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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18962: Antropologia (28): Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926; Dissertação de Mestrado em Antropologia Social por Olívia Gonçalves Janequine (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Nunca me ocorrera quando e como os sírio-libaneses arribaram à Guiné, como se poderá ler neste documento foi coisa que ocorreu na viragem do século, vinham do Monte Líbano, o Império Otomano dava sinais claros de decadência, eles sonhavam com melhores condições de vida, embrenharam-se por toda a África Ocidental, mas muitos foram para mais longe, para as Américas do Norte e do Sul, convém não esquecer Seu Nacib, a paixão de Gabriela, em Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado. Sempre minoritários, optaram por locais do interior, fugiram discretamente à discriminação, não encontrei nenhum registo de hostilidades entre estes comerciantes e os mauritanos.

Um abraço do
Mário


Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926

Beja Santos

A surfar na net deparou-se-me esta dissertação de mestrado em Antropologia Social na Universidade de Campinas, não podia resistir à leitura, tendo tido, como direto colaborador, no Pel Caç Nat 52, Zacarias Saiegh, de ascendência sírio-libanesa, sabendo que ao tempo os sírio-libaneses continuavam muito ativos no comércio, a despeito da guerra, resolvi inteirar-me como tinham chegado à Guiné.

É o que Olívia Gonçalves Janequine nos sintetiza sobre o seu trabalho:

“Na passagem do século XIX para o século XX, no contexto da sua grande migração, alguns milhares de sírio-libaneses foram para a África Ocidental e ali se estabeleceram. Em toda a região, tornaram-se intermediários no circuito comercial, então em plena ascensão, que fazia chegar as matérias-primas da região à indústria europeia e os bens de consumo produzidos na Europa aquele que era o novo mercado. 

"Com o contexto global e regional sempre em perspetiva, esta dissertação apresenta uma investigação sobre o processo de estabelecimento de migrantes sírio-libaneses na Guiné Portuguesa”, o período de estudo corresponde à I República.


Zacarias Saiegh, da I Companhia de Comandos Africana, 
executado em Porto Gole em dezembro de 1977.

A mestranda deu particular realce na investigação aos documentos que circulavam entre administradores coloniais, pois verificou que estes sírio-libaneses aparecem em relatórios, censos, anuários e artigos publicados em periódicos coloniais sempre como tema acessório. Parte do marco temporal, a partir da década de 1880, houve um grande movimento emigratório a partir da região do Império Otomano denominada Grande Síria (atuais Síria, Líbano, Jordânia, Israel, Territórios Palestinos e uma fração da Turquia) especialmente na área onde está localizado o Monte Líbano. 

Estes migrantes eram conhecidos por “turcos”, caso do Brasil, mas também os tratavam por árabes ou sírios. Nos documentos referentes à Guiné Portuguesa no período 1908-1950 são tratados como: “syrien”, “syrios”, “syrianos”, “franceses (naturais da Síria” e também “libaneses”. Pude constatar que eram referidos como sírio-libaneses ou só libaneses.

Esta migração prende-se com o declínio otomano, os sírio-libaneses lançaram-se num êxodo, na Europa, em direção às Américas (EUA, Brasil e Argentina). Uma dessas levas europeias encaminhou-se para a rede do comércio internacional de tecidos, outra para a África Ocidental, a partir do porto de Marselha. 

A invasão colonial na África Ocidental era impressionante, tratava-se da avidez dos mercados fornecedores de matérias-primas e consumidores de manufaturas. Iremos encontrar estes migrantes vindos do Monte Líbano em regiões como o Senegal, a Costa de Marfim, a Nigéria e o Gana (então conhecida como Costa do Ouro) mas também a Serra Leoa, a Guiné Francesa, o Sudão Ocidental. Terão partido do Senegal e da Guiné Francesa até à Guiné Portuguesa. Um investigador aponta que em 1960 na África Ocidental os libaneses residentes aproximavam-se das 40 mil pessoas.


Irmã do falecido Faraha Heneni, um dos importantes comerciantes libaneses (ou de origem sírio-libanesa) de Bafatá, imagem do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.


Diz a mestranda que em casos como a Guiné Senegal, Guiné Portuguesa e Serra Leoa, o movimento migratório ficou restringido nos primeiros anos às principais zonas urbanas, muito cedo começaram a ser hostilizados os comerciantes locais, há dados que tal aconteceu no Senegal, em Serra Leoa e na Guiné Portuguesa houve o seu claro repúdio pela Liga Guineense em 1915.

A investigadora dedica particular interesse à análise da administração colonial e o seu relacionamento com os estrangeiros, recorda que a administração era constituída por uma minoria de metropolitanos cercada de funcionários oriundos de outros territórios ultramarinos, principalmente de Cabo Verde e crioulos guineenses, muitos deles de origem cabo-verdiana. Até a uma efetiva pacificação, o comércio processava-se em praças, isto é, em aglomerações onde comerciantes europeus, cabo-verdianos e luso-africanos viviam ou se estabeleciam e que se tornaram nos principais centros urbanos da Guiné ainda no século XIX.

A escassa presença portuguesa prendia-se a diferentes fatores: a hostilidade das populações locais, a insalubridade do território, o clima, verdadeiramente devastador, tal como o Governador Carlos Pereira, o primeiro nomeado após a vitória republicana escreveu numa obra que redigiu em francês em 1914:

“Vê-se que a colónia não se presta à adaptação da raça branca. (…) Uma vez que o clima é debilitante para o branco, este não deve, normalmente, passar na colónia duas estações chuvosas consecutivas. Convém, portanto, que ele aí permaneça apenas por períodos de 18 meses. (…)

" As obras de saneamento realizadas ultimamente na colónia, assim como o melhor conhecimento e uma aplicação mais rigoroso das prescrições higiénicas por parte dos brancos, fizeram baixar consideravelmente os números das estatísticas nosológicas (referentes a doenças), o que facilita hoje em dia a contratação dos funcionários necessários à boa organização dos serviços públicos e dos colonos necessários ao seu desenvolvimento económico”.

A investigadora destaca o papel da Liga Guineense, as suas contendas com Teixeira Pinto e as atrocidades e prepotências praticadas na Península de Bissau por Abdul Injai e a hostilidade ao comércio libanês.

Estes sírio-libaneses eram 101 na Guiné Portuguesa em 1924. Devemos ao relatório produzido por Calvet Magalhães, Administrador da Circunscrição de Geba, e referente a 1914, o dado de que havia mais de 20 estabelecimentos sírios só em Bafatá, refere a sua presença em Contuboel e Sonaco. 

Fica claro que esta concentração do comércio sírio era no interior da Guiné, posicionavam-se em locais que podiam ser abastecidos através do rio Geba. 

A investigadora estudou também dados sobre a presença destes comerciantes em Farim. Mas ao contrário da circunscrição de Farim, a região de Bafatá (pertencente à circunscrição de Geba) encontrava-se sob plena administração portuguesa. A autora sugere que os sírio-libaneses não queriam entrar em concorrência com as elites locais europeias e crioulas. A Liga Guineense criticava as práticas comerciais dos sírios e o próprio Governador Carlos Pereira tece-lhes considerações bem pouco abonatórias:

“O sírio é tão bom vendedor quanto o contratante negro, mas ele vive, em geral, mais miseravelmente que este último. Por sua insensibilidade moral, pelos procedimentos condenáveis que ele adota em suas transações com os indígenas, pelo conhecimento que possui dos costumes e da língua destes, o sírio é um concorrente ameaçador, não somente para as grandes casas europeias mas também e principalmente para os pequenos comerciantes”.

Calvet Magalhães também os vai zurzir no seu relatório, falando nas suas balanças viciadas, na ganância dos seus lucros.


A I Guerra Mundial afetou a presença síria na Guiné, Portugal entrou na guerra no lado oposto ao dos otomanos, havia que deter cidadãos alemães e seus aliados residentes na Guiné, os sírios teriam sido detidos em julho de 1916 e apenas no Cacheu e não há relatos de consequências para os sírio-libaneses noutros pontos da Guiné.

Importa igualmente dizer que Olivia Janequine analisa as atividades económicas deste comércio sírio no contexto de toda a África Ocidental e explana também o contexto da economia da Guiné Portuguesa na I República. No fundo, os sírio-libaneses granjearam posições em Bissau, Bafatá, Bambadinca, Sonaco e Farim e em centros menores como Cacheu, Geba e Xitole. 

Em 1948, apenas algumas companhias comerciais maiores de sírio-libaneses como a Aly Souleiman & C.ª atuavam no interior e estavam presentes nos portos marítimos de Cacheu e Bissau, as firmas sírio-libanesas representavam aproximadamente metade dos estabelecimentos comerciais em Geba, Xitole, Farim e Bafatá, isto já noutro período histórico, é referência que consta do Anuário da Guiné Portuguesa de 1948.

É possível ler todo este documento da dissertação de mestrado de Olivia Gonçalves Janequine em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/279139/1/Janequine_OliviaGoncalves_M.pdf
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18594: Antropologia (27): Uma preciosidade: arte indígena portuguesa, 1934 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16571: Blogoterapia (281): o nosso blogue, um excecional serviço público ao dispor de todas as gerações, nacionais ou além fronteiras, onde se escreve e faz ciência histórica (Jorge Araújo)



Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873  (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009),  em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.



1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo, com data de 5 de outubro de 2016 às 22:37

Caro Luís,

Boa noite.

Depois da comemoração de uma efeméride com cento e seis anos [, o 5 de outubro de 1910], eis a minha resposta ao teu contacto do final da tarde.

Não tens que agradecer a minha participação [no blogue], pois ela inscreve-se no quadro de partilha e de aprofundamento de conhecimentos, enquanto for possível, neste caso os relacionados com as nossas vivências no conflito da Guiné que, quis o destino, nele estivessemos envolvidos como actores principais... com cenários impregnados de emoções e outras tantas tensões que ainda hoje guardamos no baú das nossas memórias.

A minha persistência, que valorizas no comentário, é um gesto menor quando comparada com a tua, a de manter vivo o espaço plural que dá sentido à existência do nosso blogue, que considero um excepcional serviço público ao dispor de todas as gerações, nacionais ou além fronteiras. onde se escreve e faz ciência histórica.

No entanto, ambas as persistências são um elemento fundante da natureza humana, enquanto processo e projecto de vida, pois são a parte visivel da intencionalidade operante de cada um de nós, ou seja,, parte da intenção à acção., onde acontece superação e transcendência, de que é exemplo paradigmático a actividade física e o desporto (motricidade humana).

Porque um conflito, seja qual for o fundamento da divergência que o justificou, tem, no mínimo, dois poderes com interesses antagónicos, como é o caso em apreço. Assim, o meu propósito foi e continuará a ser o de continuar a dar conta dos factos históricos de cada um dos lados do conflito, transformando-os em factos comuns... pois a verdade é o todo...

Desculpar-me-ás, mas apetece-me citar Karl Popper (1902-1994) para enquadrar/sintetizar o que acima redigi:

 "Penso que só há um caminho para a ciência ou para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte vos separe - a não ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente, a não ser que obtenham solução" (...)

É isso que iremos continuar a fazer.

Um abraço,, e até breve.

Jorge Araújo
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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16388: Blogoterapia (280): Amizades e Memórias que o tempo vai esfumando (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13951: Agenda cultural (361): Dia 29 do corrente, sábado, 15h30, na Biblioteca Municipal de Oeiras: sessão de apresentação (e debate): "Militares e Política: o 25 de abril", livro de Luísa Tiago de Oliveira (ed. lit)

1. Mensagem de Luisa Tiago de Oliveira, com data de 22 do corrente:

Assunto - Livro "Militares e Política: o 25 de Abril" (organizado por Luísa Tiago de Oliveira, CEHC-IUL - Centro de Estudos de História Contemporânea, ISCTE-IUL

Sessão no dia 29 de Novembro, sábado, às 15h30, na Biblioteca Municipal de Oeiras

Venho convidar-vos para uma sessão sobre um livro que organizei e cujo índice é o seguinte:

Militares e Política: o 25 de Abril
Introdução - Luísa Tiago de Oliveira
Abertura: Grândola Vila Morena. Cinco instantes para uma canção - Carlos de Almada Contreiras

Parte I - Ramos Militares e 25 de Abril
Capítulo 1: Caracterização sociológica do Movimento dos Capitães (Exército) - Aniceto Afonso
Capítulo 2: A Marinha e o dia 25 de Abril de 1974 - Pedro Lauret
Capítulo 3: Força Aérea Portuguesa: uma realidade militar e sociológica - Luís Alves de Fraga

Parte II - Rupturas iniciais com o Estado Novo
Capítulo 4: O fim da PIDE/DGS e a libertação dos presos políticos - Luísa Tiago de Oliveira
Capítulo 5: A descolonização: libertação dos presos políticos e fim da PIDE/DGS nas colónias de África - Ana Mouta Faria

Biografias dos autores
Índice onomástico


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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12192: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (4): O anúncio,em 4 de janeiro de 1961, do envio para a China, para a Academia Militar de Nanquim, dos futuros dez primeiros comandantes do PAIGC, João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa e Hilário Gomes.

1. Transcrição de uma carta,  dactilografado, assinada por Amílcar Cabral (nome de guerra, Abel Djassi), datada de Conacri, 4 de janeiro de 1961 (, dois anos antes do início oficial da guerra colonial na Guiné, ou "guerra de libertação", no vocabulário do PAIGC), e dirigida ao secretário geral adjunto do Instituto Popular de Negócios Estrangeiros, em Pequim.  Nessa carta, Amílcar Cabral dá conta do nível de "desenvolvimento da luta de libertação" no interior do país, e anuncia a partida para a China dos dez primeiros militantes do PAIGC que irão receber treino político-militar.

[À direita: foto do secretário geral do PAIGC, incluída em O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.]

Uns meses antes, em agosto de 1960. Amílcar Cabral em pessoa tinha-se deslocado a Pequim para negociar o treino dos quadros do PAIGC na Academia Militar de Nanquim.
Sabemos, por outras fontes, os nomes desses militamtes que irão tornar-se nos primeiros comandantes do PAIGC: veja-se aqui, no Arquivo Amílcar Cabral, a foto em que um grupo de quadros do PAIGC que ia receber treino militar na Academia Militar de Nanquim. é recebido pelo dirigente máximo da China, Mao Tse-Tung,  em Pequim, 1961 ... Eram eles: João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Domingos Ramos [, irmão de Pedro Ramos e amigo do nosso Mário Dias], Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa ], irmão de Manuel Saturnino] e Hilário Gomes.

A carta, a entregar por mão própria, está escrita em frâncês, língua em que Amílcar Cabral  era fluente. Tradução de L.G., para efeitos meramente informativos e com destino exclusiva aos leitores do nosso blogue.   Agradecemos, mais uma vez, à entidade detentora do arquivo e dos respetivos direitos,  a amabilidade com que tem atendido os nossos pedidos de consulta de documentos e de cedência de imagens, que de resto estão  disponíveis para o grande pública. A cedência de imagens é condicionada, por razões que nos foram explicadas e que acatamos. (LG).

Fonte:

(1961), "Comunica a situação da luta de libertação na Guiné. Anuncia a partida de dez militantes do PAIGC para a República Popular da China [formação militar na Academia de Nanquim].", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39330 (2013-10-23)


Portal Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07066.091.019.
Título: Comunica a situação da luta de libertação na Guiné. Anuncia a partida de dez militantes do PAIGC para a República Popular da China [formação militar na Academia de Nanquim].
Remetente: Amílcar Cabral (Abel Djassi), Secretário Geral do PAIGC.
Destinatário: Secretário Geral Adjunto do Instituto de Negócios Estrangeiros da República Popular da China.
Data: Quarta, 4 de Janeiro de 1961.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relações com a China, Coreia, Vietname (anos 60).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Correspondencia 


2. Transcrição do documento, traduzido de francês para português por L.G., para efeitos deste poste



Conacri, 4 de janeiro de 1961

Caixa Postal 289 –Conacri


Ao senhor secretário geral adjunto do Instituto Popular de Negócios Estrangeiros da China
Pequim


Caro camarada:

Recebi a sua carta, anunciando o regresso dos meus dois camaradas. Eles chegaram [bem] e estamos contentes. Nunca será demais sublinhar a importância da ajuda fraterna que o povo chinês está a dar ao nosso povo na luta comum pela liquidação total do imperialismo e do colonialismo.

O desenvolvimento da nossa luta de libertação está a decorrer de maneira acelarada, de acordo com o programa que vocês conhecem. Já mobilizámos uma grande parte das massas populares e o nosso povo está cada vez mais ligado ao nosso Partido cujas organizações de base estão presentes em todas as regiões e zonas do país. Estamos em vias de organizar as nossas bases de resistência, elemento fundamental da nossa luta decisiva contra os colonialistas portugueses. Enfrentamos, naturalmente, alguns problemas que gostaríamos de poder discutir convosco. Esperamos poder fazê-lo em breve.

Envio-vos alguns documentos – panfletos – distribuídos no nosso país. Apesar de serem em português, vocês podem ver como nós procedemos à agitação das massas populares, explorando ao mesmo tempo as contradições no seio do nosso inimigo.

Tenho o prazer de lhe anunciar a partida para a China de dez camaradas do nosso Partido, portadores desta carta, e cuja viagem tem a missão que você conhece. É uma nova grande contribuição para o desenvolvimento e vitória final da nossa luta. Temos pressa, mas caminharemos sempre na base da segurança, por etapas e sobre “os dois pés”.

Agradeço-lhe que apresente aos membros do Instituto os nossos melhores votos de prosperidade e de sucesso na luta contra o imperialismo e na construção do progresso e da felicidade do grande povo chinês.

Esperando notícias suas, peço-lhe, caro camarada, que aceite a expressão dos meus sentimentos muito fraternos.

Amílcar CABRAL (Abel DJASSI)

Secretário-Geral

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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10447: Notas de leitura (412): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2012:

Queridos amigos,

Por exigência do ofício, vou agora rondar pelas histórias da Guiné, imperativo que me é imposto pelo novo trabalho que tenho em mãos quanto a um roteiro que faz o arco entre a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau.
É uma tentação este texto de René Pélissier, o investigador aparece bem documentado, é por vezes muito brusco e torna a leitura palpitante graças às suas descrições onde não faltam aventuras, guerras e a consideração que ele mostra pelo esforço dos portugueses em internarem-se no mato para consolidar posições. Deita por terra o mito da nossa presença ao longo de cinco séculos, o que é verdade é que mal se saiu da orla marítima, quase sempre dentro das praças e dos presídios. Sim, é apaixonante ler este René Pélissier que ainda se encontra nas livrarias.

Um abraço do
Mário


A história da Guiné,  por René Pélissier (1)

Beja Santos

No âmbito do trabalho que estou a desenvolver com o Francisco Henriques da Silva e que se intitula “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, tem total cabimento afoitarmo-nos a fazer uma incursão pelas diferentes obras que falam da Guiné. A primeira história da Guiné foi a de João Barreto, um médico goês, curioso pelo passado da Guiné e que deu à estampa o seu trabalho em 1938.

É mais uma obra de divulgador que de especialista, tem incontestáveis méritos e revela abundantes insuficiências, como mais tarde se destacará. Em 1954, o então comandante Avelino Teixeira da Mota publica um estudo detalhado, a história da Guiné Portuguesa, que durante anos foi a peça de referência e ainda hoje é de leitura obrigatória em certos domínios. E veio a seguir René Pélissier com a sua História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, dois volumes, Editorial Estampa 1989.

A historiografia posterior aparece parcelada, António Duarte Silva escreve o seu incontornável “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, um olhar que permite ao estudioso e ao interessado pelas coisas guineenses entender a importância da obra de Sarmento Rodrigues e a fase da Guiné como província ultramarina, até chegarmos aos alvores da causa nacionalista. Como igualmente importante se revela a Guiné, 1963-1974, de Fernando Policarpo (QuidNovi, 2006),  porventura o estudo nos oferece a melhor síntese do período correspondente à luta de libertação.

O trabalho de Pélissier aparece prefaciado por Leopold Senghor. É muito belo o que ele nos escreve aqui:

“Os meus antepassados fulas e mandingas provêm de Gabu, no nordeste da Guiné portuguesa, para se integrarem em Sérères do Sine, mais exatamente na Petite Côte do Senegal, onde Joal, minha terra natal, é um porto banhado pelo Oceano Atlântico. Além disso, o meu apelido Senghor tem origem na palavra portuguesa Senhor, tal como o nome da minha cidade natal, Joal, é igualmente um apelido português. Acresce ainda que, além de outras coisas, tenho sangue português. Last but not least, no Senegal predominam os nomes e, portanto, o sangue português, sobre os nomes e o sangue franceses. Para compreender este facto bastará ler o livro de Pélissier. Aliás, no Casamansa fala-se ainda o crioulo português como dialeto regional (…) o que René Pélissier, ou melhor, mostrar, é a originalidade da colonização portuguesa e, sobretudo, o seu carácter nem racista, nem fanático (…) O leitor europeu não ficará pouco surpreendido ao verificar isto: estas campanhas, mais exatamente estas repressões ou estas guerras são quase sempre dirigidas não tanto contra os revolucionários das cidades, os mestiços, os cristãos, até mesmo os muçulmanos, mas contra os povos animistas: os Papéis, os Balantas, os Felupes e outros Beafadas”.

Senghor considera que esta obra proporciona uma leitura apaixonante e dou-lhe toda a razão.

Na introdução, o autor explica-nos ao que vem. Primeiro, contribuir para desfazer o mito dos cinco séculos da colonização-exploração portuguesa; segundo, tentar encher um vazio no conhecimento da África Ocidental pelos francófonos, cujos historiadores, praticamente todos, cessaram as suas investigações nas fronteiras da Guiné. Sem aparentemente se aperceberem de que este enclave não só tinha uma história própria como ainda uma certa importância; terceiro, um estudo dirige-se principalmente aos guineenses para eles considerarem a resistência/colaboração dos seus avós à conquista colonial. Neste ponto, o autor é esclarecedor:

“A Guiné, entre 1841 e 1936 foi uma terra de violência, repetitiva e de uma intensidade que não foi igualada nos territórios de extensão comparável na África Ocidental: perto de três vezes mais que no Casamansa. Com 81 campanhas, expedições ou simples operações que envolveram um mínimo de cerca de 8500 soldados regulares e cerca de 42000 guerreiros e auxiliares alistados do lado português, para consolidar uma colonização que, até ao começo do século XX não sabia se não teria de fazer as malas e pôr-se a andar. Ver-se-á, ao longo do texto, que a razão essencial desta acumulação de choque está ligada com a fraqueza intrínseca do poder português que só avança verdadeiramente para o interior das guerras depois dos grandes massacres de animistas de 1913-1915”.

Nos primórdios tínhamos a Guiné de Cabo Verde (1841-1844), de cedência em cedência a presença portuguesa fica confinada à Guiné de Cabo Verde, uma fração da Guiné de Cabo Verde dos séculos XVI-XVII que começava na foz do Senegal e ia até à Serra Leoa. Esta Guiné é a dependência de Cabo Verde, um género de colónia de uma colónia, pontificam tanto no tráfico negreiro como na administração incipiente os cabo-verdianos, a despeito do tratado luso-britânico de 19 de Fevereiro de 1810 pelo qual o tráfico negreiro era proibido na Guiné.

Pélissier desvela as práticas desse tráfico e os seus protagonistas. Interpelando o que era a Guiné neste período responde:

“Em 1841-1844, a Guiné dos portugueses e dos lusitanizados é, em primeiro lugar, os rios. A isto se junta, em equilíbrio precário nas suas margens, algumas escalas mestiças que sobrevieram à concorrência estrangeira”.

 Explica quais são os limites da Guiné, a sua fronteira marítima de cerca de 450 quilómetros e tece novas considerações:

“Na prática, o problema dos portugueses do litoral, no século XIX, consistirá em fazer com que a França e a Grã-Bretanha admitam que esta costa lhe cabe sem partilhas. Ora, contrariamente a Moçambique e principalmente a Angola, que aumentarão a sua extensão, a Guiné fictícia de 1841-1844 perderá quase metade das suas margens antes de se reduzir às fronteiras que lhe conhecemos. Esta costa é disputada não só nas chancelarias como até já no terreno”.

Seguir-se-á o trabalho de interiorização, os portugueses afanosamente acabarão por criar uma verdadeira colónia. As receitas, nesta fase ainda de tutela de Cabo Verde, resumem-se aos rendimentos da alfândega de Bissau e as despesas aos soldos das guarnições e de alguns funcionários civis, bem como às raras obras de consolidação dos edifícios públicos.

René Pélissier afirma que não há conhecimento exato do comércio das feitorias e argumenta:

“Com a exceção de dois ou três navios americanos, a exclusividade da navegação lícita pertence às escunas e chalupas inglesas e francesas de Gâmbia e de Goreia, que visitam duas ou três vezes por ano, cada uma, os postos portugueses. Os produtos declaráveis são o marfim, os couros e peles, a cera, o óleo de palma, as tartarugas, algum ouro e as madeiras”.

Há um prudente silêncio sobre o tráfico negreiro. Todo o comércio se baseia na troca e nos pagamentos em espécie. Quanto à topografia político-militar, o autor refere duas capitanias-mores, a de Cacheu e a de Bissau que estão unificadas numa comarca que tem à cabeça um subperfeito, residente em Bissau, isto antes de 1842 ano em que a Guiné volta a dividir-se em dois distritos autónomos, cada um com um governador dependente do governador-geral de Cabo Verde. Os portugueses ocupam Zinguichor, de há muito cobiçada pelos franceses, há registo de um enorme esforço de Honório Pereira Barreto para suster esta presença francesa, mas o Casamansa português está num completo declínio.

Na bacia do rio Cacheu, a presença portuguesa é dada pelo presídio de Bolor, pela povoação de Cacheu e a sua antena de Farim. No rio Geba espalha-se uma série de guarnições a começar por Bissau, depois Fá, Geba e Ganjarra, quase em frente à feitoria de Geba; há uma ténue presença no Rio Grande de Buba, no arquipélago dos Bijagós a presença portuguesa ocorre em Bolama e na Ilha das Galinhas. Por esta data inicia-se a “Questão de Bolama”. Só no final do Século XIX é que os portugueses se afoitarão à região Sul, depois do acordo celebrado com os franceses em 1886. Mas a vida em Bissau é terrível, está sujeita a guerras permanentes, como se passa a descrever.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10436: Notas de leitura (411): "Rumo a Fulacunda", de Rui Alexandrino Ferreira (Belarmino Sardinha)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7682: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (17): Algumas conversas para melhor perceber o PAIGC

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,


Já estamos na despedida.
Quero agradecer a todos aqueles que contribuíram para clarificar impressões de viagem que deixaram o Tangomau intrigado. Não há nada como descobrir que a viagem ficou incompleta, havendo necessidade de regressar, um dia. Em nome das amizades inigualáveis, em nome do lugar que se habitou e que se grudou ao coração.


Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (17)

Beja Santos

Algumas conversas para melhor perceber o Outro, o PAIGC

Despedidas e promessas

1. É uma reunião muito estimulante com mulheres e homens predominantemente entre os 50 e 70 anos. Já se percebeu que não há nenhuma historiografia oficial, formal ou informal, tanto na posse do PAIGC ou dos seus dirigentes históricos. Há arquivos incompletos, há os trabalhos de Luís Cabral, Aristides Pereira, Mário Pinto de Andrade, as prosas laudatórias da propaganda, de um modo geral inúteis para se obter a panorâmica de como o PAIGC se inseriu junto das populações e delas obteve apoios incondicionais ou as abrigou a colaborar na luta; há muita documentação na Fundação Mário Soares, serve para esclarecer alguns ângulos, mas não todos; desapareceram documentos secretos, correio entre dirigentes, ordens de batalha, até comunicados políticos.

Continua a ser tabu o relacionamento entre os dirigentes cabo-verdianos e os quadros militares guineenses. Ninguém usa como referência o Livro Branco do PAIGC, ninguém tem ilusões que é uma historiografia oficial datada, a história não é feita de declarações incontestáveis. É por todos admitido que foi no Congresso de Cassacá (1964) que o poder político se sobrepôs ao poder militar, orientando-o durante e após a independência, até 1980. Eram os comissários políticos que superintendiam as operações militares, os comandantes prestavam permanentemente contas.

A partir de 1980, com a era de Nino, deu-se uma demarcação, com o agravamento da situação económica e financeira, os militares sentiram-se livres de contestar e de se orientar nos negócios. Quando se sentiram ameaçados, como Ansumane Mané, reagiram. Até hoje. Os altos comandos vivem permanentemente à espreita de serem liquidados, desde a época do conflito político-militar de 1998.




O Tangomau já esgotou praticamente o seu stock de imagens. Nas reuniões por onde anda, nem lhe passa pela cabeça tirar fotografias. Socorre-se de fotografias não publicadas. Neste caso, uma panorâmica do cemitério de Bissau, o talhão dos combatentes da guerra da pacificação, rodeado do talhão dos combatentes da guerra que perdurou até 1974. Estava tudo relativamente bem arranjado, a Liga dos Combatentes determinara uma boa limpeza. Estava um dia luminoso, o Tangomau sentiu-se impelido a estranhas orações, quase conversas, entre o céu e a terra, era uma evocação errática e difusa em nome de todos os mortos.


2. O Tangomau muda de registo e pergunta à assistência como é que os quadros do PAIGC sentiam o crescimento do pensamento nacional, houve comentários variegados, alguns deles mereciam aprofundamento e até registo para um qualquer historiador procurar direcções de análise desse PAIGC aparentemente coeso e militarmente indómito. Um dos comentários lembrou ao perguntador a singularidade do desencadear da guerrilha: primeiro, a formação dos agitadores, quadros que foram lançados na subversão, quer nas barbas das autoridades, quer aproveitando a insignificância da sua presença, como foi o caso do Sul; esses agitadores conduziram à mobilização de populações, mesmo à custa do terror e da separação das famílias, em escassos meses, em 1963, o Sul foi transformado em parcelas atomizadas que reduziram a capacidade de manobra das tropas portuguesas.

Cabral era um ideólogo incontestado, nos primeiros anos; os choques virão mais tarde, se bem que permanecessem discretos, entre cabo-verdianos e guineenses, estes últimos frequentaram escolas de formação e foram confrontados com outras formas de racismo. Uma guerrilha que se expande tão rapidamente entre 1963 e 1964, populações a viver sempre em risco e, de um modo geral, a aceitar esses riscos e os sacrifícios no transporte de munições, armamento, comida e medicamentos, tudo acaba por se saldar numa combatividade de âmbito nacional, basta pensar no hino e na bandeira.

Alguém da assistência pede para fazer um comentário: é verdade que hoje o pensamento nacional é difuso, mas no conflito político-militar a população insurgiu-se contra a presença estrangeira, contingentes senegaleses e de Conacri foram severamente reprimidos por exércitos ad hoc, compostos por gente de todas as etnias. E foi lembrado ao perguntador se era possível não haver uma consubstanciada crença no PAIGC quando, em 27 de Abril de 1974, andavam grupos nas ruas de Bissau a gritar vivas ao MFA e ao PAIGC. O Tangomau a todos agradece, amanhã terá um encontro com Filinto Barros e Chico Bá para falar sobre a evolução da guerra de 1973 para 1974, ouvi-los sobre o que devíamos fazer conjuntamente para se estudar melhor o Outro, antes e depois da guerra que findou em 1974.

É a última fotografia que resta de Ponta Varela. Permite verificar a natureza do Geba estreito, que aqui começa ou aqui finda. Neste exactíssimo ponto, dentro da vegetação, os guerrilheiros do PAIGC flagelavam batelões e até lanchas da Armada. O Tangomau sentiu-se compensado da passeata em companhia de gente moçoila, intrigada com o velhote que caminhava despachado aqueles quilómetros ida e volta, encantado com hortas, cabaceiras, poilões e o marulhar da corrente desse Geba, que é o rio da sua vida.


3. Anoitece, o Tangomau despede-se das pessoas que amavelmente cederam a conversar com ele. Regressa à Pensão Central, vem com muita precisão de tomar um banho de caneco, pôr o corpo na horizontal, sentir o fresco de uma ventoinha trepidante. Encontra Patrício Ribeiro, combinam ir jantar num restaurante de comida portuguesa. Antes, conversa com a Avó Berta, conta-lhe o que andou a fazer pela região de Bambadinca. A Avó Berta aproveita para lhe falar de como, com o marido, num oceano de dificuldades, montaram a Pensão Central, como ela sobreviveu a todas as carestias, ali se recebeu professores, ali se manteve a sede viva da cooperação portuguesa e internacional. O Tangomau embevece-se com o fulgor desta senhora exemplar que se recusa a abandonar a grande obra da sua vida.

Refrescado e com o corpo menos moído, vai prestar contas e dar graças ali ao pé, na catedral. Dar graças por o coronel Jales Moreira ter pedido ao Daniel Nunes para encontrar uma solução de acolhimento na região de Bambadinca, foi ele quem apresentou o Tangomau ao embaixador Inácio Semedo, depois este pôs o irmão em acção; dar graças ao Fodé à família, dar graças a quem o reconheceu e o quis rever, com a alegria estampada no rosto, dar graças pela imensidade destas relações indestrutíveis, até ao último alento da sua vida.



Era assim a Pensão Central em 1997, fora retocada, pintada de branco imaculado, agora está de azul e há muita ferrugem à mostra. Ainda é possível andar num destes táxis azuis, com um ou até quatro passageiros. Importa não esquecer o bem que aqui se fez a quem chegou com fome e à procura de abrigo, de todas as partidas do mundo (foto retirada do site: www.guinee-bissau.net, com os devidos agradecimentos).


4. Vão jantar, o Patrício Ribeiro e o Tangomau, num restaurante decorado à portuguesa, até ali há enchidos, cebolas e alhos decorativos. Para surpresa do empregado, o Tangomau pede dois ovos estrelados, umas batatinhas fritas e uma boa salada, tudo a regar com uma cerveja gelada. A assistência grita frenética, o Barcelona esmaga o Real Madrid, há claques furiosas pró e anti-Cristiano Ronaldo. O Real Madrid sai dali desfeiteado, o Tangomau despede-se de Patrício Ribeiro, cai de sono, já está informado que aí pelas 23 horas se apaga a luz com o corte de energia, quer fazer as últimas leituras, preparar-se para os últimos encontros de amanhã, vai entregar cartas a Tumlo Soncó, que dentro em breve parte para o Cuor.

Na cama, folheia os elementos que compilou sobre o MFA da Guiné, o golpe militar que ele desencadeou em Bissau logo a seguir ao 25 de Abril, até o plano de ali fazer uma sublevação caso falhasse o 25 de Abril em Lisboa. Nunca entendeu porque é que os protagonistas não documentaram claramente estes factos, os movimentos, as tensões ideológicas e depois o entabulamento de relações, mais ou menos informais, com o PAIGC e como, logo em 1 de Julho de 1974 centenas de militares exigiram ao Governo de Lisboa o reconhecimento da República da Guiné-Bissau, no fundo se a Guiné o berço do MFA e este conspirou e descolonizou por conta própria no território, que diálogo se estabeleceu com os quadros do PAIGC. E assim adormeceu, mesmo sentindo a pressão do calor e depois de olhar, assombrado, o volteio dos carros na Avenida Amílcar Cabral, a fugir dos buracões do alcatrão, na noite escura.



Este é o Zé Pereira que viajou de Bissorã para me abraçar. Era o 1.º cabo mais culto e desempenado do Pel Caç Nat 52. Foi um exemplo de coragem quando, com Missirá em chamas, foi salvar uma criança esquecida numa morança. O que o Tangomau lhe deve não cabe num possível título de dívida e quando lhe disse: “Zé, deixa-me tirar-te uma fotografia, quer que todos saibam quanto te admiro!” ele logo respondeu: “Sim, mas com o teu livro na mão, este é meu e vou levá-lo para Portugal, quando for visitar o meu filho”. Um pai orgulhoso por ter conseguido dar estudos médios a todos os seus filhos, o Aillton é avançado no Atlético Clube Oriental e está a acabar a licenciatura.


5. De manhã, não há tempo para o devaneio de leituras, é importante escrever ao régulo Carambá, ao Príncipe Samba e ao Fodé. O ambiente escolhido é o do Centro Cultural Francês, é fresco e silencioso, o Tangomau escolhe uma mesa na zona da banda desenhada, bem fornecida e tentadora, sem perda de tempo escrevem-se saudações e promessas.

Que o régulo Carambá veja o Cuor desenvolver-se, do Geba estreito até Madina de Gambiel. Que o régulo esteja descansado, o Tangomau sente impulso para voltar, a velha estrada abandonada de Gambaná atrai-o, percorreu-a vezes sem conta, corta-lhe o coração vê-la reduzida a um caminho alcantilado de pouco préstimo, quer voltar à Aldeia do Cuor que ele encara como uma civilização perdida, nunca decifrou aqueles muros tão altos, houve quem lhe dissesse que ali se pensou criar a povoação mais importante, desistiu-se, sabe Deus porquê, foi assim que nasceu Bambadinca, era por Aldeia do Cuor que se pensava escoar as madeiras exóticas e os produtos agrícolas do Gambiel.

Ao Príncipe Samba desejou-se as maiores felicidades, agradeceu-se o encontro comovente, aquela tradução para crioulo, cheia de intenção e sentimento, aqueles pedidos de ajuda a que ele gostaria de corresponder e lamentavelmente não pode, o Tangomau recorda e acentua a gratidão pela dedicação recebida. Ao Fodé, o muito obrigado por ter convocado tanta gente, ele foi o anjo de S. Gabriel que anunciou a vinda do Tangomau.

Aproveita-se o agradecimento para fazer tábua rasa das diferentes tensões entre ambos, aguarda-se agora reencontro em Lisboa. Escritas as missivas, faz-se a sua entrega no Bairro Missirá, Tumlo lembra ao Tangomau que tem um filho com muito jeito para a bola, pede-lhe encarecidamente ajuda, o Tangomau volta a chorar, de impotência, não pode corresponder a tanto pedido.

Tumlo Soncó sentado, parece que está à espera calmamente que o futuro seja pródigo, lhe traga algumas benesses. É nestas coisas que o Tangomau revela a incipiência própria dos fotógrafos amadores, deixa sombra da Maria Fausta, a mulher de Abudu Soncó, e do Sr. Sabino, o motorista da Embaixada de Portugal.


6. Entregues as cartas, o Tangomau parte para um café onde se vai encontrar com Filinto Barros e Chico Bá, ou Francisco Silva, que foi comissário geral das frentes Norte e Sul. Ambos autorizam que o Tangomau tome notas. A primeira pergunta incidiu sobre o modo como se radicalizou a luta, exigindo, logo após o 25 de Abril uma independência total e irrestrita. Os interlocutores responderam que se temia também com o futuro de Angola e Moçambique: se a independência da Guiné empanasse, haveria consequências para as outras colónias. Era preciso que tudo começasse claramente na Guiné.

Ao contrário do que se tem dito, os negociadores guineenses pediram às autoridades portuguesas para ficarem transitoriamente na Guiné, cedo se aperceberam que não havia condições nem militares nem políticas. Os quadros do PAIGC sabiam não dispor de uma estrutura administrativa capaz para as novas realidades da independência. Os gestores que se prepararam vieram de escolas muito rígidas, como a RDA, uma outra realidade. Filinto Barros lembrou que a confraternização em Bissau teve muito poucas arestas, logo a seguir à chegada do PAIGC, por pura coincidência, encontrou do lado português um oficial da Armada que estudara com ele no Colégio Nuno Álvares. O erro não esteve em exigir a independência, esteve em não partilhar por mais alguns anos com os portugueses a aprendizagem da administração.

Falando dos acontecimentos de 1973 e 1974, estes dois importantes quadros políticos foram consensuais: não havia pressa quanto ao fim da guerra, sentia-se e sabia-se da erosão que a guerra estava a provocar e que a perda de supremacia aérea trouxera uma profunda desmotivação. Mesmo que, por absurdo, os aleados da NATO dessem provisoriamente um equilíbrio militar, a capacidade do PAIGC estava imparável, agora não era só o facto das tropas mal saírem do arame farpado, já se combatia com carros de combate e escolhiam-se alvos como Canquelifá que, tudo previa, iria ser cercada em Maio, em termos semelhantes ao de Guidage, como no ano anterior.

Os informadores do PAIGC em Bissau também sabiam que ia haver abandono de vários quartéis junto da fronteira e com graves consequências para o moral das tropas, essas populações ao abandonarem as suas tabancas iriam concentrar-se à volta de Bissau, agravando todos os problemas. Outra informação digna de nota: quando se proclamou o Estado em 24 de Setembro, a partir dessa data deu-se uma sangria de estudantes já adolescentes que se foram oferecer para a guerrilha. Era uma quantidade impressionante. A direcção do PAIGC ao comentar o facto concluiu que a juventude guineense irreversivelmente se pusera do lado do PAIGC. A relação de forças entrara em desequilíbrio, estes jovens marcavam a diferença. Discutiram-se ainda projectos sobre as relações com o Outro, de ambos os lados. Todos prometeram manter-se em contacto.



O Tangomau voltou à Madina do Gambiel à procura do paraíso, das palmeiras de Samatra. Tudo mudou, mantém-se luxuriante mas aquela beleza esmagadora desapareceu. Foi um dos momentos de decepção. Felizmente que o Tangomau fora reconhecido por Ieró Baldé, não há paisagem que substitua um momento de tanta beleza nos corações.


7. Amanhã haverá despedidas, algumas delas comoventes. E depois terminará este diário composto a trouxe-mouxe. O Tangomau vai às compras, para si e à procura de lembranças para os outros. Será a circunstância para mostrar as últimas fotos e convidar todos os confrades a voltar à Guiné.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7676: Ninte Kamatchol: a história da capa de um livro (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7650: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (16): Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7442: Agenda Cultural (95): Convite para sessão de defesa da dissertação Os militares portugueses na Guiné-Bissau: da contestação à descolonização, Lisboa, ISCTE, 6ª feira, 17

AGENDA CULTURAL - CONVITE


Convite para sessão de defesa da dissertação de mestrado,  “Os militares portugueses na Guiné-Bissau: da contestação à descolonização” (Rui F.B. Camacho Duarte)

Exmo.(a) Sr.(a),

Tenho a honra de convidar V. Exa. para a defesa de Dissertação de Mestrado em História Moderna e Contemporânea – Relações Internacionais, intitulada “Os militares portugueses na Guiné-Bissau: da contestação à descolonização”, a ter lugar no próximo dia 17 de Dezembro de 2010 (sexta-feira), pelas 15h30m, na sala 326, da Ala Autónoma do ISCTE - IUL (Piso 3 da Ala Autónoma - ISCTE-IUL), sito na Avenida das Forças Armadas, em Lisboa.

Com os meus melhores cumprimentos,
Rui Filipe de Brito Camacho Duarte

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7423: Agenda Cultural (94): A exposição A Marinha na República, Museu da Marinha, em Lisboa, Belém, até ao dia 5 de Janeiro de 2011 (Luís Graça)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6821: Efemérides (47): Acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no cais do Pindjiguiti, Bissau (1) (Leopoldo Amado)

1. Hoje, dia 3 de Agosto de 2010, completa-se mais um ano sobre os trágicos acontecimentos do Pidjiguiti, ocorridos no já longínquo ano de 1959. 

Lembrando essa data, vamos republicar os Postes DLXXV de 22 de Fevereiro, DLXXXVI de 25 de Fevereiro e DLXXXVIII de 26 de Fevereiro de 2006, da nossa I Série, de autoria do nosso tertuliano Leopoldo Amado, lusoguineense, de quem aliás não temos notícias há já algum tempo. Presume-se que continue a viver e a trabalhar em Cabo Verde


Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros aramados de kalash e de RPG-7.

Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) . O João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro da CCAÇ 5 (1973/74), é hoje farmacêutico e membro da nossa tertúlia.


Os graves acontecimentos do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959

Iniciamos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).

Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.

Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG).
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Caro Mário Dias,
Caro Luís Graça,
Restantes tertulianos,
Amigos e camaradas,

Como prometi, segue em anexo o meu comentário sobre o testemunho presencial de Mário Dias, à propósito de Pindjiguiti. Estou aberto a qualquer reparo, chamada de atenção, troca de ideias e experiências, caso houverem.

Seguem também, igualmente em anexo, duas ou três fotos (bom, mais imagens que fotos) que se reportam ao Pindjiguiti. Infelizmente, todos em ficheiros Word, mas o Luís Graça (ou alguém da Tertúlia) certamente saberá os converter em ficheiros normais de imagem, se se entender publicar o meu texto, apesar do seu desmedido tamanho. Uma sugestão: talvez se deva publica-lo no Blogue, mas em formato PDF, devido aos itálicos, palavras entre comas/aspas e sobretudo devido as notas de rodapé.

Peço entretanto ao Luís que me faça o favor enviar o texto de volta, depois de composto e introduzido as imagens que não consigo converter em ficheiros normais de imagem, a fim de que o possa publicar nos meus blogues:

Lamparam I

Lamparam II

Um abraço e boa semana de trabalho a todos
Leopoldo Amado


Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

O testemunho presencial de Mário Dias é sem dúvida uma peça imprescindível para um melhor enquadramento da historiografia da guerra colonial “versus” guerra de libertação, de resto, algo que enquadra perfeitamente no significativo esforço que a Tertúlia tem vindo a desenvolver de forma empenhada, entre outras plausíveis razões, porque todos estão profundamente conscientes – penso eu – de que os povos sobrevivem sempre às turbulências próprias de uma guerra, qualquer que ela seja, donde a importância do estabelecimento da necessária ponte de ligação com as novas gerações, através da memória histórica.

Porém, apesar de muito limitada no tempo (11 anos) e no espaço (cerca de pouco mais de 30.000 Km2), as malhas históricas em que se processou e se desenvolveu a guerra colonial e/ou guerra de libertação, conforme o lado dos contendores onde nos posicionamos, a mesma revela-se de uma profunda complexidade, tanto pelo potencial de estandardização factual que a sua evolução comporta, como pelas intrincadas conexões que os acontecimentos ou episódios inerentes apresentam, aconselhando este estado actual dos conhecimentos a espécie de humilde resignação metodológica ante a evidência, de resto compreensível, das eventuais ou prováveis obliterações decorrentes do eventual défice de objectividade ou não com que a temática é aqui e acolá aflorada, contanto nos convençamos de que tanto as abordagens que procurem explanar uma visão de conjunto (aparentemente, a mais cómoda) como as parcelares (aparentemente, a mais trabalhosa) afiguram-se por um lado autonomamente importantes e, por outro, altamente complementares aos esforços tendentes a uma mais cabal e bem sucedida reconstituição histórica.

Assim, o justamente ou o impropriamente denominado Massacre de Pindjiguiti (abstemo-nos metodicamente, pelo menos por agora, a tecer juízos de valor), apresenta-nos como bom exemplo para se ilustrar a complexidade referida, na medida em que, não obstante inéditos e importantes, os factos relatados como fazendo parte da sua decorrência apresenta-se-nos também, à jusante e montante da ocorrência, como factores limitativos à uma abordagem com horizontes mais abrangentes.


Guiné-Bissau > Luís Cabral, o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau (1974-1980).

Efectivamente, à jusante de todo o processo que o antecedeu, por um lado, Pindjiguiti não foi senão um marco, uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente é certo –, pese embora a fuzilaria e o derramamento de sangue que lamentavelmente resultou em mortes, mas em cujos acontecimentos, tanto à jusante como a montante, apresentam suficientes elementos que nos permitem, tanto quanto possível, conferir uma interpretação histórica a fenomenologia que, por comodidade, designaremos Pindjiguiti. Eis o percurso que iremos tentar delinear para doravante para situarmos a contextualização histórica de Pindjiguiti.

Convenham-nos então que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros dependendo da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense.

Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no boom das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denodada resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciada nos finais do século XIX, prolongaram-se praticamente até a ao início da segunda metade do século XX, mediando assim pouquíssimo espaço de tempo o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que, coincidente e curiosamente, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições para a implantação da administração e o seu domínio sobre o território.

É certo, outrossim, que acontecimentos tal como a segunda Grande Guerra e suas ressonâncias na Guiné, diminutas que sejam, contribuíram igualmente com a sua quota-parte para que o povo guineense começasse a questionar o seu papel e o seu lugar.

Aliás, Rafael Barbosa lembra-se (1) de, durante a segunda guerra mundial, os jovens em Bissau se terem se posicionado do lado dos Aliados contra a Alemanha de Hitler, seguindo com entusiasmo e acrescido interesse (sobretudo pela BBC e outras rádios internacionais) o evoluir dos acontecimentos no teatro das operações, tal a convicção da que tinham os jovens guineenses da adopção, por parte de Portugal, de uma espécie de neutralidade dúbia, apoiando subtilmente a Alemanha de Hitler, pelo que não se pode a partir destes aspectos aferir-se da crença ou da antevisão, por parte desses (ainda) imberbes nacionalistas, de que na II Grande Guerra jogava-se, de certo modo, o futuro dos povos das colónias africanas.

Estava-se na Guiné, isso sim, perante manifestações libertárias, mas algo difuso, tanto mais que junto aos grumetes e elementos da pequena burguesia local, independentemente do grau da sua justeza ou de qualquer outro juízo de valor que elas se possam fazer, pelo menos por parte de alguns desses africanos, bifurcavam-se também na vontade oculta de ascensão na sociedade e estruturas de poder coloniais.

Vivia-se, convenhamo-nos, naquilo a que hoje se convencionou de certa maneira denominar de protonacionalismo, mas de per si este facto não deixa de ser demonstrativo de que, na década de 40 do século XX, essas aspirações libertárias quase que apenas se manifestavam como contraponto da exploração imposta pelo desumano e repressivo aparelho colonial e só de forma subsidiária e residual como resultante de uma hipotética influência ou impulso importados do movimento das ideias e aspirações libertárias que já se fazia sentir no plano africano e até internacional, mormente através do movimento pan-africanista cujas ressonâncias – não obstante terem a chegado a Guiné em 1910 com a fundação da Liga Guineense –, não tiveram nem continuidade e nem expressão assinalável, tal a repressão que o temerário Teixeira Pinto (autrement conhecido pelo epíteto de “Pacificador”) engendrou contra os seus membros mais activos e que conduziu posteriormente a sua proibição em 1915.

Para lá do ambiente gerado pela longa e penosa guerra de ocupação colonial (“pacificação”) versus resistência à ocupação – que durou oficialmente até 1936 (apesar de que várias importantes revoltas foram aqui e acolá assinaladas até aproximadamente 1950), o relacionamento entre o aparelho colonial e as populações guineenses era, em geral, bastante hostil. Inclusivamente, em 1942, toda a estrada de Plubá foi aberta pelos prisioneiros que, na maior parte dos casos, eram presos porque não quiseram ou não puderam pagar a daxa ou o imposto de palhota.

Guiné > Amílcar Cabral e Nino Vieira, na época da guerrilha. Amílcar viria a ser assassinado em 1973. Nino, por sua vez, derrubará o sucessor de Amílcar, o seu meio-irmão Luís Cabral, através de um golpe de estado militar (1980).

Fonte: desconhecida.

Durante todo o período que durou a II Guerra Mundial, no tempo do Governador Vaz Monteiro, havia em Bissau, Safim e Quinhamel algo que em muito imitava os campos de concentração na Alemanha do Hitler. O maior assassino era o administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, que veio a ter aqui preso o Benjamim Correia. A partir daí, o filho da Guiné tomou consciência de que havia que lutar pela sua causa (2)".

No início, a pequena burguesia organiza-se num quadro africano, mas cujo fim não é ainda a independência nacional. Trata-se de mais um desejo confuso de encontrar o seu lugar, de emergir socialmente. Mas a dominação portuguesa não é ainda contestada, a aspiração a assimilação mantém-se, nesta etapa, largamente espalhada. Isto apesar de alguns elementos da elite guineense são já serem sensíveis a uma “reafricanização”.

A prova eloquente do acima dito é o facto de a maior parte dos "notáveis" guineenses da sociedade colonial pertencerem ao Conselho Legislativo do governo da Guiné, tais como Mário Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva, Joaquim Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante), Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado) (3).

A estes juntaram-se outros guineenses pertencentes à pequena burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e de portugueses que na altura eram claramente anti-situacionistas. Este grupo, que não escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial, dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente nacionalismo guineense.

Portugal > Lisboa > s/d > Cartaz de propaganda de apoio à luta dos povos das colónias africanas portuguesas. Cartaz da UAC - Unidade Anti-Colonial.

Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).

Os notáveis desse grupo que se destacaram, tendo por isso merecido um registo das suas actividades pela PIDE, foram Eugênio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca” (comerciante) e Fernando Lima ( comerciante). Estes membros da pequena burguesia foram acusados de fomentarem a rebeldia entre os guineenses considerados indígenas, chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação, embora sem nela tomarem parte activa (4).

Com efeito, a maior parte dos povos da Ásia tornou-se independente após a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1946, com o fim de realizar a união de todos os africanos, realizou-se lugar em Bamako (Mali) uma reunião em que se fixaram os princípios do Rassemblement Démocratique Africain (RDA), propondo-se a fusão de todos os agrupamentos e partidos democráticos de cada território num partido democrático unificado, passando o RDA a ser inicialmente dirigido por um Comité de Coordenação, apesar de que sempre se debateu ao longo dos anos com a unidade proclamada.

No decorrer deste período a acção das massas africanas, as organizações políticas e os seus dirigentes impuseram nos territórios vizinhos, sobretudo nas colónias francesas, um certo número de realizações no campo económico e social que eles próprios que eles próprios consideraram positivas, pelo que a ideia da unidade das organizações políticas africanas na luta pró-independência ganha novamente vulto entre essas mesmas massas e nas organizações não aderentes ao RDA.

As organizações que não aderiram ao RDA agrupam-se no MAS (Movimento Socialista Africano) e na Convenção Africana, esta animada por Leopoldo Sédar Senghor. Em 1957, foi criado o PAI, o qual lança a ideia da independência africana. Em Julho de 1958, verifica-se uma reunião em Paris dos principais dirigentes africanos, onde se reafirmou o principio da unidade com vista à independência. Em Maio-Junho de 1958 a França atravessou uma grande crise, retomando o destinos do país o General De Gaulle. Este desloca-se a Conakry e no decurso da sua visita declara que os povos da África sob dominação francesa podiam escolher entre responder “sim” e aceitar a sua Constituição que sob o nome da “Comunidade” substitua a chamada “União Francesa” ou responder “não” caso em que o território se tornaria independente.

A maior parte dos territórios, confiantes nas promessas feitas, votou “sim”. Só a Guiné por votação popular realizada pelo PDG respondeu “não” em 28 de Setembro de 1958 à Constituição do general De Gaulle e em 2 de Outubro a sua independência era proclamada.

Esse feito deveu-se sobretudo a acção do PDG (criado em Maio de 1947), sete meses depois do Congresso de Bamako, o qual resultou da fusão étnica das associações que na Guiné Conakry e especialmente à acção de Sékou Touré que dirigia o sindicato e era o Secretário Político do Partido.

Repúlica da Guiné-Conacri > Bandeira nacional > A simbologia das cores...
Fonte: Wikipedia (2006)

A República da Guiné adoptou uma bandeira tricolor – vermelho, amarelo e verde em que o vermelho simboliza a determinação do povo em aceitar todos os sacrifícios até ao derramamento do sangue, o amarelo a cor do sol e das areias de África e o verde a cor da esperança e da vegetação africana, cores estas que se encontram nas bandeiras de quase todos os países do Oeste africano, diferindo apenas a disposição.



Em Março de 1952, Cabral subscreveu com outros uma exposição a Sua Excelência o Presidente da República, em que entre outras coisas, reclamavam a retirada de Portugal do Pacto do Atlântico.

Cabral desembarcou em Bissau a 20.9.52, no navio Ana Mafalda, tinha ele 34 anos. Chegou a Bissau a sua mulher a 2.11.52. Cabral foi contratado pelo Ministério do Ultramar como Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné até 18.3.55, data em que regressou à Metrópole. Em 1952, Amílcar Cabral rumou para a Guiné colonial, após ter estado em Cabo Verde (1949), onde, segundo o próprio, fez "todas tentativas de acordar a opinião pública contra o colonialismo".

Nessa época, Portugal tinha o compromisso internacional de apresentar o Recenseamento Agrícola da Guiné e até então este trabalho não fora sequer iniciado. Depois de vários contactos de trabalho, particularmente nos momentos em que o Amílcar exercia interinamente as funções de chefe de serviço, o Governador decidiu confiar-lhe a execução daquela importante tarefa, na qual veio a ser secundado pela engenheira Maria Helena Rodrigues, sua esposa. "Em cada tabanca deixava uma palavra como ele a sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta (6)”.

O Recenseamento Agrícola acabou por permitiu a Cabral conhecer mais de perto as populações e os seus problemas, constituiu-se assim na antecâmara da mobilização urbana que se lhe seguiu.

Em 1952, Amílcar Cabral sugeriu a formação de um Clube de Futebol apenas reservado aos naturais da Guiné opinando que dentro do mesmo devia existir uma biblioteca para a elevação do nível cultural dos associados. Várias reuniões foram realizadas tendo também para a arrecadação de fundos sido efectuado um baile no bairro Chão de Papel.

Nessa altura, tentou, aparentemente sem sucesso, Amílcar Cabral quis disfarçar as actividades políticas com a criação de um clube desportivo e recreativo cujos subscritores da petição foram: o próprio Amílcar Cabral, Carlos António da Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Carvalho Alvarenga, Paulo Martins, Julião Júlio Correia, Martinho Gomes Ramos, Víctor Fernandes, Bernardo Máximo Vieira.

O aparente insucesso acabou todavia acabou por insuflar a ideia de associativismo. Segundo Luís Cabral, " (…) o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…) (6)”.

A não admissão, neste clube, de europeus acabou por gerar dissidências deixando os propósitos do seu mentor bem à vista: lançar as bases duma organização de nativos irmanando-os na mesma fé e nos mesmos destinos. O clube não chegou a ser autorizado, mas o certo é que ficou entre os nativos a ideia duma união entre todos.

Com efeito, durante a sua permanência nesta cidade, diz uma notada PIDE, “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado (7)”.

A mesma nota dava ainda conta de que “(...) eram anti-situacionistas o João Vaz, ajudante de mecânico, de 33 anos, natural de S. Tomé, Carlos António da Silva Semedo Júnior, de 21 anos, estudante, a estudar em Lisboa; Pedro Mendes Pereira, enfermeiro de 1ª classe de 52 anos, Inácio Carvalho Alvarenga, 42 anos; Julião Júlio Correia, de 50 anos de idade, Martinho Gomes Ramos de 35 anos, Víctor Fernandes, de 30 anos Bernardo Máximo Vieira, de 33 anos, tendo esses mesmos indivíduos assinado uma petição no sentido da criação de um clube denominado Clube Desportivo e Recreativo de Bissau, destinado ao desenvolvimento de actividades nativistas, superiormente orientadas pelo engenheiro Amílcar Cabral.

As reuniões, presididas por Cabral para esse fim realizavam-se clandestinamente na casa de João da Silva Rosa (guarda livros da NOSOCO). Tomaram parte nessas reuniões o Isidoro Ramos, João Rosa, Víctor Robalo (agricultor em Bigimita), Martinho Ramos (empregado da Gouveia), José Maria Dayves, Elisée Turpin (empregado ao tempo da SCOA), Godofredo Vermão de Sousa (professor primário), Crates Nunes (carpinteiro). Para essas actividades, chegaram até de organizar um baile muito frequentado no Chão de Papel, tendo Estevão da Silva (Alfaiate), na altura nomeado tesoureiro.

Um cartoon histórico alusivo ao reconhecimento, por parte do Portugal democrático, da independência da Guiné Bissau, em 10 de Setembro de 1974. Fonte: Gaiola Aberta. nº8 (1 de Outubro de 1974) © José Vilhena (1974) (com a devida vénia).

Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).

Foi com estes fundos que se financiaram as cópias dos Estatutos que Cabral elaborou e que depois o levou a uma reunião para ser apreciado e na qual foram aprovados, secundando este acto a constituição de uma Comissão que os deveriam levar a aprovação do Governador, porquanto foram inicialmente entregues e esta entidade não o submeteu a despacho com a brevidade que os interessados então pretendiam. Que essa Comissão foi então constituída por João Rosa, Víctor Robalo e João Vaz (alfaiate) que igualmente não conseguiu aprovação do Governo, exactamente porque uma das cláusulas dos Estatutos aludia ao facto de que nesta agremiação que não podiam tomar parte os europeus e caboverdianos, razão pela qual passou-se a dizer que Cabral estava feito com os grumetes.

Depois de 1954, alguns povos de África tornaram-se independente. No Sul da Guiné, mais concretamente em 1956, registaram-se no Sul da Guiné certas actividades dos nativos, nas áreas de Cacine e Bedanda a favor do chamado Rassemblement Democratique Africain, tendo-se mesmo formado o que apelidaram de “clubes de trabalho”, em quase todas as povoações vizinhas. Prenderam-se alguns responsáveis e deu-se a fuga de outros, pelo que estas acções foram desmanteladas.

Em 1955, José Ferreira de Lacerda (9), futuro patriarca e líder lendário do MLG, redigiu, a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas) uma “Representação” que foi entregue ao Presidente da República de Portugal aquando da visita deste a Província da Guiné, documento esse onde se condensava, segundo os seus subscritores, o essencial das aspirações da Guiné.

Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da “oposição”, os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província, proposto pelo grupo de Benjamim constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior (9), 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da Comarca, natural de Bolama (10).

É igualmente digna de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva (11), o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Víctor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido à feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente nas camadas ligadas à pequena burguesia local.

Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005

(Continua)
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Notas do autor  (LA):

(1) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado em Bissau.

(2) Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado.

(3) Cf. Proc. 4415 - CI (2), Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 34

(4) Cf. Proc (Proc. 5466 - CI(2), , Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 307

(5) Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Edições "O Jornal", 1984, p.36

(6) Segundo Víctor Robalo (Entrevista concedida a Leopoldo Amado em Bissau) "(…)aquilo morreu mas, o Amílcar não parou. Depois, veio a ideia da criação da cooperativa, cujo nome já não me lembro. Era uma cooperativa cuja sede havia de ser na minha ponta. Foi a última tentativa para a criação de uma cooperativa agro-pecuária... Era uma cooperativa de sociedade por quotas de 500 escudos na altura. Cada cooperativista entrava com o que tivesse até completar aquilo, que era para ver se as coisas marchavam"

(7) Nota datada de 3.5.55, Proc. N.º 3589 – CI (2)9.

(8) Segundo Rafael Barbosa (entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado), José Ferreira de Lacerda estudou em Coimbra e teria sido aluno de Salazar.

(9) Gastão Seguy Júnior , como oficial de Justiça, foi acusado de propagandista quando sempre que os assuntos indígenas subiam ao poder judicial, observando-se este facto com maior clareza aquando julgamento do administrador aposentado, António Pereira Cardoso, acusado de ter praticado carnificina junto as populações indígenas.

(10) Proc. PC5519 - CI(2), 1956, fls.119-120

(11) O Dr. Artur Augusto Silva (*), pai do nosso amigo e conhecido PEPITO, foi advogado de muitos nacionalistas guineenses acusados de "subversão” e "terrorismo". Correligionário político e colega de Álvaro Cunhal durante o período de estudos em Coimbra, desempenhou um papel importantíssimo no processo de defesa e consciencialização dos guineenses.
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Notas de CV:

Sobre os acontecimentos do Pindjiguiti ver postes de:

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)

21 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXIII: Pidjiguiti: comentando a versão do Luís Cabral (Mário Dias)

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVIII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte

26 de Fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - DLXXXIX: Pidjiguiti: resposta do Mário Dias ao Leopoldo Amado

2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4452: Controvérsias (15): O 'massacre do Pidjiguiti', em 3 de Agosto de 1959: o testemunho de Mário Dias

27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6793: Notas de leitura (136): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série Efemérides de 16 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6599: Efemérides (45): Inauguração do Monumento aos Combatentes da Guerra do Ultramar, em Vila do Conde (Vasco Santos, ex-1º Cabo Cripto, CCAÇ 6, Bedanda, 1972/73)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6790: Notas de leitura (135): Rui Patrício: A vida conta-se inteira, de Leonor Xavier (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
É verdade que Rui Patrício não está a fazer história, confia o seu testemunho, não tem todos os documentos à mão, é forçado a fiar-se na sua memória. Mas há enormidades que devemos evitar, a todo o custo ou então devemos renunciar ao testemunho, se ficámos incomodados com a substância dos nossos actos, quer como políticos quer como militares.
Não dá para perceber qual é a imagem que o Rui Patrício pretende dar daquilo que hoje se sabe que foram disparates e até pazadas de cal para o regime a que ele ainda hoje se mantém fiel.


Um abraço do
Mário


Rui Patrício e a Guiné

por Beja Santos

Rui Patrício foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, já tinha experiência governativa quando chegou às Necessidades, viveu em cheio os acontecimentos diplomáticos que se prendem com a guerra de África. Resolveu agora contar a sua vida à jornalista e escritora Leonor Xavier (“Rui Patrício, a vida conta-se inteira”, por Leonor Xavier, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2010).

Como é óbvio, as notas que se seguem circunscrevem-se a matérias relacionadas com a Guiné.

Estava Rui Patrício como subsecretário do Fomento Ultramarino quando foi à Guiné, na Primavera em 1966. Ele escreve a visita desta
maneira:

 “A Guiné era uma província pequena, que os movimentos de libertação, a que chamávamos terroristas, cercavam e atacavam através do Senegal e da Guiné Conacri. Sempre foi a mais difícil de defender. Estive em Bissau e depois fomos a Catió, no interior. O Schultz não me acompanhou nesse dia e fui num avião de quatro lugares. Havia uma pequena pista no meio do mato e era preciso ter cuidado, especialmente perto das fronteiras. Mas nesse dia, quando eu ia voltar para Bissau, depois de uma manhã de trabalho, houve um problema com a porta do avião quando ia descolar e já estava no final da pista. Eu ia sentado ao lado do piloto, fiz-lhe um sinal, ele travou e o avião tocou com a asa no chão. Ficámos ali a tarde toda, com um calor terrível.

Noutro dia, fui também com o director-geral do Ensino a Madina do Boé”.

Rui Patrício passa a titular da pasta dos estrangeiros a 15 de Janeiro de 1970. Relata que logo no início do seu mandato houve que dar resposta aos incidentes no Senegal. Diz ele:

“A província de Casamansa, devido a conflitos tribais tinha sido sempre um factor de instabilidade para o governo do Senegal. O PAIGC, embora contasse sobretudo com o apoio da Guiné-Conacri, agia também a partir de Casamansa.

"Em reacção aos ataques que dali vinham, o Spínola, por vezes, mandava bombardear localidades situadas em Casamansa. Os Senegaleses queixavam-se aos Franceses... a nossa conduta poderia afectar grandemente as nossas relações com a França”. 

Não deixa de referir que se encontrou com o ministro dos Negócios Estrangeiros com o Senegal e que conhecia as iniciativas de Spínola para encontros com o Senghor.

Temos depois a repercussão internacional da ida a Conacri, graças à operação Mar Verde. Leonor Xavier pergunta-lhe se ele sabia que tinha havido a invasão, ao que ele responde:

“Trata-se de um assunto que ficou sempre mal esclarecido e muito controverso... Há hoje livros publicados sobre o assunto. Li neles que teria sido uma operação realizada pelos comandos portugueses chefiados pelo Alpoim Calvão”.

Leonor Xavier aborda-o frontalmente sobre as conversações de Londres, que se realizaram em Março de 1974, do lado português estava o diplomata Vilas Boas, a delegação do PAIGC era encabeçada por Vítor Saúde Maria. Fala no cessar-fogo e na independência. Rui Patrício procura esclarecer:

 “O embaixador do Reino Unido em Lisboa veio dizer que o Foreign Office se dispunha a esclarecer, com a maior discrição, um contacto com o PAIGC. A nossa orientação nunca foi a de ter conversas por via diplomática com os movimentos de libertação. Porquê? Por várias razões.

"Primeiro, porque isso seria reconhecer internacionalmente os movimentos de libertação. A via diplomática é a via de representação do Estado português no exterior, junto de organismos internacionais e de outros estados. Portanto, negociar pela via diplomática com os movimentos de libertação seria o mesmo que atribuir-lhes personalidade internacional e, assim, oficializar e legitimar todos os apoios que organismos internacionais, nomeadamente a ONU, e outros estados dessem ao PAIGC”. 

Leonor Xavier continua a insistir, dado que a resposta do antigo ministro é redonda e etérea: mas porque é que admitiu esse contacto e mandou o diplomata Villas-Boas ir encontrar-se com o PAIGC em Londres? E vem a resposta:

“Primeiro, porque foi uma missão puramente exploratória. Depois, e a verdade é esta, todas as questões doutrinárias e todas as teorias, de vez em quando, têm de mudar perante as realidades. A realidade na Guiné era extremamente complicada. A guerra tinha atingido patamares muito difíceis e, portanto, era possível que tivesse de ser encarada uma solução diferente na Guiné. Portanto, foi chamado o embaixador, com o conhecimento meu e do Conselho, sem mais ninguém saber, para um contacto exploratório em Londres. Depois voltou, mas aconteceu o 25 de Abril”.

Rui Patrício mostra-se céptico sobre a hipótese de Marcello Caetano preferir uma derrota militar na Guiné e afirma:

“Nunca ouvi dizer isso, e o facto de até admitir esse contacto com o PAIGC seria porque preferia evitar precisamente qualquer coisa que fosse uma derrota militar”.

Leonor Xavier diz na introdução que Rui Patrício mantém a mesma absoluta fidelidade ao regime que serviu e aos governos que integrou, no seu tempo de governação. Poderá ser. O que não obsta que se questione se entre a fidelidade e a integridade intelectual não deve haver consistência e se a distância entre o mando, no pretérito, e a verdade dos factos, hoje conhecidos, não deve obrigar a testemunhar com rigor e probidade. Não é admissível que o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros venha dizer que o PAIGC cercava a província da Guiné e atacava do exterior. Especule-se quanto à implantação do PAIGC no interior do território, não havia ninguém que não soubesse que o movimento de libertação estava de pedra e cal, tinha as suas bases, o seu apoio populacional, etc.

Para quê fazer propaganda, agitando a maquinação soviética e os ataques a partir do exterior? Já não querendo questionar o que leva um membro do governo a ir com um director-geral do Ensino a Madina do Boé, fica-se estupefacto quando se lê que o Dr. Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros, acerca do ataque a Conacri, que ele disse na televisão portuguesa ter sido uma mentira, vem agora reiterar que nada sabia quando há provas que Marcello Caetano deu luz verde ao ataque a Conacri, tal como ele se desencadeou. Uma coisa é ter desmentido na época, outra coisa é vir declarar agora que faz leituras sobre a operação chefiada por Alpoim Calvão. É caricato demais para as funções que exerceu, inaceitável que possa dizer que não é capaz de confirmar que foram os portugueses a fazer a invasão de Conacri.

Há que reconhecer que o regime de Caetano teve uma vida tumultuosa nos seus últimos meses de vida, viveu-se o descontrolo de medidas totalmente opostas às declarações oficiais. Já em 1995 Rui Patrício dera a saber que houvera conversações em Londres com o PAIGC. O regime caiu arredado nas suas contradições, abandonado pelos seus antigos apoiantes. Mas vir dizer que tinha de ser encarada uma solução diferente na Guiné sem ser capaz de enunciar os trâmites dessa solução, também não deixa hoje de ser surpreendente.

Penso que Rui Patrício está a prestar um grande serviço narrando factos da nossa história recente com uma candura espantosa e ao arrepio da verdade histórica. Afinal, o regime inventou as suas próprias fábulas e as derradeiras figuras ou acreditam no mundo em que viveram ou revelam-se coerentes na argumentação que sabem estar falseada e que nós sabemos. Basta ver o que ele diz sobre a Guiné que todos conhecemos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (Mário Beja Santos)