sábado, 8 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22183: 17º aniversário do nosso blogue (7): a lavadeira de sobretudo (Jorge Cabral)


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I.
Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. 
O livro está à venda na Livraria Leituria (Rua José Estêvão, 45 A, 
Pascoal de Melo / Jardim Constantino, Lisboa). Preço de capa: 10 €. 
Mas também podem encomendar ao autor pelo email: 
almacabral@gmail.com


O impagável e inimitável "alfero Cabral"...


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1  (Bambadinca( > Fá Mandinga > Pel CCaç Nat 63 > 1970 > O "alfero Cabral", bendito entre as bajudas mandingas...

Fotos (e legenda): © Jorge Cabral (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Camaradas: Vocês estão a imaginar alguém vestido de sobretudo, na Guiné, há meio século atrás ? Eu nunca vi ninguém. Estupidamente, comprei um blusão de couro, no Casão Militar, a pensar nas noites frias de dezembro, nos mosquitos, nas sezões,  nos dilúvios tropicais e nos mil e uma intempéries, contratempos e  partidas que aquela terra podia pregar a um "tuga"... 

Qual quê ?!... Nunca usei o pesado blusão que me custou os olhos da cara... nem as botifarras que mandei fazer de cano alto, até ao joelho, para atravessar as bolanhas e proteger-me das sanguessugas, das cobras e dos crocodilos!...

Mas admito que tenha havido gente que levou smoking, sobretudo, gabardine, fato completo, camisas de seda, coleções de gravatas... Na realidade, tratava-se de uma (co)missão, em terras da Guiné, ao serviço da Pátria!... E terá havido, por certo, quem tenha levado enxoval completo...

Vem isto a propósito do já estafado tema das nossas queridas lavadeiras... e sobretudo desta outra deliciosa e terna estória do impagável e inimitável  "alfero Cabral". 

Confesso que nunca o vi à civil (, eu fui seu contemporâneo e vizinho), pelo que não deveria gastar muita roupa, para além da farda... (Alinhámos em várias operações, ele, com o seu valoroso Pel Caç Nat 63 e eu com os meus briosos e leais fulas da CCAÇ 12). E, nos destacamentos onde esteve  (e de que era o comandante, a saber, Fá Mandinga e Missirá, a norte de Bambadinca, ma margem direita do Rio Geba Estreito), era habitual andar de "tanga" (ou melhor, só com uma toalha à volta da cintura), e o corpo coberto de amuletos, ... 

E, no entanto, ele tinha lavadeira a quem pagava para lavar, de vez em quando..., o "sobretudo"!... Imaginem, o "sobretudo"?!...

E por estas e por outras que o "Caco Baldé" um dia lhe terá passado um atestado de... "apanhado do clima"... Com um atestado destes, o "alfero Cabral" ficou acima ou à margem do RDM - Regulamento de Disciplina Militar... E  o mais incrível é que, no fim da (co)missão, foi louvado. 

E agora, só ao fim destes anos todos, é que eu percebo porquê (, confesso que sou de compreensão lenta, nestas matérias): o "alfero Cabral" pôs a paixão da Pátria acima da paixão da sua querida mas pérfida lavadeira, a Modji Daaba, que fugiu  para o Xime, depois de falhado o plano que arquitetara para se desembaraçar do seu velho marido, sob a acusação de ser "turra", e poder lançar-se nos braços do seu "grande amor", o "alfero Cabral", de "olho grosso"... 

Digam lá, caros leitores,  se, em Hollywood, isto não daria um grande filme, um grande "thriller" ?!... E, mais, é uma história que acaba por resgatar a honra daqueles pobres "tugas" que,  não se tendo na altura comportado como honrados portugueses e impolutos militares, hoje seriam acusados, julgados e condenados por assédio sexual, se os usos e costumes e as leis tivessem efeito retroativo... Sim, porque "na guerra, não pode haver amor, só abuso"!...

Mais: esta  é uma história (*) que merece ser revisitada, no 17º aniversário do nosso blogue (**), e dada a conhecer aos mais novos, que nunca ouviram falar de guerra colonial / guerra do ultramar, nem do abuso do amor em tempo de guerra... nem fazem a mínima ideia onde fica a Guiné-Bissau.  (E será que têm de saber de ética, de história e de geografia e de outras tretas ?!...)(LG)

PS - Para quem só agora chegou à Tabanca Grande, convirá dizer que o Jorge Cabral foi alferes miliciano de artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; está reformado, tendo sido advogado e professor universitário, especialista em criminologia... É membro da Tabanca Grande da primeira hora, e tem cerca de 225 referências no nosso blogue. 

Amti-herói da guerra da Guiné, é uma espécie em vias de extinção. Como, de resto, todos os outros antigos combatentes de uma guerra que já foi há muito riscada da História. Alfacinha de gema, nado e criado em Lisboa, vive agora desterrado (e amargurado)... na "cidadela" de  Cascais!... Imaginem o pobre "alfero Cabral",  menino da Linha, e sem o seu "sobretudo"!...


A Lavadeira. O Sobretudo. E uma Carta de Amor…

por Jorge Cabral


No dia seguinte a ter ocupado Fá Mandinga, apresentaram-se no quartel as lavadeiras, cinco ou seis bajudas, todas alegres e simpáticas.

Uma, Modji Daaba, chamou-me logo a atenção pelo seu porte e beleza. Bonita de cara e perfeita de corpo, possuía um ar nobre e altivo que me cativou. Imediatamente a contratei como minha lavadeira exclusiva, tendo acordado uma remuneração superior na esperança de algumas tarefas suplementares… (Periquito, ainda não sabia, que com as bajudas mandingas era praticamente impossível ir além de algumas carícias peitorais…).

Porque o meu fardamento habitual consistia numa toalha atada à cintura, o trabalho de Modji escasseava, mas ainda assim, não a dispensei de comparecer duas vezes por semana a fim de receber o salário, trazer e levar a roupa.

Iniciámos então um jogo de “faz de conta”, pagando-lhe eu um serviço imaginário. Até elaborava um rol, onde inscrevia peças de vestuário que ela desconhecia:
- Um sobretudo, três camisolas de gola alta, dois pares de ceroulas….

Quando ela chegava muito se divertia ao simular entregar-me as peças inventadas, e comentando:
- É cusa bonito sobretudo.

Entretanto tentava ultrapassar as brincadeiras e consumar o desejo, que era aliás mútuo. Nada feito! Ia casar. Depois sim, prometia. Havíamos de fazer sobretudo, senha por nós adoptada para designar o acto.

Finalmente casou. Com um velho mal encarado, já com duas mulheres e não sei quantos filhos. Então cumprimos o destino! Sobretudo, sobretudo, sobretudo… quase todos os dias.

Infelizmente pouco tempo depois fui transferido para Missirá, e foi aí que recebi uma carta de Modji Daaba. De memória reproduzo o documento.:

"Kerido Namorado Alfero Odjú Groso. Nmiste bai pa Missirá pa ba ter cu bó nha grande amor. Pá bu bim prendi nha marido, pa bu fala nha marido i turra. Tisim sition, calcinha e mandidja de prata. Nha marido ta sutam. Se bu ca bim na fusi pa Xime e nunca mas a mi bu lavadeira de sobretudo."

Não fui buscar Modji Daaba. Não prendi o marido. Sei que fugiu para o Xime, e nunca mais foi a minha lavadeira de sobretudo

© Jorge Cabral (2006)

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Notas do editor:

(*) 20 de julho de  2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor

(**) Último poste da série > 7 de maio de  2021 > Guiné 61/74 - P22178: 17º aniversário do nosso blogue (6): homenagem às "nossas lavadeiras" (Valdemar Queiroz / Cândido Cunha)

Guiné 61/74 - P22182: Os nossos seres, saberes e lazeres (450A): Quando vi nascer a Avenida de Roma (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma jornada de saudade, embora com a convicção de que muito mais se podia mostrar. Dou um exemplo. Aqueles tempos de passeata, depois da tarde na escola, deambulávamos pela Avenida João XXI em direção ao Campo Pequeno, nessa altura esse troço da avenida aguardava o asfalto. Íamos bisbilhotar a Fábrica de Cerâmica Lusitânia que desapareceu para dar origem ao mastodonte da Caixa Geral de Depósitos, resta um sinal da sua existência, uma chaminé na Avenida João XXI. A própria Biblioteca das Galveias fora recuperada como escombro, e por isso se mostra a imagem, teve recente qualificação e o seu acervo é opulento. Também ficou por mostrar a fração neutra da Avenida de Roma até junto à estátua do Santo António, aquele imenso espaço central fora previsto como pavilhão polivalente mas o mundo dá muitas voltas, tem agora um emolduramento de prédios modernos. E escusado é dizer que quando acabámos a instrução primária seguimos rumos diferentes. E nunca esqueço que o meu amigo Nelo ofereceu-se para voluntário paraquedista, encontrámo-nos na Avenida dos Estados Unidos, ambos com 20 anos, ele dava sinais de um envelhecimento precoce, falou-me da guerra da Guiné e nesse encontro que decorreu na Pastelaria Nova Iorque, que há muito não existe, ele preveniu-me com o ar mais sério do mundo que eu devia estudar muito para evitar viver os horrores que ele tinha experimentado. Pareceu-me exagero a mais, até que escassos anos depois eu pisei aquele solo por onde o Nelo se martirizou, mas já era muito tarde para lhe dar razão.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (7)

Mário Beja Santos

A romagem de saudade está a chegar ao fim. Disse-se e repetiu-se que esta avenida foi um rico laboratório arquitetónico, aqui surgiram novos locais de lazer, os snack-bar, as discotecas e livrarias que nos evitavam ir à Baixa. Parte desse comércio inicial desapareceu, sobretudo as lojas de mobiliário e de eletrodomésticos. Guardo a recordação das estruturas de cimento a elevarem-se aos céus, de sentir os odores da caliça e ouvir o fragor de toda aquela movimentação de operários, ladrilhadores, estucadores, pintores. Ficaram e permanecem marcas de um comércio com nota bairrista, as engomadorias, ourivesarias, os novos negócios dos chineses. Era inevitável lançar o meu olhar sobre o Campo Grande, a Rua de Entrecampos, contive-me na descrição das zonas periféricas da Avenida de Roma, um espaço único, tal como o grande escritor Mário de Carvalho registou num seu livro de 2010, "A Arte de Morrer Longe":
“Eis a bela Avenida de Roma, nem grande nem pequena, nem larga nem estreita, epítome da mesura e da moderação, nos volumes, nas linhas, na dimensão, na cor.
Eis os vastos passeios reticulados de pedrinhas de lioz, a dar brilho às fachadas, com os golpes de sol, ou a refleti-las, em florescências multicolores, quando escorridas de chuva.
Eis a elegância das cores esbatidas, sossegados verdes e rosas-pastel, os prédios discretamente comedidos, num alimento de harmonias burguesas, distintas, reservadas, boas marcas, bons colégios, talvez mais reputados que bons, negócios turvos, recato de vida, golas altas, casacos de tweed, bombazinas caras, livros em francês.
Ressalta a impressão de clareza, a nitidez dos contornos, a contenção das formas, um meado de século que perdura na decadência entristecida dos velhos snacks, com as presas de cobre gasto, engastes de vidros glaucos, madeirames escurecidos, as lojas dos anos 50, ainda com gavetões de fórmica, convivem com a sofisticação, já a roçar o duvidoso, das vitrinas caras, negros brilhantes, fúcsias e lilases, a desviar para o modernaço… Esta avenida não há pátina que a estrague porque não quis ser pesadona de ornamentos e volutas, com ostentação cortesã da idosa fanada que já não tem nada para dar, senão enfeites. Toda ela é de uma meia-idade simples, de bom gosto, gama média, cores discretas, sem o cinza-chumbo das cidades no Norte, repassadas de bolores, sem a alacridade faceira do Sul, a sobrar de sol, sem a velhice tristonha das metrópoles ricas, sem a decadência abandonada das pobres”
.

Confesso que me despeço a custo para a Avenida que vi nascer, que foi para mim uma placa giratória para cirandar no Campo Pequeno, no bairro do Arco do Cego, nas artérias próximas da Avenida Almirante Reis. Quando cheguei à adolescência, quando juntava escassos cobres, ia à procura na livraria Barata dos sinais da modernidade, e mais tarde passei a ter o privilégio de acesso a comprar livros proibidos pela censura. Não é por acaso que dela me despeço com mágoa, descendo depois até ao Campo Grande, mas também recordando a Biblioteca Galveias, que continuo a frequentar e o último adeus à minha infância também fica registado com uma fotografia tirada ao lado da mana, eterna companheira, que vive agora os seus tempos de definhamento, com o meu pesar.
Interior da então pequena livraria Barata
José Rodrigues, genro de António Barata, faz parte da nova alma da icónica livraria
A Avenida de Roma, vê-se o letreiro da Papelaria Emílio Braga, um pouco mais abaixo é o cruzamento da Avenida João XXI. Era um estabelecimento muito frequentado pela malta estudantil, o Liceu Filipa de Lencastre era ali bem perto, e havia os colégios, um sortido de cadernos e lápis provocavam um forte atrativo para frequentar tal loja. Encerrou e transferiu-se para a Rua Oliveira Martins, também já desapareceu.
O Palácio das Galveias, então num completo estado de degradação. É a biblioteca da minha vida, e recordo o dia em que o então diretor, Dr. Rodrigues Cavalheiro, fez uma visita-guiada, mostrando recortes do estado deplorável em que se encontrava este belo edifício que pertencera aos Távoras. Chegou a ser covil de ladrões, foi recentemente beneficiado, é uma das mais belas casas de livros que há em Portugal.
Asilo D. Pedro V, hoje Fundação da Cidade de Lisboa. Lembro-me perfeitamente de passar à porta e ver uns velhinhos a apanhar sol, o edifício muito maltratado, fez-se uma bela recuperação.
Entrada do restaurante-café do Lago do Campo Grande, mantém-se tal qual
Sala principal da Biblioteca Nacional
Café Londres, na praça do mesmo nome
A icónica Discoteca Roma ficava mesmo ao lado daquele arco que se vê do lado esquerdo, na confluência com a Rua Edison. A discoteca rivalizava com a concorrência, nunca perdendo, exibia a tempo e horas o melhor da música clássica, do rock, da música de contestação e até da música portuguesa. Aguentou-se a custo até ao DVD e ao CD, as cópias, os walkman, o Spotify, teriam sempre liquidado este nicho da indústria em que cada um dos melómanos pretendia ter o que se chamava a cópia fiel – um mundo que perdeu o seu significado.
Recém-chegado ao Bairro Social de Alvalade, alguém sugeriu que tirasse uma fotografia com a mana, então interna no Colégio da Bafureira (Parede), mantivemos ao longo da vida uma lídima relação fraternal, que conservamos, a despeito da doença a obrigar a viver num lar, com a pandemia recorremos ao telefone ou às visitas com as severas normas de segurança. Estamos empoleirados no muro da Escola Primária N.º 151, de frente à nossa casa.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22161: Os nossos seres, saberes e lazeres (450): Quando vi nascer a Avenida de Roma (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22181: Os nossos capelães (16): Arsénio Puim, vítima da ira de César por mor de Deus e da sua consciência de cristão e português (Luís Graça, "O Baluarte de Santa Maria", maio de 2021)

1. O Miguel Puim, filho do nosso camarada Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS&, CCS/BART 2917 (Bambadina, 1970/72) , mandou-nos, em 15 de março passado, a seguinte mensagem:


Caro Luís

Espero que se encontrem bem e de saúde.

Volto ao contacto dado que “O Baluarte”, jornal da Ilha de Santa Maria, de onde o meu pai é natural, irá efetuar uma edição onde reunirá vários artigos em sua homenagem.

Como se recordará, enviou-me no ano passado o seu simpático testemunho sobre o meu pai (*). Gostaria de incluir nesta edição d’ “O Baluarte” o seu artigo de forma a cobrir a vertente de capelão militar e opositor ao Estado Novo e à guerra colonial.

Entendo que o seu excelente testemunho do ano passado não requereria grande atualização, não fosse o limite dos artigos a publicar, que no caso é de 5.000 caracteres com espaços (atualmente o texto tem mais de 24.000 caracteres). Antecipando que posso contar com a sua participação, vinha assim pedir que me enviasse o seu artigo atualizado, cumprindo com esta dimensão.

Uma nota para referir que, dado que a publicação já não se encontra associada ao aniversário, estas referências seriam de excluir.

Pode confirmar se posso contar com o seu artigo e se me poderá enviar este artigo até 6 de abril?

Terei todo o gosto em fazer chegar o conjunto dos artigos que serão publicados para que possa juntar ao blogue, se assim entender.

Um abraço

Miguel Puim


2. Depoimento de Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, a publicar, neste mês de maio, no jornal "O Baluarte de Santa Maria", mensário (II série) que se publica na  ilha de Santa Maria, da Região Autónoma dos Açores, desde 1977, e de que o Arsénio Puim foi um dos cofundadores.
 

O Arsénio Puim foi alf mil capelão, CCS / BART 2917, Bambadinca (maio 70/ maio 72), sendo natural da ilha de Santa Maria, RA Açores: com 85 anos, vive hoje na ilha de São Miguel, e é enfermeiro reformado. 


Arsénio Puim, vítima da ira de César por mor de Deus e da sua consciência de cristã e português (**)

Luís Graça

 (in "O Baluarte de Santa Maria", maio de 2021)


Conheci o Arsénio Puim como capelão militar, no leste da Guiné, em Bambadinca em meados de 1970, em plena guerra do ultramar ou guerra colonial (como se queira). 

Convivemos cerca de 9 meses. Regressei a casa em março de 1971 e ele seria expulso da Guiné dois meses depois. Só voltaríamos a encontrarmo-nos quase quatro décadas depois, em 24 de maio de 2009, em Lisboa, na casa dos seus filhos, na altura estudantes universitários.

Mas a imagem que eu sempre guardei dele era a da serenidade, reflectindo a sua maneira de ser e estar, como homem e açoriano, a par da sua coragem e o seu amor à liberdade, à verdade e à justiça Devo , todavia, dizer que não éramos íntimos: eu não ia sequer à missa e, portanto, não posso falar das suas célebres homilias da paz, mal recebidas pelo poder político-militar. Conheci-o melhor, isso sim, quando lhe editei a série “Memórias de um alferes capelão”, publicada no nosso blogue. E que é um notável documento humano e literário.

O alferes miliciano capelão Puim era o mais civil, o mais paisano, de todos nós. Nunca o vi armado (, recusou a G3 que lhe foi distribuída), nas colunas logísticas, quando se deslocava, com frequência, entre a sede do batalhão, em Bambadinca, e os diferentes aquartelamentos e destamentos do sector (Xime, Enxalé, Missirá, Mansambo, Xitole, Ponte dos Fulas)… Ou quando se deslocava a Bafatá onde confraternizava com os missionários italianos do PIME (o Pontifício Instituto para as Missões Exteriores).

Confirmei, em 2009, essa impressão inicial: continuava a ser um homem calmo, sereno, sábio, sem uma única ruga de rancor ou amargura, muito menos, ódio. Não posso, em rigor, testemunhar da importância do seu papel na assistência religiosa e no apoio psicológico, moral e espiritual aos militares do setor L1 (Bambadinca). Sei que esse papel foi-lhe requerido em momentos difíceis do batalhão como, por exemplo, no subsetor do Xime, onde perdemos 6 camaradas, e 9 foram gravemente feridos, em 26 de novembro de 1970. O Puim ajudou os camaradas do Xime, da CART 2715, a fazer o luto.

Sei que era uma pessoa querida entre os homens do batalhão e subunidades adidas (como era o caso da minha africana CCAÇ 12), com uma presença discreta mas frequente nos quartéis do mato, pautando sempre o seu comportamento por um padrão de isenção, frugalidade, imparcialidade, austeridade e até de pudor.

Foi a sua discreta mas firme intervenção a favor de um grupo de prisioneiros, população civil, incluindo velhos, mulheres e crianças, que viviam sob controlo do PAIGC (, em condições miseráveis, diga-se em abono da verdade, esfarrapados, doentes, subnutridos), que lhe terá valido a ira de César contra os desígnios de Deus.

O Puim, inteirado da situação de injustiça, condoeu-se daquela gente e começou a visitá-los. Levava leite às crianças. E protestou. Era, de resto, um homem que não se calava, como não se calou noutras situações que feriam a sua consciência de cristão, homem e português.

Numa das suas homilias, num domingo de Abril de 1971, o Puim abordou este tema, doloroso, para ele... O tratamento dos prisioneiros nem sequer estava de acordo com a política, superiormente definida por Spínola, e consubstanciada no slogan “Por uma Guiné Melhor”... Terá sido a partir daqui que ele foi denunciado, e que em Maio de 1971 surge uma famigerada "ordem de Bissau" para ele se apresentar no "Vaticano" (as instalações dos capelães militares em Bissau)... O Puim tinha, pois, razão para se considerar duplamente maltratado pela instituição militar e pela hierarquia religiosa.

Mais do que falar, o Puim sabia ver, observar e ouvir como ninguém. E tinha uma grande curiosidade pela cultura da Guiné, incluindo o(s) seu(s) crioulo(s). Tinha, além disso, um espírito ecuménico, tendo participado inclusive em cerimónias religiosas, com outras confissões, em que se orou pela paz.

Deixem-me acabar o meu depoimento com o meu aplauso a este antigo capelão militar (para além de meu camarada e depois amigo): ele merece todo o apreço por, no cumprimento da sua missão castrense e espiritual, nunca ter descurado as suas obrigações como pastor da Igreja de Cristo... mas também como português.

O que eu quero sublinhar é a sua atenção, solicitude, disponibilidade, carinho, amor, solidariedade, caridade e compaixão para com os mais indefesos, as mulheres, as crianças, os homens, os velhos da população civil, independentemente da cor da pele, da religião, da etnia, da origem, do partido...

A grande diferença em relação a nós, militares, operacionais ou não, mais novos do que ele, é que o Puim ganhava-nos em maturidade humana, em sensibilidade sociocultural, em abertura ao outro, em generosidade mas também em frontalidade e coragem moral... Ele convivia com a população, e escrevia no seu caderninho notas sobre esses contactos... O famoso caderninho que lhe seria mais tarde confiscado e só devolvido a seguir ao 25 de Abril…e que deveria ser passado a livro! (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

9 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)

11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20962: (In)citações (161): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (b): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)



(***) Vd. também aqui o poste 8 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20952: (In)citações (147): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte II: Mais um de nós (Tony Levezinho); Parte III: O único santo que conheci em Bambadinca (Luís Graça)

(...) Versos do nosso editor Luís Graça, que noutra encarnação era o Henriques e foi amigo do único capelão, para mais açoriano de Santa Maria, que conheceu no TO da Guiné:

Para o único santo que conheci em Bambadinca
o nosso bom amigo e camarada Puim


Arsénio Puim, camarada, parabéns,
Por mais um aninho de vida, pá,
E oxalá, enxalé, inshallah!,
Seja a saúde o melhor dos teus bens.

Só nos serve p’ra sermos livres e felizes,
Enquanto andamos cá por esta terra,
Com lembranças de uma antiga guerra,
Em que do mal fomos maus aprendizes.

Ah!, já não és mais o bom ‘padre-capilon’,
Em Bambadinca, cova do lagarto,
E dos ‘cães grandes’ ficaste bem farto,
Nunca auguraram nada de bom.

Da Guiné, a todos nós, a ti e a mim,
Uma certa memória nos ficou,
Sítios onde Cristo nunca parou,
E outros qu’ amaste, meu santo Puim.

Nhabijões, Samba Silate, Mero ou Xime,
São geografias, são emoções,
Não há rancor nos nossos corações,
Mesmo sabendo que toda a guerra é crime.

Enterraste os mortos, e dos vivos cuidaste,
Ajudaste-nos a fazer o luto,
Exorcizaste o mal absoluto,
Mas sabemos o preço que pagaste.

Têm um preço a justiça e a liberdade,
Que nem todos nós queremos pagar,
Teu bom exemplo é de recordar,
P’la camaradagem e amizade.

Luís Graça, na Lourinhã,
na ponta mais acidental do continente europeu,
(,aqui donde se ia a Nova Iorque a pé,
há 150 milhões de anos,)
e hoje confinado, na sequência da pandemia de COVID-19
(de que Deus nos livre!),
8/5/2020

Outros postes de homenagem ao Arsénio Puim, editados em 8 e 9 de maio de 2020, por ocasião do seu 84º aniversário:


8 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20954: (In)citações (148): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte IV: o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida (Lino Bicari)

Guiné 61/74 - P22180: Parabéns a você (1961): Arsénio Puim, ex-Alf Graduado Capelão da CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22171: Parabéns a você (1960): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835 (Gandembel e Nova Lamego, 1968/69)

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22179: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (51): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
A exigência de Annette move montanhas, ao pôr em marcha uma cronologia de acontecimentos, no caso vertente uma comissão na guerra da Guiné, esta meticulosa organizadora descobre que falta um antes, ninguém entra diretamente num teatro de guerra, embarcou, encontrou gente, desembarcou e deu com nova gente, sentiu-se ou não embeiçado por tudo quanto estava a ver e que nada tinha a ver com o mundo de onde vinha, embora não houvesse engano que aquela cidade de Bissau era um proscénio dos territórios onde se combatia, bastava ler aquelas viaturas, aqueles seres fardados para se intuir que era daqueles bastidores que se chegava aos muitos palcos por onde se espalhava a guerrilha e a contraguerrilha. E Annette quis saber ao pormenor o que se passou entre o cais de Alcântara e uma travessia de canoa para uma extensa picada enlameada, esburacada, que levava até Finete e cerca de 16 quilómetros à frente, a Missirá. E da correspondência que está a receber da adaptação no seu adorado Paulo Guilherme a Bambadinca confunde-a um turbilhão de coisas em que ele anda envolvido, tenta perceber porque é que ele está a chegar a um estado de depressão, e é razão essencial para se procurar entender o conteúdo desta carta.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (51): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, de plus en plus adorée, foi muito consolador termos estado ontem à noite tanto tempo ao telefone, a preparar tão ardorosamente uma semana para nós, aproveitando os meus feriados de junho e as tuas folgas relativas a fins de semana vividos em conferências de trabalho. Pediste-me em concreto duas coisas para a constituição do dossiê da minha comissão, tarefa que levas cada vez mais a sério. Em primeiro lugar, queres ver esclarecido todo aquele período anterior a Missirá, embarque, a viagem, a chegada a Bissau, como de Bissau viajei pelo Geba até Bambadinca, as primeiríssimas impressões de Missirá e Finete. E por último, mesmo sabendo que estás a tocar em pontos um tanto íntimos, como é que eu te enviei um apontamento em que falava de um estado de depressão, ainda não era havido um mês em Bambadinca, o que eu chamei a ansiedade à espera do que há de haver. Vou enviar-te filmes retirados dos arquivos da televisão portuguesa quanto aos embarques no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, perto de Alcântara, por ali passeámos a pé até ao Padrão dos Descobrimentos, lembras-te? A censura não deixava passar as cenas lancinantes de mães e mulheres agarradas aos filhos, eram quadros comoventes, ninguém ignorava os mortos e os estropeados. Verás lenços brancos, as tropas perfiladas, os acenos no portaló, nas amuradas, as famílias espalhadas ao longo do cais ou nas varandas. E o navio a afastar-se, e cada um de nós à procura do lugar onde estacionar, já se sabia qual o camarote que nos fora destinado, no caso dos oficiais, e eu queria ir cumprimentar os meus antigos soldados da Amadora, quem tinha sido afastado por ser considerado “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Desci ao porão e vi aquilo que está escrito em inúmeros livros, as condições indignas em que ali se vivia, com o passar das horas e dos dias todas aquelas atmosferas ficarão fétidas com tanta gente a vomitar, para muitos era a sua primeira viagem de barco. As praças comiam mal e porcamente, os oficiais, pelo contrário, todos sentados à mesa, menu à frente, sempre variado. Como viajava com o estatuto de rendição individual, cedo encontrei rapaziada dos cursos de Mafra e logo confraternizámos. Entre refeições havia conversas soltas, admirava-se o mar e até os peixes voadores, havia intermináveis jogos de cartas, perguntas sobre o destino de muitos dos outros dos nossos cursos. E assim se passaram aqueles poucos dias até que num dado momento se percebeu uma alteração na temperatura do ar, parecia termos entrado numa turbina de vapor e olhos mais capazes apontaram para tufos de arvoredo, o navio Uíge parecia que ia a apontar para um largo canal, veio depois uma embarcação que se pôs à frente como se estivesse a marcar o compasso da viagem, a vegetação crescia, tal como a humidade, viam-se pirogas, gente a trabalhar em campos alagados, e depois casario misturado com casas circulares com tetos de palha, ou coisa parecida, e muito lentamente o navio lançou ferro em frente de uma pequena cidade, da luz do fim de tarde rapidamente se passou à noite, houve jantar de festa, meteu lagosta e espumante, muita doçaria. E depois fomos convocados para um salão onde uma equipa de sargentos chamava como pregoeiros em leilão os nossos nomes, quando anunciaram o meu disseram que eu ia para o Enxalé, finda a reunião recebemos ordens para descermos com os nossos haveres até a uma embarcação que nos poderia em terra onde teríamos transporte para Santa Luzia. Ia havendo um acidente grave com um dos meus malões, soltou-se uma das pegas, o militar que ia à frente bem tentou encostar toda aquela carga ao casco do navio, o que interessa é que o malão seguiu disparado para dentro da embarcação, foi tal o alarido que deu tempo a vários oficiais fugirem do pesado intruso que ficou descansado no fundo da embarcação, e bom trabalho deu para ser transportado para terra e daqui para o camião que nos deixou em Santa Luzia. Era a madrugada de 29 de julho de 1968 quando eu e mais três alferes recebemos a chave de uma moradia e metemos todos os nossos trastes lá dentro, acalmámos as emoções e respeitámos o sono de cada um. Depois de almoço, fui ao quartel-general apresentar-me, um outro sargento informou-me que partiria num barco civil a partir do cais do Pidjiquiti ou a 1 ou a 2 de agosto, que lá fosse saber sempre da parte da manhã ou da parte da tarde, logo no dia 30. Dei-lhe a confirmação de que ia para o Enxalé, não senhor, vai para Bambadinca, de lá segue para o seu destino.

Acicatado pela curiosidade, procurei Bissau, nada de viaturas, tudo a pé, para ver e sentir os primeiros contatos com África. E dei comigo a observar aqueles andares bamboleantes de mulheres com vestes garridas e filhos nas costas, homens que caminhavam com andar de reis, uma postura hierática dentro de vestes brancas, vozes estrídulas, crianças que pareciam brincar com arcos ou jogar à macaca, nas bermas da estrada um casario pobre, mesmo abarracado, com pontos de mercado de levante, jovens a vender pacotes de amendoim, e aproximaram-se de crianças de mão estendida dizendo “parte peso!”, vim a saber que estavam a pedir uma moeda de escudo, a viagem prosseguiu até virar à direita para uma praça onde se impunha o Palácio do Governador, uma rotunda ajardinada com um estranho monumento, uma haste de pedra a subir aos céus, aproximei-me e li que se tratava de uma homenagem ao esforço da raça, termo mais exótico para aquela construção com uma mulher nua à frente não me teria ocorrido. Depois descobri um café, o sabor de uma boa bica e desci uma avenida chamada da República, em direção ao cais de onde partira na véspera e de, dentro de dias, seria encaminhado do rio Geba até ao meu destino.

Meu adorado amor, era tudo descoberta, andei a pé no mercado dessa Avenida da República, havia um cinema com o nome UDIB, mais abaixo dei com a catedral, nome excessivo para a dimensão do templo, passei por um edifício pintado de azul, uma bela construção em ferro, dizia Pensão Central, infleti à esquerda para ruas que me disseram ser o Bissau Velho e com ligeiras adaptações me pareceram reminiscências de casario das Beiras, sobrados no rés-do-chão e habitações por cima circundadas de varanda. Os dias passaram rapidamente, recebi guia de marcha e instruções para no dia dois de manhã estar num determinado ponto do cais, ali apareceu um furriel que saiu de um jipe e me entregou um garrafão de água e uma ração de combate. Passava das dez da manhã quando entrei num barco civil, já cheio de homens, mulheres e crianças, lá entraram os meus malões, uma mala de roupa e um saco de livros, mais a bebida e comida para as cerca de dez horas de viagem. Um petiz, aí de 8/9 anos, um rosto cheio de esperteza, linguagem fluente, meteu conversa, de dedo apontado foi-me indicando os diferentes locais por onde passávamos: “Ali ao fundo é Jabadá, passaremos por lá ao entardecer, mas antes o barco para em Porto Gole, sai gente, sai mercadoria, entra gente, entra mercadoria”. Deu para perceber que Porto Gole tinha alguma dimensão, Jabadá continuou a ser um ponto ao longe, e abruptamente anoiteceu, a voz do petiz já não era tão vivaz, agora temos que ter cuidado, o nosso rio vai estreitar, há sempre o perigo de sermos atacados. Ninguém nos atacou, mas por um bom lapso de tempo navegou-se num silêncio sepulcral, e depois aquele barco andava ziguezagueante, e noite fechada, dentre o espesso arvoredo, vi alumiado o cais de Bambadinca, muita gente à espera, a alegria da chegada, a garrulice da miudagem, e também um jipe à minha espera, os meus dois transportadores não acharam graça nenhuma à carga trazida por aquele novo alferes, um deles, não escondendo a ironia, até me perguntou se dentro daqueles esquifes de madeira não vinham obuses ou caixas de munições…

E subo a rampa de Bambadinca, a primeira de muitíssimas vezes, o jipe para dentro de uma construção num longo U, sou informado que vou para aquele quarto, a resfolegar depositam a carga e despedem-se, que estivesse descansado, a messe de oficiais tinha-me guardado o jantar. Passei uma porta de vaivém, veio gente ao meu encontro, apresentações sumárias, serviram-me a comida que bem me soube depois dos enlatados acompanhados de água engarrafada. Pretextando fadiga lá fui para a minha camarata em miniatura e dormi como um justo. O resto Annette, conheces muito bem, pela manhã do dia seguinte, depois de uma rábula bem montada como apresentação do que me esperava no Cuor, fui avisado solenemente que ai de mim se falhasse alguma vez a proteção de Mato de Cão, foi advertência que nunca mais esqueci. E para ser breve, depois de um mês em Bambadinca, de novembro para dezembro de 1969, começo a ensimesmar com aquela vida de quartel que parece ter horários de funcionalismo público e um conjunto de unidades que acorre às mais díspares tarefas, há muitos sinais de inquietação, o PAIGC está ativo nas redondezas, intimida com incêndio de moranças, roubos de vacas, assalta ou flagela tabancas em autodefesa, há informações de que se vem abastecer às claras a Mero ou aos Nhabijões, a nossa contraparte é patrulhar, visitar as tabancas, e descubro rapidamente que temos que fazer colunas até ao Xitole, operações em Mansambo e no Xime e as malfadadas emboscadas à volta da pista, não há horários, aquilo não é intervenção, é um posto de socorro, aqueles patrulhamentos à volta da pista põem-me os nervos em franja, insidiosamente adoeço, ganho insónias, ando amargurado, resmungo, começo a dizer em voz alta que ando farto de tanta vadiagem, de tanta nomadização sem critério. Mas isso, meu adorado amor, vou completar com tudo quanto se passou nesse período de dezembro para janeiro, tens que ter paciência, houve para ali tanta coisa dolorosa que vou rememorar a custo.

Não tenho palavras para te agradecer o passeio que tu preparas de Ypres até ao cemitério de Pas de Calais. Mas o mais importante de tudo é estar ao pé de ti, meu prenúncio de que em breve viveremos sempre juntos, e agora não importa saber onde, porque tu és a fonte da minha vida, essa estuante ternura que me dás é o pomo da minha alegria. Bien à toi, et toujours, Paulo
Missirá, onde cheguei em 4 de agosto de 1968, e escrevi bem afligido para Lisboa, muito mais tarde, a recordação do primeiro contato: "Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado, não sei o que a guerra me reservava, mas tinha pela frente um plano de obras públicas que me ultrapassava, para o qual não estava minimamente preparado”. Pois aconteceu, e não me dei mal com o produto final e com a saudade que dele ficou.
Pescadores bijagós, Imagem retirada do blogue LusONDA, com a devida vénia
Antigo posto militar da Ilha das Galinhas, fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
A sombra do poilão, uma quase atmosfera mágica
A estrada Xime (à direita) - Bambadinca (à esquerda), com a respetiva ponte no rio Undunduma, imagem do blogue
Mulheres na pesca
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22155: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (50): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22178: 17º aniversário do nosso blogue (6): homenagem às "nossas lavadeiras" (Valdemar Queiroz / Cândido Cunha)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel >  Rio Geba  > 1969 > Uma belíssima foto de uma lavadeira, em contraluz. O Valdemar Queroz atribuiu os créditos fotográficos ao seu "irmão siamês"  Cândido Cunha.

Foto (e legenda): © Cândido Cunha / Valdemar Queiroz (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Espinho > Silvalde > Fevereiro de 1969 > CART 2479 / CART 11 > IAO, Instrução de Aperfeiçoamento Operacional > Uma "foto histórica" um "ninho" de lacraus, designação do pessoal da futura CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche) > O Cândido Cunha é o nº 3... Os restantes (cujas cabeças são visíveis); o Ferreira (vaguemestre) (10), o Abílio Pinto (11), o Manuel Macias (6), Pechincha (que era de operações especiais) (7) e o Abílio Duarte (5).
 
Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]
 
Date: quinta, 6/05/2021 à(s) 15:41
Subject: Homenagem às "nossas lavadeiras"
 
Luís, como tens passado? Agora é aguentar até tratar do problema,  bem diferente do que seria numa comissão (#) em Bambadinca/Xime que serviu de tarimba para enfrentar dificuldades. 

Como homenagem às "nossas lavadeiras" anexo uma fotografia, uma das extraordinárias fotografias do nosso blogue, duma lavadeira em plena laboração na "lavandaria do Geba", em Contuboel.

Esta bela fotografia que faz parte do meu álbum, julgo ser de autoria do Cândido Cunha, fur mil da minha CART 11, tirada à silhueta da bajuda em movimento, que com melhor máquina apanharia os pingos da roupa e poderia muito bem ser uma obra de arte fotográfica.

Tratava-se duma das primeiras visitas à "lavandaria" para ver as bajudas a lavar roupa, não seria propriamente só ver a lavar roupa, aproveitando para uns mirones  às  belas bajudas fulas em topless.

Ó  por cá (1969/70) ainda o topless na praia era proibido ou nem sequer pensado, só começando a aparecer nas praias do sudoeste alentejano com as belas loirinhas alemãs ou holandesas. Essas não se importavam de fotos dos embasbacados mirones católicos que até para não serem mal educadas vestiam uma t-shirt e pediam uma cópia como recordação. 

Tal como por cá acabaram negócios em pequenas localidades (p.ex. Vendas Novas, Mafra) devido aos Quarteis de preparação de tropa p'ra guerra, também  nas tabancas da Guiné acabou o negócio das lavadeiras.

Com ironia... como o vinho matar a fome a milhões de portugueses, é uma chatice acabar com o negócio da guerra. 

Abraço e força com isso
Valdemar Queiroz

(#) Também utilizado como 'comissão de serviço', mas fique bem claro não se tratar de percentagem cobrada sobre um serviço prestado.
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Guiné 61/74 - P22177: In Memoriam (393): Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (Bolama 1929 - Coimbra, 2021), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010

 

Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai) (1929-2021). 

Foto:cortesia de ANG - Agência de Noticias da Guiné


Cópia do texto, de 26 páginas,  que foi me entregue em 7 de março de 2008, em Bissau, pelo próprio autor, no final do Simposium Internacional de Guildje (Bissau, 1-7 de março de 2008). Está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.



1. Acabamos de saber, pelas redes sociais e agências notíciosas, da morte de Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai), ocorrida anteontem por volta das 23 horas, em Coimbra, vitima de doença prolongada.

Era pai de Carlos Gomes Júnior (Cadogo Júnior), talvez o mais conhecido dos empresários guineenses e antigo 1º primeiro-ministro, bem como presidente  do PAIGC, ao tempo de 'Nino' Vieira.

Reproduz-se aqui a notícia da ANG:

Bissau,06 Mai 21(ANG) - O empresário Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai), faleceu quarta-feira por volta das 23 horas, em Coimbra(Portugal), vitima de doença prolongada.

Cadogo Pai como é vulgarmente conhecido, é pai do antigo 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama em 1929.

Segundo os dados fornecidos à ANG pela família, Carlos Domingos Gomes começou a  actividade empresarial como Paquete no escritório da família Barbosa, junto ao Grande Hotel. Com ambições e desejoso de ter outro futuro, foi trabalhar na SCOA (proprietária do edifício onde está instalada a Pensão Central), foi depois transferido para Bolama e mais tarde regressou à Bissau como chefe de loja, antes de voltar para Bolama em 1951.

Em 1967,Carlos Domingos Gomes, sofre a prisão e tortura pela PIDE e foi libertado no tempo de Spínola em 1968, tendo depois se refugiado em Portugal, em 1973 e regressado ao país depois do 25 de Abril de 1974.

Depois da independência do país, Cadogo Pai continuou a sua actividade empresarial tendo criado a Loja Abelha Mestra, que dedicava ao comercio geral e venda de vinhos em divisas.

Posteriormente veio a criar nova empresa denominada de Carlos Gomes & Filhos que igualmente dedicava ao comércio geral import e export.

Carlos Domingos Gomes foi acionista do Banco Internacional da Guiné-Bissau(BIGB), e um dos accionistas fundador do Banco de África Ocidental (BAO), e também accionista do Banco Panafricano (Ecobank).

No domínio político, o malogrado foi candidato as eleições presidenciais de 1994, onde tinha como adversários João Bernardo Vieira (Nino) e Kumba Yalá.

Em 1999 foi nomeado Ministro de Justiça e Poder Local, no governo de Unidade Nacional liderado pelo Francisco José Fadul ,depois do conflito político militar de 7 de junho de 1998.

Durante o período de conflito político militar de 7 de junho que durou 11 meses, o falecido empresário Carlos Domingos Gomes juntamente com o Bispo Don Setímio Artur Farazeta, se destacaram como ativista que trabalharam afincadamente na busca da paz e reconciliação entre as partes envolvidas no conflito. (...)


2. Era membro da nossa Tabanca Grande, desde 16 de agosto de 2010, com cerca de dezena e meia de referências no nosso blogue.  Conheci-o em Bissau, no decurso do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008).

Estava ainda no poder o ‘Nino’ Veira. Era presidente do PAIGC o seu filho Carlos Gomes Júnior (também conhecido na sua terra como Cadogo Júnior), e que chegou a ser considerado como delfim do próprio ‘Nino’ Vieira até ao conflito de 1998. Dez meses depois do Simpósio, o filho de Carlos Domingos Gomes, no final desse ano, seria indigitado para o cargo de Primeiro-Ministro,

Tal como o pai, o Carlos Gomes Júnior nasceu em Bolama em 1949. Sabemos que, antes de entrar na política, e chegar a dirigente máximo do PAIGC, foi um empresário e gestor de sucesso. Não participou na luta armada como combatente.

Já o pai, o Cadogo Pai, em contrapartida, reclamava-se da condição de Combatente da Liberdade da Pátria, sem todavia nunca ter pertencido ao PAIGC, e muito menos combatido na guerrilha. 

Considerava-se um  nacionalista, embora tenha colaborado com o poder colonial, como autarca (em Bolama e depois em Bissau), o que lhe trouxe alguns alguns amargos de boca nos primeiros tempos, após a independência. Dizia-se amigo de Aristides Pereira. Em contrapartida, teve problemas com Luís Cabral que “tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a Independência” (1ª Parte, p. 2).

Publiquei aqui, em 2010,  a sua  história de vida, a partir de um texto autobiográfico, policopiado, de que ele me ofereceu uma cópia autografada (*). Conheci-o por acaso, na sala de conferências do hotel onde estava a realizar-se o Simpósio. Na mesma altura conheci o Joseph Turpin, o sobrinho do Élisee Turpin, esse sim um histórico do PAIGC.
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O Simpósio Internacional de Guiledje  terá sido um bom pretexto para o Cadogo Pai escrever, eventualmente retocar e sobretudo divulgar as suas memórias, quer como cidadão quer como empresário, balizadas entre os anos de 1946 e 1974. Mas nem toda a gente o levava muito a sério, em 2008, em Bissau.
 
3. Recordemos aqui alguns marcos da sua história, de acordo com a sua narrativa autobiográfica (*):

(i) em 1946, aos 17 anos (nasceu portanto em 1929), o autor era “paquete de escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel”; ganhava 120 escudos de salário mensal, essa família Barbosa incluía Antoninho Barbosa e César Barbosa, tios do Caló Capé.

(ii) achando que não era lugar de (ou com) futuro, candidatou-se a (e ganhou) o lugar de auxiliar de escriturário numa firma francesa, a SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano,  com várias lojas espalhadas pela Guiné de então (Bissau, Bolama, Bissorã…);

(iii) está-se em agosto de 1946, a escrituração das receitas da loja era feita em francês, língua que ele não dominava, mas iria contar com a ajuda (inesperada) do empregado que fora substituir, nada menos que o José Costa, colega de escola, entretanto transferido para Bissorã;

(iv) ele próprio, Cadogo,  será transferido, meses depois, a 24 de dezembro de 1946, para Bolama; em Bissau ganhava 250 escudos. wm Bolama, passou a ganhar 300, “quantia exígua para tomar conta da minha vida” (1ª Parte, p. 3);

(v) fica em Bolama três anos; em 26 de Dezembro de 1949 é convidado “para vir ocupar o posto de chefia da loja nº 2 em Bissau”, enquanto o José Costa, regressado de Bissorã, chefia a loja nº 1;

(vi) tinha 20 anos, “ainda era menor”, só fazendo os 21 em Maio de 1950; é  em Bolama que nasce o seu filho, futuro 1º ministro, em 19 de Dezembro de 1949;

(vi) volta a Bolama, em Março de 1951, como chefe operacional da mesma empresa, a Sociedade Comercial Oeste Africana (onde trabalhou como contabilista, de 1942 a 1956, Elisée Turpin, um dos fundadores do PAIGC).

(vii) foi e  Bolama que conheceu "o camarada Aristides Pereira",  pessoa que ele descreve como "muito reservada"; tem uma tertúlia de que fazem parte, a
lém de Artistides Pereira, Alcebíades Tolentino, Barcelos de Lima, Adelino Gomes e Afredo Fortes; falava-se de tudo, “mas sobre a política africana nada"  (1ª Parte, p. 4);

(viii) é em Bolama que passa a ter "consciência política",  e se torna   um nacionalista, próximo do PAIGC;

 (ix) sera através do  Elisée Turpin, seu colega em Bissau, que lhe chegavam a Bolama as notícias das primeiras “movimentações”, de “cariz político”, que surgiam em Bissau. 

(x) é por essa altura, na 1ª metade da década de 1950, que a SCOA e as outras empresas francesas, NOSOCO e CFAO, começam a sentir restrições na sua atividade comercial, dada a posição monopolista da Casa Gouveia: tendo vocação exportadora, eram "obrigadas a vender os seus produtos à Gouveia" (sic); naa realidade, a CUF (, através da Casa Gouveia, ) detinha o monopólio da exportação do amendoim da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau;

(xi) é também  nessa altura que o Cadogo Pai  começa a ponderar a hipótese da demissão e começar a trabalhar por conta própria. o  seu chefe, francês, não apoiou logo a ideia; em contrapartida, ter-lhe-á proposto "uma transferência para Paris, dada a confiança que ganh[ara] em toda a organização, a exemplo de muitos colegas que foram transferidos na altura para Ziguinchor, Dakar, etc."; e, mais: tê-lo-á avisado que "o vento da independência iniciada nos países vizinhos (Conakry, Senegal, etc.) chegaria à Guiné-Bissau", pelo que , se ficasse na Guiné, iria passar mal, como veio a acontecer...

(xii) estabelece-se por conta própria em 5 de setembro de 1955;

(xiii)  casa-se em 1956 e em 1957 é eleito vereador da Câmara Municipal de Bolama, "palco dos meus primeiros confrontos com o poder colonial, que marcaram bem a minha vida de luta e experiência";

(xiv) diz que  não completou o mandato, "porque começou a repressão colonial, após a fundação do PAIGC a 19/9/1956 e os acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no Cais do Pinjiguiti", obrigando-a refugiar-se por uns tempos  em  Portugal  entre junho e novembro de de 1960;

(xv) instala-se em Bissau e  é vereador da Câmara Municipal de Bissau, "com o velho companheiro Benjamim Correia, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela"; era presidente o major Matos Guerra;

(xvi) é preso,pela primeira vez pela PIDE em 17 de janeiro de 1967, ao tempo do governador Arnaldo Schulz; depois de libertado no tempo de Spínola em 1968, refugia-se em Portugal em 1973 e só regressa ao  país depois do 25 de Abril de 1974. (*)

Sem ter sido uma figura de primeiro plano na história recente da Guiné-Bissau, "Cadogo Pai" deverá ser lembrado, em todo o caso,  como um nacionalista, um cidadão e um empresário cuja experiência, saber e exemplo devem inspirar as gerações mais novas. (**)

Ao filho, Carlos Gomes Júnior  (que conheci, se não erro,  no funeral da mãe do Pepito,  a dra. Clara Schwarz, em 2016) e demais  família e amigos mais próximos, em nome pessoal e em nome da Tabanca Grande, apresento sentido pêsames. 

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

 (**) 29 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22152: In Memoriam (392): Claúdio Ferreira (1950-2021), ex-fur mil art, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74)... Passa a integrar, a título póstumo, a Tabanca Grande, sob o nº 840 (Jorge Araújo)

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22176: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte III: Chengdu, província de Sichuan, China, c. 2005. Aqui nasceu Deng Xiaoping (1904-1997), o sucessor de Mao Zedong (1893-1976)...Mas também o maior poeta chinês, Li Bai (séc. VIII)



Foto nº 1 > China >  Sichuan > Chengdu >  Base de Pesquisa de Reprodução do Panda Gigante de Chengdu
 


Foto nº 2 > China >  Sichuan > Chengdu  > A estátua de Mao Zedong


Fpotonº 3 > China > Sichuan > Chengdu > Centro histórico


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2021). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. C
ontinuação da  série  "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: escritor e docente universitário, epecialista em língua, literatura e história da China; natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro; membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 270 referências no blogue]


Chengdu, província de Sichuan, 
China,c. 2005


A província tem o tamanho da França. Aqui veio nascer o pequeno Deng Xiaoping, que lançou às urtigas as excelsas virtudes do socialismo radical de Mao Zedong e pôs o império a prosperar, bafejado pelas brisas galopantes do capitalismo inteligente.

A este vastíssimo planalto entre mil montanhas, um dos celeiros da China, chegou há catorze séculos um rapaz, o maior poeta da China, de nome Li Bai, que por aqui espadeirou contra inimigos de ocasião, aqui amou pela primeira vez, aqui se fez homem, e fala de Chengdu, capital de Sichuan, como 锦城 Jincheng, a "cidade do Brocado" e de infindáveis prazeres. 

Até Bertoldt Brecht, que veio um dia à China, entendeu e escreveu sobre o teatro do mundo na sua A Boa Alma de Sichuan.

Nas estadas em Chengdu, no calor do Verão, caminhar pela cidade velha, com casas de dois sobrados de madeira e empenas trabalhadas, as gentes a comerem em mesas improvisadas, na rua, sentadas em cadeirões de bambu, bebericando chá, um cigarro ou um cachimbo na ponta dos lábios, jogando cartas, weiqi ou mahjong.

Avanço para a reserva florestal de Wulong, tenho os pandas à minha espera. Porque sou estrangeiro e pago mais uns yuans, sou autorizado a entrar sozinho no recinto dos pandas e a dar uma maçã a um deles. Faço uma festa na cabeça do pacífico e ternurento animal, e tiram-me o retrato.

[ Texto enviado em 28 de abril último ]

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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:

Guiné 61/74 - P22175: 17º aniversário do nosso blogue (5): homenageando todas as "nossas lavadeiras", na pessoa da Amélia de Bissorã (Maria Dulcinea, "Ni", esposa do ex-fur mil Henrique Cerqueira, 3ª C/BCAÇ 4610/72, e CCAÇ 13, Biambe e Bissorã, 1972/74)

 

Guiné > Região do Oio > Bissorã > c. Out 1973 / jun 1974 > A Amélia de Bissorã, "uma senhora muito bem esclarecida, muito divertida e muito bonita".

Foto (e legenda): © Maria Dulcine (NI)  (2011). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Em homenagem às "nossas lavadeiras" e celebrando também o nosso 17º aniversário, voltamos a reproduzir aqui um belíssimo testemunho, já com 10 anos,  da Maria Dulcinea (NI), membro da nossa Tabanca Grande, com cerca de 3 dezenas de referências no noss blogue, e esposa do nosso camarada Henrique Cerqueira (. Esteve com o marido e o filho em Bissorã, de outubro de 1973 a junho de 1974; recorde-se que o Henrique Cerqueira foi fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, e CCAÇ 13, Biambe e Bissorã, 1972/74] (*)

As nossas lavadeiras: A Amélia de Bissorã

por Maria Dulcinea ("Ni") (**)



Hoje resolvi escrever um pequeno texto em homenagem às “Lavadeiras” da Guiné e muito especialmente à “nossa” Lavadeira,  de seu nome Amélia.

Creio que na generalidade todos os militares na Guiné “tiveram“ ao seu serviço essas valorosas Mulheres que conseguiam um meio de subsistência lavando as roupas dos militares em serviço na Guiné e,  como não fugia à regra, o meu marido tinha a “sua” Lavadeira. 

Quando cheguei a Bissorã e após a nossa instalação de acomodamento aos usos e costumes da nossa “Tabanca”, o Henrique disse-me que iríamos continuar com a Amélia. De pronto foi-me apresentada a “Famosa“ e desde logo se criou uma grande empatia entre nós, pois que a Amélia era uma senhora muito bem esclarecida, muito divertida e, como a foto documenta, era muito bonita.

Na realidade o que eu pretendo é fazer uma singela homenagem a todas as “Amélias” que de uma forma ou de outra acabaram por fazer parte da vivência dos militares que permaneciam longe dos seus familiares, sendo muitas vezes as suas "Lavadeiras"  as suas confidentes e quiçá terem que aturar os devaneios de jovens “desgarrados” e ausentes do convívio de suas mulheres ou namoradas.

Quero ainda salientar o quanto eram importantes aquelas horinhas certas, no final da tarde, quando as “Lavadeiras” com as suas trouxas de roupa lavada percorriam os locais dos militares a entregar as suas roupas e recolhendo outras. Que giro era vê-las em “bandos”, entrando pelo quartel, falando muito alto e rindo,  como se aquele momento também fosse de alegria para elas porque sentiam que o seu trabalho era útil e ajudava à sua subsistência .

Jamais esquecerei a Amélia e alguns momentos de cumplicidade que existiram entre nós, assim como jamais esquecerei tudo o que passei e aprendi com as Mulheres da Guiné. Daí o meu sincero reconhecimento a todas elas.

Fui de certo modo despertada para esta lembrança quando esta semana visitei um menino internado no Hospital de S. João, que é da Guiné, de seu nome Tigná e que, segundo ele, a sua avó é de Bissorã e assim todas as lembranças despertaram.

Não incomodo mais, até porque não tenho muito jeito para a escrita e só escrevi este texto porque fui incentivada pelo Henrique. No entanto se virem que não tem pés nem cabeça podem enviar para o “arquivo”.

Um beijinho para todos os Tertulianos e um especial para as mulheres da Guiné.
NI (Maria Dulcinea Rocha)  (***)

[Revisão / fixação de texto / bold e realce a amarelo, para efeitos de edição deste poste: LG ]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8329: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (11): Como fui parar à Guiné (Maria Dulcinea)