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segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24719: Notas de leitura (1621): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Fica aqui um histórico dado por um elemento da Marinha acerca do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8 entre 1971 e 1973, um caso de Marinha no mato, pois estavam instalados num aquartelamento em Ganturé, com missões de patrulhamento no rio Cacheu, seguiram para Gampará, aí em instalações muito precárias, atividade operacional intensa e alimentação mais deficiente, conheceram o castigo, percorreram o rio Corubal e caminharam até Buba, voltaram para Ganturé, a comissão terminou em abril de 1973, assistiram ainda a intensidade da vida operacional do PAIGC e à chegada dos mísseis. Foi esta intervenção e a de Carlos de Matos Gomes que respigámos num conjunto de tertúlias promovidas pela Associação dos Pupilos do Exército.

Um abraço do
Mário.



O modo dos portugueses fazerem a guerra no mato (2)

Mário Beja Santos

Tertúlias da Guerra Colonial é uma edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021, o presidente da associação convidou um conjunto de oficiais das Forças Armadas que ao longo de quatro sessões, sempre através da plataforma Zoom, analisaram as quatro dimensões tidas como mais interessantes para as tertúlias: antecedentes políticos e fundamentos; combater no mato; efeitos colaterais e sentimentos coloniais; do 25 de Abril à descolonização. Estas quatro sessões realizaram-se em outubro e novembro de 2020. É da temática “combater no mato” que vamos aqui resumir as comunicações de Carlos de Matos Gomes sobre a quadrícula do Exército e a Marinha na guerra no mato da Guiné por Alcindo Ferreira da Silva. No número anterior procedeu-se a recensão da comunicação de Carlos Matos Gomes, vejamos agora aspetos principais da intervenção de Alcindo Ferreira da Silva. Começa por nos dizer que no início dos anos 1970 a Marinha tinha na Guiné três Destacamentos de Fuzileiros Especiais de origem metropolitana e dois Destacamentos de Fuzileiros Especiais Africanos. Ele chegara a Bissau em princípios de junho de 1971. Seguiu para o mato, primeiro para Ganturé, situado na margem norte do rio Cacheu, junto de um antigo armazém da CUF, 9 casamatas-abrigos dispostos em círculo, e descreve o ambiente. No rio havia uma ponte cais onde atracavam com frequência a lancha de fiscalização grande que estava em missão na área e as lanchas de desembarque média que patrulhavam o rio. Da ponte cais partia uma picada que atravessava a base e se dirigia em linha quase reta até Bigene, onde estavam outras unidades militares. A missão principal do destacamento consistia em efetuar a interdição da passagem de pessoal e material do Senegal para o interior do território da Guiné através do corredor de Sambuiá, para além de efetuar operações na margem sul com o objetivo de desarticular o dispositivo do PAIGC.

Dois botes com três fuzileiros cada, armados com uma metralhadora e bazucas e outros elementos armados com armas ligeiras fiscalizavam o tarrafo à procura de indícios da presença do inimigo. Por vezes os botes eram emboscados na entrada ou passagem de uma clareira ou deparavam com uma canoa ou bote de borracha atravessar o rio. Uma ou duas vezes por semana, o destacamento realizava uma operação na margem norte do rio Cacheu para tentar intercetar alguma coluna de reabastecimento do PAIGC. Quando as operações se realizavam na margem sul tinham como objetivo assaltar acampamentos, eram recontros normalmente breves.

Ao fim de uns meses, o destacamento saiu de Ganturé e foi enviado para Gampará onde decorria, desde há cerca de dois meses uma operação de reocupação do território e ali se preparava a construção de reordenamento. Ali se encontraram com o Destacamento de Fuzileiros Especiais 21 de fuzileiros africanos e uma companhia do Exército. O acantonamento era constituído por um quadrado desenhado por covas de lobo, cobertas por ramagem, à sua volta construíram-se mesas e bancos, enfim uma vida muitíssima rudimentar. Nas redondezas do acantonamento encontravam-se alguns grupos dispersos de população que tinha sido desalojada das suas tabancas quando estas foram destruídas no início da ocupação. As restantes populações e os guerrilheiros do PAIGC tinham retirado alguns quilómetros para a margem sul do rio Pedra Agulha, junto de Ganquelé. Foi intensa a atividade operacional, nas atividades de proteção, patrulhando a região afim de contrariar a penetração dos guerrilheiros para norte do rio Pedra Agulha. Operações que exigiam um esforço físico violento, em percurso em corta-mato, em zonas em que se respiravam impregnado de pó da terra e do capim queimado. Dois meses e meio que levaram a um pleno cansaço, foram depois rendidos por uma companhia de paraquedistas. Depois de uns dias de descanso em Bissau partiram para operação conjunta Pato Azul, na região do Quínara, em que participaram forças especiais. Após Gampará foram enviados para Cacheu, com a missão de patrulhar o rio e afluentes e de realizar semanalmente uma ou duas operações nas proximidades da Caboiana, um santuário do PAIGC. Com alguma regularidade, também efetuavam operações conjuntas. Ao fim de três meses, foram novamente enviados para Gampará, aqui houve um incidente entre um fuzileiro e um elemento do Exército, Spínola determinou que o destacamento, por castigo, realizasse uma operação, subiram em botes o rio Corubal e percorreram cerca de 40 quilómetros uma região controlada pelo PAIGC, até Buba.

Meses depois, seguiram novamente para Ganturé, aqui terminou a comissão em finais de abril de 1973. Foi em Ganturé que se começou a percecionar a intensificação da atividade da guerrilha, viveram os últimos dias em Ganturé com o aparecimento de dois mísseis. Esta foi a vida no mato do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8. E concluiu assim a sua intervenção:
“O estar no mato significou, para todos os que por lá andaram, o possível e o próximo contato de fogo quando saiam para operações no mato ou no decorrer dos ataques ao aquartelamento nas suas horas de serviço ou descanso e, por isso, a necessidade permanente de manter a disciplina e a segurança, a coesão e o espírito de unidade, o treino e as armas sempre prontas, mas o que marcava este decorrer dos dias era, sobretudo, a rotina, a espera de que qualquer coisa acontecesse, a contagem do tempo que não passava, o isolamento, a solidão mesmo que rodeado de camaradas, ausência de informação, a saudade e para muitos a participação numa guerra imposta, ou injusta, ou sem sentido”.


Render fuzileiros na Guiné, imagem da RTP, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24712: Notas de leitura (1620): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24457: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXI: Na ocupação da península de Gampará, com a farda do PAIGC, a G3 e um maço de cigarros "Português Suave"... (pp. 207-211)


Guiné > Brá >  c. 1965/66 > Mulheres a trabalho na bolanha. (Foto do álbum de Virgínio Briote, 2005) (Foto reproduzida na pág. 208, do livro do Amadu Dajló)


Guiné > Brá > c. 1973 > Batalhão de Comando dos da Guiné > Tenente graduado 'cmd' Zacarias Saiegh, à direita do Major 'cmd' Raul Folques Foto reproduzida na pág. 210, do livro)



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28).


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Guiné > Região de Quínara > Carta de Fulacunda (1955) (Escala: 1/50 mil) : Posição relativa de Gampará, rios Geba e Corubal, tabancas de Braia e Cubajal, bem como Uaná Porto.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano:

Parte XXXI:  Na ocupação da península de Gampará, com a farda do PAIGC, a G3 e um maço de cigarros "Portuguès Suave"... 
(pp. 207-211)

Na segunda quinzena de novembro[1] fomos para Quinara, na altura em que estava a decorrer a ocupação da península de Gampará. Armados com o nosso material, G-3 e respectivos equipamentos e fardados com roupa idêntica à do PAIGC, tomámos um barco em Bissau e navegámos na direcção de Quinara. 

Quando chegámos a um local adequado, o barco encostou à margem e começámos a desembarcar, amarrados aos ramos das árvores. Depois de reagrupados começámos a progressão rumo ao objectivo.

O sol estava a pôr-se e passámos a noite ali perto. De manhã, logo que o dia começou a clarear, retomámos a progressão até atingirmos uma bolanha, onde vimos mulheres[2] a fazerem as últimas colheitas.

Dirigimo-nos a elas, que ficaram muito surpreendidas com a nossa chegada. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC e que tínhamos recebido G-3, para confundir os tugas. E que nos estávamos a deslocar para as proximidades de Tite, para atacarmos o aquartelamento nessa noite ou na próxima. Pareceu-me que ficaram convencidas, não sei se todas, e por volta das 16h00 despedimo-nos delas.

Quando estávamos a abandonar o local recebemos uma mensagem para arranjarmos um local para pernoitarmos, mas numa zona onde pudéssemos ser retirados por helicópteros.

Escolhemos uma grande bolanha de lavra de arroz onde os helis podiam aterrar à vontade. Nessa madrugada adormeci por uns momentos e estava a sonhar que um avião, um Dakota, cheio de passageiros, se estava a dirigir na nossa direcção, a baixar, a baixar, até que acabou por cair com um grande estrondo. Gritei bem alto e acordei sobressaltado, com os companheiros a perguntarem o que estava a acontecer.

De manhã voltámos a encontrar as mulheres, que ficaram surpreendidas quando nos viram. Uma começou a falar muito à vontade connosco e, a certa altura perguntou-nos:

– Vocês não disseram ontem que iam atacar Tite?

O tenente Saiegh respondeu que tínhamos recebido ordem para esperarmos aqui nesta zona, que os aviões nos vinham buscar.

A mulher perguntou se os aviões podiam aterrar neste local. Que sim, que podiam, respondeu. No meio desta conversa, ouvimos o ruído de uma avioneta que pediu a nossa localização.

Localizados facilmente, pouco tempo depois chegaram os helis que pousaram na bolanha e não demorou muito estávamos todos no ar. Entregaram-nos novas cartas topográficas, a missão tinha sido alterada.

Fomos largados junto a uma tabanca, na roda do rio Geba. Andámos um pouco, cortámos à direita e entrámos num carreiro com muitas marcas de pegadas. Ia direito a Cubajal. No trajecto encontrámos um velhote que nos disse que ia para a tabanca, onde tínhamos acabado de ser largados, e que vinha de Cubajal.

Perguntámos-lhe se nos podia acompanhar. Respondeu que tinha medo de estar na tabanca, que um avião andava lá em cima desde manhã. Saiegh garantiu-lhe que não ia acontecer nada e ele foi connosco. Enquanto caminhávamos ia conversando com o velhote e a certa altura disse que era o chefe da tabanca de Cubajara, informação que transmiti ao Saiegh.

Quando chegámos reunimos a população da tabanca. Era muita gente. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC, que já tínhamos G-3 para confundirmos os tugas. E que tínhamos a informação que Gampará tinha sido ocupada pela tropa. Responderam que sim, que tinha sido ocupada. Estava ali o chefe da tabanca de Gampará que se levantou para se apresentar.

Continuámos a reunião dizendo-lhes que tínhamos vindo com uma missão, falar sobre mantimentos.

 Vocês sabem perfeitamente que nada nos falta na República da Guiné-Conakry. Mas não podíamos trazer connosco tudo o que precisávamos, por isso, têm que ter paciência, tem que nos reabastecer durante o cumprimento da nossa missão.

Foi assim que nos dirigimos à população da tabanca de Cubajal.

Foram rápidos a responder. Que podíamos contar com eles, que tinham arroz em quantidade suficiente para sustentar todos os combatentes pela Liberdade da Pátria que passassem em Cubajal.

O tenente Saiegh voltou a tomar a palavra para dizer que brevemente o quartel de Gampará iria cair nas nossas mãos, do PAICG, claro. Quando acabou de falar começaram a ouvir-se palmas e de um momento para o outro toda a gente aplaudia. Foi uma salva de palmas da população para o comandante da 1ª companhia de Comandos. O almoço ficou pronto e convidaram-nos a comer à vontade.

Perguntei a um rapaz que estava próximo se todos os chefes das famílias estavam ali connosco. Não, havia, ali em frente, uma família, respondeu-me.

Peguei na minha arma, chamei um soldado para me acompanhar e fui ao encontro de um homem que estava a comer com os filhos ao lado. Depois dos cumprimentos e do convite para almoçarmos com eles, perguntou-me de onde tínhamos vindo.

– De Conakry  respondi.

– De Conakry, com G-3?

   É por isso mesmo – comecei a responder    que estamos a convocar reuniões para toda a população saber que nós também temos G-3 para confundir os tugas.

Ele levantou-se e disse aos filhos para continuarem a comer.

 
– Também podes continuar a comer à vontade    disse eu. 

Que não estava bem, via-se na cara e na expressão,  que estava desconfiado.

Eu estava a fumar um cigarro, um Português Suave, e ele pediu-me um. Meti-lhe um cigarro na boca para o acender mas ele disse que primeiro gostava de lavar a boca. Pegou no cigarro, virou-o até à marca e depois meteu-o na boca, abanando a cabeça. Peguei-lhe num braço, levei-o até ao local da reunião, mandei-o sentar-se ao pé de mim e disse-lhe que não fizesse qualquer sinal às outras pessoas da tabanca.

Um dizia que desde o começo da guerra nunca a tropa lá tinha posto os pés, que tinha havido um ataque da aviação que tinha causado apenas um ferido ligeiro. Outro dizia que Cubajal era um local sagrado. Estava toda a gente a falar quando vimos uma avioneta aproximar-se. Quando estava quase em cima de nós, com todos a olhar para o ar, alguns disseram que era melhor afastarmo-nos e escondermo-nos.

Então dissemos quem éramos. Que os aviões não lhes iam fazer mal. Uma pessoa perguntou se aquele, o Saiegh, que estava ali com um aparelho estava a falar com o avião.

   Está – respondeu alguém. – Nós somos dos Comandos da Guiné, que alguns de vocês chamam criminosos. Estivemos convosco de manhã até agora, não matámos nem batemos em ninguém. Se formos atacados respondemos, isso é verdade. Quando há guerra é assim e tem que ser encarada com seriedade, não é brincadeira.

Toda a gente da tabanca estava surpreendida, menos um, o que eu tinha ido buscar. Ele sabia perfeitamente que não éramos do PAIGC.
Não falou nem uma vez, manteve-se sempre calado. Quando uma pessoa se levantou para falar, reparei que o homem fixava o olhar no orador, como se quisesse fazer um sinal, mas eu também nunca tirei os olhos dele. O erro do Português Suave não me saía da cabeça.



Português Suave" é uma marca de cigarros portuguesa, produzida e comercializada pela Tabaqueira a partir de 1929,, tendo passado a pertencente ao grupo Philip Morris International, desde 1997.  A imagem que se reproduz deve ser de 1975 ou data posterior, quando a Tabaqueria era E.P. (Cortesia da página, de Iana Peiu (Paris) >  "Peiuana", 23 de dezembro de 2013)

A reunião terminou com a avioneta em cima de nós. Foi-nos dada ordem de abandonarmos o local e levar connosco os chefes das tabancas de Cubajal e Gampará para a tabanca de Braia, que ficava junto ao rio, a cerca de uma hora de marcha. Ficámos com eles em nosso poder até de manhã. Depois demos a cada um cerca de 50 folhas de tabaco e um quilo de noz de cola e mandámo-los embora, de regresso a Cubajal.

Cerca de uma hora mais tarde recebemos ordem para nos dirigirmos para o porto de Uanazinho. Uma marcha de um dia inteiro, sem nada para comer. Tínhamos começado a andar às 08h00 da manhã e chegámos por volta das 18h30. Depois de ter comunicado a nossa chegada, o tenente Saiegh recebeu ordem para seguirmos para Gampará.

Dormimos um pouco, iniciámos a caminhada às 06h00 até que, por volta das 10h00, encontrámos uma tabanca com muitas cabras amarradas. Saiegh deu instruções para reunir a população da tabanca e para um grupo ficar de vigilância. Deu também ordem para se matarem três cabras, para as assarmos, porque já não víamos comida há muitas horas.

Na caminhada de regresso vimos manchas de sangue no caminho. Era sangue de páras que por ali tinham passado, viemos a saber depois. Nessa mesma operação tinham acabado de passar por ali, mesmo antes de nós. Já traziam um ferido e um deles pisou uma mina, que atingiu mais dois companheiros. (**)

Em Gampará soube que em vez de três tinham sido mortas quatro cabras, embora só nos tivessem apresentado três. A outra, pelo que vim a saber, era para levarem para Bissau. Mandei chamar o soldado e dei-lhe ordem para me trazer a cabra. Nem disse uma palavra, foi buscá-la e trouxe-a inteira.

Perguntei aos soldados o que é que pretendiam que se fizesse à cabra. Cozinhá-la, responderam. Que um tinha arroz e outro óleo de palma, acrescentou outro.

Dirigi-me em seguida para o aquartelamento e fui procurar o Saiegh para saber o que íamos fazer a seguir. Regressar a casa, missão terminada. Amanhã vem um barco que nos vai levar de regresso.

Avisei os meus soldados e aproveitei para lhes dizer que podemos roubar para matar a fome, não para levar para casa. Roubar e levar para casa é um crime e um mau vício.

Antes de embarcarmos, chegou um heli com o General Spínola. À frente da nossa companhia e da dos páras fez um pequeno discurso.
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Notas do autor e/ou editor literário:

[1] Nota do editor: as CCmds participaram nas operações da instalação do COP7 na península de Gampará, designadamente a “Satélite Dourado”, entre 11/15Nov71, e a “Pérola Amarela”, entre 24 e 28 Novembro 1971. 

A criação do Comando Operacional nº 7, em 24/11/1971, tinha como finalidade concretização a execução de um reordenamento da população de Ganjauará / península de Gampará, e limitar a atividade IN na região de Quínara. (Nota do editor LG)

[2] Biafadas.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24414: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano; Parte XXX: A guerra pela população (pp. 204-206)

(**) O Amadu Djaló não terá feito confusão com outra data ?

Vd. poste de 21 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os pára-quedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gampará, em 4 de Março de 1972 (Victor Tavares, CCP 121)

(...) Desta tragédia para a família pára-quedista, que jamais esquecerá este dia , resultaram:

(i) seis mortes, Alf Mil Paraquedista Abreu, Furriel Pára-quedista Cardiga Pinto, PCB/Pára-quedista 47/68 Santos , PCB/Pára-quedista 129/69 Almeida , Sol/Pára-quedista 318/69 Jesus , PCB/Pára-quedista 412/69 Sousa;

(ii) 2 feridos graves e nove com menos gravidade , Furriel Pára-quedista Casalta (Comandante da 1ª secção do 2º Pelotão) , Sol Pára-quedista Inês (evacuado para a metrópole ), Ferreira , Tavares, Ventura, e 1º Cabo Pára-quedista Figueiredo, todos do 2º Pelotão, e o Sold Pára-quedista Salgado - Estilhaço de alcunha - do 1º Pelotão, faltando três por identificar pois, passado todos estes anos, já não me recordo, e ficará para sempre uma saudade enorme D’AQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE. (...) 

quarta-feira, 9 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7916: Efemérides (61): 4 de Março de 1972, uma data trágica para a família pára-quedista: 6 mortos e 12 feridos, em Gampará, na margem esquerda do Rio Corubal (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)


1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Victor Tavares [, foto à esquerda,] com data de 4 do corrente;


Camarada e amigo Luís Graça:

Faço votos sinceros para que te encontres bem de saúde assim como os teus familiares . . . Há já algum tempo que não dou notícias, tive alguns problemas no computador, os ficheiros que tinha foram ao ar, nesses incluindo alguns trabalhos para te enviar, com relatos de algumas operações...

Vou tentar recuperá-los, não sei aonde, numa disquete que penso mandei tirar, só não sei onde ela para . . .

Luís, o motivo que me leva a contactar-te,  é o seguinte: que faz hoje,  às 23.50 horas  da Guiné-Bissau , 39 anos que os Pára-quedistas Portugueses e a CCP121 sofreram,talvez, o maior golpe desde a sua existência. GAMPARÁ não nos sai da memória,  6 mortos e 12 feridos, onde eu me incluí, poucos minutos faltavam para terminar o dia 04/03/1972  e começar os primeiros minutos do dia 05/03/1972.

Foi uma noite terrivelmente azarenta, para nós, um  bigrupo da CCP121 que se deslocava apeado para a margem do rio Corubal junto à pedra de água onde nos juntaríamos a outra forças, a  CCP 123, esta transportada em LDG para executaar na zona de TITE uma operação designada como Pato Azul.

Este relato já foi publicado no blogue, foi um dos relatos que te enviei (*).

Não sei se terá para o blogue interesse em fazer alguma referência para recordar esta data marcante.  Fica ao teu critério. (**)

Amigo,  despeço-me enviando um forte abraço para ti, extensivo a todos os camaradas blogue que tão bem diriges.

Victor Tavares

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Victor, pela tua lembrança e diligência. Infelizmente não consegui publicar a tua mensagem mais cedo, no próprio dia, por ter estar estado ausente de Lisboa nestes últimos dias. Mas fica aqui a tua e a nossa intenção de saudar a memória dos bravos da CCP 121/BCP 12, mortos nessa fatídica noite de 4 de Março de 1972. Obrigado, também, por mandares notícias tuas. Espero que resolvas rapidamente os teus problemas informáticos. Fico a aguardar a tua sempre muito apreciada colaboração. Saúde. Luís
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Notas de L.G.:


 (...) Desta tragédia para a família pára-quedista, que jamais esquecerá este dia, resultaram seis mortes, Alf Mil Pára-quedista Abreu , Furriel Pára-quedista Cardiga Pinto, PCB/Pára-quedista 47/68 Santos , PCB/Pára-quedista 129/69 Almeida , Sol/Pára-quedista 318/69 Jesus , PCB/Pára-quedista 412/69 Sousa, 2 feridos graves e nove com menos gravidade , Furriel Pára-quedista Casalta (Comandante da 1ª secção do 2º Pelotão) , Sol Pára-quedista Inês (evacuado para a metrópole ), Ferreira , Tavares, Ventura, e 1º Cabo Pára-quedista Figueiredo, todos do 2º Pelotão, e o Sold Pára-quedista Salgado - Estilhaço,  de alcunha - do 1º Pelotão, faltando três por identificar pois, passado todos estes anos, já não me recordo, e ficará para sempre uma saudade enorme D’AQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE" (...).

(**) Último poste da série > 15 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7616: Efemérides (59): 17º Aniversário do Monumento Nacional aos Combatentes da Guerra do Ultramar