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domingo, 8 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25920: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte IX: Por um "processo de justiça indígena" (em que foi queixoso contra o seu "serviçal", o biafada de Ganturé, Braima Cassamá), sabe-se que já era comerciante na praça de Bolama, desde pelo menos 1926

 

A assinatura de Manuel de Pinho Brandão, nota de dívida: "Bolama, 31 de março de 1934: A Direção dos Negócios Indígenas | Deve | Um alqueire de arroz casca | 12$00. Manoel de Pinho Brandão, Caixa Postal 26, Bolama".






Capa de um auto, de 49 folhas: "1926 | Governo da Província da Guiné | Curadoria dos Serviçais e Colonos Indígenas | Auto nº 11 | Queixoso: Manuel Brandão, comerciante desta praça | Bacar Cassama, serviçal | Escrivão:  João Marques de Barros.



Portal Casa Comum | Fundação Mário Soares | Instituição: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau | Pasta: 10418.080 | Título: Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos Indígenas, auto n.º 11 | Assunto: Processo de justiça indígena tendo como queixoso Manuel Brandão, comerciante em Bolama, e por arguido Bacar Cassamá, empregado de balcão ao seu serviço. Manuel Brandão acusa Bacar Cassamá de não cumprir adequadamente o serviço e de "fazer a corte a uma sua companheira" (Joana Lopes), além de furto de artigos da loja. | Data: 1926 | Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas  | Tipo Documental: Documentos.

Citação:
(1926), "Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos Indígenas, auto n.º 11", Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10418.080 (2024-9-7)



Queixa apresentada ao Curador Geral por Manuel Brandão,em papel timbrado da firma Brandáo & Correia (Importação0 direta, comércio geral, com sede em Bolama, endereço telegráfico "Branco", caixa postal nº 41)


"Bolama, 2 de novembro de 1916 | Ilmo. Sr. Curador Geral | Junto a esta um contrato de um rapaz que tive de mandar embora porque já estava abusando demais, fazendo o serviço de má vontade, mostrando má cara aos fregueses, e ultimamente até se deu ao (?) de fazer a  corte a um minha companheira, pelo exposto agradeço a V. Excia. mandar rescindir o mesmo contrato | Com muita estima, etc. (... ) | Manuel Brandão."



Serviço da República | Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos Indígenas | Bilhete de Identidade: Bacar Cassamá, do sexo masculino, solteiro, de 25 anos de idade, filho de Solemane Cassama, e de Cadi Dabó, pertencente ao regulado de Cacine, povoação de Ganturé (de que é régulo Solemane Cassama), contrato nº 13, com duração de 1 ano, e salário de 200$00 mensais (sem alimentação), serviço de balcão, a prestar em Bolama... Data do contrato: 6 de março de 1926.

(No verso pode ver-se a impressão digital e os "sinais característicos": 1,70 de altura; cabelo: carapinha; olhos e sobreolhos: pretos; nariz: achatado; cor: bronzeada; boca e lábios: regulares; sinais particulares: nenhuns | Patrão: Manuel Brandão; residência: Bolama)


1. Depois de ouvidos em auto de declarações, o Braima Cassamá (arguido),  o Manuel Brandão (queixoso), a Joana Júlia Lopes (companheira do queixoso, e testemunha indicada pelo arguido) e ainda outras duas ou três testemunhas, foram dadas como provadas as queixas contra o "serviçal" Braima Cassamá, puníveis nos termos do Regulamento do Trabalho dos Indígenas (sic). 

O arguido foi condenado a 8 dias de trabalhos correcionais, por sentença de 6 de dezembro de 1926. Cumpriu de imediato a pena, na administração do concelho,    sendo posto em liberdade em 14 desse mês. Era administrador do concelho de Bolama, o tenente do exército colonial Alberto Soares. O processo foi concluído e arquivado em 24 desse mês e ano. 


Um "salvo-conduto" foi passado em 13/12/1926 ao biafada Bacar Cassamá, com as seguintes observações: "Esteve como serviçal em casa do sr. Manuel Brandão. Foi condenado com trabalho correcional por 8 dias por faltas cometidas ao serviço".


Manuel de Pinho Brandão,
quando chegou à Guiné,
talvez depois da I Grande
Guerra (*)


2. Toda esta documentação (49 folhas) mereceria uma análise mais pormenorizada e atenta para se perceber melhor como era a administração do direito laboral colonial, ainda antes do Ato Colonial de 1930 (revogado em 1961).  

Lembre-se que já tinha ocorrido, em Lisboa, o golpe de Estado de 28 de maio de 1926, que levou ao fim da I República, com a instauração da Ditadura Militar   (1926-1932) e depois o Estado Novo (1932-1974).

Desconhecíamos a existência, no tempo da República,   já no final (1926), desta Curadoria dos Serviçais e Colonos Indígenas que, em 1928, já se chamava Direção dos Serviços e  Negócios Indígenas.

Nesta Curadoria eram apresentadas queixas, tanto de patrões como de empregados: uns por por falta de pagamento dos salários, outros por abusos dos "serviçais"... Era uma espécie de tribunal administrativo...

Para já, importa-nos, nesta série, mostrar que o arouquense Manuel de Pinho Brandão já vivia em Bolama, em 1926,  e estava lá instalado como comerciante. E, mais importante, não era analfabeto, devia ter pelo menos a 4ª classe da instrução primária: escrevia razoavelmente bem, sem grandes erros, e tinha uma assinatura  estilizada. 

Não devia ser uma pessoa "pacífica": também era capaz de pegar num cacete para dar porrada num dos seus "moços"... 

Em 1926 era solteiro, tendo uma companheira, de nome Joana Júlia Lopes (cuja assinatura, tosca,  no auto de declarações indicia de ser de alguém semi-analfabeto). 

Por essa altura o Manuel Brandão ou Manuel de Pinho Brandão  teria já 33 ou 34 anos de idade, e 7 ou 8 anos de Guiné (*).

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25907: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VIII: Nascido por volta de 1893, terá chegado à Guiné depois da I Grande Guerra, tendo-se instalado em Bolama, nos Bijagós e, mais tarde, em Ganjola: em 1960 produzia duas mil toneladas de arroz (Recorte de jornal, enviado pelo Manuel Barros Castro, que o conheceu pessoalmente, e que foi fur mil enf, CCAÇ 414, Catió, 1963/645, e Cabo Verde, 1964/65)

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24719: Notas de leitura (1621): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Fica aqui um histórico dado por um elemento da Marinha acerca do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8 entre 1971 e 1973, um caso de Marinha no mato, pois estavam instalados num aquartelamento em Ganturé, com missões de patrulhamento no rio Cacheu, seguiram para Gampará, aí em instalações muito precárias, atividade operacional intensa e alimentação mais deficiente, conheceram o castigo, percorreram o rio Corubal e caminharam até Buba, voltaram para Ganturé, a comissão terminou em abril de 1973, assistiram ainda a intensidade da vida operacional do PAIGC e à chegada dos mísseis. Foi esta intervenção e a de Carlos de Matos Gomes que respigámos num conjunto de tertúlias promovidas pela Associação dos Pupilos do Exército.

Um abraço do
Mário.



O modo dos portugueses fazerem a guerra no mato (2)

Mário Beja Santos

Tertúlias da Guerra Colonial é uma edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021, o presidente da associação convidou um conjunto de oficiais das Forças Armadas que ao longo de quatro sessões, sempre através da plataforma Zoom, analisaram as quatro dimensões tidas como mais interessantes para as tertúlias: antecedentes políticos e fundamentos; combater no mato; efeitos colaterais e sentimentos coloniais; do 25 de Abril à descolonização. Estas quatro sessões realizaram-se em outubro e novembro de 2020. É da temática “combater no mato” que vamos aqui resumir as comunicações de Carlos de Matos Gomes sobre a quadrícula do Exército e a Marinha na guerra no mato da Guiné por Alcindo Ferreira da Silva. No número anterior procedeu-se a recensão da comunicação de Carlos Matos Gomes, vejamos agora aspetos principais da intervenção de Alcindo Ferreira da Silva. Começa por nos dizer que no início dos anos 1970 a Marinha tinha na Guiné três Destacamentos de Fuzileiros Especiais de origem metropolitana e dois Destacamentos de Fuzileiros Especiais Africanos. Ele chegara a Bissau em princípios de junho de 1971. Seguiu para o mato, primeiro para Ganturé, situado na margem norte do rio Cacheu, junto de um antigo armazém da CUF, 9 casamatas-abrigos dispostos em círculo, e descreve o ambiente. No rio havia uma ponte cais onde atracavam com frequência a lancha de fiscalização grande que estava em missão na área e as lanchas de desembarque média que patrulhavam o rio. Da ponte cais partia uma picada que atravessava a base e se dirigia em linha quase reta até Bigene, onde estavam outras unidades militares. A missão principal do destacamento consistia em efetuar a interdição da passagem de pessoal e material do Senegal para o interior do território da Guiné através do corredor de Sambuiá, para além de efetuar operações na margem sul com o objetivo de desarticular o dispositivo do PAIGC.

Dois botes com três fuzileiros cada, armados com uma metralhadora e bazucas e outros elementos armados com armas ligeiras fiscalizavam o tarrafo à procura de indícios da presença do inimigo. Por vezes os botes eram emboscados na entrada ou passagem de uma clareira ou deparavam com uma canoa ou bote de borracha atravessar o rio. Uma ou duas vezes por semana, o destacamento realizava uma operação na margem norte do rio Cacheu para tentar intercetar alguma coluna de reabastecimento do PAIGC. Quando as operações se realizavam na margem sul tinham como objetivo assaltar acampamentos, eram recontros normalmente breves.

Ao fim de uns meses, o destacamento saiu de Ganturé e foi enviado para Gampará onde decorria, desde há cerca de dois meses uma operação de reocupação do território e ali se preparava a construção de reordenamento. Ali se encontraram com o Destacamento de Fuzileiros Especiais 21 de fuzileiros africanos e uma companhia do Exército. O acantonamento era constituído por um quadrado desenhado por covas de lobo, cobertas por ramagem, à sua volta construíram-se mesas e bancos, enfim uma vida muitíssima rudimentar. Nas redondezas do acantonamento encontravam-se alguns grupos dispersos de população que tinha sido desalojada das suas tabancas quando estas foram destruídas no início da ocupação. As restantes populações e os guerrilheiros do PAIGC tinham retirado alguns quilómetros para a margem sul do rio Pedra Agulha, junto de Ganquelé. Foi intensa a atividade operacional, nas atividades de proteção, patrulhando a região afim de contrariar a penetração dos guerrilheiros para norte do rio Pedra Agulha. Operações que exigiam um esforço físico violento, em percurso em corta-mato, em zonas em que se respiravam impregnado de pó da terra e do capim queimado. Dois meses e meio que levaram a um pleno cansaço, foram depois rendidos por uma companhia de paraquedistas. Depois de uns dias de descanso em Bissau partiram para operação conjunta Pato Azul, na região do Quínara, em que participaram forças especiais. Após Gampará foram enviados para Cacheu, com a missão de patrulhar o rio e afluentes e de realizar semanalmente uma ou duas operações nas proximidades da Caboiana, um santuário do PAIGC. Com alguma regularidade, também efetuavam operações conjuntas. Ao fim de três meses, foram novamente enviados para Gampará, aqui houve um incidente entre um fuzileiro e um elemento do Exército, Spínola determinou que o destacamento, por castigo, realizasse uma operação, subiram em botes o rio Corubal e percorreram cerca de 40 quilómetros uma região controlada pelo PAIGC, até Buba.

Meses depois, seguiram novamente para Ganturé, aqui terminou a comissão em finais de abril de 1973. Foi em Ganturé que se começou a percecionar a intensificação da atividade da guerrilha, viveram os últimos dias em Ganturé com o aparecimento de dois mísseis. Esta foi a vida no mato do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8. E concluiu assim a sua intervenção:
“O estar no mato significou, para todos os que por lá andaram, o possível e o próximo contato de fogo quando saiam para operações no mato ou no decorrer dos ataques ao aquartelamento nas suas horas de serviço ou descanso e, por isso, a necessidade permanente de manter a disciplina e a segurança, a coesão e o espírito de unidade, o treino e as armas sempre prontas, mas o que marcava este decorrer dos dias era, sobretudo, a rotina, a espera de que qualquer coisa acontecesse, a contagem do tempo que não passava, o isolamento, a solidão mesmo que rodeado de camaradas, ausência de informação, a saudade e para muitos a participação numa guerra imposta, ou injusta, ou sem sentido”.


Render fuzileiros na Guiné, imagem da RTP, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24712: Notas de leitura (1620): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24712: Notas de leitura (1620): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Do conjunto de intervenções que deram origem à publicação da responsabilidade da Associação dos Pupilos do Exército, optei por aquelas que são assinadas por Carlos de Matos Gomes e Alcindo Ferreira da Silva, a primeira sem a ver com as observações sobre a quadrícula, a presença da Companhia do mato, os seus méritos e deméritos, a lógica do Regime em fazer suprir as ausências da administração por um contingente militar a quem se multiplicavam as missões e as obrigações, acabando por implicar essa unidade, em zonas de média e alta intensidade bélica, a um recuo nos patrulhamentos e operações, delegando-se nas Forças Especiais, a realização de grandes atos ofensivos. E veremos seguidamente o testemunho de quem foi fuzileiro especial e combateu em pleno mato, em Ganturé e Gampará.

Um abraço do
Mário



O modo dos portugueses fazerem a guerra no mato (1)

Mário Beja Santos

Tertúlias da Guerra Colonial é uma edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021, o presidente da associação convidou um conjunto de oficiais das Forças Armadas que ao longo de quatro sessões, sempre através da plataforma Zoom, analisaram as quatro dimensões tidas como mais interessantes para as tertúlias: Antecedentes políticos e fundamentos; Combater no mato; Efeitos colaterais e entimentos coloniais; Do 25 de Abril à descolonização. Estas quatro sessões realizaram-se em outubro e novembro de 2020. É da temática combater no mato que vamos aqui resumir as comunicações de Carlos de Matos Gomes sobre a quadrícula do Exército e a Marinha na guerra no mato da Guiné por Alcindo Ferreira da Silva.

Carlos de Matos Gomes observa que a quadrícula constituía a base do dispositivo militar português nesta guerra: malha de unidades, organicamente e hierarquizadas, cobrindo o território de acordo com a intensidade da atividade dos guerrilheiros, da densidade populacional, da importância económica ou tática.

 Lembra também que desde 1959 existiam estudos no Ministério do Exército para a criação de um novo tipo de unidades e de novas táticas para fazer face à evolução da situação em África. Esta quadrícula foi o dispositivo territorial exclusivo do Exército, gozou de várias designações: Regiões Militares, Comando Territorial, Zonas de Intervenção Operacionais (estas comandadas por oficiais generais e coronéis, delas dependiam os setores que por sua vez integravam batalhões e na base da quadrícula situava-se a Companhia).

A opção por este dispositivo respondia a uma dupla necessidade: a de reconquistar e manter os locais onde haviam ocorrido ações violentas de sublevação; e a de instalar órgãos de soberania e de administração até aí inexistentes.

 Era a dupla necessidade de ocupar militar e administrativamente parcelas do território onde, até ao início das ações violentas não havia presença de órgãos do Estado, nem de administração, nem serviços públicos. O autor recorda que em 1961, no norte de Angola, não existia um só quilómetro de estrada alcatroada, não existia uma rede de telecomunicações com o mínimo de eficácia e não existia uma só unidade militar. Pode mesmo tomar-se os acontecimentos da Baixa do Cassanje, janeiro de 1961, prelúdio da violentíssima sublevação dos Dembos, como prova de ausência do Estado, não assegurando as funções elementares de garantia da justiça e segurança das populações. “Não foi por acaso que as ações violentas da guerra ocorreram em zonas onde a administração do Estado estava pouco presente, ou era quase inexistente, como acontecia no norte de Angola e no norte de Moçambique”.

A Companhia de quadrícula tinha demasiado tarefas, sobre ela recaía: administrar pessoal e equipamento, incluindo a defesa e o abastecimento da tropa; órgão de soberania e de administração do território, por ausência de outro, providenciando serviços mínimos de saúde, de educação e até de justiça, agindo segundo as normas da ação psicológica; e, acima de tudo, realizar operações militares, nomadizar, fazer patrulhamentos ofensivos. “Desde cedo foi percebido pelos comandantes dos teatros de operações que só era possível cobrir todas estas tarefas em zonas de baixa intensidade operacional, onde não fosse provável a ocorrência de situações de envergadura por parte do inimigo. Onde o pelotão/grupo de combate não era suficiente, e em boa parte dos teatros de operações deixou de ser nos primeiros anos da guerra, a atividade operacional ficava circunscrita às imediações do aquartelamento e quase se reduzia às colunas logísticas de reabastecimento, era uma atividade que se limitava à presença e à ação psicológica”.

Esta implantação territorial na quadrícula de companhia, observa o autor, teve o mérito de aproximar os seus militares das populações africanas, a quem proporcionaram significativas melhorias das condições de vida, mas desviavam o Exército da função principal de combater, o que fez com que as ações militares de alguma envergadura tivessem de ser assumidas pelas forças de intervenção, maioritariamente constituídas pelas tropas especiais. E há os efeitos perversos: “A reduzida capacidade operacional das companhias da quadrícula provocou o aumento de efetivos de unidades de intervenção, quase sempre especiais, mais caras e mais difíceis de obter. A quadrícula de companhia tornou ainda o Exército, no seu todo, como uma força defensiva, fixa ao território, sem mobilidade, com as suas unidades vulneráveis, e exigiu um esforço excessivo e pouco remunerador para manter este dispositivo. No final da guerra, em especial na Guiné e em Moçambique, a quadrícula de companhias consumia-se em boa parte para manter uma ocupação ineficaz do território, os seus quartéis constituam alvos fixos e remuneradores para os guerrilheiros”.

O regime de Salazar viu nesta solução de administração militar uma série de vantagens: era barata, pois os recursos das Forças Armadas substituíam o que competia com uma administração civil; solução que também agradava os militares, pois era moralmente mais recompensador dedicarem-se a tarefas de apoio social do que à guerra. “Em Angola, onde os efetivos em 1960 eram de cerca de 70 mil homens, o general Fraser, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas sul-africanas, numa reunião com as autoridades portuguesas, calculava que um máximo de 30 mil homens seria suficiente, desde que empregues naquilo que as Forças Armadas poderiam fazer, combater o inimigo, e desde que existisse um bom governo civil”.

E há o chamado sentimento de dever, a razão por que se luta, que o autor assim resume: “Na guerra colonial, curiosamente de forma muito semelhante ao que aconteceu com a participação de Portugal na Grande Guerra, as tropas nunca souberam com clareza por que combatiam. As respostas que davam nos inquéritos referem o cumprimento de um dever (resignação); defender o que é nosso (a adoção de um discurso vazio, que era contrariado por parte dos militares quando reconheciam que a guerra aproveitava a uns poucos que com ela enriqueciam à custa do sacrifício dos soldados). Mas as tropas, também como na Grande Guerra, foram, no geral, mal instruídas, e o seu nível quer de motivação quer de instrução sofreu uma contínua degradação ao longo dos anos de guerra”. O autor explana ainda a opinião dos Aliados, a situação em Moçambique e conclui assim: “A guerra colonial era, por motivos históricos e de conjuntura nacional, uma guerra perdida à partida, no sentido em que a vitória seria manter no último quarto do século XX uma entidade política com uma pequena cabeça na Europa, espalhado por três continentes e pelos três oceanos do planeta. Mas a guerra travada no mato, nas florestas, nas chanas, nas bolanhas de Angola, de Moçambique e da Guiné sofreu dos condicionamentos gerais da participação de Portugal na Grande Guerra. O mato de África não foi um lugar de glória nem de boa memória”.

Vamos de seguida ver uma exposição sobre a Marinha na guerra no mato da Guiné.

(continua)
Alferes Marques Vieira, 1971. Imagem carregada por Kai Archer, com a devida vénia
Viagem num rio da Guiné. Imagem retirada de GUINÉ BISSAU - Memórias, com a devida vénia
Fuzileiros a caminho de uma operação na Guiné. Imagem retirada de fuzileiros especiais 12 - 1970 / 1971 - guiné, com a devida vénia
Parte do armamento apreendido na Operação - Cocha, na base do PAIGC zona de Cumbamory, pelo destacamento de Fuzileiros Especiais. Imagem retirada de fuzileiros especiais 12 - 1970 / 1971 - guiné, com a devida vénia


Fixação do texto e edição de imagens: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24697: Notas de leitura (1619): "PAIGC A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", por Rui Jorge Semedo; Nimba edições, 2021 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23139: Notas de leitura (1434): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2022:

Queridos amigos,
O Martins já passou praticamente um ano em Guileje, as flagelações são rotina, um dia estourou uma granada de canhão em cima do abrigo do Pel Caç Nat 51, foi o cabo dos trabalhos; continuam as incursões etnográficas, ele é bom observador; regista o desaparecimento de quartéis à volta, Gandembel, Mejo, Sangonhá, Cameconde, Guileje está cada vez mais exposto na sua posição solitária, prosseguem as colunas de reabastecimento; assiste, atónito, a mais uma aparição de Spínola que vai muito efusivamente conversar com um furriel de nome sonoro, ligado a famílias da banca, coisa curiosa desaparece de Guileje passado quinze dias, todos se indignaram com o escândalo, o descarado favorecimento. "O capitão anda furioso; até já desabafou publicamente a indignação." Estamos em meados de 1969.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (3):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: 

“Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. 

"Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. 

"Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Já estamos em 1969, o aquartelamento de Gandembel foi extinto, a unidade militar transferida para Aldeia Formosa, Martins rememora o calvário das colunas, o Inferno dos primeiros tempos de Gandembel, os rebentamentos de minas, as emboscadas, as flagelações em cadeia. As tropas paraquedistas ainda tentaram descomprimir a pressão, havia um compasso de espera e os guerrilheiros voltavam. Os de Gandembel partiram discretamente, vieram os do PAIGC metralhar um despovoado aquartelamento. Também Mejo acabou em 28 de janeiro. 

“Tropas, camiões, armas ligeiras e pesadas, tudo, ou a maior parte, recolhido a Guileje, que contra agora mais um pelotão de nativos; já tinha o 51, veio de lá o 67. Igual destino já tivera Sangonhá (29 de julho) e também Cacoca, dois aquartelamentos entre Cacine e Gadamael”

E aproveita para contar a história umas filmagens feitas por suecos, um ataque contra o pequeno aquartelamento de Ganturé, os suecos exigiram filmagens à luz do dia, veio a força aérea e vindimou-os do alto, despejou bombas sob toda a região de Sangonhá, não foi pequena a carnificina.

Relata mudanças no seu pelotão, há gente a entrar e a sair em Guileje, o novo comandante de Companhia é um tenente dos Comandos, exibe garbosamente camisola branca, justa, de meia manga, botas a brilhar, o semblante austero. Houvera um período de pouca frequência nas flagelações, agora recrudesceram, um alferes e um furriel, a trabalharem no obus, foram ceifados por uma canhonada vinda da Guiné Conacri. Fazem-se patrulhas até às margens do Cantanhês, encontram-se umas pirogas. 

O novo comandante de Companhia parece não gostar do Martins e das suas estadias na tabanca. Cecília Supico Pinto visita Guileje, Martins parte para Bissau, está cada vez mais pitosga, precisa de novas lentes, e conta-nos que tentou no exame oftalmológico fazer-se bem cegueta, a pantominice saiu-lhe caro, foi passado ao contingente geral, “punido por razões de que não quer falar” e dá-nos conta do que foi a sua estadia em Tavira, ali encontrou um antigo colega de seminário que quis desertar e tudo lhe correu mal.

A sua afeição com a gente da tabanca parece inquebrantável, fala-nos amiúde de Suleimane, de Dadanda, de Cumba, Ádama, da criancinha Mauro, compra-lhes presentes no mercado de Bandim e volta de barco até Gadamael. E não deixa de tecer um comentário: 

“Dos abrigos de Gadamael salta à vista a pouca robustez – uns perfeitos cardenhos. Mas isto não é Guileje; as valas vão chegando para as encomendas. Demais, é vezo dos guerrilheiros errar o tiro, indo as mais das granadas explodir no rio, assustando as ostras. No rio se banha ou chafurda sem temor a tropa, confiada nos hábitos de morcegos dos guerrilheiros, que só se atrevem ao lusco-fusco”

E regressa a Guileje, dá-nos conta das suas observações etnográficas, metido no posto de rádio, alguém diz diga se recebeu, escuto, a resposta sai breve, correto, afirmativo, começara uma nova flagelação, dá-se dois saltos para a boca do alçapão, era a primeira vez que um ataque apanhava o Martins no posto de rádio, uma granada de canhão sem recuo rebenta em cheio sobre as instalações do pelotão 51, foi o terror e a confusão, há que mostrar ao leitor o estado de alma, o olhar atónito, do que se está a ver: 

“O terrível engenho descarnou a cobertura de toneladas de terra e cimento que formam o essencial da sua estrutura e deixou-a no osso dos troncos de palmeira justapostos, que, a modo de caibros, a sustentam. Ouve um camarada contar como à explosão se seguiu o ranger o de alguns troncos, que estalaram ou partiram, ameaçando ceder. Os abrigos de Guileje perdurarão na memória dos que por aqui passaram; e, mais do que isso, merecem ficar na história dessa guerra.”

Procura entender os ritos dos Islamismo, as preces na mesquita. Refez-se a cobertura do abrigo do pelotão 51, restaurada e reforçada. ‘Cortar palmeiras, carrear os troncos, retirar os velhos e assentar os novos a poder de braço, tudo se fez em três escassos dias; trabalho, dada a pouquidão de meios, pouco menos que ciclópico. Houve ainda que encher a cratera com terra e mais terra estender-lhe por cima nova camada de cimento’. Mas ainda a camada de cimento não tinha totalmente secado e voltaram as flagelações. 

“Nada mudou desde que o Martins pôs pé em Guileje. A tropa não recua, também não avança, o que só favorece o inimigo, que aposta no desgaste causado pelo tempo a quem não é de cá.”

E assim se chegou a abril e depois a maio, sucedem-se as flagelações, a população continua tranquilamente a sua vida monótona, não deixando de ir cultivas o seu arroz de subsistência, ao amanhecer as viaturas carregadas de bidões vão direito ao poço aberto na brenha, a uns 2 km, operação que requer severa vigilância. Spínola volta a Guileje, assim se descreve o seu regresso:

“Negros como abutres, descrevendo círculos por largo, bem à vista o cano saliente do canhão de bordo, os três passarões assenhoreiam-se destes ares; metem respeito e não admira que os guerrilheiros mais que tudo os temam. E, enquanto dois deles vão dando voltas, agora mais fechadas, sobre Guileje, o outro ensaia a operação delicada de vir a terra; um instante imobilizado, roda agora a ganhar posição, inclina um tudo-nada o focinho, cautamente sondando o espaço em baixo onde pousar. E já vai descendo, em volto grossos rolos de pó que revoluteiam furiosamente no ar agitado do voltear estonteante da hélice. O monstro impõe a sua presença aparatosa. Ei-lo em repouso no chão espanado pela ventaneira”

O comandante de Companhia não gostou da discriminação, Spínola passou por meio da pequena multidão e deu de cara com um furriel do 67, cumprimentos efusivos. 

“O nome, de todo incomum, ou talvez sobrenome, é o mesmo de uma família da alta roda lisboeta ligada à banca. Coincidência ou não, o certo é que ainda não passaram quinze dias e já o furriel foi de abalada, transferido para zona menos descoberta aos golpes da implacável guerrilha.”

(continua)


Na tentativa de encontrar elementos gráficos disponíveis sobre Guileje, distintos daqueles que já possuímos (e que é um acervo de inegável valor) imergi no Google Maps e apareceu-me um documento com nome Jorge Soares, março de 2018, impressionaram-me estas imagens, e onde quer que esteja o autor peço-lhe a benevolência de aqui as reproduzir, é um dossiê muito belo, aqui fica a minha vénia em nome do blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23131: Notas de leitura (1433): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22723: In Memoriam (418): Júlio Miguel Massé Ayres Mendonça (1945-2021), ex-Fur Mil da CART 2410 - "Os Dráculas" (Gadamael e Ganturé, 1968/70) (Luís Guerreiro)

IN MEMORIAM

Júlio Miguel Massé Ayres Mendonça (20/10/1945 - 7/11/2021)
Ex-Fur Mil da CART 2410 - "Os Dráculas" - (Gadamael e Ganturé, 1968/70)


1. Mensagem do nosso camarada Luís Guerreiro (ex-Fur Mil, CART 2410 e Pel Caç Nat 65, Gadamael e Ganturé, 1968/70), com data de hoje, 16 de Novembro de 2021:

Amigo Luís

Venho participar mais um falecimento de mais um "Drácula" da Cart 2410.
Desta vez foi o ex-furriel mil Júlio Miguel Massé Ayres Mendonça, 20/10/1945 - 7/11/2021.
Óptimo camarada sempre com alegria estampada no rosto, paz à sua alma.

Com ele já partiram 7 dos 15 ex-furriéis da Cart, são eles:
António Mourato
Júlio Mendonça
Fernando Almeida
António Homem
Fernando Silva
Laurindo Lopes
Victor Amorim

Junto envio duas fotos dele.
Esta é a lei da vida da qual ninguém escapa.

Cumprimentos
Luís Guerreiro

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22678: In Memoriam (417): Queta Baldé (1943-2021), ex-Soldado do Pel Caç Nat 52 e 2.ª CComandos Africana, falecido em Lisboa

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21144: Notas de leitura (1292): “BC 513 - História do Batalhão”, por Artur Lagoela, edição de autor, Junho de 2000 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Lê-se este histórico do BCAÇ n.º 513, e temos que preitear o denodo e os sacrifícios que este contingentes provaram em Aldeia Formosa, na ocupação de regiões abandonadas como Gadamael, Guileje ou Mejo, na abertura de itinerários, e no esforço de cortar o corredor de Guileje, procurando algum domínio da chamada fronteira Sul.
Há algo de épico neste relatos, no destemor destes Pelotões Daimler e Fox, nos levantamentos de dezenas e dezenas de minas anticarro, nas flagelações, na reação às emboscadas. Um histórico que permite avaliar os duros combates que se travaram para fixar populações e tropas, naquele combate sempre atrabiliário entre combater forças de guerrilha que podia atuar tanto a partir de uma base externa como, como se comprovará, a partir de bases como Salancaur. Haverá um momento, a partir de 1968, em que se contestará este tipo de dispersão de forças, criticando a fundo a existência de aquartelamentos que marcavam presença mas que não possuíam capacidade ofensiva.
Lê-se agora à distância dos anos que foi esta fixação que teve o mérito de travar a avalancha de um PAIGC que sonhava em mostrar o Sul com uma total zona libertada.

Um abraço do
Mário


BCAÇ n.º 513, a divisa era “Ceder Nunca” (2)

Beja Santos

O livro intitula-se BC 513 História do Batalhão, por Artur Lagoela, edição de autor, 2000. Para quem esteja reticente e cético quando à importância destes documentos, mais a mais publicados muitas décadas depois dos acontecimentos vividos, recomendo vivamente a leitura deste histórico. E por razões muito simples: o investigador ou o simples leitor interessado vão aqui encontrar informações sobre o estado do Sul da Guiné em 1963 e como reagiram as nossas tropas a uma situação verdadeiramente caótica em que a guerrilha, por força da intimidação, do terror puro ou das muitíssimas formas de apoio que recebeu, se assenhoreou do terreno, havia que o repelir. E há algo de épico nas lutas travadas pelos diferentes contingentes BC n.º 513, num tempo em que as autometralhadoras puderam ter um papel relevante e os sapadores viveram assoberbados a detetar e a levantar minas antipessoal e anticarro.

Primeiro esforço de guerra, reocupar o Chão Fula, depois procurar atuar no corredor de Guileje, criar novos destacamentos, como o Mejo, Colibuia e Guileje. Escreve o autor que em toda a região não havia um único europeu, no meio de toda aquela desarticulação, uns procuraram apoio em Buba e Aldeia Formosa, muitos aderiram ao PAIGC e outros refugiaram-se na República da Guiné. Havia que convencer os Fulas a cultivar o arroz, que antes da guerra era cultivado pelos Balantas, pois bem, o Forreá autoabasteceu-se, quando o BC 513 deixou a zona Sul, 30 tabancas ficaram organizadas em autodefesa com redes de arame-farpado e com abrigos. Os Fulas armados atuaram na região de Incassol e causaram destruições ao inimigo. Em 29 de Novembro de 1964, Guileje foi pela primeira vez atacada, todas as casas da tabanca foram incendiadas e destruídas.

O autor descreve a situação geral na fronteira Sul, recorda que o rio Cacine com os seus inúmeros braços penetra até próximo de Guileje. A zona de fronteira é constituída por uma estreita faixa de terreno entre Cacine e Guileje. Nas regiões de Guileje e Aldeia Formosa formam-se dois corredouros terrestres de comunicação com o interior separado pelos rios Cumbijã e seus afluentes Balana e Balanazinho. Ao longo de toda a faixa terrestre entre Cacine e Guileje corre uma estrada que se prolonga através das pontes sobre os rios Balana e Balanazinho para Mampatá e Aldeia Formosa. Esta estrada liga as povoações de Cacine, Cacoca, Sangonhá, Ganturé, Gadamael, Guileje, Gandembel (destruída) e Mampatá. A subversão armada manifestou-se na região de Sangonhá, onde os grupos aliciadores da FLING foram dominados e ultrapassados pelo PAIGC, este teve grande apoio dos Beafadas da região. Assaltos armados às casas comerciais de Gadamael Porto e Cacoca e outros atos de rebelião conduziram a região à colaboração integral com o inimigo, a autoridade portuguesa volatizou-se. A região Fula de Guileje foi abandonada.

Segue-se o histórico da progressão das forças do BC n.º 513. Em 17 de Dezembro de 1963 ocupou-se Gadamael, construindo-se aquartelamento a partir do nada. De 4 a 8 de Fevereiro do ano seguinte ocupou-se Guileje. Em 20 de Fevereiro abriu-se o itinerário Guileje - Gadamael. De 21 a 25 de Fevereiro ocupou-se Ganturé. De 7 de Março a 15 de Abril houve patrulhamentos nos itinerários Aldeia Formosa – Gadamael – Guileje – Mejo, as forças do PAIGC emboscaram por diversas vezes. Em 21 de Maio ocorreu a abertura o itinerário Gadamael – Sangonhá e ocupou-se Sangonhá que logo fio atacada com invulgar violência. Em 24 de Julho deu-se a abertura do itinerário Sangonhá – Cacoca. Deu-se por concluída a abertura do itinerário Aldeia Formosa – Cacoca ao longo de toda a fronteira Sul. Nos regulados de Guileje, Gadamael e Cacine as populações sentiram-se mais seguras. A CART n.º 496, instalada em Cacine passa a executar patrulhamentos na direção de Cameconde. Entre 30 de Novembro e 10 de Dezembro fez-se a abertura do itinerário Cacoca – Cacine e a ocupação de Cameconde. Dava-se por concluída a abertura do itinerário Cacine – Cacoca – Guileje – Mampatá – Aldeia Formosa – Buba. Para completar a ligação por estrada entre as companhias do designado Setor E, faltava abrir à circulação o troço Cacoca – Cacine. Diz o autor que o moral do inimigo era de prever que fosse elevado já que tinha até então oposto com êxito grande resistência à entrada das tropas de Cacine em Cameconde. O PAIGC alardeava que a tropa nunca entraria em Cameconde. É neste contexto que decorre a operação “Fecho”, perfura-se o itinerário Cacine – Cameconde com o apoio da Força Aérea, intervêm uma Companhia de Artilharia e um Pelotão de Reconhecimento, vai à frente o Pelotão Daimler 947 reforçado, seguem sapadores, enquanto as forças navais executam uma operação de diversão.

Haverá muito tiroteio, mas a estrada que segue para Cacoca foi aberta e o Comandante do Batalhão faz os seus comentários:  
“a. A abertura do itinerário Cacoca – Cameconde – Cacine foi feita por duas colunas de Cavalaria, reforçadas, partindo simultaneamente uma de Cacoca e outra de Cacine. Todos os Pelotões de Reconhecimento de Cavalaria ao serviço do BC 513, estavam desejosos de tomar parte nesta operação com a qual se completava a missão geral que lhes fora atribuída de ligar por estrada Buba com Cacine. Não foi, porém, possível atribuir tal missão ao Pelotão FOX 888 que não convinha retirar da Aldeia Formosa. Este facto e o conhecimento das dificuldades criadas pelo IN ao movimento das nossas tropas no sentido Cacaca – Cameconde, levou-nos a decidir que desta vez a acção principal fosse feita no sentido Cacine – Cameconde e portanto em força, reservando para a outra coluna uma progressão mais lenta e cuidada. Isto obrigou a transferir previamente para Cacine, por barco, todos os materiais necessários à instalação das defesas iniciais e também o pessoal da CCS (sapadores) que tinha a missão de as construir. Ali se concentrou ainda um novo Pelotão de Reconhecimento de Cavalaria, o Pelotão Daimler 947.
b. A ocupação de Cameconde era uma velha aspiração da CART n.º 496. O moral da Companhia subiu muito com a sua realização.
c. Saliente-se o extraordinário esforço despendido pelo Pelotão FOX 963 que no dia 29 tivera de acorrer de Ganturé a Guileje em situação de emergência e no dia 30 se deslocou para Cacoca para logo no dia imediato executar a acção.
d. Contudo, as honras inteiras desta acção cabem ao Pelotão Daimler 947, que suportou todo o peso do inimigo com a maior coragem e decisão, acabando por expulsá-lo do seu último reduto”.

Mas a luta pelo domínio das comunicações do setor não tinha pausas. O PAIGC levava a efeito inúmeras emboscadas ao longo de todos os itinerários controlados pelas nossas tropas em especial no de Buba – Aldeia Formosa e Rio Balana – Gadamael, implantou minas, montou emboscadas, muitas vezes conjugadas com o rebentamento de fornilhos. Empenhou-se na destruição das principais pontes e pontões do setor. Na totalidade, o IN implantou 66 minas anticarro, das quais foram detetadas e levantadas 46.

Até 1965, data da sua transferência para a ilha de Bissau e região de Nhacra, o BCAÇ nº 513 averba inúmeras ações que irão ser descritas no próximo e último texto que dedicamos a uma unidade que teve um comportamento admirável num dos teatros de operações mais hostis, entre 1963 e 1965.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21120: Notas de leitura (1291): “BC 513 - História do Batalhão”, por Artur Lagoela, edição de autor, Junho de 2000 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fala de quem morre e a inquietação de comunicar a perda para muito longe ou para muito perto. Vivi uma experiência que ainda não dou por terminada. Em 16 de outubro de 1969, em Ganturé, no regulado do Cuor, uma mina anticarro espatifou um Unimog 404, deixou-me imediatamente o condutor, Manuel Guerreiro Jorge, natural de Monte da Cabrita, Santana da Serra, Ourique, moribundo, foi um sofrimento que se arrastou por horas, exalou o último suspiro em Finete, o médico, David Payne Pereira, nada pôde fazer, os seus órgãos vitais tinham entrado imediatamente em falência aquando da explosão que deflagrou principalmente do seu lado.
O importante é que escrevi para o Sr. Jesuíno Jorge, procurei abafar quanto o moribundo penou, relevando as qualidades do jovem e a consternação que deixara. Imediatamente na volta do correio era-me feito um pedido terrível, descrever ao pormenor todas as vicissitudes daquela morte. O que, como se compreende, não fiz, andei à volta deixando a promessa, não cumprida, de que um dia o iria abraçar no Monte da Cabrita, esse desgosto ninguém mo tira. E aprendi igualmente que esta necessidade descritiva é muito mais universal do que eu pensara. Já em Lisboa, de visita à mãe do meu maior amigo, que morrera em Mocímboa da Praia, também ela mostrou saber todos os pormenores que antecederam a sua partida deste mundo. Continuo a ignorar o que nos leva a querer saber ao pormenor como o nosso ente querido morreu, será que encontramos alívio na aproximação, nesses últimos momentos de vida. Penso que nunca encontrarei resposta, mesmo depois de tudo quanto li e ouvi.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (10)

Beja Santos

“António dos Santos Alberto,
Conto o que me aconteceu
Foi a primeira emboscada
Que a Companhia sofreu.

A minha saída primeira
foi dia 9 de Setembro.
A hora é que não me lembro,
mas foi numa segunda-feira
o meu amigo Teixeira
disse tudo está bem certo.
Mansabá está bem perto
da pior zona dos malvados,
pois passou uns maus bocados
António dos Santos Alberto.

O comer é bem ruim
e a água é pouca também.
Não desejo isto a ninguém,
acreditem que é assim!
Tudo isto para mim,
o coração me comoveu.
O pessoal uma vez não comeu
pela demora dos cozinheiros,
eu mais que os meus companheiros
conto o que me aconteceu.

O amigo quinhentos e três
do Jeep não desceu.
Não sei como não morreu
o Farinha desta vez.
Foi a 16 deste mês,
num dia de trovoada,
caminhando pela estrada,
a seguir à serração,
jogámo-nos todos para o chão:
foi a primeira emboscada.

Íamos nós capinar
de manhã até ao meio-dia
e aquela patifaria
só nos queria era matar.
Estavam-nos sempre a espiar
mas a gente não se rendeu.
Um caso triste se deu:
na quadra seguinte contarei
todas as coisas que sei
que a Companhia sofreu.”

********************

O trovador regista nestes primeiros tempos de comissão a aspereza da adaptação, as perdas humanas, o insólito da emboscada, a comida enfadonha. O que me remete para um livro bastante singular no panorama da literatura da guerra. António Loja, que teve atividade política na Região Autónoma da Madeira e foi professor do ensino secundário, comandou a CCAÇ 1622, em local duríssimo do Sul da Guiné. Muitos anos depois do regresso, gerou uma atmosfera, no dia-a-dia do ambiente hospitalar, onde estava em pós-operatório de uma cirurgia no Hospital de Coimbra, terá o sono ressuscitado, nas pessoas que ia encontrando nos corredores, os seus companheiros de combate, europeus e africanos, mas também homens, mulheres e crianças com quem conviveu naqueles eremitérios. Quando reeditou “As Ausências de Deus” na Âncora Editora, em 2013, convidou-me a apresenta-lo, o que fiz com imensa satisfação, relevei que alguns destes parágrafos irão fazer obrigatoriamente parte de qualquer antologia que se venha a escrever sobre a guerra da Guiné, é intensíssima a carga emocional da recuperação da sua memória: aqueles dois amigos que andaram juntos na escola, que foram recrutados no mesmo ano, destacados para a mesma unidade, quase dois gémeos típicos que caíram juntos e que depois foram enviados às suas famílias em dois caixões que viajaram no porão do mesmo navio e que depois foram enterrados no mesmo cemitério, nos arredores de Barcelos; o Roncolho, um herói improvisado que um dia gritou “Ai minha mãe!” lá numa emboscada e a quem o capitão teve de dar uma estalada e que estupidamente morreu na véspera da partida, atropelado para os lados do aeroporto; as queixas da dobrada liofilizada, dos coronéis incapazes, dos momentos de depressão que assaltam toda a gente…

Oiçamos António Loja e os seus dons narrativos:
“Quando estava na guerra os primeiros soldados que morreram foram europeus. Sentíamos evidentemente a dor de ver desaparecer jovens de vinte anos, mas participar a sua morte aos seus pais ou suas mulheres era tarefa que ficava a cargo das autoridades das suas terras de residência. Para além de um processo burocrático em que se descreviam as condições em que ocorrera a morte, de colocar o corpo num caixão e enviá-lo para Bissau a fim de ser transferido para a sua terra nada mais restava ao comandante de Companhia para além de dizer duas palavras aos outros soldados na formatura da manhã e extrair da ocorrência os ensinamentos úteis para evitar a sua repetição.

Com os soldados nativos a situação era diferente. As suas famílias viviam na aldeia, junto ao quartel, e sabia ter de enfrentar a situação se houvesse algum desastre com um deles. E foi precisamente o que aconteceu quando Mutaro Jau, filho do chefe da aldeia, um velhote trémulo e débil de nome Suleimane Jau, morreu no cruzamento de Guileje. Carregámo-lo em padiola durante todo o percurso de regresso.
Quando chegámos à vista da aldeia mandei Umarú Julde Jaló, o meu temperamental guarda-costas, avisar o chefe da aldeia que queria falar com ele. Encontrámo-nos à porta do quartel-aldeia e ele estava na expetativa de qualquer coisa fora do comum. Disse-lhe, sem rodeios:
- Suleimane, o teu filho morreu em Guileje.
O homem olhou-me de um modo que nunca me permitiria descobrir se tinha ficado em estado de choque ou se representava o papel que lhe fora destinado no teatro da vida:
- Vontade de Deus, nosso capitão, vontade de Deus.
‘A vontade de Alá é infinita! Só Alá é nosso Deus! Seja feita a vontade de Alá!’. São assim os muçulmanos.
Mas será esta fé tão infinita e inesgotável? Dois meses depois, um rapazinho que em Guileje pediu para vir no carro da tropa que escoltávamos de volta a Mejo foi derrubado por um tiro durante uma emboscada inimiga.
- Quem é ele? - Perguntei eu.
- É filho do chefe de Mejo, respondeu-me Umarú, então presente, assumindo de modo pleno a sua função de meu guarda-costas.
- Quando chegarmos à aldeia vai chamar o chefe para falar comigo.
- Sim, meu capitão.

Encontrámo-nos, mais uma vez, à porta da aldeia e ele mostrou-se de novo na expectativa de qualquer coisa inesperada. Disse-lhe, ainda sem rodeios:
- Suleimane, o teu filho morreu na emboscada.
Desta vez a fé pareceu fraquejar. Deus estava ausente… O homem ficou com os olhos espantados, em evidente estado de choque. Não houve palavras, nem de fé nem de desespero, mas duas lágrimas grossas correram-lhe pela face negra e rugosa. Abracei-o.”

“As Ausências de Deus” também levantam o delicado problema da arbitrariedade das fronteiras impostas à Guiné-Bissau. António Loja viu o irreparável e destaca a intensidade das tensões desses retalhos arbitrários:
“Sambele, régulo de Contabane, no Sul da Guiné, tinha das fronteiras uma visão mais coerente que o comum dos chefes políticos africanos. E agia em conformidade, provocando embaraços políticos nas instituições internacionais, mais interessadas em manter o status quo já tornado única possibilidade de gestão do difícil problema mas que continua a levantar atritos insanáveis entre a lei tradicional e a tradição. Feito tenente pelo Exército Português, Sambele vestia sempre a sua farda de caqui amarelo e ostentava sobre os ombros a insígnia do seu posto, tinha a vantagem de lhe permitir juntar a autoridade tradicional do régulo ao prestígio de partilhar com a potência colonial, aos olhos do seu povo, uma fração da força que aquela representava.
Para nós, a ‘sua’ zona terminava na fronteira que acordáramos com os franceses, talvez setenta ou oitenta anos atrás, enquanto, para ele, a ‘sua’ zona era a do regulado tradicional, que se estendia mais para Sul, muito para além da aldeia de Mampatá Bacirgo, limite que tínhamos a preocupação de não ultrapassar. Do outro lado da fronteira vinham ataques dirigidos aos nossos aquartelamentos e às aldeias nativas. Defendíamos aqueles, enquanto Sambele e os seus caçadores nativos, a quem entregáramos uniformes camuflados e centenas de espingardas Mauser do nosso exército, cuidavam da defesa das aldeias, a que acorríamos sempre que necessário, prosseguindo os atacantes até à linha da fronteira. Para ele, o ‘seu’ território estendia-se por todo o Sul do Forreá e alcançava uma larga fatia da Guiné Conacri, pelo menos até Boké. E agia em conformidade. Pouco antes da minha chegada à Guiné fizera uma incursão no território vizinho, um ataque a algumas aldeias do seu regulado, manifestamente na Guiné Conacri.
Falei a Sambele e tentei convencê-lo a abandonar as suas reivindicações àquele território, ele replicou:
- Meu capitão, não tenho culpa que português e francês tenham feito fronteira no lugar errado. Regulado do meu pai ia muito mais longe. E eu vou lá para mostrar a minha autoridade. Assim, meu povo que vive para lá da fronteira aprende a não vir para a nossa Guiné matar nossas mulher e atacar quartel das nossa tropa”.

António Loja é admirável neste transcurso memorial, a partir de um pós-operatório, em Coimbra. Tão impressivo, e tão conhecedor daquilo que nós vivemos e que o bardo Santos Andrade aqui dedilha que a ele voltaremos numa próxima oportunidade.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 7 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19869: Notas de leitura (1184): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (9) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19878: Notas de leitura (1185): “As Papaias da Guiné”, por António Coelho Ferreira; Chiado Books, Agosto de 2018 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19219: Os nossos regressos (35): Dia 5 de Novembro de 1968, chegada a Lisboa (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68, com data de 5 de Novembro de 2018:

Caro Luís e Carlos
Dia 5 de Novembro de 1968
Faz hoje 50 anos que a minha Companhia de Artilharia 1659 - CART 1659 regressou pelas 17 horas no Paquete Uíge - pasme-se, depois de ir encostar ao cais de Alcântara, Lisboa, recebeu ordens para parar e pouco depois afastou-se para o largo - e foi-nos informado que não desembarcaríamos. É difícil explicar como ficou o pessoal. Pensei logo lançar-me ao Tejo e ir a nado. Aquela noite não se esquece.

Cumprimentos à Tabanca Grande
Mário Vitorino Gaspar


Regresso da Guiné

Mário Vitorino Gaspar

Finalmente no dia 31 de outubro de 1968, embarcámos para Lisboa. Tal como sucedeu, no embarque numa lancha para Bissau, não me recordo de tal, o mesmo sucedeu na entrada no Uíge, nem mesmo de como uma mala de cânfora, fora parar ao porão, com alguma bagagem dentro. Fomos colocados no Forte da Amura. Como sucedera quando vim de férias, fomos colocados de serviço. Não ficámos isentos de Serviços. De qualquer modo houve tempo para tudo – principalmente compras – tinha pensado adquirir uma mala de cânfora, fiz a escolha. A comida em Bissau era diferente, eu e alguns camaradas optámos por fazer as refeições, sempre com a alternativa de uma ou outra fora da Messe.

Bissau era um jornal diário aberto da guerra no território. Inclusive, a pequena informação chegava às esplanadas. Tratando-se da Operação em que Portugal se empenhara – considerada de “Confidencial” – alguma em que nem a Nossa Tropa tinha conhecimento, discutia-se à frente de uma cerveja. O pessoal da Nossa Companhia que envergava camuflados novos, recém-chegados do Casão, e entregues uns dias antes da nossa saída do mato, exibindo no braço o dístico da Companhia de Artilharia 1659 (“ZORBA”). Em qualquer local alguém gritava:
– Salta que é periquito!

Habitualmente o pequeno-almoço era no famoso – lá no burgo – “Zé da Amura”, pombos verdes fritos, sempre acompanhados com cerveja. Bebida nunca esgotada nestas terras. Visitas ao Mercado para ver as novidades do dia. Iam aparecendo peças de pau-preto, principalmente máscaras; punhais e catanas forradas a pele de animais.

Tivemos oportunidade de conhecer melhor Bissau. Grande parte dos Nossos Jovens Heróis nem a cidade conheciam. As noites eram diferentes, nem um não ao convite para conhecer o “Bairro do Pilão”.

Os Militares preparados para tirarem a Carta de Condução lá estavam no dia marcado. Toda a Companhia festejava essa grande vitória, tratava-se de uma boa porta aberta para um emprego.

Por vezes parava no tempo e fazia um balanço desta experiência que nunca iria esquecer. Um primeiro período, após a chegada ao largo de Bissau, recordado sempre a mesquinhez de que ordenava, de fazer o favor de dar viagem de luxo a Oficiais e Sargentos e empurrarem para o porão os soldados, garrafões e garrafas de aguardente. Iria esquecer a dádiva de um quarto de pão, um ovo cozido, uma laranja, uma maçã golden… Um destino incerto. Recordo que no primeiro balanço que fiz após uma semana na Guiné, explica-se com a frase:
– Mais parece ter sido anestesiado!
Agora posso dizer:
– Deixei de estar anestesiado há uma semana, dia em que pensei: – pode ser que saia vivo!

Não sou capaz de me lembrar como entrei na LDM em Gadamael Porto, nem como em Bissau subi para o Paquete Uíge. Resumindo: – continuo na Guiné! Será para sempre.

A viagem de regresso a Portugal foi muito idêntica à da ida para a Guiné. O mar estava mais calmo. Eu só pensava na chegada a Lisboa. Era um milagre este regresso. Ia bebendo mais cervejas que o habitual. Escrevera para casa e pedira que levassem para o cais de Alcântara a bandeira do Alhandra Sporting Club. A maior que existisse, para que eu pudesse vê‑­la do paquete. Continuavam os jogos. Jogava‑­se a dinheiro. Tal como da ida para a guerra, não esquecendo o Bingo.

Os constantes enjoos continuavam. Perto da Ilha do Sal o mar agitou‑­se um pouco, mas existia quem não suportasse os balanços do Uíge. Bebia‑­se, e não só cerveja. E fumar? Cada vez fumava mais.

Fomos assistir a uma sessão de cinema:
– “Festival de Twist N.º 1” e “Negócio à Italiana” (este com Alberto Sordi e Gianna Maria Canale). Foi um momento bem passado, que fez esquecer alguns traumas mal geridos.

Lembrei a morte do Furriel Vítor Correia Pestana e dos Soldados António Lopes Costa e do Manuel Ferreira Silva.
Membros da população civil maior percentagem de mulheres e crianças que tombaram a 4 de julho de 1967? Feridos. Todos os feridos que tivemos. Nunca acreditei que fosse obra do PAIGC.
Ainda estou a ouvir o tiroteio nas emboscadas e ataques aos aquarte­lamentos de Gadamael Porto, Ganturé, Sangonhá (quando lá fomos montar segurança), Cameconde, nas mesmas circunstâncias, Guileje e Mejo. No “corredor da morte”? Aqueles locais sinistros cheiravam a guerra. Tudo parecia um cemitério.
Mas tudo muito difícil de explicar: as crateras das granadas que reben­tavam no chão, as árvores esburacadas pelas balas, estilhaços, ofereciam‑­nos simultaneamente um ar belo. A vegetação era exuberante, eram belos aqueles locais.

A sede, fome, falta de notícias da família, da namorada e dos amigos. A importância das madrinhas de guerra.

Curiosidade: transcrevo a Ementa do Almoço, a bordo do Paquete Uíge, no dia 2 de novembro de 1968 dos Sargentos:
Sopa: Juliana – Peixe – Iroses de Caldeirada; Ovos – Tortilha à Espanhola; Entrada – Favas à Transmontana; Fruta; Chá – Café.





Segundo se dizia, estávamos prestes a chegar a Lisboa. Falava‑­se que seria no dia 5 de novembro de 1968. Eu continuava a fumar cada vez mais.

O Paquete chegou. Segundo informação não íamos desembarcar por já ser tarde. Espreitávamos para a marginal de Cascais e víamos as luzes das viaturas que percorriam a marginal. Gritava‑­se:
– Olhem para os carros!

Fomos deitar‑­nos, a ver se o tempo passava mais depressa. Protes­tava‑­se:
– Ainda é dia! Por que não nos deixam desembarcar?

Deviam ter informado pela televisão e rádio que a tropa, oriunda da Guiné, não desembarcaria no dia 5. Embora estivéssemos bastante afastados do cais de Alcântara, poucas pessoas víamos.
Passámos a noite nesta angústia, até que eu me lembrei de ir tomar um duche, num intervalo de uma ida ao bar ou de fumar um cigarro. Os maços de tabaco que comprara para levar para casa, estavam quase no fim.
Quando vou para tomar banho, eis que verifico que a água estava gelada. Não havia água quente. Tinham‑­na desligado. Lá tive que tomar um banho de água fria, que teve o condão de aquecer a mente.
Depois do banho verifiquei que quase todos se encontravam cá em cima, do mesmo lado do Uíge. O barco estava inclinado, até parecia que se ia virar.

O Comandante da CART 1659 chamou‑­me:
– Mário, você fica responsável pela bagagem de porão. Fica em Lis­boa, a Companhia paga‑­lhe o alojamento e a alimentação e depois segue para casa, – disse.
– Nem pensar, já basta o que já fiz, quero é ir para casa. Capitão, escolha outro!
– Então fica responsável pelo guião da Companhia. Vai haver uma formatura e o Mário forma com a CART, com o guião, depois vai discursar um Oficial.
– Nunca fiz isso, mas está bem. Onde ficar o guião no princípio, con­tinua no mesmo sítio até que termine a parada! – Disse eu.

Fui descendo. Encontrei alguns soldados da minha Companhia que se encontravam mal dispostos. Estive um pouco com eles, e sem dar por isso estava a fumar mais um cigarro. Fui ao camarote onde dormia. Alguns Furriéis estavam deitados.
– Levantem‑­se, estamos quase a desembarcar!

Depois de subir, e espreitar para o cais, vi entre uma multidão a ban­deira do Alhandra Sporting Club. Ali estava a minha família.
No cais estava a Polícia Militar, e no barco os militares gritavam em uníssono:
– Malandros, vão para o mato!...

Bandeira do Alhandra Sporting Club

Até que chegou a hora de desembarque.
Fui ter com os meus, levando a bagagem comigo. Estavam a minha namorada, que viria a ser a minha mulher, o meu irmão José e a minha cunhada Fernanda.
A formatura não se chegou a efetuar e fomos automaticamente trans­portados para um quartel nas imediações de Oeiras, que estava desativado.
Arrumei a minha bagagem. Quando estava indeciso com o guião na mão, coloquei-o sobre a bagagem do Capitão. Fomos almoçar, e engraçado, o prato que naquele momento mais desejava: – carne assada no forno com batatas. Fomos no carro do meu irmão e depois do almoço regressámos ao quartel.

– Então é sempre a mesma porcaria. Colocou o guião por cima da minha bagagem e foi‑­se embora, Mário? – Disse o Capitão.
– Houve azar Capitão? – Respondi‑­lhe.
– Tivemos que entregar o guião, ao responsável do Regimento de Artilharia de Costa, deveria haver uma cerimónia, e nada disso sucedeu! – Retorquiu o Capitão.
– Então ficou entregue! – Disse, sorrindo.
Não se tratava de falta de respeito. Tinha muita consideração pelo nosso Capitão. A verdade é que o Capitão Mansilha estava mesmo zangado.

Depois de trocas de opiniões, e de terem começado a pagar os mon­tantes que o Exército Português nos devia, gritou para o Capitão o Alferes Miliciano Luís Alberto Alves de Gouveia:
– Paguem já ao Mário, não o façam esperar, ele tem a família à espera!
Recebi o dinheiro, despedi‑­me do pessoal, e fui para junto dos meus que se encontravam no exterior, junto ao carro. Fomos até Alhandra.

Chegados a Alhandra, desloquei‑­me a casa para tirar a farda e vestir­‑me com a roupa que a minha mãe tinha deixado em cima da cama e saí.
Em lugar de me dirigir para um jantar que o meu pai organizara, fui na direção do cais “14”, ver o meu Tejo.
Lá estavam as Fragatas, os barcos desportivos que treinavam e os avieiros nas suas bateiras. Fiquei ali, esquecendo completamente, os meus pais, meus familiares e amigos que esperavam por mim.
Foi quando entrei em mim e dirigi‑­me para a Padaria do meu pai, onde era, de facto, a festa em minha homenagem.

Tamanha alegria! Ria‑­se. Chorava‑­se. Meu pai fez rebentar uns dois morteiros, e uns tantos foguetes.
Todos queriam saber de mim. A família grande e os amigos também. Chegou o Cabo da GNR, e quando me viu cumprimentou‑­me militarmente. Olhei para ele e parece que ri ao lembrar aqueles tempos em que ele nos perseguia, e até escondia a roupa deixada em cima da areia. Convidei-o para comer e beber qualquer coisa.

Segundo consta no meu Processo Individual do Exército, depois de ter passado à Primeira Classe de Comportamento em 3 de maio de 1968, em 28 de novembro de 1968 terminei a minha obrigação de Serviço, depois de ter gozado 21 dias de licença. Passei às tropas licenciadas em dezembro de 1978 por ter completado 35 anos de idade.

Reiniciei a minha vida naquele dia. Teria de recuperar o tempo perdido. Esquecer, retirar as folhas dos calendários correspondentes a todos os dias? Pouco provável esquecer, conhecia-me bem e jamais vou esquecer uma guerra.
Os amigos? Como era possível esquecê-los?
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19218: Os nossos regressos (35): 21 de Novembro - o dia do regresso da Guiné… 48 anos depois