
Queridos amigos,
Tem sido graças ao bom acolhimento que me dá a Biblioteca da Liga dos Combatentes que vou lendo as investidas do médico Rui Sérgio pelas suas memórias da Guiné. Não resiste a falar de Galomaro, nem dos Bijagós nem da região de Pitche e Nova Lamego, por ali andou ele e gente do seu batalhão. Compõe agora quatro histórias que gizou como um guião para um filme: a mulher de um oficial de informações precisa de ter um filho que o marido não lhe pode dar e daí os encontros libidinosos com um furriel paraquedista; o Neco de Leixões, encaminhador para casas de alterne na vida civil e que passou a apresentar-se como percussionista e vocalista no Chez Toi, já na idade avançada o Neco acha que todas aquelas meninas deveriam ter sido condecoradas com a Medalha de Mérito Militar; Tomaz e Bárbara também têm como pano de fundo o Chez Toi, até o médico Dr. Rui Sérgio aparece como salva-vidas, Bárbara e Tomaz casarão na catedral de Bissau; e como o amor redime sempre, um grupo de quatro marinheiros frequenta na estrada de Bor um espaço onde atuam moças cabo-verdianas, também tudo acabará em casamento e o autor dá como comprovada a capacidade dos tugas em espalharem a sua bondade e poder de miscigenação já que a genética da portugalidade tem muito que se diga.
Um abraço do
Mário
Sim, o amor não nos deixa em descanso em tempos de guerra
Mário Beja Santos
O alferes miliciano médico Rui Sérgio, que cirandou entre Galomaro, Gabu e Bijagós, mostra fervor pela Guiné, dedicou-lhe um acervo de livros, chegou a vez de falarmos de Histórias de Amor em Tempo de Guerra, Guiné 1963-1974, 5livros.pt, 2017. Apresenta quatro histórias como um guião para um filme, despede-se com um poema onde se revela taciturno, diz-se contentar em viver só, com ilusões e sentimentos que jamais realidade serão.
Primeira história, um furriel paraquedista, vindo de uma operação no Morés, tenta nos CTT de Bissau uma ligação para a metrópole. Rui Sérgio não esconde que é médico e que tem que dar explicações, neste caso falando do intertrigo, a propósito de virilhas empapadas, gretadas e cheias de micose. Enquanto espera pela chamada, mete conversa com uma metropolitana, esta diz ser mulher de um oficial de informações no Quartel-General e professora de liceu. O furriel, que aspira chegar a Lisboa para terminar o sétimo ano, pergunta se ela lhe pode dar explicações de matemática, biologia e físico-química.
Um dia, lá em casa, e na ausência do marido que está em missão em Nova Lamego, irrompem os ardores libidinosos. O furriel não se sente muito bem pela sua consciência, passados uns tempos o casal partiu para Lisboa. Há depois uma terrível operação em Guidaje, ele é ferido, e foi evacuado de Bissau para Lisboa. Acontece o 25 de Abril, o furriel casa-se e tem uma filha, um acidente de viação leva-lhe a mulher. Um dia, numa esplanada do Príncipe Real reencontra aquele amor de ocasião de Bissau na companhia de uma filha. Mais tarde o furriel recebe um telefonema da mulher do oficial de informações, ela conta-lhe a seguinte história:
“Espero que não te zangues comigo e não aches que te usei, mas a verdade é que antes de irmos para a Guiné, e após exames analíticos, pois não engravidava, soube que o meu marido tinha azoospermia e que não podia ser pai. Ocultei tal facto para não ferir a virilidade e o desejo de ser pai, dizendo-lhe que a culpa seria minha. O facto de termos caído nos braços um do outro levou-me a engravidar. A minha gravidez e a minha vinda coincidiram com o facto de seres ferido em combate. Nunca mais te vi, agradecia todos os dias a Deus o ter-te posto no meu caminho e teres me dado a nossa filha que salvou o meu casamento.” Choraram abraçados um ao outro com a certeza de que a guerra da Guiné não fora assim tão má.
A segunda história envolve o Neco de Leixões, tinha historial de barman em estabelecimentos noturnos, após a recruta e especialidade foi colocado como criado de mesa na messe de oficiais do RASP, daqui foi mobilizado para a Guiné, deixou imensas saudades, era bom angariador de prostitutas, encaminhando embarcadiços para as casas de alterne. Partiu para a Guiné numa companhia de comandos e serviços como amanuense. Rui Sérgio usa indiferenciadamente a sua narrativa na primeira e na terceira pessoa do singular, umas vezes para descrever o contexto outras para pôr a personagem a falar. Em Bissau encontra um tenente-coronel com quem passara borgas e noitadas nos bares de Matosinhos, nos tempos em que ele era capitão, ele passa a impedido deste oficial superior, um dia encontra o Pinto, filho do dono da casa de câmbios mais famosa de Valença, a Casa Condessa, que atuava como guitarrista no Chez Toi, também conhecido como o Gato Negro, Rui Sérgio descreve ao pormenor. Agora, na velhice, o Neca de Leixões acha que todas aquelas meninas que trabalhavam naquele espaço lúdico de Bissau deveriam ser condecoradas com a Medalha de Mérito Militar.
A terceira história intitula-se Tomaz e Bárbara. Tomaz era tenente do Quadro Especial de Oficiais. Tirara o curso em Mafra, como aspirante fora colocado em Tancos, onde concluiu a especialidade de sapador. Mobilizado para a Guiné, cumpriu a primeira comissão no batalhão de Tite, trabalhou na desminagem da picada para Nova Sintra. É numa ida para Bissau que passou a ingressar no Quadro Especial de Oficiais, viu a sua comissão encurtada, veio até à Academia Militar, está agora em estágio no batalhão em Pitche, participa novamente nas atividades de desminagem, desbravava-se a picada de Nova Lamego até Pirada, um pelotão de Paúnca fazia a proteção à picada, as colunas deslocavam-se com uma GMC à frente, quando a coluna chegava a Nova Lamego um pelotão da CCS protegia-os até Pitche.
Aqui começa verdadeiramente a história. No trajeto para Canquelifá, a coluna é emboscada, causou dois feridos graves, um dos quais um alferes amigo de Tomaz. Este não descansou enquanto não foi a Bissau para visitar o amigo. Depois de jantar foi ver as moças no Gato Negro, aí conhece Bárbara nascida no Largo da Rua Chã, menina de 18 anos, católica temente, batizada na Sé Patriarcal do Porto. Rapidamente teremos derriço entre Bárbara e Tomaz. Este está de volta à região de Pitche, mal chega há um grande ataque do PAIGC a Copá, Pirada e Buruntuma, toda a zona Leste ficou em estado de sítio, tiveram que vir os comandos africanos e o grupo de Marcelino da Mata. A população de Copá fugiu, tiveram que vir os paraquedistas. O pelotão de Tomaz tem um comportamento formidável na desminagem da picada para Copá. Entretanto chega a notícia de que Bárbara tinha sido internada no Hospital Civil de Bissau com uma crise palúdica severa.
O autor não resiste a autorretratar-se, pois Tomaz é apresentado como médico do batalhão de Galomaro que tinha ido a Bissau acompanhar a evacuação de feridos e prestava assistência itinerante nos Bijagós (era esta a situação de Rui Sérgio). E temos novamente o médico Rui Sérgio em ação, ficamos a saber como Bárbara foi tratada:
“O médico mandou aplicar soro Ionosteril-G (Soro Polieletrolítico com glicose a 5%) com um fluxo rápido de 90 gotas por minutos, para uma hidratação adequada. Resochina 500 mg em infusão endovenosa de 8 em 8 horas. Aplicou-lhe intramuscularmente uma injeção de Fenobarbital para a agitação e Dolviran em supositório para a temperatura.”
Bárbara recupera. Tomaz chega ao fim do estágio, Bárbara e Tomaz casam na catedral de Bissau. Até na Guiné Jesus faz milagres.
A última história intitula-se Amor em tempo de guerra. Jorge oferece-se como voluntário para a Marinha, tem uma compleição física notável e uma musculatura bem desenvolvida. Ligado desde os 11 anos à mecânica e eletricidade, foi-lhe destinada a especialidade de Armas Pesadas. No início de 1972 é mobilizado e colocado nos Serviços de Reparação Naval da Armada. Viaja de avião com gente fixe, trabalha na manutenção de armamento das Lanchas de Fiscalização sediadas na base. Teremos seguidamente uma descrição de armas, fuzileiros, vias fluviais, formou-se uma dupla entre o Jorge e o José Russo, frequentam o Gato Negro, juntam-se mais dois, o Zé Bófia e o César Red River, passam a frequentar uma casa de cabo-verdianas nas estrada de Bor, os quatro amigos vão-se afeiçoando a quatro meninas do sítio, depois de muitas peripécias, numa refrega Jorge é ferido, por atos de bravura será condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe, tudo acabará em bem, o quarteto marcou o dia de casamento na catedral de Bissau com as meninas de Bor.
“O amor também venceu a guerra e a capacidade dos tugas de espalharem a sua bondade, a sua capacidade de miscigenação, a sua entrega de amor e a alma lusófona, que espalha constantemente a sua portugalidade que geneticamente é uma mistura amerinda, africana, árabe, luso-galaica.”
Aqui finda o guião para um filme.
_____________
Nota do editor
Último post da série de 8 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1827): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 5 (Mário Beja Santos)
Sem comentários:
Enviar um comentário