quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18962: Antropologia (28): Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926; Dissertação de Mestrado em Antropologia Social por Olívia Gonçalves Janequine (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Nunca me ocorrera quando e como os sírio-libaneses arribaram à Guiné, como se poderá ler neste documento foi coisa que ocorreu na viragem do século, vinham do Monte Líbano, o Império Otomano dava sinais claros de decadência, eles sonhavam com melhores condições de vida, embrenharam-se por toda a África Ocidental, mas muitos foram para mais longe, para as Américas do Norte e do Sul, convém não esquecer Seu Nacib, a paixão de Gabriela, em Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado. Sempre minoritários, optaram por locais do interior, fugiram discretamente à discriminação, não encontrei nenhum registo de hostilidades entre estes comerciantes e os mauritanos.

Um abraço do
Mário


Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926

Beja Santos

A surfar na net deparou-se-me esta dissertação de mestrado em Antropologia Social na Universidade de Campinas, não podia resistir à leitura, tendo tido, como direto colaborador, no Pel Caç Nat 52, Zacarias Saiegh, de ascendência sírio-libanesa, sabendo que ao tempo os sírio-libaneses continuavam muito ativos no comércio, a despeito da guerra, resolvi inteirar-me como tinham chegado à Guiné.
É o que Olívia Gonçalves Janequine nos sintetiza sobre o seu trabalho: “Na passagem do século XIX para o século XX, no contexto da sua grande migração, alguns milhares de sírio-libaneses foram para a África Ocidental e ali se estabeleceram. Em toda a região, tornaram-se intermediários no circuito comercial, então em plena ascensão, que fazia chegar as matérias-primas da região à indústria europeia e os bens de consumo produzidos na Europa aquele que era o novo mercado. Com o contexto global e regional sempre em perspetiva, esta dissertação apresenta uma investigação sobre o processo de estabelecimento de migrantes sírio-libaneses na Guiné Portuguesa”, o período de estudo corresponde à I República.

Zacarias Saiegh, da I Companhia de Comandos Africana, executado em Porto Gole em dezembro de 1977.

A mestranda deu particular realce na investigação aos documentos que circulavam entre administradores coloniais, pois verificou que estes sírio-libaneses aparecem em relatórios, censos, anuários e artigos publicados em periódicos coloniais sempre como tema acessório. Parte do marco temporal, a partir da década de 1880, houve um grande movimento emigratório a partir da região do Império Otomano denominada Grande Síria (atuais Síria, Líbano, Jordânia, Israel, Territórios Palestinos e uma fração da Turquia) especialmente na área onde está localizado o Monte Líbano. Estes migrantes eram conhecidos por “turcos”, caso do Brasil, mas também os tratavam por árabes ou sírios. Nos documentos referentes à Guiné Portuguesa no período 1908-1950 são tratados como: “syrien”, “syrios”, “syrianos”, “franceses (naturais da Síria” e também “libaneses”. Pude constatar que eram referidos como sírio-libaneses ou só libaneses.

Esta migração prende-se com o declínio otomano, os sírio-libaneses lançaram-se num êxodo, na Europa, em direção às Américas (EUA, Brasil e Argentina). Uma dessas levas europeias encaminhou-se para a rede do comércio internacional de tecidos, outra para a África Ocidental, a partir do porto de Marselha. A invasão colonial na África Ocidental era impressionante, tratava-se da avidez dos mercados fornecedores de matérias-primas e consumidores de manufaturas. Iremos encontrar estes migrantes vindos do Monte Líbano em regiões como o Senegal, a Costa de Marfim, a Nigéria e o Gana (então conhecida como Costa do Ouro) mas também a Serra Leoa, a Guiné Francesa, o Sudão Ocidental. Terão partido do Senegal e da Guiné Francesa até à Guiné Portuguesa. Um investigador aponta que em 1960 na África Ocidental os libaneses residentes aproximavam-se das 40 mil pessoas.

Irmã do falecido Faraha Heneni, um dos importantes comerciantes libaneses (ou de origem sírio-libanesa) de Bafatá, imagem do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.

Diz a mestranda que em casos como a Guiné Senegal, Guiné Portuguesa e Serra Leoa, o movimento migratório ficou restringido nos primeiros anos às principais zonas urbanas, muito cedo começaram a ser hostilizados os comerciantes locais, há dados que tal aconteceu no Senegal, em Serra Leoa e na Guiné Portuguesa houve o seu claro repúdio pela Liga Guineense em 1915.

A investigadora dedica particular interesse à análise da administração colonial e o seu relacionamento com os estrangeiros, recorda que a administração era constituída por uma minoria de metropolitanos cercada de funcionários oriundos de outros territórios ultramarinos, principalmente de Cabo Verde e crioulos guineenses, muitos deles de origem cabo-verdiana. Até a uma efetiva pacificação, o comércio processava-se em praças, isto é, em aglomerações onde comerciantes europeus, cabo-verdianos e luso-africanos viviam ou se estabeleciam e que se tornaram nos principais centros urbanos da Guiné ainda no século XIX.

A escassa presença portuguesa prendia-se a diferentes fatores: a hostilidade das populações locais, a insalubridade do território, o clima, verdadeiramente devastador, tal como o Governador Carlos Pereira, o primeiro nomeado após a vitória republicana escreveu numa obra que redigiu em francês em 1914:
“Vê-se que a colónia não se presta à adaptação da raça branca. (…) Uma vez que o clima é debilitante para o branco, este não deve, normalmente, passar na colónia duas estações chuvosas consecutivas. Convém, portanto, que ele aí permaneça apenas por períodos de 18 meses. (…) As obras de saneamento realizadas ultimamente na colónia, assim como o melhor conhecimento e uma aplicação mais rigoroso das prescrições higiénicas por parte dos brancos, fizeram baixar consideravelmente os números das estatísticas nosológicas (referentes a doenças), o que facilita hoje em dia a contratação dos funcionários necessários à boa organização dos serviços públicos e dos colonos necessários ao seu desenvolvimento económico”.

A investigadora destaca o papel da Liga Guineense, as suas contendas com Teixeira Pinto e as atrocidades e prepotências praticadas na Península de Bissau por Abdul Injai e a hostilidade ao comércio libanês.

Estes sírio-libaneses eram 101 na Guiné Portuguesa em 1924. Devemos ao relatório produzido por Calvet Magalhães, Administrador da Circunscrição de Geba, e referente a 1914, o dado de que havia mais de 20 estabelecimentos sírios só em Bafatá, refere a sua presença em Contuboel e Sonaco. Fica claro que esta concentração do comércio sírio era no interior da Guiné, posicionavam-se em locais que podiam ser abastecidos através do rio Geba. A investigadora estudou também dados sobre a presença destes comerciantes em Farim. Mas ao contrário da circunscrição de Farim, a região de Bafatá (pertencente à circunscrição de Geba) encontrava-se sob plena administração portuguesa. A autora sugere que os sírio-libaneses não queriam entrar em concorrência com as elites locais europeias e crioulas. A Liga Guineense criticava as práticas comerciais dos sírios e o próprio Governador Carlos Pereira tece-lhes considerações bem pouco abonatórias:
“O sírio é tão bom vendedor quanto o contratante negro, mas ele vive, em geral, mais miseravelmente que este último. Por sua insensibilidade moral, pelos procedimentos condenáveis que ele adota em suas transações com os indígenas, pelo conhecimento que possui dos costumes e da língua destes, o sírio é um concorrente ameaçador, não somente para as grandes casas europeias mas também e principalmente para os pequenos comerciantes”.
Calvet Magalhães também os vai zurzir no seu relatório, falando nas suas balanças viciadas, na ganância dos seus lucros.


A I Guerra Mundial afetou a presença síria na Guiné, Portugal entrou na guerra no lado oposto ao dos otomanos, havia que deter cidadãos alemães e seus aliados residentes na Guiné, os sírios teriam sido detidos em julho de 1916 e apenas no Cacheu e não há relatos de consequências para os sírio-libaneses noutros pontos da Guiné.

Importa igualmente dizer que Olivia Janequine analisa as atividades económicas deste comércio sírio no contexto de toda a África Ocidental e explana também o contexto da economia da Guiné Portuguesa na I República. No fundo, os sírio-libaneses granjearam posições em Bissau, Bafatá, Bambadinca, Sonaco e Farim e em centros menores como Cacheu, Geba e Xitole. Em 1948, apenas algumas companhias comerciais maiores de sírio-libaneses como a Aly Souleiman & C.ª atuavam no interior e estavam presentes nos portos marítimos de Cacheu e Bissau, as firmas sírio-libanesas representavam aproximadamente metade dos estabelecimentos comerciais em Geba, Xitole, Farim e Bafatá, isto já noutro período histórico, é referência que consta do Anuário da Guiné Portuguesa de 1948.

É possível ler todo este documento da dissertação de mestrado de Olivia Gonçalves Janequine em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/279139/1/Janequine_OliviaGoncalves_M.pdf
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18594: Antropologia (27): Uma preciosidade: arte indígena portuguesa, 1934 (Mário Beja Santos)

12 comentários:

Antº Rosinha disse...

Mais uma boa achega de BS para nos ajudar a compreender tudo o que se passou connosco e a "nossa colonização", não só na Guiné portuguesa, mas também nas "Guinés" dos outros, que esses outros nos herdaram, porque quase tudo começou connosco, segundo tordesilhas.

Pelo que se tem testemunhado sobre o que foram os "libaneses" durante a nossa guerra do Ultramar, tivemos ali gente sincera do nosso lado, alguns transformados em portugueses muito lúcidos, assim como imensos guineenses.

Essa lucidez não lhe serviu de nada?

A propósito, ainda ontem vi na TV desembarcar de uma "jangada" sobre-lotadíssima numa praia de Cadiz umas (muito)largas dezenas de africanos, que pela tradição de migração destes 40 anos, é o destino preferido alem das Canárias e Ceuta, de guineenses, senegaleses, gambianos, e serraleoneses.

Venho sempre a Beja Santos, porque quer queiramos quer não, anda tudo ligado.

O mundo não terminou com o 25 de Abril.

Quando BS nos mostra Marselha, que eu não conheço, porque nunca passei de Vilar Formoso nem de Badajoz, vou atravez de BS a Marselha.

E até com Marselha verifico que anda tudo ligado, é uma questão de não pararmos no tempo.

Noutro espaço poderei explicar.

Obrigado BS




Valdemar Silva disse...

Rosinha
É assim mesmo.
Agora são os africanos guineenses, senegaleses, gambianos e serraleoneses em barcaças para a Europa.
Lá vai o tempo dos europeus irlandeses, alemães, italianos, gregos, judeus russos, portugueses, espanhóis em vapores para as Américas.
Agora são pretos descalços.
Já foram brancos carregados de piolhos.
É assim mesmo, as grandes emigrações dos povos à procura de melhores condições de vida.

Ab. e boa saúde
Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Quase me esqueci.
Obrigado Beja Santos por mais este 'dar conhecimento' sobre os libaneses na Guiné que muitos de nós conhecemos, sem sabermos como por lá apareceram.

Ab.
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, o tempo dirá se para as américas houve uma migração à procura de melhor vida, ou se foi pura e simplesmente uma "transfusão sanguinea", pois ficou lá um universo de gente estranha e os indios extinguiram-se praticamente.

Será que com esta procura da Europa não virá a ser também uma transfusão sanguinea e os "indios" também em risco extinsão?

Valdemar Silva disse...

Pois… Rosinha, sabe-se lá.
O certo, certo é já não estarmos cá e tb. as nossas 3ª./4ª./5ª.gerações.
O facto é que desta vez vieram os pretos aos magotes. Noutros tempos vinham
como criadagem e nada de pirocanços com a criadagem de cá, por isso era praticamente inexistente haver pretinhos até aos 60 e pouco.
Talvez venha a surgir uma nova mestiçagem.

Valdemar Queiroz

Juvenal Amado disse...

Bem os índios da América tiveram grandes ajudas para se "extinguir"
Na medida que chegavam os colonos de toda a Europa que viviam na maior miséria, o exercito resolvia o problema de "espaço" à espadeirada e a tiro. Os índios fora sendo empurrados para zonas onde dificilmente podiam sobreviver e a cada tentativa de se revoltarem, respondiam-lhes com o extermínio.
Também na Austrália aconteceu o mesmo com a quase extinção dos aborígenes, que chegaram a valer uns dólares por cabeça depois de mortos
Dizem que o preço do progresso mas foi sempre o progresso dos brancos e mesmo a ajuda que prestam é sempre condicionada a manter as populações como mendigos.
Vejamos o que passa com os países de África onde os países não são donos das suas riquezas mas sim as grandes corporações chinesas, americanas e europeias onde o capitalismo selvagem substituiu e se sobrepõe aos aos governos, que aliás mudam a seu belo prazer. Só uma minoria vive bem das sobras que lhe deixam.
Portugal a pesar de colonialismo quase incipiente não passaria hoje de um mero joguete e testa de ferro da secretaria de estado americana que dita com quem os países negoceiam ou não.
Analise-se o caso do Haiti pós terramoto e o que a ajuda internacional fez.

Um abraço Para todos

Mas como diz o Rosinha isto talvez seja conversa para debater outro sítio.

antonio graça de abreu disse...

O que é que isto tem a ver com libaneses na Guiné? Ou o que é que tem a ver com todos nós?

Do meu livro, recentíssimo, Lai Yong e Outros Poemas, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim Editora,2018,pags. 57.Da minha pequena sabedoria


Difícil encontrar gente sábia,
Se a vemos, não a reconhecemos,
se a reconhecemos, não a vemos.


Ideais elevados, transformar o mundo.
Sacudir a poeira
em sandálias gastas pelos anos.


Um toque de mágica,
manipular palavras.
Ah, mas e o sentir do coração?

Sentado à beira-mar,
reverencio
o deslumbramento do poente.



Abraço,

António Graça de Abreu


Depois do almoço, um café,
Mais um amarelíssimo licor de poejo alentejano.
Sabedoria dos séculos.



Valdemar Silva disse...

António Graça Abreu
Este Poema, afinal, tem a ver com quê?
Com a emigração dos libaneses?
Com a emigração?

Ab.
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Graças a AGA vamos além da Taprobana e a Canchungo, graças a BS já fomos além de Vilar Formoso e a Bambadinca.

E se a volta ao mundo por Magalhães foi no sentido do ponteiro dos relógios aos olhos do velho-do-restelo, aos olhos de AGA quando está no Japão foi ao contrário.

Mas anda sempre tudo ligado.



Manuel Luís Lomba disse...

A "empreitada colonial portuguesa" da Guiné foi um "poucochinho" de portugueses e mais de caboverdianos - estes um produto da colonização e não do colonialismo -, de alemães, italianos e franceses.
O Líbano é a Terra da Promissão bíblica, a Suiça do Médio Oriente, e só por contingência houve libaneses a trocá-la por aquela terra de maldição.
A comunidade libanesa da Guiné fazia pela vida, mas era de índole e cultura pacífica.
O capitão Zacarias Sayeg, os tenentes Justo Nascimento, Adriano Sisseco e outros militares africanos do Exército Português foram percursores do MFA - manifestaram-se em princípios de Setembro de 1973 - e foram os executores do golpe do golpe de Bissau,por conta do MFA. O capitão Sayeg foi determinante no desarmamento das tropas africanas e foi o negociador,em Catió, da "paz dos bravos" com o PAIGC: o enterro do machado de guerra e a luta comum pela felicidade e desenvolvimento social e económico dos guineenses.
Os Pedro Pires e José Araújo, caboverdianos, os Buscadini, italianos, os Sacht, alemães, e os Turpin,franceses foram os principais actores da substituição da ditadura dos portugueses pela sua própria ditadura.
E aos ex-militares portugueses, que o PAIGC fuzilou, à revelia de acordo de Catió,sem direito a qualquer simulacro de julgamento, de nada valeu a intercessão do nosso PR Ramalho Eanes e do nosso PM Mário Soares...
Abr.
Manuel Luís Lomba


Anónimo disse...

Tive boas recordações da familia Caeiro, da Casa Caeiro em Nova Lamego. Da sua familia e da sua formosa filha, tive o sentido de os retratar para mais tarde recordar.
Eram os comerciantes Libaneses lá da zona, depois deles só mesmo em Bissau vi alguns.
Boa gente, nada tenho a comentar contra eles, comprei lá muitas coisas, bugigangarias, e coisas assim.
Virgilio Teixeira

Valdemar Silva disse...

Virgílio
O Sr. Caeiro não era libanês, julgo que natural da Figueira da Foz, ou será confusão minha? No seu estabelecimento vendia-se de tudo, até contrabando de material militar para colmatar faltas num eventual espólio (ex. das facas de mato).
Estive várias vezes em casa dele, numa sala com uma mesa, quatro cadeiras, uma ventoinha e o tapete do tigre na parede e discutia-mos sobre dar ou não dar muita confiança aos pretos.
Quanto à sua formosa filha, até fazia torcer o pescoço à rapaziada, era conhecida como doente crónica dos alferes/tenentes médicos, mas julgo que o Sr. Caeiro tinha duas filhas.
Bons tempos passados em Nova Lamego, podera tinha vinte e poucos anos.

Ab.
Valdemar Queiroz