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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27241: Notas de leitura (1840): Mais perguntas do que respostas nestas fotografias em tempos de Império (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Foi uma muito bem organizada exposição representada no Padrão dos Descobrimentos, em 2021, com o foco do uso da fotografia ou memória fotográfica no período do colonialismo moderno. Se o leitor, ao folhear agora o livro-catálogo, estiver à espreita de encontrar respostas para este vasto acervo de imagens que se prendem com expedições científicas ou de demarcação de fronteiras, exibição de cerimónias ou mostra de usos e costumes, imagens associadas à "missão civilizadora", com escolas, professores missionários, aprendizagem de artes e ofícios, reordenamentos, as alvoradas do desenvolvimento e, inevitavelmente, as lutas de libertação, os diferentes instantes do conflito. Um belo livro-catálogo, um auxiliar que pode contribuir para modelarmos as respostas.

Um abraço do
Mário



Mais perguntas do que respostas nestas fotografias em tempos de Império

Mário Beja Santos

Com base na exposição que ocorreu no Padrão dos Descobrimentos, em 2021, intitulada "Visões do Império", coordenada por Manuel Bandeira Jerónimo e Joana Fontes, nesse mesmo ano a editora Tinta da China produziu um catálogo que referencia plenamente as matérias versadas no evento expositivo. Escrevia-se então:

“O que nos conta uma imagem? A fotografia foi um elemento fundamental da história do moderno colonialismo português. Sem ela, a idealização e o conhecimento sobre os territórios coloniais, seus recursos e populações, teriam sido diferentes. As imagens fotográficas foram encenadas e comercializadas, com diferentes propósitos: alimentaram a imaginação da dominação colonial, concorrendo para a sua concretização, ajudaram a moldar uma visão do “outro” como essencialmente diferente, nos seus modos de vida, costumes e mentalidades, mas serviram também para denunciar a iniquidade e a violência da colonização, acalentando aspirações de um futuro mais humano e igualitário – sonhos esses com diferentes matizes e orientações políticas. Os seus usos no passado e os seus legados no presente foram e são vastos, heterogéneos e duradouros.
As fotografias expostas são provenientes de várias coleções particulares e de inúmeras instituições, como o Arquivo Nacional Torre do Tombo, a Fundação Mário Soares/Maria Barroso, o Arquivo & Museu da Resistência Timorense, o Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe ou Centro de Documentação e Formação Fotográfica, em Maputo e algumas serão mostradas ao grande público pela primeira vez.”


Numa secção do catálogo escreve o historiador Aniceto Afonso:

“As visitas que fazemos a este período da recente História de Portugal dos novos países confronta-nos com um mundo que deixou subitamente de existir, mas cujas marcas se escondem nas sociedades herdeiras, que continuam magoadas.

A pertinência de um olhar historiográfico abrange, na procura do equilíbrio perante a extensa literatura colonial anterior, em que os temas antes na penumbra se tornam obrigatórios, como a violência, a discriminação, o racismo, a ausência, o domínio, a exclusão, não pode, ainda assim, excluir as influências mútuas, as lutas comuns, a construção de relações de cooperação e a visão de um mundo novo, emergente do fim dos impérios.

A fotografia é um documento fascinante, porque nos permite ‘ver’ um instante que existiu. A partir daí, a fotografia suscita infindáveis perguntas. Coloca-nos num tempo e num lugar, mas não resolve a nossa relação com os acontecimentos. Ou seja, cada uma das fotografias que analisamos sugere-nos questões, dificilmente responde às nossas interrogações, mas não deixa de nos inquietar.”


Em consonância entre a exposição e o catálogo, o que temos agora para folhear é suscetível de levantar mais perguntas do que oferecer respostas. O que aparece em diferentes secções tem como espaço e lugar o Terceiro Império, um branco no colonato do Limpopo parece contrastar com um operário negro moçambicano, isto como chamada de atenção para um vislumbre de uma História que tem pluralidade de visões, em todos os domínios abarcados na exposição. Logo as expedições, que podem até a ver com a delimitação de fronteiras, estudos geológicos, até curiosidades de um tempo em que se acreditava haver raças superiores e inferiores. Há os usos e costumes, destaque para as imagens que mostram o ‘gentio a civilizar-se’; e há o trabalho forçado que veio substituir a escravidão, como Manuel Bandeira Jerónimo analisa a propósito do cacau, por onde andaram chineses:

“Na viragem para o século XX, o caso do ‘cacau escravo’ em S. Tomé e Príncipe, alimentado pelo transporte forçado de milhares de trabalhadores negros oriundos sobretudo de Angola, mas também de Moçambique e até da China, foi um dos mais ampla e acerbamente debatidos. A situação acicatou o nacionalismo imperial, tão característico da época, alimentando teses mais ou menos conspirativas sobre a cobiça e as ambições estrangeiras (estiveram envolvidos missionários, sobretudo protestantes, industriais do cacau como os Cadbury, jornalistas, médicos e autoridades públicas). A fotografia assumiu um papel central, as imagens captadas serviram diversos propósitos: eram as ‘provas’ da ‘civilização’ contra as ‘provas’ da ‘selvajaria civilizada’ do colonialismo português e europeu.

Não faltarão imagens do que passou a ser designado como grandes operações de pacificação, a potência colonial trazia a administração, um posto médico ou de saúde, a escola missionária. Brancos de um lado, indígenas do outro, emergem no trabalho, em colonatos, em colheitas, nas escolas, como profissionais secundários na saúde, os missionários ganharão aqui relevo; com a chegada das administrações e com os planos das infraestruturas, lança-se igualmente a operação dos reordenamentos, fala-se em progresso social e do desenvolvimento, são expressões que acompanham a chamada ‘missão civilizadora’; dá-se a miscigenação cultural, criam-se bandas, grupos étnicos de bailado, emissões de rádio, há uma cidade para brancos e civilizados, cercada de musseques, onde vivem os indispensáveis para o funcionamento da indústria e do comércio; inopinadamente e com escassos anos de diferença, estalam as guerras de libertação, um regime imperial como o Estado Novo não estava preparado para aceitar a mudança dos tempos".


Como observa Afonso Dias Ramos:

“As insurreições eram apresentadas como primeiro e não último recurso dos rebeldes e, durante a guerra, esta lógica visual havia de ser levada ao cúmulo de converter a violência da ocupação colonial em simples e legítima autodefesa. Procurava-se extrair o máximo de capital político da exibição pública sensacional dos cadáveres das vítimas, utilizando fotografias escabrosas para justificar a guerra na Organização das Nações Unidas, mobilizar a sociedade civil, intimidar rebeldes e silenciar críticos. A intensa circulação das imagens impublicáveis focava-se no como e não no porquê dos ataques. Fixava-se nos seus aspetos irracionais para inviabilizar ideias políticas e invalidar as críticas à resposta desproporcional. Justapunha-se a retratos dos soldados como meros agentes da paz, civilização e ordem. Ao longo deste conflito, a brutal guerra foi sendo gradualmente rasurada da imprensa, enquanto as fotografias se iam reduzindo às inócuas vistas dos embarques e desembarques, entre os quais nada parecia ocorrer, até também estas serem proibidas, em 1969.”

Um livro-catálogo de 2021 que mantém flagrante a atualidade. Livro para guardar na estante.

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Nota do editor

Último post da série de 19 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27231: Notas de leitura (1839): A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27231: Notas de leitura (1839): A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Começa-se a remexer numa banca de livros e entre um romance de Pearl Buck e um catálogo de uma exposição de Bela Silva encontrei uma publicação sobre a Festa do Outono no Campo Grande, em outubro de 1956. Era uma organização da União do Grémio dos Lojistas de Lisboa e o Governo Civil, iniciativa de beneficência para os pobres de Lisboa. Comecei por folhear a publicidade da época, a pasta dentífrica Binaca, os eletrodomésticos Westinghouse, a Agência Mundial de Viagens, a Aguardente Macieira, a Farinha Fubá, a Casa Hipólito, o Gazcidla, a Sapataria Hélio... e muito mais. Já tinha esquecido a Casa Leonel, na Rua do Carmo 71, uma loja chiquérrima, com cristais importados, lustres, faqueiros, entrava para mirar. Mas o que me tocou nestas Festas do Outono foi recordar o Campo Grande da minha infância e juventude e a batalha de flores a que assisti, a 28 de outubro. Um Campo Grande com farta história, por ali se passearam exércitos, passaram manadas de touros e gado destinado ao matadouro; terá sido o espaço da mais opulenta feira de Lisboa do século XIX. Matei saudades e lembrei-me daquele Campo Grande florido que atravessei todos os dias úteis no período escolar, quando estudei no Colégio Moderno. Muito mais tarde apareceu a Biblioteca Nacional, onde beneficiei de leituras e continuo a beneficiar de exposições. Felizmente ainda tenho pernas para o percorrer em duas direções e, não é incomum, meter o nariz no Museu Rafael Bordalo Pinheiro ou no Museu da Cidade.

Abraço do
Mário



A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá

Mário Beja Santos

Dia de sorte na Feira da Ladra, encontro uma publicação com a programação das Festas do Outono promovida pelo Governo Civil de Lisboa e a União de Grémios de Lojistas da Cidade, ocasião para lembrar aos munícipes que o Campo Grande tinha arreigadas tradições, a Festa do Cavalo, por aqui se passeou o exército que D. Sebastião levou para a tragédia de Alcácer Quibir, igualmente por aqui cavalgou a Rainha D. Amélia, depois aqui se prantou enorme jardim arborizado e florido, aqui houve feira e mercado que fez história, vale a pena recordar.

No final do século XV, o Campo Grande e o Campo Pequeno denominavam-se, respetivamente, Alvalade-o-Grande ou Alvalade-o-Longo, e Alvalade-o-Pequeno. De um Campo Grande inculto criou-se um passeio público no princípio do século XIX, no tempo do Príncipe Regente D. João, futuro D. João VI. Plantou-se arvoredo em 1802 e 1803, abriu-se uma casa de pasto no fim do novo passeio. Quem adiantou dinheiro para o ajardinamento e plantações foi o 1º Barão de Porto Covo de Bandeira, aquele mesmo senhor que montou palacete na Rua de S. Domingos à Lapa, onde este a Embaixada da Grã-Bretanha e está hoje a Companhia de Seguros Lusitânia. Assim começou a vida turbulenta do passeio público por onde andaram tropas francesas e o exército inglês. E apareceu a Feira com as suas rixas e desordens, barraqueiros que vendiam comida em dias de jejum. Em 1830, o Campo Grande possuía terras de semeadura, fazendo-se uma eira defronte do Palácio Pimenta, onde está hoje o Museu da Cidade. Em meados do século por aqui se efetuavam corridas de cavalos e em 1869 principiaram os trabalhos de embelezamento com as escavações do grande lago.

A atual igreja construída com a receita da venda de bilhetes da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e com o produto de uma feira livre no Campo Grande, autorizada por um alvará de 1778.

O sítio era a redondeza de Lisboa, tornou-se agradável andar por aqui aos domingos e dias santificados, vinha-se para passear às “hortas”. Os alfacinhas vinham ver as esperas de touros, apareceram as casas de petiscos e os chamados “retiros”, de que resta o “Quebra-bilhas”. O Campo Grande estava rodeado de muros baixos e as famílias que para ali iam veranear juntavam-se regularmente no jardim. Não faltava o fado nas casas de comes e bebes. Foi assim que apareceu a feira, tinha lugar em outubro de cada ano, chegou a prolongar-se até dois meses. Efetuava-se perto da Igreja dos Santos Reis Magos e do chafariz. Uma feira com uma certa opulência: transações em ourivesaria e relojoaria; aqui se podiam comprar linhos, algodões, louça de ferro, ferramentas, cutelarias. A par de tudo isto, encontravam-se os negociantes de castanhas, passas, nozes e frutas verdes, não faltavam galináceos nem queijaria. Completavam a feira as barracas de quinquilharias, figuras de cera, vendedores ambulantes de bolos, pão de milho, capilé e copo com água. Não havia circo, mas havia ursos que faziam habilidades ao toque do pandeiro e as ciganas liam a sina. Quando, em 1932, se transferiu a feira para o Lumiar, morreu o movimento, a transferência foi um golpe de misericórdia. Claro está que ganharam outra dimensão feiras existentes em Lisboa.

Cheguei ao Bairro de Alvalade em 8 de maio de 1952, vinha de Algés e frequentava a primeira classe no Colégio Portugal, no fim da Avenida das Descobertas, perto daquela enorme rotunda onde pontificava uma praça de touros, cercada de ervas daninhas. Nunca tinha visto uma fila de prédios, com uma rua alcatroada à frente, e esta encostada a uma quinta com muros antiquíssimos, a quinta do Visconde de Alvalade, enorme, vinha lá muito de cima, onde está hoje a Avenida dos EUA e estendia-se até ao monumento dedicado aos heróis da Guerra Peninsular, um extenso olival já muito mal tratado, onde anos depois se levantaram prédios de cor verde, havia barracões que confinavam com a moradia onde funcionava a esquadra da polícia do Campo Grande, foi tudo demolido para dar lugar à Clínica de S. João de Deus.

Frequentei a Escola Primária n.º 151, ela ainda lá está de pé, toda retocada, o principal lazer da pequenada era brincar nos logradouros ou percorrer a estruturas ainda em cimento dos prédios da Avenida dos EUA, que foram sendo construídos até à estação da CP Roma-Areeiro. Passeios no Campo Grande só na companhia da minha mãe ou da minha avó ou com os meus irmãos; ou nas idas à catequese na Igreja dos Santos Reis Magos.

Tenho, pois, onze anos quando vamos em magote, pequenada e pais, ao fundo do Campo Grande ouvir as bandas de música, os cortejos e no derradeiro dia da festa, a 28 de outubro, ver a “Batalha das Flores”. O Campo Grande tinha belos jardins, dois lagos, como hoje, foi aparecendo estatuária, havia o ringue de patinagem, apareceu um café junto do lago maior, onde há barcos, o café tinha uma bela peça de cerâmica assinada por Júlio Pomar, junto do lago pequeno apareceu mais tarde uma biblioteca ao ar livre, o jardim era muito mais amplo do que hoje, do lado esquerdo de quem desce em direção ao Museu da Cidade havia muita habitação e até uma fábrica de massas, a continuidade de edifícios era interrompida por um vasto campo onde está hoje a Biblioteca Nacional de Portugal, novamente mais prédios, depois a Estrada de Malpique, tendo já ao fundo o Colégio Moderno, depois um largo caminho, ainda não tinha nascido a Cidade Universitária, mais moradias, a Fábrica Nally, que produzia cosméticos, ia-se por ali fora passando por moradias até ao Palácio Pimenta. No fundo do Campo Grande, surgia uma soberba alameda com palmeiras, espaço de grandes passeios.

Mantive (e ainda mantenho) uma excelente relação com o Campo Grande. Muitos dos meus passeios pedestres orientam-se para ali. O jardim mingou, estreitou, em benefício do rei automóvel. O jardim são manchas de verde, compactas, com muitas patas de cavalo e arborização que deve custar pouco em termos de jardinagem. O Caleidoscópio, que tinha uma bela livraria, perto do lago do Campo Grande, deu lugar a um espaço de estudo e uma loja McDonald’s; a Avenida das Palmeiras continua de pé e sente-se a muita animação da gente que vem jogar ténis e padel; por razões de pudor, fujo de olhar para o ringue de patinagem, tal é a carga de saudades dos tempos festivos que ali passei. E sempre que posso visito quer o Museu Rafael Bordalo Pinheiro ou o Museu da Cidade, dois espaços culturais magnificentes. Mas nunca mais houve a Feira do Outono e o jardim não tem coreto de música. Soube-me muito bem recordar aquele dia de outubro de 1956, que aqui partilho convosco.

Lisboa de antigamente, o Campo Grande em frente à Igreja dos Santos Reis Magos, senhoras de chapéu, criada a tomar conta da menina, meninos embarretados e descalços, fachadas de prédios do início do século XX, ao fundo, o chafariz era presença obrigatória
Quando a feira do Campo Grande era a mais importante de Lisboa
Um jardim do Campo Grande em que o elétrico era o transporte rei
Era assim a primitiva ponte sobre o lago do Campo Grande
A igreja dos Santos Reis Magos, à esquerda ainda com muro, à direita com um conjunto de anexos que depois desapareceram; só conheci a igreja sem muro e sem anexos
O bairro onde vivi de 1952 a 1968 e de 1982 a 1994. A grande superfície ajardinada desapareceu, na rotunda está a estátua de S. António, toda a praça tem edifícios, lá ao fundo nasceu o centro comercial de Alvalade e encostado àquele prédio da Avenida de Roma nasceu outro prédio onde está hoje a ADSE. Vê-se ao fundo no ponto alto a torre do relógio da Escola Primária, a n.º 33, a minha escola era a nº 151, a uma escassa distância de centenas de metros
Lembro-me perfeitamente deste Campo Grande da década de 1950, tinha a faixa para autocarros e automóveis e nas margens a linha do elétrico. Vemos dois prédios do fim da Avenida da Igreja, a nova arborização a ladear a faixa rodoviária e aquele prédio de 1.º andar tinha sido ocupado por operários que trabalhavam na fábrica onde hoje se localiza a Universidade Lusófona, desapareceu há poucos anos, deu lugar a mais um hotel
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Nota do editor

Último post da série de 15 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27221: Notas de leitura (1838): "Uma Outra Perspectiva", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2023 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27221: Notas de leitura (1838): "Uma Outra Perspectiva", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Quando leio as narrativas do escritor Rui Sérgio, que foi alferes-médico num batalhão sediado em Galomaro, interrogo-me sobre o que aconteceu no Leste da Guiné desde agosto de 1970, altura em que regressei a casa, e os acontecimentos que ele descreve vividos predominantemente em 1973 e 1974. A partir de novembro de 1969, passei à intervenção em Bambadinca exclusivamente com um pelotão de caçadores nativos. Íamos corriqueiramente cumprir missões através de cimento, transporte de doentes a locais como Galomaro (então sede de companhia), Madina Bonco, Afiá, Madina Xaquili e outros pontos que Rui Sérgio aqui refere como autênticas operações, isto enquanto nós percorríamos estas regiões com num Unimog 411, ao nível de secção, impensável recorrer à picagem da estrada. Cumpríamos a coordenação das colunas que se organizavam a partir de Bambadinca até ao Saltinho, exatamente nos mesmos termos que Rui Sérgio descreve, só com a distinção que não parávamos em Mansambo, embora a tropa local picasse a estrada e ficasse em vigilância até à nossa passagem no regresso a Bambadinca. Muito provavelmente, o desaparecimento dos destacamentos de Béli e Madina de Boé deixaram o Boé mais permeável às investidas das forças do PAIGC. O régulo do Cossé, Mamadu Sanhá, tenente de 2.ª linha, dizia a quem o queria ouvir que ninguém do PAIGC se atrevia a molestar a vida dos habitantes do Cossé, isto até agosto de 1970. Vemos agora o batalhão em Galomaro, escusam de me dizer que a guerra não se tinha acentuadamente agravado no Leste.

Um abraço do
Mário



Há lembranças que aquele alferes médico não quer deixar apagar

Mário Beja Santos

É o mais recente livro de Rui Sérgio, intitula-se Uma Outra Perspetiva, 5Livros, 2023. São lembranças avulsas, por vezes releva o olho clínico, há queixumes e não menos azedumes, mas aquela natureza, as solidariedades, a sua atividade como alferes-médico colaram-se-lhe à pele, escreve como ninguém sobre a Guiné, mesmo quando aqui e ali se repete ou regressa à mesma história com outro pormenor. E momentos há em que narrador e leitor coincidem no olhar.

Logo as pragas, lembra uma praga de sapinhos, as viaturas a esborrachá-los, os gafanhotos, predadores terríveis, nuvens que quase encobrem o Sol; e os morcegos, a sair dos telhados do quartel, aos milhares, à noite era vê-los a comer os insetos, ótimo, eram menos picadas sobre nós. E recorda o Santos, maqueiro, que o chamou para ver o centro de saúde militar em Galomaro, centenas senão milhares de morcegos dependurados de cabeça para baixo nas traves do telhado, à procura de alimento, talvez insetos ou gafanhotos ou aranhas voadoras.

Não esquece as expedições ao Saltinho, de Galomaro a Bafatá, daqui a Bambadinca, aqui organizava-se uma grande coluna, pelo trajeto, que incluía Mansambo, a Ponte dos Fulas, Xitole e depois Saltinho, com inversão de marcha para evitar emboscadas e minas, ao longo do trajeto gente dos diferentes aquartelamentos ficavam e guardavam a passagem da coluna.

E vem o testemunho do profissional, a assistência médica no mato, ele fala na evacuação Yank (nós conhecíamo-la por Y), o alferes-médico e o cabo-enfermeiro seguiam no helicóptero como soros e mala de medicamentos. Rende uma homenagem aos anjos do céu, as enfermeiras paraquedistas. Volta a recordar Bacar, dava-lhe apoio no centro de saúde civil, ficara sinistrado numa mina antipessoal, era um intérprete de um médico, transmitia a sintomatologia do doente, filtrava a lista de doentes de acordo com as etnias. De igual modo, volta a lembrar o comandante Braima, um Futa-Fula alto e esguio, muito respeitado pelos seus pares (pisteiros e milícias).

O alferes-médico tinha em Galomaro a seu cargo a missão do sono e no pequeno hospital tratava tuberculosos e leprosos. Enuncia o tratamento dos leprosos, as dosagens, as manifestações, o que tomavam os tuberculosos, quais os seus sintomas e fala da vacinação das crianças.

Há também a lembrança do Sr. Regalla, proprietário do restaurante Pescaria em Galomaro. Um dia o alferes-médico perguntou-lhe se era do PAIGC, o Sr. Regalla contestou, era cabo-verdiano, o alferes-médico ripostou: “Sr. Regalla, disseram-me que tem um filho que se chama Agnello que se encontra na Suécia, em Upsalla, na produção de livros escolares do PAIGC.” O Sr. Regalla disse que era tudo mentira, o alferes-médico confirmou posteriormente ser tudo verdade.

As recordações não param, a onda do macaréu a subir o rio Geba, os ataques de abelhas, o fanado, os acontecimentos de Guidaje e Guileje, as suas recordações chegam à Marinha e aos Fuzileiros, manifesta-lhes gratidão, alude à importância dos botes pneumáticos utilizados pelos Fuzileiros, os zebros, retorna aos agradecimentos à Marinha, pelo seu papel fundamental na logística no transporte através dos rios em lanchas de diverso porte, recorda um acontecimento que envolveu um parente seu:
“O patrulhamento do Cacheu através das lanchas de fiscalização grandes como a Hidra, comandada em 1973 por um meu primo direito, o 1.º Tenente Jaime Luís Vieira Coelho eram fiscalizações com certo risco, como aconteceu em 20 de maio de 1973, em que houve um ataque à lancha com rebentamentos e incêndio no convés do navio, imediatamente apagado. Ataque na curva de Jugali. Houve feridos provocados pelos rebentamentos com RPG 2 e 7 e que atingiram os cunhetes de munições da peça de artilharia Bofors do Levante.”
As suas recordações retornam às colunas de abastecimento ao Saltinho, local que ele considera paradisíaco, a água revolta dos rápidos centros rochedos, o marulhar das águas e o seu espelhado refletindo o Sol, sentiam-se acobertados de paz e sensação do repouso do guerreiro.

Uma boa parte da sua narrativa prende-se com a crítica que faz à descolonização, aos fuzilamentos da tropa africana, mostra-se favorável à criação de um exército europeu e à exploração que os chineses fazem das riquezas florestais, mais propriamente as madeiras exóticas da Guiné-Bissau.

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Nota do editor

Último post da série de 12 de Setambro de 2025 > Guiné 61/74 - P27212: Notas de leitura (1837): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 11 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27212: Notas de leitura (1837): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 11 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
Convém recordar o móbil que acompanhou esta compilação de textos, os três volumes de Documentos da Expansão Portuguesa, organizados pelo Vitorino Magalhães Godinho. Falamos aqui no blogue sistematicamente na Senegâmbia, parecia-me, estou em crer, uma descrição das nossas navegações e explorações da costa para se percecionar o que se entende por Grande Senegâmbia. Não é por acaso que aqui se mostra uma carta de 1680, oriunda de França. Não dispúnhamos de meios para fazer comércio em todas as rias e rios, cedo começou a concorrência, e depois da Restauração o país foi confrontado com a dura realidade, ocupava-se, e tenuamente, a Pequena Senegâmbia, franceses e britânicos tinham ocupado vastos territórios que constituem hoje, grosso modo, o Senegal, a Gâmbia, a Guiné Conacri e a Serra Leoa. Foram invocados os principais documentos referentes a esta digressão, há este ou outro ponto que se tratará separadamente, é o caso dos Fulas do Senegal, artigo de Teixeira da Mota.

Abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 11

Mário Beja Santos

Entra-se no derradeiro capítulo do livro Documentos sobre a Expansão Portuguesa, Volume III, organizado por Vitorino Magalhães Godinho. O historiador procede aqui ao levantamento documental com referência às navegações na costa ocidental africana, antes e depois da morte do Infante D. Henrique, fica-se agora com uma imagem do que se podia considerar a Grande Senegâmbia, do século XV para o século XVI, entre o continental Cabo Verde, no norte do Senegal, até à Serra Leoa. Falando desta, diz Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo:
“E muitos cuidam que este nome de Serra Leoa lhe foi posto por aqui haver leões, e isto é falso, porque Pedro de Sintra, um Cavaleiro do Infante D. Henrique, que por seu mandado esta terra descobriu, por ver uma terra tão áspera e brava lhe pôs nome Leoa, e não por outra causa; e isto se não deve duvidar, porque é verdade, porque ele mo disse assim.”

Repetidamente Duarte Pacheco Pereira sublinha que em vida de D. Henrique se descobriu só até à Serra Leoa, o que João de Barros confirma, e até Rui de Pina, importa recordar o que João de Barros referiu a propósito do contrato celebrado com Fernão Gomes:
“… o arrendou por tempo de cinco anos a Fernão Gomes, um cidadão honrado de Lisboa, por duzentos mil reais cada ano. Com a condição de que em cada um destes cinco anos fosse obrigado a descobrir pela costa em diante cem léguas, de maneira que no cabo do seu arrendamento desse quinhentas léguas descobertas. O qual descobrimento havia de começar da Serra Leoa, onde acabaram Pedro de Sintra e Soeiro da Costa, que foram antes deste arrendamento os derradeiros descobridores.”
Magalhães Godinho em nota observa que o historiador Jaime Cortesão aventara a hipótese de que até 1460 não só se teria explorado o Golfo da Guiné, como ainda a Costa de África Meridional, argumentação que foi refutada por Duarte Leite.

Ganha realce o que escreveu Cadamosto na Navegação Segunda acerca do Capitão Pedro de Sintra que navegou de região de Buba até ao Cabo da Verga:
“O que tenho referido é o que eu vi, e ouvi no tempo que andei por estas patas: mas após mim foram outros, e principalmente duas caravelas armadas, que El-Rei de Portugal mandou depois da morte do Senhor Infante D. Henrique, cujo capitão era Pedro de Sintra, escudeiro do Infante, percorreu adiante por aquela costa dos negros a descobrir países novos.”
Cadamosto encontrou Pedro de Sintra em Lagos e falara-se muito sobre aquela terra dos Negros, referindo concretamente a ida até aos Bijagós e ao cabo a que puseram o nome de Cabo da Verga, daqui navegaram ao longo da costa cerca de oitenta milhas, descobriram um outro cabo, era o mais alto que nunca tinham visto, puseram-lhe o nome de Cabo de Sagres, também conhecido por Cabo de Sagres da Guiné; referiu Pedro de Sintra que os habitantes da região era idólatras, adoravam imagens de pau com forma humana, tinham alguns sinais feitos com ferro em brasa na cara e cobriam o sexo com cascas de árvore, não dispunham de armas porque não havia ferro e sustentavam-se de arroz, milho e legumes, havia também carne de vaca e cabra.

Por o mar dentro deste cabo estavam duas ilhas, os seus habitantes dispunham de almadias, muito grandes, em cada uma das quais navegam trinta a quarenta homens. “Tem esta gente as orelhas furadas com buracos por todas elas, em que trazem diversos anéis de ouro uns após os outros, todos alinhados; e também têm o nariz furado no meio em a parte inferior, e nele trazem pendurado um anel de ouro do mesmo modo que entre nós trazem os búfalos: e quando querem comer o tiram, usando dele tanto os homens como as mulheres. Dizem também que as mulheres dos reis e senhores, ou dos homens ricos deste país, todas têm nas suas partes genitais do mesmo modo que nas orelhas alguns furos, em que trazem por dignidade, e como prova de grandeza e estado anéis de ouro, os quais tiram e põe em seu arbítrio.”

Prossegue o relato, já se passou o Cabo de Sagres, avistou-se o rio chamado de São Vicente, escreve-se que a costa é montuosa, e por toda ela há bons surgidouros e bom fundo, passa-se o Cabo Ledo, e depois avista-se a Serra Leoa. “Passada toda esta costa da Serra Leoa, daí para diante é tudo terra baixa, e praia com muitos bancos de areia, que entram pelo mar dentro, e andando coisa de trinta milhas mais adiante da ponta daquela montanha, acha-se outro grande rio largo na sua foz, coisa de três milhas, ao qual puseram o nome de Rio Vermelho.”

Pedro de Sintra faz a descrição do que aqui se avista, passa-se depois além do Cabo de Santana, a seguir o Cabo do Monte, e umas boas milhas adiante há um bosque grande com muitas árvores verdíssimas, ao qual deram o nome de Mata de Santa Maria, vieram até às caravelas pequenas almadias, homens nus que traziam nas mãos paus aguçados na ponta, que pareciam uma espécie de dardos, e alguns estavam armados de uns cutelos pequenos, tendo todos duas adargas de couro com três arcos, não se entendia uma só palavra. Entraram em uma das caravelas e destes três retiveram um os portugueses, e deixaram ir os outros; e isto para cumprir com a ordem d’El-Rei, que lhes determinou, que na última terra onde chegassem, não querendo passar mais avante, se porventura os seus intérpretes não fossem entendidos da gente dela, tratassem de lhe trazer, ou por bem ou por mal, alguns dos negros daquele país, para poder fazer neles averiguações, por via dos muitos intérpretes negros que se acham que Portugal; ou mesmo pelo tempo adiante aprenderem eles a falar português.

Regressou-se a Portugal, o homem trazido falou com diversos negros, e por uma escrava de um cidadão de Lisboa houve entendimento. O que o dito negro referiu a El-Rei, por meio daquela mulher, não se entende bem, exceto que entre outras coisas acharem-se na sua terra unicórnios vivos: e assim o dito Senhor tendo retido alguns meses e feito mostrar muitas coisas do seu reino, dando-lhe algumas roupas, com grandes carícias o fez conduzir de novo por uma caravela ao seu país: e deste último lugar não tinha passado navio algum até à minha partida de Espanha, que foi no primeiro dia do mês de fevereiro de 1463. E assim termina a Navegação Segunda de Cadamosto.

Resumindo as notas de Magalhães Godinho, em 1460, ano da morte do Infante D. Henrique, Pedro de Sintra terá chegado ao Cabo Ledo, só depois é que se descobriu a Mata de Santa Maria; Pedro de Sintra explorou numa primeira viagem, talvez em 1460, o litoral da Terra dos Negros, desde o Rio Geba até à ponta ocidental da Serra Leoa (o Cabo Ledo). A viagem seguinte de Pedro de Sintra terá tido a iniciativa do Rei, Pedro de Sintra esteve mais tarde ao serviço do rico burguês lisboeta Fernão Gomes. Mais observa Magalhães Godinho que numa carta portuguesa de cerca de 1471 se faz referência ao Rio Grande (certamente do Geba), ao Rio Buba e ao Rio Tombali até ao Cabo da Verga. Noutra carta de 1486 já se fala dos Nalus, de palmares, Rio de Nuno e Cabo da Verga; e confronta estas cartas com os textos de Duarte Pacheco Pereira e de Valentim Fernandes, concluindo que a exploração da costa por Pedro de Sintra foi muito sumária.


Vitorino Magalhães Godinho, Ministro da Educação e da Cultura, imagem dos arquivos da RTP, com a devida vénia
Mapa da Serra Leoa, 1732
Mapa de 1899 mostrando territórios dos Biafadas para lá do Geba
Carta de África e das ilhas de Cabo Verde por Sanson, cerca de 1680
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Notas do editor

Vd. post de 5 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27188: Notas de leitura (1835): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27197: Notas de leitura (1836): O uso do napalm na guerra da Guiné, na Revista de Relações Internacionais de Junho de 2009 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27197: Notas de leitura (1836): O uso do napalm na guerra da Guiné, na Revista de Relações Internacionais de Junho de 2009 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Não encontro somente na Feira da Ladra correspondência que já devia estar guardada no Arquivo Histórico-Militar, os vendedores de espólios permitem-nos adquirir pequenos tesouros informativos, obras desconhecidas, artigos inseridos em publicações onde não era imaginável encontrar um artigo como este, como o uso de napalm na Guiné. De 2009 à presente década, têm surgido relatos, sobretudo de oficiais da Força Aérea, que sugerem o uso de tais bombas e desfolhantes. Há que aguardar com expectativa o derradeiro livro que o José Matos está a escrever sobre o Santuário Perdido (história da Força Aérea na Guiné, falta o período 1973-1974) para saber se esta questão das bombas de napalm é pelos autores equacionada.

Um abraço do
Mário



O uso do napalm na guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Na revista Relações Internacionais R:I, n.º 22, junho de 2009, António Araújo e António Duarte Silva publicaram o artigo intitulado O uso de napalm na guerra colonial. O ponto de partida foi o conjunto de quatro documentos localizados no Arquivo da Defesa Nacional: 

  • um documento datilografado, classificado “muito secreto”, com a assinatura do Tenente-Coronel José Luís Ferreira da Cunha, do Gabinete do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, de 9 páginas, com a data aproximada de 9 de maio de 1973; 
  • um documento em papel timbrado do Comando-chefe das Forças Armadas da Guiné, classificado “secreto”, datado de Bissau, 27 de maio de 1974 e assinado pelo Comandante-Chefe Carlos Fabião; 
  • um documento com indicação “Comando-chefe das Forças Armadas da Guiné – Quartel General, 3.ª Repartição”, datado de 28 de maio de 1974;
  • documento datado de 19 de junho de 1974, não assinado, classificado como “secreto”, do Chefe do Gabinete do Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Tenente-Coronel Ferreira da Cunha, destinado ao Chefe do Gabinete do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, o assunto é “bombas napalm”.

Da análise interna feita por estes autores, pode apurar-se: um documento anterior ao 25 de abril, muito provavelmente do início de maio de 1973, que justifica a posse e utilização de napalm e outras armas incendiárias pelas Forças Armadas Portuguesas nos três teatros de operações; um ofício, de 27 de maio de 1974, do Comandante-Chefe Carlos Fabião, solicitando instruções quanto ao destino a dar às bombas napalm existentes naquele território, quantificadas em 1170 bombas NAP de 350 litros e 790 bombas NAP de 100 litros, sugere-se a sua transferência para a Ilha do Sal. Documentos de incontestável valor histórico, com o condão de exigir uma reflexão mais aprofundada quanto ao uso de bombas incendiárias em combate por parte das Forças Armadas portuguesas.

À data da publicação deste artigo dizia-se não existirem estudos especificamente dedicados ao tema. Havia algumas menções como, por exemplo, num artigo de Mário Canongia Lopes publicado na revista Mais Alto, e o livro de Luís Alves Fraga intitulado A Força Aérea na Guerra em África – Angola, Guiné e Moçambique, Prefácio, 2004. 

Estas referências aludem a napalm utilizado contra objetivos militares bem definidos, tais como posições de artilharia antiaérea, napalm carregado em depósitos de origem norte-americana havendo combustível fornecido por Israel. Adiantam os autores que era reconhecido o uso de bombas de 50 quilos de 60 litros de napalm em certas operações de destruição de meios antiaéreos do PAIGC, caso das operações Resgate e Estoque.

Parece claro, aceitando o depoimento do Marechal Costa Gomes, que no seu tempo de Comandante-Chefe em Angola nunca se utilizou napalm, embora reconhecendo que havia napalm e desfolhantes no território, que tais desfolhantes foram usados só no Leste. Publicadas estas declarações, vários oficiais vieram negar veementemente que as nossas tropas algum dia tivessem utilizado napalm. E os autores voltam a observar que, pelo menos até meados de 1973, as Forças Armadas portuguesas utilizaram napalm e outras bombas incendiárias nos três teatros de operações em África.

Napalm e bombas incendiárias são uma das matérias mais controversas quanto ao seu uso durante as guerras, daí o silêncio quase absoluto do assunto. A Guiné era o território onde mais se recorria a este tipo de armamento. O consumo médio mensal era de 42 bombas incendiárias de 300 kg, de 72 bombas incendiárias de 80 kg e de 273 granadas incendiárias M64. 

O napalm foi utilizado na Guiné desde 1965, nomeadamente na operação Resgate, realizada na Península do Cantanhez, e tudo indicia que as bombas incendiárias foram usadas até ao 25 de Abril de 1974.

Voltando ao indisfarçável incómodo que se traduzia no uso destas armas, sabia-se que a opinião pública tinha um horror visceral pelo uso destes líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada. E os autores adiantam um elemento histórico informativo sobre o uso do napalm e o pavor da opinião pública, referindo que a partir da guerra do Vietname os seus efeitos sobre os seres humanos apareceram ilustrados em imagens crudelíssimas, divulgadas por todo o mundo. 

É o caso da célebre fotografia de uma rapariga sul-vietnamita de 9 anos, gravemente queimada pelo napalm, a fugir dos bombardeamentos, publicada em 1972. De acordo com a informação disponível não foram captadas imagens deste teor.

Igualmente os autores recordam os preceitos do direito internacional, ao tempo ainda não se podia falar rigorosamente de interdição das armas bacteriológicas (ou biológicas) e, muito menos, das armas químicas. Seja como for, em agosto de 1968, Amílcar Cabral enviara uma petição à Comissão de Descolonização da ONU, assinalando que as forças portuguesas bombardeavam intensamente o território com napalm e fósforo branco e se preparavam para recorrer a produtos químicos desfolhantes e tóxicos contra as populações locais, uma matéria que levou à resolução condenando Portugal. 

No ano seguinte, Cabral voltou a denunciar o uso de napalm pelas forças militares da Guiné, na sua intervenção oral o líder do PAIGC denunciou tais bombardeamentos, estavam comprovados com testemunhos.

Voltando à análise dos quatro documentos constantes do Arquivo da Defesa Nacional, o marechal Costa Gomes despachou favoravelmente a proposta de Fabião para a retiradas das bombas da Guiné, o que não deixa de nos provocar uma certa estupefação já que Costa Gomes tinha afirmado nada saber contra o uso de napalm na Guiné. 

Quanto a António de Spínola, apesar de nunca se ter pronunciado expressamente sobre o tema, podem citar-se alguns testemunhos inequívocos constantes no livro sobre a guerra da Guiné publicado em 1973 na África do Sul, foi seu autor Al Venter, o uso de bombas napalm armazenadas no aeroporto de Bissau, não correspondiam a marcas da NATO ou dos Estados Unidos, alguns dados sugeriam que Portugal se encontrava a produzir as suas próprias bombas. Também da leitura à informação do Tenente Manuel Ferreira da Cunha se pode depreender que havia justificação para a continuação do recurso àquele tipo de armamento.

No termo do seu artigo, os autores realçam um ponto: até ao 25 de Abril uma quantidade apreciável de bombas incendiárias permaneceu em África – ou, pelo menos, na Guiné. Se continuaram a ser utilizadas após a informação de Ferreira da Cunha, é algo que se desconhece. Mas estes documentos revelam que a incómoda e desconfortável presença do napalm em África se prolongou, pelo menos, até maio de 1974.

Napalm montadas em T6, na BA 12. Foto de Arnaldo Sousa
Guiné 1969, T6 com bombas de napalm. Foto de Alberto Cruz
BA 12 - Fiat armado com bomba de Napalm.
Imagens retiradas do blogue Clube de Especialistas do AB4
Imagens retiradas de um artigo do Major General Piloto Aviador Krus Abecasis sobre o uso do napalm em operações para destruição de sistemas antiaéreos do PAIGC, publicado na Revista Militar, dezembro de 2008

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Nota do editor CV:

Por pura coincidência, e uma vez que as recensões do nosso confrade Mário Beja Santos, são publicadas, normalmente, por ordem de chegada, o assunto de hoje tem a ver com o que andamos a discutir actualmente no Blogue, o uso de bombas incendiárias/napalm na Guiné.
Fica a justificação, mesmo que desnecessária.

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Nota do editor

Último post da série de 5 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27188: Notas de leitura (1835): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27188: Notas de leitura (1835): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
Continuando na companhia de Usodimare e de Cadamosto, pareceu-me útil transcrever o que eles dizem do Cabo Verde continental, isto na Primeira navegação, na Segunda irão referir a descoberta de ilhas do arquipélago, matéria que não é consensual entre os historiadores da expansão portuguesa. A navegação Segunda prende-se com a descoberta das ilhas de Cabo Verde, seguramente que nalguma delas puseram os pés em terra, como mencionam: "Mandei dez homens bem providos de armas e bestas que deviam subir à dita ilha por uma parte onde ela era multuosa e alta, para ver se achavam alguma coisa ou se avistavam outras ilhas. Quando estiveram na montanha, houveram vista de três outras ilhas grandes, das quais não nos tínhamos apercebido." Viajaram depois até ao rio Casamansa. Peço a atenção do leitor para as notas de Vitorino Magalhães Godinho. O próximo e último artigo prende-se com a navegação de Pedro de Sintra. Lembro ao leitor mais interessado que na internet, pondo "relações comerciais com a Senegâmbia nos séculos XV e XVI", encontrar-se-ão textos, alguns deles produzidos em universidades brasileiras.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10

Mário Beja Santos

Para concluir a Primeira navegação de Usodimare e de Cadamosto, importa fazer referência à questão da descoberta do Cabo Verde, escrevem o seguinte, dando a possibilidade ao leitor de distinguir o Cabo Verde continental das ilhas pretensamente descobertas por eles e que gozam do nome de Cabo Verde:
“Este Cabo Verde chama-se assim, porque os primeiros que o descobriram, que foram portugueses, um ano antes que eu fosse a estas partes, o acharam todo verde pelas grandes árvores que ali se conservam viçosas por todo o ano; e por esta causa lhe foi posto o sobredito nome, assim como o de Cabo Branco àquele de que antes falámos, que foi achado todo arenoso e branco. Este Cabo é muito belo e alto de terreno e tem sobre a ponta duas lombadas, isto é, dois montículos, e mete-se bastante pelo mar dentro: sobre ele e à roda estão muitas habitações de negros, casas de palha, todas junto à costa e à vista dos que passam; e estes negros são ainda do sobredito reino do Senegal. Pegam com ele alguns bancos, que saem pelo mar, quase meia milha; e tendo-o dobrado achámos três ilhas pequenas não muito longe da terra, desabitadas, e abundantes de árvores viçosas, e grandes: pelo que tendo necessidade de água deitámos âncora em uma delas, que nos pareceu maior, e mais frutífera: para ver se ali achávamos alguma fonte; porém descidos em terra não vimos senão um lugar onde parecia nascer alguma água, que não nos pode servir.

Nesta ilha achámos muitos ninhos e ovos de diversas árvores, para nós desconhecidas: e aqui estivemos todo aquele dia pescando com redes e anzóis grandes; e apanhámos infinitos peixes, e dentro deles dentais e douradas grandíssimas do peso de doze a quinze libras cada uma. No dia seguinte partimos fazendo-nos à vela; e seguindo a nossa derrota, navegando sempre à vista de terra, notámos que além de Cabo Verde se mete um golfo para dentro; e a costa é toda terra baixa, e abundante de belíssimas e grandessíssimas árvores verdes, que não perdem a folha em todo o ano, como acontece às nossas; mas nasce primeiro a folha, antes que a outra caia: vão estas árvores até sobre a praia, a um tiro de besta, de sorte que parece que vem a beber no mar, o que é belíssimo para ver: e segundo o que eu entendo, apesar de ter navegado por muitos lugares do Levante e Poente, nunca vi terra mais bela do que esta me pareceu, e é toda banhada por muitos rios e regatos pequenos e de pouca monta, pelos quais não podiam entrar navios grandes.”


E vamos agora iniciar a navegação Segunda, a que vai levantar grande discussão entre historiadores. Dá-se a explicação do acordo estabelecido entre Cadamosto e Usodimare, para armar uma caravela, partiram de Lagos, fizeram-se às ilhas Canárias, vão por aí fora, viajaram pelos rios da Senegâmbia, depois do rio Gâmbia saíram para o mar, viram ser aquela terra muito baixa com árvores verdes e belíssimas, navegaram dois dias pela costa sempre à vista de terra, descobriram ao terceiro dia a foz do rio de razoável grandeza, mas muito menor que o rio de Gâmbia. Foram intérpretes a terra para saber notícias do país, voltaram dizendo que o rio se chamava de Casamansa, era o rio do Senhor de Casamansa que habitava rio acima coisa de trinta milhas, notou-se que do rio Gâmbia até ao de Casamansa eram coisa de vinte e cinco léguas que fazem cem das milhas portuguesas. Findamos aqui a descrição da navegação Segunda.

Passa-se para o capítulo sexto deste volume III, temos a exploração do litoral africano desde o rio Geba até à mata de Santa Maria, fica-se assim com a dimensão daquela área que durante séculos se designou Senegâmbia. O texto invocado por Vitorino Magalhães Godinho é proveniente do Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira:
“E muitos cuidam que este nome de Serra Leoa lhe foi posto por haver ali leões, e isto é falso porque Pêro de Sintra, um cavaleiro do Infante D. Henrique que por seu mandado esta terra descobriu, por ver uma terra tão áspera e brava lhe pôs o nome Leoa, e não por outra causa. Esta serra tem uma ponta que há o nome Cabo Ledo; e esta serra Leoa se aparta do círculo da equinocial em ladeza oito graus, e estes mesmos graus se levanta ali o polo ártico sobre o círculo do hemisfério… e até aqui descobriu o virtuoso Infante D. Henrique.

Muitos benefícios tem feito o virtuoso Infante D. Henrique a estes reinos de Portugal, porque descobriu a ilha da Madeira em 1420 e a mandou povoar e mandou à Sicília pelas canas de açúcar, que mandou plantar na Madeira, os mestres sicilianos ensinaram a fazer aos portugueses; a qual ilha agora rende trinta mil cruzados de ouro ao mestrado de Cristo; isso mesmo mandou à ilha de Maiorca por um mestre Jácome, mestre de cartas de marear, na qual ilha primeiramente se fizeram as ditas cartas, e com muitas dádivas e mercês o houve nestes reinos, o qual as ensinou a fazer àqueles de que os que em nosso tempo vivem aprenderem; isso mesmo fez povoar as ilhas dos Açores, a que antigamente Górgonas se chamaram, tudo isso este virtuoso príncipe com outras muitas boas coisas tem feito, que escuso dizer, além de descobrir Guiné até à Serra Leoa, da qual serra pusemos aqui a pintura pelo natural por se melhor entender; e aqui faz fim o primeiro livro.”


Recorde-se que Duarte Pacheco Pereira fala das etiópias da Guiné, para o historiador Magalhães Godinho, o Esmeraldo, redigido de 1505 a 1520 (?), não ressuma já a frescura das impressões diretas e singelas, antes respira o ambiente de uma lenda henriquina já formada. Lembra também que a cana sacarina era já cultivada na Andaluzia e no Algarve nos princípios do século XV e foi introduzida no condado de Coimbra pelo Infante D. Pedro. “Não é, porém, inverosímil que D. Henrique tenha contratado mestres da Sicília, não propriamente para ensinarem o fabrico do açúcar, mas para ensinarem aos portugueses os processos mais aperfeiçoados nesse fabrico.”

Como já se referiu, as notas de Magalhães Godinho são a prova provada que mudara a escola historiográfica portuguesa. O cientista não se escusa a clarificar o seu pensamento:
“Vê-se como é tacanho o critério nacionalista, patrioteiro, de que frequentemente tem enfermado a história da expansão nos séculos XV e XVI, e isto não só da parte de Portugueses (em reação, aliás, contra o roubo das suas lídimas glórias de que por vezes tem sido objeto), mas também da parte de Italianos, etc. A história tem de estar acima das paixões locais, regionais, nacionais ou rácicas, ou de classe, porque deve tender à validez universal. Ora, o que as fontes nos mostram é que, como não podia deixar de ser, não só houve estrangeiros a participar nas navegações portuguesas, como ainda estas só foram possíveis pela utilização de um cabedal de conquistas autenticamente internacional. Assim, os barcos portugueses aproveitaram a vela triangular latina, que aparecera no fim da Alta Idade Média, o leme, invenção do século XIII, a vela redonda, que remonta pelo menos ao quarto milénio antes de Cristo, os processos de construção naval que desde o Calcolítico se foram criando e aperfeiçoando; a náutica astronómica, criação portuguesa, é a convergência de descobertas e invenções como a do astrolábio e a das tábuas solares e a do sistema cosmográfico, que ascendem à civilização helénica, passando pelos muçulmanos e judeus medievais; e a bússola, outro instrumento basilar da navegação do mar alto, não vem da longínqua China ou Tartária, não foi adotada e modificada pelos nautas mediterrâneos e destes não é que passou à Península Ibérica? A cartografia portuguesa nasce das cartas mediterrâneas, dos dois grandes centros das Baleares-Catalunha e da Itália, o que não a impediu – antes foi condição, alicerce – de lançar o seu voo próprio.”

Quanto aos seus comentários ao Esmeraldo, recorda Duarte Pacheco Pereira acentua fortemente os lucros que a Nação retirou das navegações; “mesmo que D. Henrique tivesse falecido com défice provocado pelas viagens da sua iniciativa – o que de modo algum está provado – percebe-se claramente que a sua ação podia visar, visava de facto objetivos económicos; é claro que o proveito almejado podia ser não pessoal ou da sua carta, mas o do Reino em geral ou de certos grupos em especial: porque é que se há de erradamente supor que toda a política económica visa o enriquecimento de quem a traça e executa?”

No próximo e último texto concluir-se-á este capítulo do volume III sobre a exploração do litoral africano, falando de Fernão Gomes, de Pedro de Sintra… e das notas sempre preciosas deste grande historiador.


Vitorino Magalhães Godinho, Ministro da Educação e da Cultura.
Imagem dos arquivos da RTP, com a devida vénia
Vista de Praia, Cabo Verde, no século 18. Imagem publicada na obra A Voyage to Cochin China, in the years 1792, and 1793 ... de Sir John Barrow.
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 29 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)

Último post da série de1 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27173: Notas de leitura (1834): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27173: Notas de leitura (1834): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Não é demais salientar que procurei encontrar a mensagem deste romance em que um herói de guerra da Guiné, educado no meio de um bordel (o que nos lembra o romance Sagal, um herói feito em África, de António Brito, Clube do Autor, 2024), vive de expedientes e falcatruas, assumidamente chulo, hábil prestador de serviços na recruta e na especialidade, que soube montar o negócio da intendência da Guiné e que recheou a sua conta no banco Borges & Irmão, regressado de guerra, e na companhia de uma trupe trazida da Guiné, montou sucessivas empresas, mais tarde associou-se com um antigo alferes da polícia militar em Angola, aí a coisa fiou mais fino, meteu diamantes e outros negócios com os retornados. Acontece que Rui Sérgio diaboliza a descolonização e a gente sórdida que dela prosperou, e não sabemos muito bem o que ele fica a pensar deste Jordão Ribeiro que na sua ficção, pensava-se, merecia o lugar digno de alguém que praticara atos temerários, merecedores do respeito dos portugueses. Mas o autor nega-nos qualquer resposta.

Um abraço do
Mário



A arte da batota, antes, durante e depois da guerra da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Corja de Batoteiros, de Rui Sérgio, 5livros.pt, 2019, confesso ao leitor que é um livro que me deixou desorientado quanto à natureza da mensagem que o autor pretende passar. Vimos antes que Jordão Ribeiro, pouco dado aos estudos, educado no meio de um bordel, cedo se habitou a viver de expedientes e falcatruas, chulando e recebendo os préstimos de senhoras ferventes de carícias. Andou pela Guiné e fez lautos negócios com outro tipo de falcatruas, no Porto desviava pregos, na Guiné forja quebras e faltas, escreve aerogramas para gente iletrada, manda clientela para o Chez Toi, teve um ato de heroicidade, recebeu uma Cruz de Guerra de 1ª Classe.

Regressa ao Porto e o patrão Pires, do tal armazém de ferragens onde trabalhou desde a juventude, propõe-lhe a venda do negócio. Trouxe consigo gente da Guiné. Mariama, a mulher de Bacar, terá direito a uma lavandaria para todas as roupas dos lupanares da madrinha, Bacar conduz uma carrinha furgão para o transporte das encomendas feitas ao armazém de ferragens e roupas da lavandaria. Jordão irá fazer percurso na Associação Comercial do Porto, no Ateneu Comercial do Porto.

Viera também da Guiné Ana Carolina, entra também no negócio, sempre a propósito ou a despropósito o Jordão vai cumprindo a sua função de garanhão. É convidado para pertencer à DGS, recusa. Ganha dinheiro chorudo num bilhete da lotaria, os negócios prosperam. Jordão investe em ações num banco fundado por Jorge de Brito, o Banco Intercontinental Português, compra ações de um conjunto de empresas bem cotadas na Bolsa, compra libras de ouro, as cotações sobem vertiginosamente em 1973.

Depois Rui Sérgio faz uma leitura do que se passa no país, no seio das Forças Armadas, aborda os acontecimentos de 1973; deplora que Marcello Caetano tenha recusado a ideologia esquematizada por Spínola, para se chegar a uma África lusófona. Jordão concluiu nesse ano o curso do Instituto Comercial, os negócios desenvolvem-se, há a compra de uma garagem/armazém, chega mais um guineense para tomar conta da garagem.

Os negócios de Jordão estendem-se aos diamantes de Angola, Jordão estabelece relações com Jarvas Pinto, alferes da Polícia Militar, as pedras preciosas vão circular por diferentes países, funda-se uma nova sociedade, a J. J. SA (Jarvas e Jordão – Sociedade Comercial por Ações), sempre benemérito, Jordão reparte a sua riqueza por Ana Carolina, Tristão, Bacar, Mariama, Sofia, Mamadu primo de Bacar graças à empresa Jota e Jota, Lda. de transportes. Dera-se o 25 de Abril, há desordem por toda a parte, Jarvas propõe ao sócio uma ida ao Alentejo para falar com um soldado do seu antigo pelotão, o Malaqueijo diamantes, mais internacionalização, desta vez entra-se numa offshore com sede em Gibraltar.

Começam a chegar os retornados, há caos por toda a parte, mas os bons negócios não vacilam, graças à companhia de transportes sai muita coisa do Alentejo para outros mercados, depois segue-se o transporte de retornados, e então Rui Sérgio perde a cabeça:
“Destruíram a essência da nossa cultura e da nossa estrutura multiétnica, multicultural, deste país pequeno, com um povo enorme, que mantinha territórios em todos os continentes, que esses políticos internacionais de merda levaram à liquidação do Império, estando-se a marimbar para o que se passava em relação aos ultramarinos que tiveram que abandonar os seus bens, as suas terras de origem.

O fundamental para esses cabrões era provocar o abandono pelo medo, de tudo e de todos, sem qualquer pingo de vergonha que nunca tiveram, nem medo das consequências, dizendo, quando perguntados pela maneira como descolonizaram, que foi possível (…) Tudo patranhas e balelas, destes batoteiros esquerdelhos que se dizem revolucionários, que conduziram ao fim de um sonho de globalização. A falta de planeamento de um programa de autodeterminação, faseada e com formação de quadros, irá levar a guerras civis partidárias e a centenas de milhares de mortos e feridos.”


Como uma sentença, caíra a desgraça neste jardim à beira-mar plantado, por culpa quer dos capitalistas de Estado quer por todos esses que vivem à custa do trabalho dos outros, com as suas teorias marxisantes, para se apropriarem do suor e das poupanças que tanto custam a juntar. Nunca sabemos se dentro da catilinária do autor cabem os negócios batoteiros do Jordão e do Jarvas, que ainda por cima se meteram como empreiteiros.

Depois veio o 25 de novembro, os negócios da empresa Jota e Jota andavam de vento em popa. “Enquanto o Império português acabava, outro começava, o nosso, em qualquer lugar do mundo, em qualquer moeda, com qualquer propósito e com o destino que lhe quiséssemos dar (…) Corja de batoteiros internacionais portugueses vendidos ao exterior, as vossas almas não terão paz e terão sempre a companhia de demónios para vos infernizar.”

Jamais saberemos o que o destino irá reservar a Jordão Ribeiro, herói na guerra da Guiné, o único filho de Maria Rameira, que se impôs desde a juventude como habilidoso falcatrueiro, entrou na engrenagem de negócios sórdidos e, tanto quanto me parece, não tem quaisquer problemas de consciência nem demónios para o infernizar…

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Notas do editor:

Vd. post de 25 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 29 de agosto de 2025 >
Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
A despeito de confirmadas imprecisões e erros, as navegações de Cadamosto e Usodimare constituem um documento do mais alto significado: pelo quadro elogioso do Infante D. Henrique e por uma certa cronologia de acontecimentos que levam à exploração da costa ocidental africana; por revelarem designações em termos geográficos comuns na época, caso da baixa Etiópia e da Terra dos Negros; pela descrição do rio chamado Senegal, "antigamente Níger" e pela preciosa descrição que se faz do reino do Senegal, das crenças, trages e costumes, guerras e armamento destes povos. Veremos nos próximos textos o que nos dizem sobre a descoberta de três ilhas de Cabo Verde, assunto polémico, veremos em toda a extensão a navegação segunda e a exploração do litoral africano desde o rio Geba. Não hesito em dizer que se trata de documento fundamental para a história de três países: Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9

Mário Beja Santos

Este terceiro e último volume de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, por Vitorino Magalhães Godinho, dá um especial realce às navegações de Usodimare e de Cadamosto. Vimos no texto anterior como Cadamosto escreve o encontro com o Infante D. Henrique, segue-se a Navegação Primeira e como chega ao reino do Senegal, escrevendo o seguinte:
“O Primeiro Reino de Negros da baixa Etiópia é este que fica sobre o rio do Senegal; os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos, e toda esta costa e países acima declarados, é terra baixa, até Cabo Verde, que é a terra mais alta de toda aquela costa. Segundo eu pude perceber, este reino do Senegal confina pela terra a parte de Levante com o país dito Tucurol, da parte do sul com o reino de Gâmbia, do poente com o mar oceano e do norte com o reino acima dito, que extrema os amulatados destes primeiros negros. Neste reino do Senegal não se sucede por herança; mas há diversos Senhores, os quais às vezes por ciúme que têm uns dos outros se ajuntam três ou quatro e elegem um rei a seu modo. Este rei dura o tempo que apraz aos ditos Senhores; e às vezes o depõem à força, e outras ele se torna tão poderoso que se defende deles; o seu Estado não é permanente e firme como é o do Sultão do Cairo; antes está sempre em suspeitas de ser morto, ou expulso. Este rei não é semelhante aos dos cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem, e pobríssima, e não é nele cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha.

O rei não tem rendimento certo de tributos, mas os Senhores deste país em cada um ano para o terem amigo lhe fazem presente de alguns cavalos, que são muito estimados por haver falta deles; e não só tem este fornecimento, mas também outros de animais, como vacas e cabras. Mantém-se também este rei com roubos, que manda fazer de muitos escravos, tanto no seu país, como nos vizinhos, dos quais se serve por muitos modos; também vende escravos aos Azenegues e marcadores árabes, que os trocam por cavalos, e igualmente aos cristãos. É lícito a este rei ter quantas mulheres quer, e assim também a todos os Senhores, o rei tem sempre de trinta para cima
[descreve com detalhe a vida familiar e a alimentação daquele povo].

A religião destes primeiros Negros em Maometana; mas não estão bem firmes na sua crença, como os mouros brancos, e principalmente o povo miúdo. Os Magnates passam por Maometanos têm junto de si alguns dos ditos Azenegues, ou Árabes, que acaso aí chegam, e lhes dão alguma instrução, dizendo-lhes que seria grande vergonha serem eles Senhores e viverem sem nenhuma lei de Deus.

Quase toda esta gente anda continuamente nua, e todo o seu vestuário consiste em um couro de cabra posto em forma de bragas, com que se cobrem; porém os Magnates, e aqueles que podem, vestem camisas de pano de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros, e as suas mulheres vestiam algodão, e fazem panos da largura de um palmo, e não sabem fazê-los mais largos, por não terem pentes para tecê-los, e assim cosem quatro ou cinco daqueles panos juntos quando querem fazer algum trabalho largo.

Os homens destes países fazem muitos serviços femininos; como são fiar, lavar panos e outras coisas. Sente-se continuamente um grande calor e quanto mais se caminha para além, tanto maior é; e comparativamente em janeiro não faz tanto frio naquele reino que o não faça maior no mês de abril nestas nossas terras. Os homens, e mulheres deste país são limpos de si, porque lavam todo o corpo quatro ou cinco vezes cada dia; mas no comer são porcos, e sem nenhuma decência; nas coisas de que não têm prática são simples e pouco sagazes: mas nas coisas de que a têm são espertos como qualquer de nós. São de muitas palavras, e nunca acabam de falar, e comummente são mentirosos e enganadores em extremo; apesar disso são caritativos, porque dão de comer e beber a qualquer forasteiro que chegue a sua casa por um jantar, ou uma noite; e isto sem estipêndio algum.

Estes Senhores Negros guerreiam muitas vezes uns com os outros, e também algumas vezes com os seus vizinhos; as suas guerras são a pé, porque há pouquíssimos cavalos que lá não podem viver pelo grande calor; não trazem vestidura de armas pelas não terem, e mesmo pelo grande calor não poderiam suportá-las, somente têm escudos redondos e largos, os quais são feitos de couro de um animal chamado anta, que é duríssimo de penetrar; e para ofender têm quantidades das azagaias, que são uma espécie de dardos ligeiros, e atiram-nos com muita velocidade, porque são grandes mestres disso; têm estes dardos um palmo de ferro lavrado, com barbas miúdas, postas muito subtilmente por diversos modos; e onde entram, ao puxar para fora rasgam as carnes, com aquelas barbas, de maneira que são muito más para ofender; também trazem alguns alfanges mouriscos, à maneira de meia espada turca, isto é, voltadas como arco, e são feitas de ferro sem nenhum aço, porque no reino de Gâmbia de Negros, que jaz mais além, tiram o ferro, de que fabricam estas armas; mas não tem aço como já disse, ou verdadeiramente, se o há onde há ferro não o conhecem, ou não têm indústria para fazê-lo. Usam também de outra arma cravada em uma haste, à maneira de um espontão dos nossos, e não têm outras. As suas guerras são muito mortíferas, por estarem desarmados, e os seus golpes nunca são dados em falso, matando-se como se fossem feras; são muito atrevidos e bestiais, e em qualquer pequeno perigo deixar-se-ão antes matar que fugir, ainda podendo.

Não têm navios, nem nunca os viram, salvo depois que tiveram conhecimento dos portugueses. É verdade que aqueles que habitam sobre este rio, e alguns dos que estão junto ao mar têm umas canoas, isto é, almadias de um pau só, as maiores das quais levam três ou quatro homens quando muito; e com estas vão às vezes a pescar, e atravessam o rio, indo de um a outro lugar; e estes tais Negros são os melhores nadadores do mundo pela experiência do que vi fazer.”


A seguir, Cadamosto vai descrever ao pormenor o país de Budomel.

Passando para outra matéria, iremos nos próximos textos fazer referência às ilhas descobertas de Cabo Verde, à Navegação Segunda de Cadamosto e Usodimare, terminando com a exploração do litoral africano desde o rio Geba até à Mata de Santa Maria.


Vitorino Magalhães Godinho
Alvise Cadamosto apresentado ao Infante D. Henrique
Mapa das Ilhas de Cabo Verde e da Costa da Guiné, 1771
Mapa do Rio Gâmbia e arredores, cerca de 1732

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27142: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 8 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 25 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)