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segunda-feira, 24 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19916: Notas de leitura (1190): "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo General José de Figueiredo Valente; Âncora Editora, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
O que é verdadeiramente impressivo na singeleza dos relatos do General José de Figueiredo Valente é a compreensão do outro, o sentido do cuidado, o saber tirar partido de um episódio burlesco, contá-lo a preceito e remetê-lo para as dádivas da cultura. São relatos serenos, não escondendo a saudade pelo feitiço africano e o seu espírito de missão junto das populações.
Convido o leitor para uma leitura muito atenta do que ele nos diz sobre o Grupo Especial de Milícias Balantas e aos acontecimentos que levaram à morte heróica do Capitão João Bacar Djaló.

Um abraço do
Mário


No Quínara, 1970-1972, pelo General José de Figueiredo Valente

Beja Santos

Em mais um volume de Programa Fim do Império, a Âncora Editora publicou recentemente "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo general José de Figueiredo Valente. Algo nos toca nos seus dados biográficos. Cumpriu duas missões em Angola e comandou um Batalhão na Guiné; entre outros desempenhos relevantes esteve à frente do Comando da Zona Militar da Madeira e foi Director do Colégio Militar. Após a sua comissão na Guiné, acolheu no seio familiar dois irmãos Balantas e educou o filho de um chefe Fula, hoje Capitão do Regimento de Comandos. Durante cerca de 10 anos, foi voluntário junto de duas instituições, uma de cegos e outra de pacientes de paralisia cerebral.

As suas memórias timbram por isso mesmo: pelo sentido da compaixão, uma intensa vontade em compreender e lançar as pontes para o diálogo entre as culturas, a ponderação e flexibilidade na liderança, o sentido da reflexão nas encruzilhadas do destino, uma rara capacidade de aceitação.

Primeiro em Angola entre 1962 e 1964, no BART 2346, em Uíge, viagem um tanto tormentosa no Niassa. A descoberta de África, aquelas formigas devoradoras e construtoras, invasoras como a marabunta, mas também as cobras e as gazelas. Aponta certos ridículos do mando, inebria-se com as paisagens angolanas, com a beleza do Cuango, ironiza com o espírito de certos oficiais farristas, capazes de se desenvencilhar com a burocracia dos relatórios; recorda com saudade Ambrizete, era aqui que estava instalado o Comando de Agrupamento, tinha a responsabilidade uma enorme região com 30 mil quilómetros quadrados, a atividade operacional era orientada com prioridade para o interior da região e para o Norte, junto ao rio Zaire. Registou mais descobertas como as tartarugas que vinham aqui nidificar, bem como os caranguejos que, numa derradeira viagem, atravessavam as ruas da povoação para se dirigirem para o interior, a fim de alcançarem umas lagoas, lagoas essas onde pousavam centenas de flamingos. Recorda perdas e situações embaraçosas como uma médica a quem levou um mulatinho doente tê-lo criticado pelo mau estado da criança, pensava que se tratava do pai.

E assim chegamos a Quínara, é agora Segundo Comandante do BART 2924, a partir de Dezembro de 1970. Apanha problemas graúdos, o de apaziguar uma situação de grande tensão entre elementos da população civil e a milícia de Tite. As jovens mulheres Balantas que tinham sido vendidas a maridos velhos sentiam forte atração por aquela rapaziada que lhes falava mais ao coração, ele teve que presidir a “julgamentos” de casos delicados de velhos maridos que exigiam ressarcimento pelas suas jovens mulheres que os repudiavam. Quínara significava atividade constante como a guerrilha omnipresente: Nova Sintra, S. João, Tite e Fulacunda. Mas não resiste a tirar partido do sal da vida desde roubos de galinhas a pratos de morteiro engolidos pelos canais feitos pelas formigas. Formou milícias, um grupo especial de milícias só com Balantas, que foram organizados, fardados e equipados com armamento capturado à guerrilha. Há a guerra e a contingência de diferentes acidentes. Foi o caso de um incêndio no destacamento do Enxudé, que servia essencialmente de testa-de-ponte da guarnição militar de Tite e era igualmente o eixo de ligação fluvial com Bissau e Jabadá. Aqui permanecia uma guarnição de 25 homens. Em dia e hora em que se iria iniciar um espetáculo em Tite chega uma mensagem de que no Enxudé se tinha declarado um incêndio. Coisas que quem viveu a guerra sabe não ser fantasia:
“As causas do incêndio foram descritas desta forma: um dos rapazes da tabanca que ali trabalhava tinha ido ao recinto dos bidões de combustível para atestar um candeeiro Petromax. Por casas desconhecidas mas talvez por ter querido fazê-lo sem apagar o candeeiro, ao procurar enchê-lo derramou combustível que entretanto se incendiou, ardendo à volta dos bidões dando origem ao incêndio com risco de fazer explodir os bidões. Cansados e sujos lá regressaram a Tite e não puderam assistir ao espetáculo do “Conjunto Musical do QG”…

José de Figueiredo Valente conheceu o Capitão João Bacar Djaló, que comandou a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, que foi atribuída em reforço ao seu batalhão para ali realizar o seu treino operacional. Relata a morte do Capitão João Bacar Djaló que ocorreu em circunstância que puseram em evidência a sua coragem e dedicação. E assim relata:
“Após o início da ação de fogo IN, o Capitão João Bacar retirou a cavilha de segurança de uma das granadas de mão que transportava e preparava-se para a lançar quando um dos seus homens caiu ferido. Procurou trazê-lo para o abrigo de um morro de bagabaga e nesse esforço e talvez devido a uma explosão mais próxima, soltou a granada descavilhada que ao explodir iria atingir os seus homens. Para os proteger, procurou ainda agarrá-la para a lançar para longe quando a sua explosão o matou".

O grupo especial de milícias deu-lhe imprevistos trabalhos; estava organizado em dez equipas de cinco homens, devidamente comandadas, o que permitia uma grande flexibilidade no seu emprego tático. As missões atribuídas ao grupo incluíam a realização de diversas ações contra objetivos identificados ou a montagem de emboscadas nos itinerários de acesso. Foi exatamente numa dessas emboscadas que na manhã do dia seguinte foi procurado por um soldado intérprete Beafada dizendo que estavam lá fora uma rapariga e a sua tia para apresentar queixa, a bajuda tinha sido violada naquela noite por vários elementos da milícia, que ela afirmava terem sido dez, dos quais poderia até identificar os dois primeiros. É uma descrição extraordinária, o oficial faz interrogatório em privado ao primeiro que havia sido apontado pela bajuda, a negação é perentória. O comandante do grupo pede autorização para interrogar o homem e recorre a uma grossa palmatória de madeira, ao fim de muita palmatoada o acusado admitiu que fora ele o primeiro, o primeiro indiciou o segundo e assim sucessivamente. Houve que fazer uma sessão pública a que compareceu o chefe Beafada noivo da bajuda.

O último relato refere-se a um soldado maqueiro, José da Purificação dos Santos, o Zequinha. O Zequinha era irmão do palhaço Quinito e o Zequinha possuía uma certa veia artística como o irmão, com a sua viola e as suas canções era um franco animador. Mas era instável e muito suscetível, com manifestações agressivas. Quando ia a Bissau para a consulta médica de psiquiatria, desaparecia, e este procedimento irresponsável repetiu-se. Conversando com o Zequinha, apurou tratar-se de filho de pai incógnito e de uma artista de circo mais prostituta que artista, vivera uma infância errante, desregrada e sem padrões morais. Pendiam sobre o Zequinha dois autos por deserção e um auto de insubordinação, Figueiredo Valente procurou remediar e atenuar a gravidade das consequências. Apanhou uma pena de prisão muito limitada e regressou à Metrópole. Voltaram a encontrar-se, esporadicamente. Em 1986, já Diretor do Colégio Militar, é procurado, o Zequinha estava muito doente e internado no Hospital de Santa Maria, queria vê-lo. Estava já numa fase terminal, com um cancro nos pulmões. “A sua alegria em me ver e o conforto que a minha presença e as minhas palavras lhe deram nos últimos dias da sua vida evidenciaram a sua gratidão pelo que eu por ele fizera. E num dia em que de novo fui visitar, soube que já ali não estava. Partira mais uma vez, já não como vagabundo errante, mas para num lugar onde permaneceria finalmente em paz”.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)

sábado, 11 de maio de 2019

Guiné 61/74: P19775: A galeria dos meus heróis (30): Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!... (Luís Graça)

A galeria dos meus heróis > "Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia!... E que o teu deus te pague!"...

por Luís Graça



1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o nome.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite (. Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e , onde se bebia uísque marado, e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, pintadas de verniz vermelho horroso como os felinos. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em 
arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa…

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível”…), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste descortinar… 

Enfim, trazia-te a ti, e aos demais machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão pequeno…

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu “Livro Sexto” esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre: “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”


Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, enfim, não te recordas. Mas para o caso não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de  férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo... 

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Fazias questão de dizer que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, muito menos mercenário; isto vai mal, diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário ?!...Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, cumpriam, longe de casa,  uma missão em nome da Pátria, 
a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viveras.) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca,... o mal afamado Pilão.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem: ir dormir uma noite ao Pilão, antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no Pelicano no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e 
de coragem física...Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, e cada um foi com a sua “bajuda cabo-verdiana”, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.



Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinada com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira,   e saieste... A atmosfera era sufocante, o telhado era de zinco, e não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, às escuras…

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio 
almareados (o termo era do teu companheiro de viagem , oriundo do litoral alentejano) e bêbados de sono.


3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, 
Old Parr e Dimple, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos aos balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, de etnia papel, de Biombe, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África.


Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.


TRu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos racistas:

- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado.

Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo à sua provocação:


- Ó amigo.  vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótide… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o inimigo tão perto, olhos nos olhos…Foram os dois ao chão, mas os gajos d
o conjunto (caixa e guitarra elétrica) continuaram a tocar, no meio da algazarra…

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando te deste conta eram já três ou quatro da madrugada…

4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinha umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da  instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé,  que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam. Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocarm um olá, meio comprometidos, já tínhamos passado as Canárias.
– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau.

5. Voltaste a reencontrá-lo muito mais tarde, depois dessa noite no Chez Toi, em que fizeram as pazes. Iam de férias, ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem precocemente envelhecido, solitário e amargurado, que estava a lidar mal com a reforma e os fantasma do passado:

“Não acreditas, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não consegui, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal toda a malta tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, tínhamos combinado levar papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus diários, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas, apontamentos, esboços, rabiscos, até recortes e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida das tabancas por onde andei… Uma forma de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo.

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las ? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...


“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Faço até gala nisso. Nunca poderia fazer parte do teu blogue, de que já ouvi falar, e sobre o qual, de resto, já ouvi críticas e elogios. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos…

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (, sou daqui perto de Bragança), a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…


"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se há muito, há vinte e tal anos. A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato frustrado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.

"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril,  haveria de chegar a deputado por um dos partidos do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado ?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…

“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto. Como eu. Foi das primeiras máquinas, portuguesas, a aparecer no mercado. Não me perguntes a marca. De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.

“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947 - como tu, suponho, somos da mesma colheita – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa ? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como tu, como toda a gente. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí).

“Matei, não matei ?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. 
Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias....Matei para abreviar o sofrimento de homens feridos de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo ?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, muitas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. 

"Como sabes, fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo à Foz do Corubal, na margem esquerda… Ainda era periquito e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanhas da companhia, meias-lecas.

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lado de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta, mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o turra ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana o alferes 'ranger'.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1º pelotão,  olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. Ainda periquitos, com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.


"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos abutres e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...


"Nos olhos do balanta pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, tuga, dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! 
Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera em Fulacunda havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como  transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror e compaixão...

"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz.

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDG que nos esperava no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no leste. Durante uns dias, os olhos vidrados do balanta não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de Furriel Ca...rrasco. (Como eu gaguejava um pouco, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias a cara dos prisioneiros ou dos guerrilheiros abatidos junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…


"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro, biafada, do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso dei-me uma algum consolo.

"Não, nunca usei a faca de mato, se é isso que queres saber. Sempre preferi o tiro na nuca. Aconteceu apenas noutra ocasião, já para o fim da comissão. Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut'  que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti.

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é magistrado, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de os perder... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... 
Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (,sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o Furriel Ca...rrasco, que era uma coisa que me irritava. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.

"Deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o "Alma Grande", da colectânea Novos Contos da Montanha, se não me engano... De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do abafador, a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico... para passar o atestado de óbito!”


6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu conselho,  para ver e ouvir a brama dos veados no parque natural de Montesinho... Ele por lá ficou, em Bragança, tu voltaste a Lisboa. E, confessas, ficaste por um bom par de horas, ao longo da autoestrada , a A4, com um nó na garganta, não menos apertado...


Luís Graça (2019). Última revisão: 7/7/2023

sexta-feira, 1 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19543: Notas de leitura (1154): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Caminhamos para o último punhado de documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU.
Hoje passa-se em revista as decisões tomadas quanto às propriedades do BNU na Circunscrição de Fulacunda, mais de 1% do território guineense, todas elas encravadas num Quínara em efervescente guerra, a Casa Gouveia doou o que tinha para uma cooperativa agropecuária, a governação do BNU, no final de 1973, quis fazer uma cessão a 15 anos. A guerra não parecia abrandar o ritmo dos negócios, o Governo criou o Hotel Nuno Tristão em Bissau, constituíra-se a CICER - Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné e a Companhia de Pesca e Conservas da Guiné em fevereiro de 1974 já estava completamente paralisada, apareceu e desapareceu.
Veremos seguidamente um pouco da história da Sociedade Comercial Ultramarina, constituída em 19 de fevereiro de 1923 e que paulatinamente se transformara numa das jóias da coroa do Banco.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75)

Beja Santos

Desde muito cedo que o BNU na Guiné passou a ser detentor de dezenas de milhares de hectares, tornou-se um banqueiro com assinaláveis propriedades rústicas, centradas na região de S. João, Tite, Fulacunda e Buba, mais de 1% do território. Num documento de indiscutível importância histórica, os apontamentos de António Júlio de Castro Fernandes, administrador do BNU e um dos próceres do Estado Novo, elaborados depois da viagem que fez à Guiné de março a abril de 1957, é levantada a questão e preconizada uma gama de soluções para a rentabilização destas propriedades, refere Castro Fernandes nas suas notas a natureza dos solos, fala na organização de seis blocos de propriedades, invoca mesmo um estudo elaborado pelo engenheiro José Teles Ribeiro.
Este, a propósito da valorização das propriedades do BNU, escreveu o seguinte:
“Os terrenos do BNU integram-se na designação de ‘Propriedades Perfeitas’ o que, segundo os termos do regulamento de concessões, garante ao proprietário o domínio directo, o domínio útil e a faculdade de venda; em contraste com a concessão por aforamento em que o foreiro tem exclusivo direito ao domínio útil, pertencendo o directo ao Estado e revertendo o terreno a este desde que não esteja devidamente aproveitado no prazo de tempo para tal afixado. Daqui resulta o alto interesse e valor das propriedades do BNU e a necessidade de os valorizar ao longo dos anos, mediante uma ocupação agrícola gradual em vez de a deixar ir desvalorizando pelo abandono das mesmas à acção devastadora do indígena.
Essa desvalorização terá de assentar necessariamente na ocupação das melhores parcelas dos terrenos por culturas de carácter arbóreo, não só por serem as que permitem uma maior extensão ocupada com o mínimo de investimentos, mas também porque, ao contrário das culturas arvenses de cultura anual, se traduzem por uma ocupação quase definitiva.

Com base no conhecimento das condições ecológicas locais, consideramos preferenciais as seguintes culturas:
Caju – árvore bastante rústica, podendo ser semeada directamente no terreno definitivo, é a que se traduz numa ocupação mais económica, dada a inexistência de granjeios.
Coleira – Com elevados rendimentos por árvore, poderia ser usada na ocupação dos terrenos mais ao Sul.
Coqueiro e palmeira – Viável nos terrenos baixos e húmidos, onde seja possível a obtenção de água superficial ou subterrânea.
Cafeeiro – Embora ainda não definitivamente estudado, parece admitir-se como provável uma boa adaptação da variedade ‘robusta’.”

Anteriormente, o BNU encarregara um perito alemão, E. W. Boesser, a quem Castro Fernandes também alude, a fazer um estudo sobre as possibilidades económicas destes terrenos, mormente na região de Quínara. O seu relatório debruça-se sobre a natureza dos terrenos e o que eles podem produzir.
O que escreve tem bom recorte literário, ele procura enquadrar e pôr em consonância os dados naturais de solo, clima e planta:
“A ciência que se ocupa com estes factores, com as suas interdependências e influências mútuas é a fitogeografia, no seu ramo da ecologia vegetal; e quando se respeitam propositadamente as condições especiais que se constituem e põem, quando as actividades e finalidades económicas do Homem terão de ser relacionadas com aqueles factores básicos da vida vegetal, com os quais querem ser postas em harmonia e produtiva efectuação recíproca, é de falar em fitogeografia aplicada.”

É muito expressivo em tudo quanto escreve, está muito atento aos “rios” e à sua importância nas explorações, pensa logo na cultura do arroz e nas formas de mangal de alto fuste e equaciona as quatro entidades naturais da paisagem, falando das áreas marinas dos rios comenta os solos lodosos que podem ser transformados em terras de arroz.

É técnico, e tudo quanto redige tem essa matriz, mas a sua escrita é muito elegante, falando de rios, mangais, lalas, população vegetal, a organização da selva, solo dos matos secundários, linhosas secundárias, rematando: “Um facto muito remarcável é que em todas essas variantes de vegetação, desde a espessa floresta secundária, de aspecto quase virgem, até à mais clara savana arborizada, se encontram sempre ora numerosamente ora de modo mais disperso, em todo o caso porém em aparente prosperidade, palmeiras de óleo”.

E tece um enquadramento entre essa paisagem e o habitat:
“Embutidas naquela paisagem, variada em si, de floresta, bosque e parque, acham-se as pequenas roças dos indígenas de data recente que no decurso de poucos anos já serão reconquistadas pela savana e pelo mato. Somente nas proximidades das aldeias ou tabancas e especialmente nas penínsulas dos arredores de S. João de Bolama observam-se extensas áreas de cultura, continuadamente exploradas e por isso quase completamente desnudadas”. E em jeito de conclusão dirá que aqueles terrenos colinosos oferecem condições para a vida vegetal, não haverá qualquer impedimento essencial à concentração desejável das produções.

Atenda-se que nas reuniões do Conselho Geral do BNU ocorridas em 10 e 16 de maio de 1957, Castro Fernandes lembrou estes terrenos, que em conversações havidas com a Sociedade Nacional de Sabões, esta chegara à conclusão não estar interessada em tal compra, comentou detalhadamente o documento elaborado em 1954 pelo fitogeógrafo E. W. Boesserg, referiu que a Casa Gouveia estava a fazer em Bolama uma exploração agrícola e que o próprio Governador fazia constantemente apelos ao desenvolvimento. Fez comentários ao punhado de notas que enviara a todos os membros do Conselho, enfatizou a situação cambial da Província, manteve a sua enorme expetativa no florescimento da Sociedade Comercial Ultramarina e por fim versou assuntos sociais do BNU na Guiné como as moradias para os empregados, beneficiações no edifício da sede e a compra de dois bungalows destinados aos empregados do Banco na Praia de Varela.

A agricultura associada ao comércio passou a ser uma tónica dominante da presença do BNU na Guiné, em qualquer relatório ela virá a ser tratada com realço.
Veja-se o relatório da visita de inspeção à Filial de Bissau em 13 de dezembro de 1968, estamos no auge da luta armada:
“A agricultura, outrora a base da economia da Guiné, não pode hoje ser considerada como elemento efectivo do desenvolvimento desta Província. A situação criada à região levou o agricultor a concentrar-se nos grandes centros comerciais ou em tabancas onde efectivamente encontra a protecção das Forças Armadas mas, em contrapartida, depara com solos fracos, sem grandes possibilidades.
E ao natural afrouxamento das culturas tradicionais – milho, mandioca, sorgo e arroz – também não será completamente alheio o facto de, por razões de defesa, haverem sido chamadas largas centenas de homens para as milícias e que deixaram assim de prestar o seu contributo braçal à agricultura.
Não se torna por isso difícil explicar a necessidade em que se viu nos últimos anos a Província de, tradicionalmente exportadora de arroz, embora de quantidades reduzidas, passar a importar grandes quantidades deste cereal para sustento das populações.
As indústrias existentes, reflexamente, têm também na actual conjuntura uma muito menor influência na economia da região se atendermos a que a matéria-prima – a mancarra, o coconote e o próprio arroz – escasseou pelos mesmos motivos apontados.
Se dantes dizíamos que a economia assentava basicamente na agricultura, hoje podemos afirmar que a Guiné encontra relativo equilíbrio orçamental no comércio importador, que passou a desfrutar de grande prosperidade – melhor diríamos, a viver uma fase de autêntica euforia – na medida em que se lhe proporciona um maior poder de compra trazido pela presença dos grandes efectivos militares, de 1963 a esta parte. Esta situação, como não podia deixar de ser, provoca um desnível muito acentuado na sua balança comercial”.

O BNU, tal como a Casa Gouveia, vão gradualmente perdendo esperanças de pôr a agricultura dos seus terrenos a funcionar. E tomar-se-ão decisões drásticas, em 1973, ambos os empórios oferecem aqueles prédios rústicos para cooperativas.

No Arquivo Histórico do BNU encontra-se uma informação que tem a data de 9 de julho de 1973 em que toda a questão é repertoriada: a posse daqueles cerca de 44 mil hectares na Circunscrição de Fulacunda, propriedade do BNU desde 1927, por efeito de execução hipotecária; a tentativa de criar uma sociedade em Bissau, à qual seriam vendidas as propriedades, para devida exploração agropecuária, que, afinal, não chegou a constituir-se; a ocupação e controlo das propriedades por parte dos terroristas; em situação análoga se encontravam na Guiné cerca de 15 mil hectares de terrenos pertencentes ao grupo CUF que vieram a ser doados à Província em abril de 1973, para serem explorados pelas populações, em regime comunitário; o General Spínola conversara com a administração do BNU tendo ficado verbalmente assente que o Banco faria a doação dos terrenos; o General Spínola enviara agora uma minuta de escritura onde se sugeria uma doação ao Governo da Província com uma importância destinada à instalação da cooperativa agropecuária, que teria a designação de Cooperativa do Quínara; quem assinava a informação dava o parecer que apenas se deveria doar os terrenos e não conceder qualquer subsídio ou, quando muito, conceder um subsídio simbólico de 100 ou 200 contos e se a Cooperativa precisasse de auxílio do Banco, estabelecer-se-ia um crédito.

Em 8 de fevereiro de 1974 temos uma última referência a estas propriedades, numa documentação avulsa onde também se fala da CICER, da Companhia de Pesca e Conservas da Guiné e do Hotel Nuno Tristão em Bissau. Quanto às propriedades de Fulacunda, escrevia-se que o Conselho do Banco considerara, em 10 de outubro de 1973, ser preferível fazer uma cedência gratuita do direito de uso pelo prazo de 15 anos, atribuindo um subsídio de 10 mil contos. Quanto à CICER, aqui temos a primeira referência a esta sociedade fundada em 21 de dezembro de 1971, tendo como principais acionistas a Sociedade Central de Cerveja, a Companhia União Fabril Portuense, a Cuca de Angola e a Fábrica de Cervejas Reunidas de Moçambique, Lda. Para satisfazer diversos encargos com a construção da sua fábrica em Bandim, a CICER solicitou, em julho de 1973, créditos, o apoio do BNU no final desse ano de 1973 somava 54 mil contos. A Companhia de Pesca e Conservas da Guiné, dizia-se já em fevereiro de 1974, era um empreendimento que não ultrapassara a fase de arranque, a sociedade estava paralisada e sem meios para funcionar, o crédito concedido pelo BNU era de cerca de 8 mil contos. Quanto ao Hotel Nuno Tristão, era um empreendimento que o Governo da Província chamara a si, o previsto hotel constaria de um edifício de três andares, com 53 quartos e 7 suites, cujo custo estava orçado em 26 mil contos. Para cobertura da parte financeira, o Governo solicitara ao BNU um empréstimo de 20 mil contos a liquidar em 15 anuidades. O BNU concedia o empréstimo a liquidar em 24 semestralidades.

Caminhamos para o final da documentação avulsa, temos ainda pela frente o grande dossiê da Sociedade Comercial Ultramarina, dela se falará já a seguir.

(Continua)

Navegação à vela nos rios. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Tocadores de “Mutaro”. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Farol do canal de Pedro Álvares, Bijagós. Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Notas do editor

Poste anterior de 22 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19516: Notas de leitura (1152): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (74) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 9 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16579: Álbum fotográfico de Adelaide Barata Carrêlo, a filha do ten SGE Barata (CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71): um regresso emocionado - Parte XII: Buba-Fulacunda, 24/10/2015: Fulacunda, local inóspito onde a Guiné é mais dela, o tempo parou, as crianças quase não existem e... os mais velhos falam dos portugueses de outros tempos...


Foto nº 1 > República da Guiné > Comissão Nacional de Eleições > Comissão Regional de Eleições de Quínara


Foto nº 1A > Comité do Estado da Região de Quínara


Foto nº 2 > Sede regional do  PAIGC


Foto nº 3 > Poilão grande


Foto nº 4 >  Memorial, assinalando a morte de dois militares portugueses:  sold nº 17765, Saliu Djassi, natural de Fulacunda, CCAÇ 1624 / BCAÇ 1860, morto em combate, em 13/1/67, sepultado em Bissau; e sold nº 9028766, Guilherme [Alberto] Moreira,  natural de Mirandela, CCAÇ 1624 / BCAÇ 1860, morto em combate, em 21/1/68, sepultado em Milhais, Mirandela.

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 24 de outubro de 2015

Fotos (e legendas): © Adelaide Barata Carrêlo (2016), Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico e das notas de viagem de Adelaide Barata Carrelo, à Guiné-Bissau, em outubro-novembro de 2015 (*):

24 de outubro de 2015... Viagem Buba-Parque Natural das Lagoas de Cufada-Fulacunda... a caminho de Bafatá

(...) Fulacunda.

Local inóspito 
onde a Guiné é mais dela, 
o tempo parou 
e as crianças quase não existem
e os mais velhos 
falam  dos portugueses de outros tempos.


2. Comentário, de 28 de setembro p.p.,  do nosso amigo e camarada Jorge Pinto, a quem
demos conhecimento,  em primeira mão,  das fotos acima publicadas:

[Jorge Pinto , ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; natural de Turquel, Alcobaça; é professor do ensino secundário, reformado; foto em baixo: o Jorge Pinto, desarmado, em pose de grande senhor, em julho de 1974, acompanha a visita, a pedido expresso,  de um grupo de combatentes do PAIGC ao porto de Fulacunda, por onde era feito o reabastecimento das NT [, porto fluvial, no rio Fulacunda, vd, poste P12368]

Luís:

Agradeço a iniciativa de me enviares fotos de Fulacunda. Confirmam-se as notícias que recebi no último encontro da Tabanca Grande, através de um camarada da minha companhia (1º Cabo Oliveira), que por lá andou nos inícios deste ano. 

A terra está mesmo em decadência. O isolamento da terra, a inexistência de actividades produtivas e a endémica indolência daquela comunidade de Beafadas fazia prever esta evolução, caso não houvesse uma acção externa de iniciativa governamental. 

Das fotos enviadas apenas identifico as campas e o grande mangueiro [ou poilão?] , entre a tabanca e a estrada de acesso à pista. Dava mangas para todos e era sob a sua protecção que se celebravam as cerimónias sociais designadamente religiosas e festivas. Também era na copa desta grandiosa árvore que abutres e morcegos se reuniam em grandes concentrações...

Sobre as campas não tenho memória das circunstâncias em que ocorreram as mortes. Como sabes, cheguei a Fulacunda em julho de 1972. Sei no entanto, que aquelas mortes ocorreram numa época de grandes confrontos entre as NT e o IN.

Abraço, Jorge

sexta-feira, 18 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15875: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (35): antigo quartel de Jabadá Porto, setor de Tite, ou outros antigos quarteis das NT na região de Quínara: quem quer e pode ajudar a Inês Galvão, jovem doutoranda em antropologia que vai estar até junho na Guiné-Bissau ?

1. Mensagem de Inês [Neto] Galvão,  doutoranda em antropologia pelo ICS/UL - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa:

Data: 14 de março de 2016 às 11:53

Assunto: quartel de Jabada Porto, sector de Tite

Caro Luís Graça e demais camaradas:

Faço pesquisa de teor histórico e etnográfico sobre parentesco e política de género na região de Quínara, onde um mais-velho me contou viver cioso de retomar contacto com antigos colegas de armas e amigos portugueses. O seu nome é Luís Fanda e no cartão que me mostrou da Associação de Ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas tem os seguintes dados:

Cartão Milícia 25/02 n.º 360
Companhia 8, Caçadores 4610
Natural de Jabada Porto, sector de Tite

Sei que fez instrução em Bolama e que terá passado algum tempo na Amura, em Bissau, contando seguir para a metrópole.

Aproveito ainda para perguntar se no vosso grupo haverá alguém disposto a conversar comigo sobre o quartel de Jabada Porto ou outros de Quínara. Interessar-me-ia entrar em contacto com quem guarde vivências do quartel e queira partilhar apontamentos sobre os habitantes da tabanca e região, bem como sobre as relações entre estes e os portugueses então lá presentes (militares ou não).

Registos fotográficos e passagens literárias, mais ou menos pessoais, que partam de Jabada e Quínara com referência a matérias de parentesco, cerimónias e animismo também me seriam úteis.

Regressarei a Lisboa em Junho deste ano.

Até lá estarei contactável por e-mail:

galvines@gmail.com

ines.galvao@ics.ul.pt

Ficaria muito feliz se se conseguisse organizar uma vídeo-conferência para que o Luís voltasse ao contacto com os seus amigos.

Um abraço,
Inês




Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 >  Aquartelamento de Jabadá, na margem esquerda do Rio Geba




Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 > Aquartelamento de Jabadá > Edifício das transmissões, camarata do Comandante de Companhia, bar de sargentos e oficiais, cozinha e refeitório, e secretaria



Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 > > Enfermaria, central eléctrica, bar dos praças e depósito de géneros.




Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 > Depósito de água, padaria e cozinha

Fotos (e legendas): © António Rodrigues Pereira (2010). Todos os direitos reservados

2. Comentário do editor:

Inês, para já os nossos parabéns por (e votos de felicidade para) o seu projeto de doutoramento que, segundo a página do ICS-UL, é sobre "Género, poder e transformação social: uma etnografia histórica sobre relações conjugais entre balantas da Guiné-Bissau". (*)

Em linguagem da tropa, tiramos-lhe o quico!... Você é uma mulher valente, ao trocar este cantinho da Europa, com o seu relativo conforto e segurança, pelas agruras do dia-a-da da Guiné-Bissau.

Em relação ao seu pedido, teremos todo o gosto de ajudar, no que pudermos. Sobre Jabadá temos algumas referências no nosso blogue. Mandamos aqui umas fotos de 1974, com, o aquartelamento de Jabadá... Já nada destas instalações deve existir...

Tem também aqui o mapa de Tite (incluindo Jabadá). E há vários camaradas nossos, membros da nossa Tabanca Grande, que passaram pela região de Quínara ao longo dos anos da guerra (Tite, Fulacunda, Jabadá, Enxudé, S. João...). Aqui vão alguns (, a lista não é exaustiva). Espero que eles a possam ajudar, através de um primeiro contacto por email:

(i) José Inácio Leão Varela, ex-alf mil,  CCAÇ 1566, Jabadá, Pelundo,Fulacunda e S. João, 1966/68;  economista reformado, mora em Algés, Miraflores;

(ii) António Rodrigues Pereira, ex-fur mil at inf,  1ª CCAÇ / BCAÇ 4612/74, Cumeré, Jabadá e Brá,  1974;

(iii)  Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; natural de Turquel, Alcobaça; é professor do ensino secundário, reformado; mora em Lisboa;

(iv) António Correia Rodrigues, ex-fur mil cav, CCAV 677, Fulacunda, S. João e Tite, 1964/66;

(v) Santos Oliveira, ex- 2.º sarg mil armas pesadas inf, Pel Mort 912 (Como, Cufar e Tite, 1964/66).

Quanto ao antigo milícia (ou soldado do recrutamento local?) Luís Fanda, os elementos de identificação que nos manda estão, por certo, errados... Ele estaria porventura ligado ao BCAÇ 4610... Só que temos dois batalhões, com esse número, o BCAÇ 4610/72 e o BCAÇ 4610/73... Cada batalhão (c. de 600 homens)  tinha 4 companhias (três de quadrícula e uma companhia de comando e serviços)... A Inês tem que reconfirmar os dados... E perguntar ao Luís Fanda por onde andou e quando e com quem... Se ele era natural de Jabadá, pode ter andado noutras regiões (Cacheu, Tombali, Gabu...). A Guiné-Bissau é grande, do tamanho da Holanda ou do nosso Alentejo... No nosso tempo, no tempo da guerra, era muito maior... Muitos de nós só conhecíamos o "buraco" onde fomos colocados... Enfim, não conhecemos, aqui no blogue,  nenhuma "Companhia 8", nem Companhia de Caçadores 4610...

Boa sorte... Talvez possa falar pelo Skype um dia destes com estes camaradas que lhe indico, ou então falar com eles quando regressar em junho. Disponha do nosso blogue... Eles vão ficar com os seus contactos... Mande-nos também fotos da região... E notícias, claro, de si e das gentes de Quínara. (**)
LG
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Notas do editor:

(*) Descrição do projeto de doutoramento da Inês Gouveia:

Este projecto visa investigar as relações de conjugalidade na Guiné-Bissau face à polémica sobre a poligamia e os casamentos «arranjados», ditos «forçados» ou «precoces», e face aos debates sobre emancipação e subalternidade feminina. Integradas estas questões no âmbito mais alargado do parentesco e da política de género, a pesquisa tomará as populações identificadas sob o etnónimo balanta como âncora empírica. Através da exploração histórico-etnográfica do campo de litígio gerado em torno destes casamentos e do estudo de práticas de rejeição dos mesmos, considerar-se-ão conexões com processos sociais mais vastos, como aqueles movidos pela expansão da economia capitalista, pela implementação do Estado colonial e pós-colonial, bem como pelo contacto entre distintos modelos de conjugalidade e casamento. Este projeto é apoiado pela Bolsa FCT referência SFRH/BD/94769/2013.

(**) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15771: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (34): É crocodilo ou jacaré ? Caros leitores, corrijam as legendas, se for caso disso...

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15058: Notas de leitura (752): “O Guardião”, por Fernando Antunes, Edição de Setembro de 2011 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Fernando Antunes assina um relato minucioso do que viveu no BART 2924, que operou na região de Quínara. Destaca-se a admiração profunda que nutre pelo segundo comandante da unidade e mais tarde primeiro comandante, hoje general José Figueiredo Valente. Fica-se hesitante se é melhor confiar no seu relato ou na história do BART 2924. Tendo sido sargento de informações e operações teve acesso a toda a documentação da guerra, daí poder ser essencial estudar a evolução deste setor da região Sul a partir destas duas fontes. É um cronista animado e confiante. Daí perceber-se o seu orgulho ao publicar na contracapa o louvor que lhe foi conferido por Spínola, em Setembro de 1972.

Um abraço do
Mário


O Guardião, por Fernando Antunes

Beja Santos

Logo na dedicatória se fica a perceber o tremendo vínculo de admiração que une o autor desta narrativa a quem o comandou no BART 2924, sediado em Tite: “Ao general José Fernando Valles de Figueiredo Valente, um homem íntegro, ao qual pudemos confiar, de boa-fé, a nossa vida, foi meu comandante na Guiné, o Guardião”. Edição de Setembro de 2011.

Partem em 23 de Setembro de 1970, Fernando Antunes é furriel, irá desempenhar as funções de Sargento das Operações, junto do Comando do Batalhão. Nos dados curriculares que apresenta, depreende-se que é mobilizado por motivos políticos, diz que estudou na Escola 12 do Bairro Alto, onde encontrou Domenico Conte, com quem estudou até ao 7.º ano. E adianta: “Separados, por um evento político em Coimbra, os estudantes fazem uma partida ao presidente Américo Tomás e todos os estudantes são chamados para o serviço militar obrigatório. Vai parar à guerra da Guiné. Ao 2.º ano do ISE acaba os seus estudos académicos”. Chegados em 28 de Setembro a Bissau são despachados por LDG para Bolama, é a primeira unidade que vai fazer a instrução de aperfeiçoamento operacional na antiga capital da Guiné. As instalações que o aguardam estão completamente degradadas, um edifício da Casa Gouveia, assim descrito: no rés-do-chão tem quatro casernas que por certo pertenciam às cavalariças; uma cozinha sem sistema de água ou esgotos, ali se fazia o rancho para todos; os duches são doze torneiras de água instaladas no pátio; os quartos improvisados têm beliches com três e quatro andares; a retrete é uma vala de quatro metros; o primeiro andar tem um varandim, uma sala e dois quartos onde se instalaram os três elementos do comando; a instalação elétrica é quase inexistente; não há equipamento de frio para conservar os alimentos. Bolama é uma cidade morta, a sua atividade económica está circunscrita ao arroz. Logo na primeira noite eclode uma intoxicação alimentar, o 2.º Comandante logo lidera a operação, o médico da unidade é rotulado de “uma dor de alma”, são os médicos Piu Abreu e Sá e Melo quem aguentam a borrasca. O Comando tem três oficiais superiores, o Primeiro Comandante que neste relato fica praticamente na sombra é dado como “um homem franzino e debilitado pelo vício sôfrego do tabaco”. Há evidentemente o Major Valente, que é tratado com todos os encómios e o Major Malaquias, assim descrito: “É um homem alto e forte, com uma presença serena, e quando aborda qualquer assunto fá-lo com ponderação e sabedoria e tem uma cultura acima da média”.

Feito o IAO, o BART 2924 vai para Quínara, a Frente de Luta do Quínara, para o PAIGC. O terreno operacional que lhes cabe é descrito minuciosamente: há a espinha dorsal de S. João-Nova Sintra-Fulacunda, que divide o norte do sul do setor; a norte situam-se os quartéis de Tite e de Jabadá; para sul sai o caminho que serve o aquartelamento a Nova Sintra. Utilizam-se dois itinerários, a picada de Tite-Enxudé e a de Nova Sintra-S. João, que é aberta quando o quartel de Nova Sintra recebe reabastecimentos por via fluvial. Uma pequena picada liga o centro de Jabadá à margem do rio Geba. Quínara foi inicialmente chão Beafada, ao tempo a etnia Balanta representava mais de 50% da população. O PAIGC é junto dos Balantas que encontra maior apoio. Fernando Antunes escreve a orgânica do PAIGC na região Sul, dispositivo militar e civil. São os quatros civis do PAIGC que dão instrução ideológica. O setor teria dez escolas do PAIGC. Refere a diretiva emanada de Spínola “Razão Confiante”, aplicação dos princípios constantes do programa “Por uma Guiné melhor” e a diretiva “Grande Razão” orientada para o reordenamento da zona de Bissássema. Ficamos a saber quais as tarefas da unidade e o dispositivo colocado em Tite, Bissássema, Enxudé, Nova Sintra, Fulacunda e Jabadá: mais de 800 militares, incluindo 200 efetivos dos pelotões de milícias. Segundo o autor, as instalações de Tite, Fulacunda e Jabadá eram aceitáveis, as de Nova Sintra degradantes e deficientes. Regista o estado psicológico a que chegara a unidade que foram render, o BCAÇ 2867, destaca vários oficiais que foram evacuados por doença do foro neuropsiquiátrico.

Logo em 1 de Janeiro de 1971 tem lugar o reconhecimento do local onde iria ser implantada a tabanca reordenada de Bissássema. Em Fevereiro chega a 1.ª Companhia de Comandos Africana, comandada por João Bacar Djaló, as refregas vão ter lugar, o PAIGC mostra-se agressivo, começam as flagelações. O autor ajuda fazer nascer o jornal de caserna “A voz do Quínara”. Em Março, realiza-se a operação “Desejada Oportunidade”, haverá acampamentos destruídos, o IN retira temporariamente, emboscará os comandos africanos em Jufá, tabanca de controlo IN, os comandos perdem a cabeça e descarregam sobre a população. A ação psicossocial começa a dar frutos, em todo o setor, muitos civis apresentam-se. Em Maio, realiza-se um encontro preparatório do “II Congresso dos Povos da Guiné”, nesse mês Tite é atacada. Escreve: “O IN teve a ousada estratégica de, utilizando de longe a artilharia, manter os guerrilheiros, os apontadores de RPG bastante perto do aquartelamento, perto do arame-farpado, sujeitando ao perigo de morte as centenas de guerrilheiros, a hipotéticos erros da sua artilharia, o que demonstra um destemor nunca manifestado até hoje”. É mencionado o potencial de guerra que cabe aos efetivos do PAIGC capitaneados por Nino Vieira. Os meses passam, foi criada a rádio Tite com emissões diárias de uma hora, com música pop da atualidade.

Fernando Antunes destaca uma conversa que teve com um dos participantes da Operação Mar Verde, o comando africano acha que valeu a pena pela libertação dos camaradas prisioneiros, o resto foi uma total desilusão pelo insucesso. Estamos em Outubro de 1971, o Comandante Valente planeou ações de surpresa, e uma delas, a ação “Novidade” resulta a captura do presidente de comité conhecido por Pascoal Có, mais tarde abatido quando tentava fugir. O Comandante Valente é promovido a Tenente-Coronel, agora é o Comandante efetivo da unidade. São inauguradas as escolas de Enxudé e Bissássema. Em Dezembro de 1971 é constituído o grupo especial de milícias, todos da etnia Balanta. Há mais população a regressar. A estrada alcatroada Tite-Bissássema, a despeito das minas do IN, apronta-se. Pela primeira vez, em Março de 1972, Jabadá sofre um ataque diurno. Para surpresa do leitor que procura seguir atentamente este relato de quem se documentou com a história da unidade, fica-se a saber que o PAIGC se vai reunindo com a população sujeita a duplo controlo, intimida-a a não fornecer informações às tropas portuguesas. A estrada asfaltada é inaugurada em Abril. Nasce a cooperativa agropecuária em Bissássema. O Ministro da Defesa comparece à inauguração da estrada asfaltada Tite-Enxudé. O grupo especial de milícias tem os seus roncos, destaca-se a captura do comandante Tamba Bazooca. E em Agosto chegou a hora da despedida. Findou aqui o relato. A admiração pelo guardião é irrestrita, o pai adotivo e o irmão mais velho e todos no BART 2924.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15048: Notas de leitura (751): “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 28 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14938: (Ex)citações (287): Certa vez fui a Teixeira Pinto, e na estação dos CTT marquei dia e hora para telefonar para casa... A família reuniu-se em peso, reunida, ansiosa, à espera do telefonema... Mas eu não consegui lá voltar nesse dia e hora...A família ficou em pânico, como seria de imaginar (Leão Varela, ex-alf mil, CCAÇ 1566, Jabadá, Pelundo,Fulacunda e S. João, 1966/68)


Guiné > Região de Quínara > São João > CCAÇ 1566 (JabadáPelundo,Fulacunda e S. João, 1966/68) > "O meu pelotão. Eu, o dos óculos escuros,  entre os meus camaradas e amigos gurriéis Valente, à minha direita, e Matos, à minha esquerda. Foto tirada já em S. João, após mais uma patrulha de combate."

Foto (e legenda): © Leão Varela (2014). Todos os direitos reservados [ Edição: CV]


1. Comentário de Leão Varela ( ex-alf mil, CCAÇ 1566 (Jabadá, Pelundo,Fulacunda e S. João, 1966/68);

Carlos Amigos e Camaradas

Ainda a sondagem sobre  quem fez chamadas telefónicas da Guiné para casa. (*)

Passou-me em falso o período para responder... mas já agora ainda me atrevo a dizer que eu fiz uma e de uma estação dos CTT que não vi mencionada, Teixeira Pinto, estava eu, então, destacado no Pelundo com meu pelotão (o 1º pelotão da CCAÇ 1566).

Uma das nossas missões era patrulhar a estrada entre o Pelundo e Teixeira Pinto o que aproveitávamos para no caminho encher 2 ou 3 bidons de água para beber e tomar banho.

Certa vez, numa dessas deslocações fui até Teixeira Pinto onde alguém me informou da possibilidade de, por marcação do dia e hora, fazer na Estação dos CTT uma chamada para casa. Assim fiz. Marquei o dia e a hora...só que nesse dia - já não sei porquê - não me foi possível deslocar a Teixeira Pinto. Como em casa foram avisados de que eu ia telefonar,  toda a minha gente aguardava o telefonema, que não fiz, à volta do telefone. Parece que, ao não receberem nenhum telefonema meu,
 ficaram em pânico.

Por mim, voltei a marcar outro dia e lá consegui telefonar.. mas jurei para nunca mais pregar sustos desses à minha família.

Desta pequena história fica a mensagem de que em TEIXEIRA PINTO havia Estação dos CTT e o registo constante sobressalto com que as nossas famílias andavam por cá. (**)

Forte e amigo abraço para todos

Leão Varela

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14937: Sondagem: Resultados definitivos (n=152): cerca de 55% do pessoal nunca fez uma chamada telefónica para a metrópole... Admite-se que essa proporção fosse, na realidade, ainda maior

(**) Último poste da série > 23 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14925: (Ex)citações (286): Fiz um telefonema surpresa para o meu irmão, no dia e hora do seu casamento, em 16/10/1971, em Guimarães...Tive que marcar a chamada oito dias antes, na casa do régulo de Bula que servia de posto dos CTT... (António Mato, ex-alf mil MA, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72)