a sua produção é habitualmente realizada por homens, a partir de conhecimentos e técnicas ancestrais, transmitidos entre gerações. A associação tem desenvolvido um trabalho de pesquisa e recuperação de materiais e padrões antigos, de práticas de tecelagem e de modelos de teares, introduzindo elementos de melhoria, quer na qualidade das matérias-primas quer na qualidade dos processos de trabalho. Tem igualmente dinamizado grupos de mulheres tecelãs, de etnia Papel, que participam de grupos de formação com artesãos, abrindo assim esta atividade às mulheres. Com o propósito de melhorar a dinâmica de produção e a geração de rendimento para os artesãos e artesãs, estes estão organizados em cooperativas e numa federação: a Cooperativa Bontche, em São Paulo, Bissau, a Cooperativa Djaguimobilar, em S. Domingos, e a Federação Sitna Bissif, em Cacheu. A Artissal procura integrar estes grupos em redes nacionais e internacionais de comercialização solidária, contribuindo para a divulgação da panaria tradicional guineense e para a comercialização dos produtos por um preço justo. A qualidade desta panaria tem sido alvo de reconhecimento que permite a continuidade do projeto, pelos apoios que estimulam a continuidade.
Artissal, os maravilhosos panos de pente

B&F, a engenheira que se dedica à moda

Nérida Fonseca é uma jovem engenheira informática que trabalha para uma grande empresa internacional de telecomunicações. Em 2014, decide criar a sua própria empresa, a Batista & Fonseca, que se dedica à produção e comercialização de acessórios de moda e decoração a partir de elementos tradicionais da cultura guineense – o pano de pinti. Este artigo, tradicionalmente associado às cerimónias fúnebres e matrimoniais das etnias Papel e Manjaca, adquire novas formas e funções nas criações de Nérida. O que é que faz correr esta engenheira informática? A paixão pela moda e pelo seu país, a que se aduz a sua capacidade enquanto autodidata, o que lhe permitiu aliar o design contemporâneo ao saber tradicional pano de pinti. Inicialmente, tudo o que confecionava era ou para uso exclusivo na própria casa ou para dar presentes aos amigos e conhecidos. A receção que as diferentes peças tiveram no mercado foi determinante para a formação da dimensão comercial. E o aeroporto de Bissau tem sido a sua rampa de lançamento.
B&F, acessórios de moda e decoração a partir de elementos da cultura guineense

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 21 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Deixo-vos o terceiro e último apontamento acerca do ensaio em que Philip Havik mostra o tratamento da imagem do homem e da mulher antes e após o período da ocupação efetiva. Ele não deixa de observar a mudança fundamental que se operou quando a vida do colono se transferiu das Praças e Presídios para o interior, apareceram as administrações e os postos, os governadores passaram a exigir relatórios anuais a estes funcionários, o modelo mais saliente destes anos 1930 foi o inquérito elaborado por um sobrinho do governador Velez Caroço, uma matriz que permite observar o que era a imagem da mulher. Neste tempo ainda imperavam teses raciais que proibiam categoricamente a mistura de raças, o que entra em contradição com a presença do colono neste interior onde os administradores e chefes de posto não levavam, em regra geral, a mulher branca, daí o mulato ter um desenvolvimento notório na Guiné. E há a preponderância de sinharas, como Nhá Bijagó e até perto da nossa presença colonial Nha Carlota. Este ensaio de Philip Havik é um estupendo ponto de partida para a continuação de estudos sobre as relações luso-africanas a partir de finais do século XIX e até ao fim do império.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3


Mário Beja Santos


Data de meados de 1930 a primeira monografia etnográfica que faz o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”. O seu autor deixa claro que a sua contribuição quebra o silêncio, haverá uma meia dúzia de trabalhos de grande interesse para alguns, mas destinado aos arquivos. Evidentemente que se produziram relatos pelos primeiros navegadores, somente publicados nos séculos XIX e XX, em que o registo in loco das tradições locais ocupa um lugar central. A monografia em apreço, "Babel Negra", tem uma lógica étnica e não administrativa, fornecendo dados sobre o parentesco, o casamento, a organização social, a agricultura e as línguas, obtidas essencialmente, mas não exclusivamente, pelos administradores e os seus intérpretes.

Os resultados eram em parte baseados sobre um novo questionário preparado pelo chefe dos assuntos indígenas do tempo do governador Vellez Caroço. As justificações dadas para este novo inquérito eram associadas ao projeto do novo Código Civil e Penal que se destinava a substituir as leis portuguesas então em vigor, considerando que não correspondiam à “mentalidade primitiva da população indígena”. O seu quadro e conteúdo são particularmente reveladores das doutrinas subjacentes ao pensamento colonial da época. O documento versa uma grande variedade de questões incluindo a família, refere por exemplo a divisão do trabalho entre sexos e nota-se uma boa dose de ignorância quando fazem perguntas como “Quem trabalha, os homens ou as mulheres?”. As questões referentes à autoridade paternal e maternal fazem-se acompanhar de perguntas postas do ponto de vista do marido: “Na vida do casal, quais são os papeis a que a mulher é obrigada a cumprir?”.

No livro "Babel Negra" identificam-se doze “tribos”, cada uma será objeto de um capítulo sob a forma de curtas vinhetas, isto ao mesmo nível do questionário atrás referido, tratando depois as características físicas e até as atividades de lazer. Cada capítulo inclui a fotografia de um homem e de uma mulher, bem como um glossário elementar do dialeto “étnico”. Dá-se mais importância aos grupos patrilineares, tais como os Mandingas e os Fulas, mas também aos Balantas “animistas” que aos grupos matrilineares. As relações entre homens e mulheres são sempre apresentadas como desiguais e demonstram a segregação existente entre os sexos que constituem um fio condutor no contexto destas sociedades dominadas pelos homens.

As liberdades sexuais das mulheres Baiotes são objeto de uma menção especial enquanto as suas proezas como remadoras ou lutadoras só são marginalmente referidas. O capítulo sobre os Felupes ou Djolas, caracterizados como “guerreiros” e “produtores de arroz” se releva o peso da autoridade da primeira mulher sobre o marido, situação que influencia a vida política da tribo, mas sem indicar especificamente em quê. Se bem que se vivesse num regime dito patriarcal, as sacerdotisas nesta gerontocracia masculina eram responsáveis pela manutenção dos lugares sagrados aos quais os homens não tinham acesso.

Philip Havik refere devidamente a teoria linguística sobre o género, e observa que os estudos etnológicos foram produzidos por administradores e não por antropólogos; os dados etnológicos extraídos dos relatórios coloniais sobre as populações da Guiné por mais que identifiquem modelos de discurso centrados sobre a imagem pejorativa das mulheres, fornecem nuances que obrigam a um exame semântico. Importa não esquecer que nas dinâmicas entre géneros nos setores do comércio e da intermediação aparecem mulheres grandes – as Nharas – impuseram-se nos pontos do comércio do litoral com poder e autoridade equivalentes aos que vemos associados aos homens da mesma região.

Depois da conquista militar, o poder político ficou doravante concentrado nas mãos de uma administração europeia e assistiu-se a uma mudança de paradigmas nas estruturas das relações entre os géneros. O centro de interesse colonial passou dos portos do comércio afro-atlântico para o interior, as chefaturas foram consideradas como aliados políticos potenciais e cooptados na administração local. O branco passou a viver com a negra, surgiram os mulatos. O questionário etnográfico de 1934 sobre o qual se baseou a maior parte dos trabalhos dessa década traziam já uma questão reveladora sobre a aparência das mulheres, se estas quanto tinham um tom de pele mais claro não tinham uma fisionomia mais perfeita e mais escultural. E passou-se a escrever muito sobre a poliandria e o matriarcado Bijagó, o que se vem a demonstrar mais tarde ter pouco ou nenhum fundamento, fazendo-se o contraponto entre a mulher Bijagó primitiva e a beleza das mulheres Fulas, dizendo-se mesmo que a mulher Futa-Forro era inteligente e entre todas as mulheres indígenas da Guiné a mais civilizada.

Dentro destas observações de categorização, destacam-se os manjacos por uma atitude positiva, por falarem mais o crioulo cabo-verdiano, por serem grandes trabalhadores, considerados pois como um dos elementos étnicos mais úteis no desenvolvimento e valorização da colónia, e tecem-se considerações elogiosas sobre a beleza das mulheres, não deixando de se escrever que o seu comportamento sexual libertário podia levar à extinção da “tribo”. Não se pode esquecer que os contactos entre os funcionários coloniais e as mulheres africanas não se limitava ao domínio público, estendia-se ao espaço doméstico onde elas muitas vezes partilhavam a cama com os seus senhores. Os administradores e os chefes de posto viviam e trabalhavam muitas vezes no mesmo edifício. As mulheres foram impulsionadas para a cena como geradoras, mas há que referir as teorias raciais que dominaram os anos de 1920 e 1930 em que a mestiçagem era fortemente criticada e desencorajadas as relações legítimas ou ilegítimas entre indivíduos de raças diferentes, havia inquietação de que se formasse um estrato de mestiços, a etnologia oficial a ela se opunha veementemente, acusando-a de degenerescência da raça. E com a finalidade de reduzir as ocasiões de relações sexuais entre os colonizadores e os indígenas procurou-se recrutar pessoal civil e militar casado, julgava-se assim que se ia impedir a procriação de mestiços.

Nos espaços urbanos a organização era de criar linhas que separavam os europeus dos africanos e também as etnias. Aumentou-se o número de enfermarias e da assistência indígena. Mas há um aspeto interessante e bastante ignorado da etnografia colonial que é a prostituição. A migração dos insulares Bijagós para o continente como de camadas urbanas para o arquipélago é mencionada em certos relatórios como a causa principal das doenças venéreas entre os habitantes das ilhas. Daí a tentativa de os governadores procurarem reter os Bijagós nas suas ilhas, protegendo-os da má influência dos cristãos.

Em suma, assiste-se em meados dos anos 1930 à consolidação do esquema que apresentava as mulheres no discurso oficial como criadores de filhos e trabalhadoras, excetuando sempre as mulheres Bijagós, tratando-as como dominadoras. Entretanto, e apesar dos dados etnográficos, a figuras da mulher continuou, no discurso colonial, a aparecer como um simples apêndice dependente da autoridade e do domínio do homem, uma sombra sem rosto. Mas, entretanto, deu-se uma mudança com implicações no estatuto da mulher. Essa mudança resultou da crescente atenção dos etnógrafos portugueses atribuindo à família o conceito de unidade sólida em vez daquela visão holística até então dominante das sociedades indígenas. Em meados dos anos 1930 era evidente a mutação das prioridades coloniais, mesmo pálida projetou-se a imagem da mulher africana, ela vai aparecer como a mulher indígena entendida como um poderoso agente de civilização e não como uma simples guardiã da espécie e uma besta de carga.

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de Novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia Bijagó, natural de Bissau).
"Mulheres combatentes do PAIGC com as suas armas”, exposição “Revoluções – Guiné-Bissau, Angola e Portugal (1969-1974) Fotografias de Uliano Lucas”
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Poderia dizer que quanto à pesquisa de livros escritos por camaradas nossos, apelo insistentemente que me emprestem o que sai, não encontro praticamente nada nas livrarias, trata-se de edições de autor, não posso adivinhar como se distribuem tais obras. Podia resignar-me a dizer que a mais não sou obrigado, mas não me conformo, faço telefonemas a Beltrano e Sicrano, tenho sorte com o apoio que recebo da Biblioteca da Liga dos Combatentes, mas aproveito esta oportunidade para renovar o meu pedido de que me indiquem obras sobre a nossa guerra da Guiné publicadas pelos nossos camaradas, mantenho a intenção de deixar referência a tudo o que se publica, mas não tenho condições de adivinho. Quem me puder ajudar, não hesite.

Um abraço do
Mário



A Guiné de Clemente Fidalgo Florêncio, BCAÇ 600, 1963/1965, Bissau e Buba

Mário Beja Santos

Confesso ao leitor que me desunho para ter acesso a obras que falem da Guiné, relacionadas com a guerra e seus protagonistas. Tenho feito aqui sucessivos apelos para que me emprestem obras, a generalidade delas são edições de autor, não detetáveis nos escaparates das livrarias. 

A resposta é modestíssima. Tenho tido uma imensa ajuda da Biblioteca da Liga dos Combatentes, assim que o Dr. João Horta, o bibliotecário, me badala que chegou matéria-prima fresca marcho para o Bairro Alto, devolvo o que ele me emprestou e consulto o que lhe chegou. 

Desta vez a safra foi muito minguada, havia uma edição de autor, datada de fevereiro de 2023, obra produzida na Gráfica Central de Almeirim, intitulada "Guiné – Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio. 

Como não havia dados, no conteúdo da obra sobe o autor, liguei para o cartão que o camarada Clemente deixou na Liga, O Treino, café-cervejaria em Fazendas de Almeirim. Liguei e passaram ao camarada Florêncio. Expliquei ao que vinha, disse-me que pertencera à CCS/BCAÇ 600, desde outubro de 1963, fora colocado no Quartel-General, nas transmissões, os últimos meses passaram-se em Buba e assim nos despedimos.

É uma obra sóbria, diz quando chegou à Guiné, reporta um conjunto de dados históricos, dá ênfase aos acontecimentos que antecedem a eclosão da guerra, diz que manteve sempre interesse sobre o que se passava na Guiné, mesmo a partir da independência, a Guiné e a sua história são lembrança permanente. Intervém agora, não quer que aquela guerra seja esquecida, e dá-nos um poema que escreveu em Buba, em setembro de 1965, intitulado "Obrigado Guiné":

“Por tudo o que me deste/Pela liberdade que me deste/De te conhecer/De conhecer tuas gentes/E seus costumes e sentimentos/Obrigado Guiné/Por não me roubares a memória/E assim recordar/O dia em que parti/Ao teu encontro Guiné/Pelo mar imenso/Sete dias e noites navegando/Olhando o céu azul/Os peixes voadores voando/Os navios que se cruzavam/Levando-me a pensar/Para onde me levas ó mar/Sinto um enorme horror/Ó tempestade amansa/Não me leves a saudade e a esperança/Que belo conhecer/Tanto tipo de humanos/A beleza crioula das mulheres finais e airadas/Em batuques sem par/Maravilhosos, deslumbrantes/Com o ritmo infantil e envolvente/Com a sua linguagem terna e doce/Na quietude dos velhos/Engelhados e solenes/Na viveza dos rapazes negros e sadios/Na cadência do angustiado sofrer/Nas canções e danças africanas/Na imprevidência de viver o dia de hoje/Ao sabor fatalista/Do que há de vir a acontecer/Obrigado Guiné/Foi belo conhecer/As tuas bolanhas, os teus rios/As tuas matas/Escuras de tão alto capim/Sacudidas pelo vento/Que causa ruídos/Cala-te vento/Não me distraias/Deixa-me pensar/O que hei de fazer/Para um dia voltar/Já poucas horas me restam/Para outro caminho seguir/Já tenho vontade de voltar/Mesmo antes de partir/Se algo aqui sofri/Nunca te culpei… Não/O que eu quero é levar-te/Dentro do meu coração.”

Rememora acontecimentos posteriores à independência, algo misturados com recordações, mantém-se atento às transformações positivas, e recua até às suas lembranças, os pombos verdes de cor, as onças, os jagudis, a vida dura dos guineenses, a exuberância das festas, e deixa para o fim uma recordação futebolística:

“Em 1965, o Benfica de Bissau foi campeão de futebol da Guiné, e por isso, nós jogadores, tivemos direito a um jantar-convívio na sede do clube, alguns elementos usaram da palavra, discursaram durante o jantar. 

‘Recordo perfeitamente que o último a discursar, foi o nosso capitão de equipa, de seu nome Orlando Camará. Começou por agradecer ao clube o reconhecimento do trabalho de grupo, agradeceu depois a todos os colegas de equipa o bom trabalho, e voltando-se para mim disse:

 - E tu, Clemente, obrigado por tudo o que nos deste. Sei que brevemente vais partir para a tua terra, mas eu nunca mais me vou esquecer de ti. Sei que um dia, quando fores velhinho, te recordarás de tanto que correste e saltaste para ser campeão. Ficas no meu coração.’ 

Tal como previas, estou velhinho e mal posso andar, e recordo tudo isso como se tivesse sido ontem. Saudades imensas de ti e de tudo. Até breve, Clemente”.

E depois adiciona duzentos provérbios e conta uma história contada numa taberna para nos falar do fandango, do tocador de gaita de beiços, ou do harmónio ou concertina. É um livro compósito, como se vê, despede-se desejando-nos muita saúde, que Deus nos proteja da fome e do frio e tudo mais é vaidade em excesso. 

Aqui fica o essencial da sua mensagem, tanta saudade da Guiné como das memórias que nele permanecem daquele início da guerra, terá feito esta edição de autor porque elas ainda lhe mexem com o sangue. E nada mais há a dizer.

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Nota do editor

Último post da série de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Se é verdade que uma imagem pode valer por mil palavras, a fotografia que mostra o governador Carvalho Viegas em Canhabaque, no início de 1937, é dada então como pacificada toda a região dos Bijagós, bem como a Guiné por inteiro, veja-se a encenação da postura, o branco imaculado da indumentária, apagando tudo o resto, de facto o que fica atrás é uma sombra, ele representa a civilização, uma cultura superior, é mesmo um agente político da Cristandade, a tal Babel Negra tem as suas hierarquias entre as etnias superiores e as que estão no último escalão, as animistas. O que Philip Havik trata primorosamente neste seu ensaio é a evolução a partir desses anos da pacificação de como o branco vê o negro, escalpeliza esse imenso manancial que são os relatórios que vão para Bolama e de Bolama para o Terreiro do Paço.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2


Mário Beja Santos

Importa recapitular o que já se escreveu quanto ao conteúdo deste artigo. Em concreto, ao lingo da história da presença portuguesa na região da Senegâmbia a observação do Outro pelo cronista, navegador, viajante, autoridade local, missionário, não podia, por razões óbvias, proceder a inventários de etnias, áreas ocupadas, dados culturais e religiosos, modos de vida, natureza do potencial económico, etc., etc., só a consagração de um espaço que devia ser ocupado levou a que os governadores fossem obrigados a enviar ao ministro da Marinha e do Ultramar relatórios, e que a partir do Bolama fossem implicados os administrados de circunscrição e chefes de posto a emitirem relatórios, com base em questionários que se foram modificando ao longo de décadas.

Não se pode pedir a Zurara, Diogo Gomes, Cadamosto, Pedro de Sintra, Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André de Faro, André Donelha, Francisco Lemos Coelho, e mais tarde, entre os séculos XVIII e século XIX, aos autores de memórias e documentos endereçados às autoridades de Lisboa, o que se vai agora pedir à administração colonial local. Como se viu, foi necessária também um quadro de pacificação e ocupação relativa, começam a aparecer monografias dirigidas a Bolama, há peças sugestivas que tive a possibilidade de ler nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Tudo começa com estudos etnográficos incipientes, o governador Carlos Pereira publica em 1914 um documento importante com base na sua participação numa conferência internacional, ganha realce o anuário de 1925, começam a aparecer dados do primeiro recenseamento colonial de 1924, atiram-se números incomportáveis como o de dizer que havia 770 mil habitantes na Guiné, constata-se hoje que a produção do departamento de assuntos indígenas foi menor, o governador Vellez Caroço conduzirá no cargo um sobrinho seu que deu uma certa consistência e qualidade às informações dadas.

As autoridades locais nunca deixam de revelar nos seus relatórios a penúria constante de fundos e a inexistência de um estudo etnográfico com fundamentos científicos. Philip Havik chama à atenção para uma missão de um etnógrafo austríaco, Hugo Bernatzik, que no fundo vem fazer o que os portugueses não faziam, não se escondia a clamorosa existência de dados que dessem expressão a um estudo para o conhecimento das etnias (naqueles tempos falava-se em raças). O major Carvalho Viegas, será governador durante alguns anos, fez da segregação entre africanos e europeus a pedra angular da sua política, importa não esquecer que havia legislação que consagrava a compartimentação de espaços entre brancos e negros, seria o caso de uma viagem de comboio de 3ª classe, o europeu podia transferir-se para a 2.ª classe, caso a viagem fosse demorada. Havia a ideia de “degenerescência” racial nas comunidades etnicamente puras, não esquecer que em toda a documentação oficial ou não se refere de forma trivial o civilizado e o indígena.

Mas a realidade era mais forte. A mobilidade populacional incitava a que se procurasse ter uma compreensão para os hábitos, costumes e tradições, e mesmo o estudo das instituições sociais e políticas destes diferentes povos, pensava-se que era a única maneira de os ganhar para a nossa civilização cristã. Daí o modo como foi recebida a publicação Babel Negra, em 1935, de autoria de Landerset Simões (um funcionário que virá a ser expulso dos quadros da administração), apareceu como um acontecimento importante na etnografia colonial da época.

O autor vai agora abordar a produção de dados etnográficos no decurso de três fases distintas: durante todos os últimos anos que precedem a ocupação militar, nos anos de 1920, quando a administração portuguesa se estabeleceu sobre o território, e nos anos 1930 quando o Estado Novo se impregnou do discurso colonial. Os primeiros relatórios vindos das residências utilizam a norma de referência masculina, dá-se pouca atenção às mulheres, o nível de submissão feminina é sempre revelado, as mulheres são dadas em casamento numa idade muito precoce, é obediente ao marido e quando este morre é transferida para a posse do herdeiro. A tradição da poligamia reserva à mulher a maioria dos trabalhos, inibe-a da mobilidade social. Ela está desprovida de direitos de propriedade, de herança ou de sucessão, são pessoas secundárias; os homens, ao contrário, aparecem imbuídos de autoridade, são eles que tomam decisões. O espaço social é segregado em função dos sexos.

A monografia de Ernesto Vasconcelos, datada de 1917, segue exatamente este itinerário, fala em raças semitas ou hamitas e na raça negra repartidas em numerosas tribos e subtribos. A inferioridade que se dava aos africanos, aparece escrita como uma verdade definitiva: o africano não tem a noção da palavra honra, ele não se sente constrangido por qualquer compromisso a não ser sob juramento ou profundas razões de religiosidade. E daí, os autores destes relatórios puderem livremente hierarquizar as “civilizações”, no topo estão os grupos islamizados e na base os animistas, caso dos Nalus e dos Bijagós. Há ainda também uns tipos sociais indeterminados, caso dos Grumetes, dos mulatos e “Brancos”.

Estamos num tempo em que se consolida a autoridade colonial, e adverte-se os interessados que para tirar partido destas raças guerreiras, destes agricultores e gente preguiçosa impõe-se um fino espírito político, é preciso guiá-los como um jogador de xadrez que dispõe as suas peças para a vitória final. Tomando como referência as observações dos administradores que responderam ao inquérito de 1927, constata-se que eles fornecem um panorama um pouco mais detalhado das tradições indígenas, mas continua-se a falar nas diferentes raças, sub-raças e tribos. Os autores destes relatórios não escondem a sua falta de conhecimento em etnologia, mas procuram uma abordagem, mesmo que superficial das tradições e práticas africanas. Se no inquérito anterior se punha uma grande insistência nas características físicas, agora relevam as tradições apresentadas face a exemplos concretos e que se fazem acompanhar de medições corporais de classificações segundo uma tipologia racial e começam a fazer-se descrições detalhadas da circuncisão praticada em homens e mulheres nos diferentes grupos; e quase com uma precisão médica aborda-se a gravidez e o parto e até a escarificação. O adultério feminino considerado habitual merece destaque pelas formas de punição, a transmissão matrilinear também passa a ser descrita com frequência, insinuando sempre a suspeita de infidelidade das mulheres do pai. Continuando neste itinerário, os relatórios falam sobre a divisão de trabalho entre os sexos, as hierarquias internas no grupo familiar, etc.

Estamos chegados aos anos 1930, aparece a primeira monografia etnográfica com o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”.

Carnaval na Guiné-Bissau: toda a diversidade étnica à mostra
Os Balantas
Os Fulas
Os Manjacos
Os Mandingas
Os Bijagós
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26561: Notas de leitura (1778): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 10 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26571: Notas de leitura (1779): Habitação para indígenas em Bissau, 1968 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26571: Notas de leitura (1779): Habitação para indígenas em Bissau, 1968 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
A cidade de Bissau que conheci em 1968 ganhou outra fisionomia quando lá estive a última vez, em 2010. Sou capaz de identificar as imagens deste artigo de 1968 e custa-me dizer o que senti quando percorri os bairros de Missirá, Santa Luzia e Militar, instalou-se o caos urbano, via-se à vista desarmada que o crescimento demográfico não era acompanhado de infraestruturas minimamente capazes. Não sei a que título o arquiteto Fernando Varanda estudou os bairros do tempo de Sarmento Rodrigues e Arnaldo Schulz, mas há que reconhecer que faz observações pertinentes e a sua crítica assentava num tipo de habitação aberto à convivência e ao diálogo interétnicos, já que, do que vira em Safim e no Biombo, as etnias revelavam-se fechadas e seccionadas. Fernando Varanda, como poderão ver no Google, teve uma lustrosa carreira internacional em vários continentes trabalhando em planeamento urbano. Pode dar-se o caso de quem trabalha no planeamento urbano na Guiné-Bissau ache interessante as suas propostas.

Um abraço do
Mário



Habitação para indígenas em Bissau, 1968

Mário Beja Santos

A revista Geographica, da Sociedade de Geografia de Lisboa, publicou no número relativo a julho de 1968 um trabalho do arquiteto Fernando Varanda (1941-2023), doutor em Geografia Urbana, com assinalável carreira internacional, um artigo intitulado “Um estudo de habitação para indígenas em Bissau”. 

Refere o autor que no propósito do seu estudo se visa um princípio de organização de habitação para as populações indígenas alojadas em Bissau em condições muito precárias. A guerra provocara um autêntico êxodo para os centros urbanos, a população negra de Bissau aumentara nos últimos 5 anos de 22 mil para 30 mil habitantes (números aproximados). Em Bissorã, a população era de mil habitantes antes do início da guerrilha, ascendia agora a 12 mil. Impunha-se, pois, encontrar soluções para integrar as populações que poderiam não mais voltar aos seus ambientes anteriores.

A população negra envolvia a cidade branca, eram cerca de 30 mil habitantes alojados em construções feitas de materiais de ocasião, a falta de alojamento era enorme, os preços incomportáveis. A população distribuía-se por zonas de afinidade étnica. Tomavam-se medidas administrativas para distribuir os alojamentos por colunas ao longo das vias principais de acesso, tinha-se em linha de conta a segurança das populações e a segurança militar.

O arquiteto começou por observar alguns aspetos da habitação urbana indígena em Bissau e nos arredores – povoações das etnias Papel, do Biombo, Mancanha e Balanta, em Safim. Verificou-se que as zonas habitacionais estavam sombreadas por árvores de grande porte; quanto às zonas suburbanas, fez-se a observação da zona dos Papeis do Biombo, a 60 km de Bissau e a zona dos Mancanhas e Balantas de Safim, a 15 km da cidade. 

O esquema de agrupamento é sensivelmente o mesmo: famílias que se agrupam numa morança, e conjunto de moranças, relativamente próximas, formando uma espécie de povoação. Cada morança tem, em média, de uma a seis famílias. A casa é de planta redonda, na sua forma mais tradicional. Mas por influência de costumes europeus caminha-se cada vez mais pela opção para a planta retangular ou quadrada.

Do inquérito efetuado abrangendo os regulados de Antula, Bandim, Intim, apurou-se haver sensivelmente 28,250 habitantes. O inquérito, na parte referente ao alojamento, foi dirigido a cerca de 200 chefes de família, amostragem pequena, verificou-se a composição do agrupamento familiar, os salários, o valor das rendas, quem tinha casa própria ou arrendada. 

As habitações são quase totalmente de planta retangular em Bissau, a área de cada casa era de cerca de 60 m2, excluindo quintais e zonas sanitárias. Cada casa tem entre quatro a seis divisões, servem de quartos. Os materiais de construção eram dos mais variados, veem-se casas de paredes de adobe e cobertura de folha de palmeira, veem-se outras com paredes em blocos de betão e cobertura de zinco e até de telha; o chão é de terra batida ou de cimento (este em caso de blocos de betão e cobertura de zinco). As instalações sanitárias e de banho existem foram de casa, nos chamados “cercados”. Não há esgotos, não há balneários ou retretes públicas. A cozinha existe no alpendrado ou no quintal. A água é fornecida por poços ou fontes abertas pela administração de Bissau. O mobiliário é escasso, camas ou esteiras, uma arca, bancos e cadeiras. 

Apenas os Fulas e Mandigas se mantêm fiéis às casas de planta circular, a planta retangular deve-se à influência europeia. Os espaços de convivência são praticamente inexistentes: cada família vive para si, dentro de casa ou ao alpendrado sempre existente, as crianças brincam na rua. Os arruamentos são os que a administração europeia criou.

Fernando Varanda analisa a solução apresentada pelas entidades administrativas e procede à sua crítica. O primeiro esquema de organização vinha do tempo do governador Sarmento Rodrigues, pretendeu-se, nessa altura, criar um bairro na estrada de Santa Luzia, uma casa por família, com dois quartos, sala, cozinha e instalações sanitárias, o projeto ficou na construção de umas 38 casas. 

Ao longo do tempo foi-se verificando uma infiltração progressiva de “palhotas” no meio das casas existentes. Estava em construção já muito avançada o bairro da Ajuda, a 6 km do limite da cidade, iniciativa de Arnaldo Schulz depois do bairro original ter sido destruído por um incêndio, em 1965; este bairro da Ajuda situa-se em frente ao Hospital Militar. 

O plano geral deste bairro era o seguinte: numa primeira fase, estavam já construídas 140 casas, numa área de 700 por 300 metros, isto num plano que incluía mercado, estabelecimentos comerciais, escola primária, posto médico, igreja católica, mesquita, centro social, cinema, lavadores públicos, oficina de carpintaria mecânica. São casas de planta quase quadrangular, com um alpendrado em toda a volta. A divisão interior da casa é uma sala grande, dois quartos, um quarto independente (para hóspedes), cozinha e instalações sanitárias, no alpendre.

Na admissão ao bairro privilegiava as vítimas do incêndio. A crítica de Fernando Varanda era de que no caso de Santa Luzia como no caso da Ajuda se escolher um planeamento urbano de régua e esquadro, dividindo regularmente uma área em retângulos e situando-a ao longo de uma grande via de comunicação. 

A solução não tem nada a ver com o sistema de vida em comunidade que faz parte da tradição guineense. Por tal razão, o arquiteto apresenta uma solução. Ele parte de um agrupamento de várias famílias, normalmente da mesma etnia, em disposição mais ou menos concêntrica, núcleo que está em relações de vizinhança próxima com outros. O conjunto de vários núcleos constituirá uma unidade dotada de equipamento próprio. A sua intenção era agrupar núcleos de 10 famílias em unidades de 6 núcleos, constituiria uma zona com serviços públicos bem definidos. As zonas separar-se-ão por amplos espaços verdes, tanto quanto possível naturais, com acessos próprios utilizáveis por viaturas. A intenção é proteger a intimidade dos habitantes permitindo-lhes a criação ou a continuação das suas estruturas tradicionais, mas também para abrir caminho a uma aculturação progressiva e compreendida.

Os núcleos eram concebidos em torno de uma origem de água, o espaço central serviria para recinto de convívio diário entre as famílias. E justifica a essência da sua solução que era a de visar a possibilidade de poderem habitar próximo três tipos de famílias: pequena, média e grande, em que a pequena terá 3 ou 4 elementos e a maior poderá ir dos 12 aos 15. 

Diz ter optado por uma forma poligonal de planta, faz-se assim convergir a vida de cada casa para um pátio interior alpendrado. Justifica dois tipos de casas, conforme a dimensão familiar; as paredes seriam em betão de adobe, assentes sobre uma fundação em betão ciclópico sobre-elevada, para evitar a entrada de água das chuvas no interior da habitação; a cobertura seria em folha de palmeira. Era propósito do arquiteto dar toda a facilidade aos habitantes para serem eles próprios a construir as suas casas, fornecia-se a planta base, o tipo geral de construção, permitindo aos habitantes que adequassem as suas casas à sua maneira de viver.

A evolução dos acontecimentos alterou tudo, os planeadores urbanos que me ditem as soluções propostas por Fernando Varanda como forma de criar condições confortáveis nos bairros caóticos que hoje existem em Bissau. É um estudo que vale como propósito de um tempo, mas a visão do arquiteto, conceituado geógrafo urbano, é merecedora da observação de todos aqueles que pretendem dar mais dignidade à vida dos habitantes em Bissau e em todos os outros aglomerados.

Estrada de Safim, as novas edificações, construídas pela administração. Quilómetros de casas em duas filas largamente separadas por uma faixa de trânsito para veículos
Morança Mancanha (estrada de Safim – embora de um tipo já decadente, aqui ainda é possível a vida com um certo intimismo e conforto). Foram aldeamentos deste tipo que a administração substituiu
Biombo, casa Papel. Trata-se de um agrupamento cuja unidade é a função da unidade familiar. Constrói-se um núcleo; aumentando a família, outro se ergue ligado por um alpendre
Bairro de Santa Luzia, a estrada passa junto à margem esquerda
Bissau, zona indígena, Chão Papel
Cupelom de Baixo
Cupelom de Cima
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Nota do editor

Último post da série de 7 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26561: Notas de leitura (1778): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26561: Notas de leitura (1778): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Este importante ensaio de Philip Havik abre luz quanto à história do conhecimento do colonizador face ao colono, um percurso que se inicia fundamentalmente no fim do século XIX que ganhará dimensões com caráter científico a partir da governação de Sarmento Rodrigues, data deste tempo um inquérito etnográfico preparado por Teixeira da Mota. A grande motivação inicial sobre os dados estatísticos do imposto de palhota, a pressão do ministro das colónias não abrandou, era preciso conhecer quem habitava os lugares, e nascem então os inquéritos etnográficos, de que aqui temos feito referência, isto a par dos relatórios anuais enviados por algumas residências. É todo este histórico que Philip Havik analisa com o seu habitual espero, e que aqui se procurará fazer a súmula.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 1

Mário Beja Santos

Philip Havik publicou na revista Lusotopie XII, em 2005, o artigo com o título Les Noirs et les ‘Blancs’ de l’Ethnographie Coloniale: Discours sur le genre en Guinée Portugaise, (1915-1935), uma esclarecedora incursão sobre o relacionamento entre colonizadores e colonos no período posterior à chamada pacificação, obra do capitão Teixeira Pinto, e 1935, o ano que precede a denominada pacificação de toda a Guiné.

No preâmbulo, o investigador recorda que este enclave foi muito pouco depois da “pacificação” de 1915. Os administradores coloniais, obrigados ao protocolo de fornecer com regularidade postas em inquéritos ou o envio ao governador de relatórios anuais, muitas vezes pondo-se no papel do etnógrafo, deixaram pouca informação até meados dos anos 1930. A questão para eles dominante era o imposto palhota, centravam-se no registo das palhotas, os homens eram importantes enquanto chefes de tabanca, as mulheres eram totalmente ignoradas enquanto sujeitos autónomos.

No entanto, com o aparecimento dos primeiros dados etnográficos, os relatórios oficiais entrelaçaram considerações de género com os conceitos de cor, revelando a hierarquização interna ao género em que eles operavam. Acresce que a ausência de mulheres europeias ocasionou uma viragem das medidas de política colonial, projetando a imagem na mulher africana como guardiã da pureza racial. A ajuda médica era apresentada como símbolo de modernidade e acabou por reconhecer às mulheres indígenas um lugar de mães. Este artigo abrange a produção etnográfica num período de duas décadas e procura preencher as lacunas desta literatura, explorando ao mesmo tempo novas pistas para análise do discurso colonial sobre as relações de género.

A Guiné Portuguesa foi sempre objeto de um interesse marginal. Numa perspetiva “luso-africana” os antropólogos portugueses começaram a partir dos meados dos anos 1980 a examinar mais de perto os dados etnográficos elaborados na época colonial. Há ainda fontes documentais relativamente intactas que carecem de estudo, aguardam na poeira dos arquivos os investigadores. É igualmente urgente questionar os paradigmas coloniais relativos às políticas e às populações destes territórios. Este texto aborda um corpo de conhecimentos, que se considera apaixonante, proveniente de fontes escritas e orais e das atitudes dos funcionários coloniais face aos africanos, do ponto de vista das relações de género e parentesco. Espera-se assim contribuir para o debate quanto às tensões que se produziram entre colonizadores e colonizados, bem como quais os modelos de papel que o colonizador aplicou ao colonizado.

Alguns antropólogos defenderam o ponto de vista que era necessário “pluralizar o conceito de situação colonial”, tendo em conta “o leque de interações entre indivíduos e grupos extremamente diferentes”. No caso português, para além da grande diversidade étnica das populações e dos atores coloniais, é preciso ter em conta a falta de diretivas claras sobre a política indígena a implementar no terreno, sobretudo durante as primeiras décadas da administração colonial. Na maioria dos casos, as medidas eram tomadas uma a uma, de forma aleatória, ou após negociação, uma noção que não parece coincidir com a ideia que se faz numa colónia dirigida pela metrópole. A ausência de políticas coerentes face à família alargada indígena e aos seus membros, bem como o conhecimento limitado das sociedades africanas por parte dos funcionários e dos responsáveis políticos, certamente contribuíram para este estado de coisas.

Iremos comparar os dados etnográficos recolhidos até ao fim dos anos 1930, partindo da I República em 1910 até ao período do Estado Novo. Aborda-se, em primeiro lugar, o estado de conhecimentos demográficos e etnográficos no enclave, isto no contexto da implantação da administração colonial a partir de 1915. Procura-se ilustrar seguidamente, através da análise sucinta de um certo número de fontes publicadas de artigos, como o discurso oficial ou a sua ausência que estruturaram representações dos indígenas. Para concluir, extrapola-se a pertinência destes dados, abordando de modo mais amplo as metáforas coloniais e a sua semântica, tais como elas se desenvolveram na Guiné neste período.

Antes da ocupação militar na maior parte do território da Guiné, as relações dos governantes e dos seus representantes não forneceram informações sobre a população a não ser sobre o perímetro das zonas costeiras. Mas os responsáveis não escondiam que era vergonhoso após seculos de presença portuguesa a sua influência não ultrapassava os muros que envolviam Bissau. As estimativas da população eram feitas ao acaso, o que justificava a impossibilidade de implementar uma política social. Os dados disponíveis sobre as populações do interior limitavam-se aos relatórios dos missionários e dos oficiais de saúde. No início do século XX, a situação no terreno tinha-se deteriorado a tal ponto que um observador estrangeiro observara que “o governo colonial português exercia pouco ou nenhum controlo sobre os indígenas, isto devido aos falhanços da administração”. Os governadores tinham que admitir que eram incapazes de fazer o recenseamento da população pedido por Lisboa. Com a introdução do imposto de palhota em 1903, a administração começara a juntar a informação sobre as “tribos indígenas” com fins fiscais. Esta abordagem iria ser determinante em todo o período colonial (1915-1974). A partir de 1909, o gabinete do governador em Bolama emitiu circulares confidenciais a fim de obrigar as residências (postos administrativos coloniais) a fornecer regularmente informações detalhadas sobre os aspetos demográficos e políticos da sua zona de jurisdição.

A reforma administrativa de 1912, que introduziu o sistema de régulos, na base da hierarquia, comportava a organização de processos burocráticos entre os quais o estabelecimento de relações sobre os futuros sujeitos do regime. Entre eles, o "intérprete oficial de diligências” encarregado de contactos com a população exterior ao posto, sobre autoridade direta do administrador, devia informá-lo sobre todas as relações relativas à vida política e social dos indígenas que podiam ter interesse à administração. Foi uma prática do período da administração militar (1892-1918), quando a comunicação entre os escalões central e local do governo se focavam essencialmente à volta das questões de segurança e o lançamento de impostos. O estabelecimento simultâneo de uma força de polícia indígena, conhecida por cipaios, fora pensada como um estrato intermédio entre a administração colonial e os indígenas, não só com a finalidade de coerção, mas igualmente para filtrar as informações pertinentes provenientes da base.

Os primeiros relatórios provenientes das residências, apresentados em 1911, na sequência da divulgação de um questionário, constituem alguns dos primeiros dados provenientes do interior do país coligidos pelos funcionários e seus intérpretes. A partir deste momento, a divisão da população num certo número de “raças”, termo que vai aparecer pela primeira vez na correspondência oficial da Guiné em meados dos anos de 1800 – e de subgrupos, bem assim como a descrição do seu habitat, costumes, línguas e modos de subsistência, seguirá um esquema reproduzido na documentação oficial ao longo do período colonial.

Imagens de campanhas de pacificação, Nhacra, 1915
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Nota do editor

Vd. post de 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26538: Notas de leitura (1776): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Quando escreveu em parceria com António Estácio sobre os chineses na Guiné (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 3 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26547: Notas de leitura (1777): Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné em "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26547: Notas de leitura (1777): Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné em "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
A obra Os Mais Jovens Combatentes, do ex-marinheiro José Maria Monteiro, não se confina à guerra na Guiné, é uma narrativa que se estende à Angola, Moçambique e à Índia. Mas naquilo que nos diz respeito, vê-se claramente que consultou bibliografia adequada quanto às atividades da Marinha na Guiné, vai cronologicamente da chegada de um pelotão de fuzileiros no final de 1961 à Guiné até ao relato do marinheiro Quintão de Andrade Rodrigues, radiotelegrafista em Caió, o último a retirar, embarcou na Fragata Comandante Roberto Ivens na manhã do dia 15 de outubro de 1974. O autor releva as principais operações em que estiveram envolvidos os destacamentos de fuzileiros especiais, enumera os marinheiros mortos bem como as unidades especiais de combate e o dispositivo naval. Um documento seguramente descrito com emoção de quem sente que cumpriu o seu dever, palmilhando leituras que permitissem pôr em livro singelo o papel da Marinha na guerra de África.

Um abraço do
Mário



Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné (3)

Mário Beja Santos


A obra intitula-se "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro, Chiado Books, 2019. O autor alistou-se em 1967 na Marinha, ofereceu-se como voluntário para a Guiné, nos dois primeiros anos desempenhou as funções de radiotelegrafista de uma lancha de fiscalização pequena; terminados os dois primeiros anos, passou para o Comando da Defesa Marítima da Guiné, continuando mais dois anos como marinheiro telegrafista. Foi aumentando as suas habilitações, concluiu o curso de Economia e, mais tarde, o de Direito.

Antes de se contar a interessantíssima história do último militar português que saiu da Guiné, na manhã do dia 15 de outubro de 1974, há que fazer uma síntese das atividades dos fuzileiros entre 1971 e 1974. Terminada a operação Mar Verde, os combatentes integrados nos DFE 4, 8, 12, 13 e 21, continuaram em sucessivas operações, tendo sido ordenado ao DFE 21 e à Companhia de Artilharia 2673 a participação na operação Boa Festa, deslocaram-se para a região de Empada, na península da Pobreza. Foi uma as operações mais negativas para os fuzileiros, há um relato do comandante do DFE 21 que refere que a partir do anoitecer o local do estacionamento foi batido por granadas de morteiro, horas mais tarde flagelado por 50 a 60 elementos da guerrilha, o destacamento reagiu, sofreu 1 morto e 3 feridos graves, mudou de posição, passadas horas passou a ser flagelado, houve reação enérgica do efetivo do destacamento, o IN retirou.

No mês seguinte, realizou-se a operação Boa Festa, quatro secções do DFE 13 embarcaram na lancha Orión, avistaram uma canoa sem tripulantes na zona de Garsene, ao aproximarem-se caíram numa violenta emboscada que lhes causou 2 mortos; em novembro de 1971 foi criado o 2.º Destacamento de Fuzileiros Especiais africanos, o seu comandante era o primeiro-tenente Rebordão de Brito, a atividade operacional ao longo de 1972 não abrandou, os destacamentos de fuzileiros africanos deram provas de grande bravura. Em 1973, a partir de agosto o dispositivo dos fuzileiros situava-se na Bapatganturé, era o DFE 1; o DFE 21 estava sediado em Cacheu; o DFE 12 aquartelado em Cafine; o DFE 4 no Chugué e o DFE 22 em Cacine, sofrendo flagelações diárias.
E o autor refere os acontecimentos anteriores ao 25 de Abril:
“Chegados a 1974, a região de Gadamael continua sistematicamente a ser bombardeada, o DFE 22, sediado em Cacine, participa em diversas operações de intervenção e fiscalização, em que nenhuma dessas intervenções o DFE 22 sofreu várias baixas. Poucos dias antes do 25 de Abril, a Norte, o DFE 1 sofreu uma emboscada no rio Cacheu, perto das clareiras do Jagali e do Leto, sofrendo três baixas.”

Portugal reconheceu a independência da antiga colónia portuguesa em 10 de setembro de 1974. É neste contexto que ganha luminosidade a narrativa do último marinheiro a tirar o pé do último território marinhense, Quintão Mendes de Andrade Rodrigues. Ele fora nomeado radiotelegrafista para a estação Rádio Naval de Bissau, em 1972. Viera em comissão para o Comando da Defesa Marítima da Guiné. Foi colocado numa pequena ilha, Caió, transportado para ali por uma secção de fuzileiros, e a substituir quem ali se encontrava há três meses. Se o radiotelegrafista quisesse continuar, apenas teria de informar a chefia do Rádio Naval. A proteção e segurança da ilha era constituída por dez praças fuzileiros e o radiotelegrafista, a chefia era de um sargento; a ilha tinha uma equipa de pilotos de barra e alguns marinheiros civis. Caió deve ter pouco mais de 1 km de comprimento e uns 800 m de largura, a sua importância tinha a ver com a estação de pilotos e o posto rádio, além de uma estação meteorológica.

O Comando de Defesa Marítima da Guiné, ao tomar conhecimento dos movimentos marítimos de e para Bissau, gerava uma mensagem que era enviada para o rádio de Caió. O radiotelegrafista recebia a mensagem e entregava uma cópia ao chefe dos pilotos e a outra ao sargento fuzileiro. Na referida mensagem também vinha a ordem de ativação do radiofarol da ilha. Quintão habituou-se à ilha, na manhã de 25 de Abril chegou a mensagem onde fazia referência aos acontecimentos na metrópole e que o MFA derrubara o regime. Recebeu a indicação de Bissau para que ele se aguentasse no posto de rádio operacional durante a retirada. Aceitou ficar ali sozinho, a mulher de um dos pilotos cozinhava para ele, ali permaneceu cerca de mais de dois meses depois da retirada dos fuzileiros.

Um dia apareceram-lhe uns homens do PAIGC, depois dos cumprimentos mostrou-lhes o posto de rádio, a central elétrica, o farol e as instalações. Finda a visita informaram-no que não podia alienar nada e que em breve voltariam. No seu relato, Quintão de Andrade Rodrigues refere o vaivém dos navios de transporte de tropas, o radiofarol a funcionar quase sem descanso, ele ia tomando notícia da retirada dos militares da Guiné-Bissau até que lhe chegou a informação que os últimos militares portugueses deixariam o país no dia seguinte. Quintão recebeu a informação de Bissau para estar pronto para embarcar a partir da ilha de Caió no dia seguinte, a bordo da fragata Roberto Ivens.

Quintão quis fazer as contas com a sua diligente cozinheira, esta não aceitou o dinheiro, ele entregou ao casal o dinheiro guineense que tinha e tudo o que ainda havia na dispensa, bem como algum equipamento de cozinha. No nosso blogue é possível encontrar um texto alusivo ao teatro de operações da Guiné em:
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/os%20nossos%20%C3%BAltimos%20seis%20meses.

E Quintão conclui assim a sua narrativa:
“Na manhã do dia 15 de outubro de 1974, acompanhado por todo o pessoal da ilha até ao porto, foi levado a bordo da pequena embarcação dos pilotos de barra por dois marinheiros civis assalariados da Marinha. A bondade e a simplicidade daquelas pessoas eram imensas e vi lágrimas nos olhos de muitos que estavam presentes no pequeno porto. Levava comigo pouca bagagem. Na ilha, andava quase sempre de calções e chinelos, mas tinha uma farda de trabalho completa que enverguei para o embarque. A pequena embarcação dos pilotos encostou-se à fragata e da entrada a bordo, a minha primeira preocupação foi entregar uma espingarda G-3 e uma pistola Walter, que me estavam atribuídas. Entreguei também uma bandeira nacional, que continuei a hastear na ilha até ao reconhecimento da independência da Guiné-Bissau.
Pouco tempo depois de regressar, os antigos pilotos de barra começaram a chegar a Portugal à procura de uma pensão, a que diziam ter direito. Confessaram-me que, na Guiné, estava tudo difícil e caótico: a estação de pilotos de barra deixara de existir e o farol estava sem funcionar.
Quero apenas contribuir para que a história seja dita e contada como ela foi. Vou tentar juntar-me ao blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Marinheiros, os primeiros a chegar e os últimos a partir."

A LDG Alfange
NRP Roberto Ivens
Caió, antigas instalações da Marinha, estação de pilotos. Ao fundo o farol, que terá sido construído em 1944, fotografia constante do nosso blogue
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Notas do editor:

Vd post de 24 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26524: Notas de leitura (1775): Um outro olhar sobre a Marinha na guerra da Guiné em "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

Úl timo post da série de 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26538: Notas de leitura (1776): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Quando escreveu em parceria com António Estácio sobre os chineses na Guiné (3) (Mário Beja Santos)