Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 24 de junho de 2019
Guiné 61/74 - P19916: Notas de leitura (1190): "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo General José de Figueiredo Valente; Âncora Editora, 2016 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2016:
Queridos amigos,
O que é verdadeiramente impressivo na singeleza dos relatos do General José de Figueiredo Valente é a compreensão do outro, o sentido do cuidado, o saber tirar partido de um episódio burlesco, contá-lo a preceito e remetê-lo para as dádivas da cultura. São relatos serenos, não escondendo a saudade pelo feitiço africano e o seu espírito de missão junto das populações.
Convido o leitor para uma leitura muito atenta do que ele nos diz sobre o Grupo Especial de Milícias Balantas e aos acontecimentos que levaram à morte heróica do Capitão João Bacar Djaló.
Um abraço do
Mário
No Quínara, 1970-1972, pelo General José de Figueiredo Valente
Beja Santos
Em mais um volume de Programa Fim do Império, a Âncora Editora publicou recentemente "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo general José de Figueiredo Valente. Algo nos toca nos seus dados biográficos. Cumpriu duas missões em Angola e comandou um Batalhão na Guiné; entre outros desempenhos relevantes esteve à frente do Comando da Zona Militar da Madeira e foi Director do Colégio Militar. Após a sua comissão na Guiné, acolheu no seio familiar dois irmãos Balantas e educou o filho de um chefe Fula, hoje Capitão do Regimento de Comandos. Durante cerca de 10 anos, foi voluntário junto de duas instituições, uma de cegos e outra de pacientes de paralisia cerebral.
As suas memórias timbram por isso mesmo: pelo sentido da compaixão, uma intensa vontade em compreender e lançar as pontes para o diálogo entre as culturas, a ponderação e flexibilidade na liderança, o sentido da reflexão nas encruzilhadas do destino, uma rara capacidade de aceitação.
Primeiro em Angola entre 1962 e 1964, no BART 2346, em Uíge, viagem um tanto tormentosa no Niassa. A descoberta de África, aquelas formigas devoradoras e construtoras, invasoras como a marabunta, mas também as cobras e as gazelas. Aponta certos ridículos do mando, inebria-se com as paisagens angolanas, com a beleza do Cuango, ironiza com o espírito de certos oficiais farristas, capazes de se desenvencilhar com a burocracia dos relatórios; recorda com saudade Ambrizete, era aqui que estava instalado o Comando de Agrupamento, tinha a responsabilidade uma enorme região com 30 mil quilómetros quadrados, a atividade operacional era orientada com prioridade para o interior da região e para o Norte, junto ao rio Zaire. Registou mais descobertas como as tartarugas que vinham aqui nidificar, bem como os caranguejos que, numa derradeira viagem, atravessavam as ruas da povoação para se dirigirem para o interior, a fim de alcançarem umas lagoas, lagoas essas onde pousavam centenas de flamingos. Recorda perdas e situações embaraçosas como uma médica a quem levou um mulatinho doente tê-lo criticado pelo mau estado da criança, pensava que se tratava do pai.
E assim chegamos a Quínara, é agora Segundo Comandante do BART 2924, a partir de Dezembro de 1970. Apanha problemas graúdos, o de apaziguar uma situação de grande tensão entre elementos da população civil e a milícia de Tite. As jovens mulheres Balantas que tinham sido vendidas a maridos velhos sentiam forte atração por aquela rapaziada que lhes falava mais ao coração, ele teve que presidir a “julgamentos” de casos delicados de velhos maridos que exigiam ressarcimento pelas suas jovens mulheres que os repudiavam. Quínara significava atividade constante como a guerrilha omnipresente: Nova Sintra, S. João, Tite e Fulacunda. Mas não resiste a tirar partido do sal da vida desde roubos de galinhas a pratos de morteiro engolidos pelos canais feitos pelas formigas. Formou milícias, um grupo especial de milícias só com Balantas, que foram organizados, fardados e equipados com armamento capturado à guerrilha. Há a guerra e a contingência de diferentes acidentes. Foi o caso de um incêndio no destacamento do Enxudé, que servia essencialmente de testa-de-ponte da guarnição militar de Tite e era igualmente o eixo de ligação fluvial com Bissau e Jabadá. Aqui permanecia uma guarnição de 25 homens. Em dia e hora em que se iria iniciar um espetáculo em Tite chega uma mensagem de que no Enxudé se tinha declarado um incêndio. Coisas que quem viveu a guerra sabe não ser fantasia:
“As causas do incêndio foram descritas desta forma: um dos rapazes da tabanca que ali trabalhava tinha ido ao recinto dos bidões de combustível para atestar um candeeiro Petromax. Por casas desconhecidas mas talvez por ter querido fazê-lo sem apagar o candeeiro, ao procurar enchê-lo derramou combustível que entretanto se incendiou, ardendo à volta dos bidões dando origem ao incêndio com risco de fazer explodir os bidões. Cansados e sujos lá regressaram a Tite e não puderam assistir ao espetáculo do “Conjunto Musical do QG”…
José de Figueiredo Valente conheceu o Capitão João Bacar Djaló, que comandou a 1.ª Companhia de Comandos Africanos, que foi atribuída em reforço ao seu batalhão para ali realizar o seu treino operacional. Relata a morte do Capitão João Bacar Djaló que ocorreu em circunstância que puseram em evidência a sua coragem e dedicação. E assim relata:
“Após o início da ação de fogo IN, o Capitão João Bacar retirou a cavilha de segurança de uma das granadas de mão que transportava e preparava-se para a lançar quando um dos seus homens caiu ferido. Procurou trazê-lo para o abrigo de um morro de bagabaga e nesse esforço e talvez devido a uma explosão mais próxima, soltou a granada descavilhada que ao explodir iria atingir os seus homens. Para os proteger, procurou ainda agarrá-la para a lançar para longe quando a sua explosão o matou".
O grupo especial de milícias deu-lhe imprevistos trabalhos; estava organizado em dez equipas de cinco homens, devidamente comandadas, o que permitia uma grande flexibilidade no seu emprego tático. As missões atribuídas ao grupo incluíam a realização de diversas ações contra objetivos identificados ou a montagem de emboscadas nos itinerários de acesso. Foi exatamente numa dessas emboscadas que na manhã do dia seguinte foi procurado por um soldado intérprete Beafada dizendo que estavam lá fora uma rapariga e a sua tia para apresentar queixa, a bajuda tinha sido violada naquela noite por vários elementos da milícia, que ela afirmava terem sido dez, dos quais poderia até identificar os dois primeiros. É uma descrição extraordinária, o oficial faz interrogatório em privado ao primeiro que havia sido apontado pela bajuda, a negação é perentória. O comandante do grupo pede autorização para interrogar o homem e recorre a uma grossa palmatória de madeira, ao fim de muita palmatoada o acusado admitiu que fora ele o primeiro, o primeiro indiciou o segundo e assim sucessivamente. Houve que fazer uma sessão pública a que compareceu o chefe Beafada noivo da bajuda.
O último relato refere-se a um soldado maqueiro, José da Purificação dos Santos, o Zequinha. O Zequinha era irmão do palhaço Quinito e o Zequinha possuía uma certa veia artística como o irmão, com a sua viola e as suas canções era um franco animador. Mas era instável e muito suscetível, com manifestações agressivas. Quando ia a Bissau para a consulta médica de psiquiatria, desaparecia, e este procedimento irresponsável repetiu-se. Conversando com o Zequinha, apurou tratar-se de filho de pai incógnito e de uma artista de circo mais prostituta que artista, vivera uma infância errante, desregrada e sem padrões morais. Pendiam sobre o Zequinha dois autos por deserção e um auto de insubordinação, Figueiredo Valente procurou remediar e atenuar a gravidade das consequências. Apanhou uma pena de prisão muito limitada e regressou à Metrópole. Voltaram a encontrar-se, esporadicamente. Em 1986, já Diretor do Colégio Militar, é procurado, o Zequinha estava muito doente e internado no Hospital de Santa Maria, queria vê-lo. Estava já numa fase terminal, com um cancro nos pulmões. “A sua alegria em me ver e o conforto que a minha presença e as minhas palavras lhe deram nos últimos dias da sua vida evidenciaram a sua gratidão pelo que eu por ele fizera. E num dia em que de novo fui visitar, soube que já ali não estava. Partira mais uma vez, já não como vagabundo errante, mas para num lugar onde permaneceria finalmente em paz”.
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)
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