Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 5 de maio de 2021
Guiné 61/74 - P22172: Historiografia da presença portuguesa em África (261): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (3) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2021:
Queridos amigos,
Fica por saber se este brilhante general nascido em Varsóvia e falecido em Tavira, cumulado com as mais importantes condecorações portuguesas, andou por Cabo Verde e pela Guiné por sua iniciativa ou missão governamental. O que fez é uma autêntica corografia, uma descrição em grande ecrã, temos história, administração, o estado das praças e dos presídios, localizando a presença portuguesa, faz recomendações de índole política, vê-se que estudou e que falou com quem conhecia os diferentes contextos, não esconde a fragilidade da presença portuguesa, procede a um roteiro das atividades económicas e do sistema defensivo. É trabalho de leitura obrigatória para quem quer conhecer a Guiné da primeira metade do século XIX, sabia-se que o tráfico de escravos tinha os seus dias contados, era preciso injetar novos processos para que a colonização da Guiné frutificasse, o que não aconteceu. Ao tempo em que Chelmicki publica este magnífico documento, Honório Pereira Barreto tem na forja a sua desembaraçada Memória da Senegâmbia Portuguesa, onde diz verdades com punhos, só que Portugal caminha para a Regeneração e o fontismo e os negócios brasileiros ainda eram muito atrativos. As consequências, pesadíssimas, irão sentir-se ao longo da segunda metade desse século, com o ziguezague das guerras de ocupação, uma quase metade da Guiné enfronhada em guerras étnicas, os Fulas a impor a submissão de outras etnias e a estabelecer alianças com os Portugueses, tudo numa enorme medorra, nem na fortaleza de S. José de Bissau se vivia e podia dormir seguro. E sabe-se muito bem no que deu esta ténue presença portuguesa.
Um abraço do
Mário
Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (3)
Mário Beja Santos
José Conrado Carlos de Chelmicki é autor da "Corografia Cabo-verdiana ou Descrição Geográfico-Histórica da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné", em dois volumes, tendo sido o primeiro publicado em 1841. Este tenente do Corpo de Engenharia nasceu em Varsóvia, é um jovem quando vem combater pela causa liberal em Portugal, distingue-se pela sua bravura, foi Cavaleiro da Ordem de Cristo, da Torre e Espada, de Nossa Senhora da Vila Viçosa, igualmente condecorado em Espanha, distintíssimo oficial colocado em vários pontos do país, deve-se-lhe uma obra singular, uma descrição ampla e certamente documentada de uma Guiné que poucos anos depois da publicação dos Tomos I e II é alvo de um documento que vem confirmar o que ele observara na sua digressão numa Guiné sem fronteiras, refiro-me concretamente à Memória da Senegâmbia, de Honório Pereira Barreto.
Recorde-se que o nosso narrador procede a uma resenha histórica, fala na divisão da Guiné Portuguesa em dois distritos, no texto anterior fez-se um resumo de tudo o que ele nos diz do distrito de Cacheu e vamos seguidamente falar do distrito de Bissau. Abarca a fortaleza de S. José, as ilhas de Bolama e das Galinhas, o Ilhéu do Rei, Fá e Geba, computando a população sujeita às autoridades portuguesas em três mil habitantes. A Força Armada do distrito era composta por 145 praças. Falando em S. José, observa que há um ponto que Portugal possui na Ilha de Bissau sujeito a vários régulos, e que tem doze léguas de comprido sobre seis de largo. Recorda que foi no reinado de D. José I, em 1766, que se mandou construir a fortaleza que tem a forma de um quadrado abaluartado. A aguada faz-se uns 300 passos ao sul da praça, à beira-mar, nalguns poços escavados na profundidade de 5 a 6 palmos de areia, e trata-se de uma água que não é agradável ao paladar. É uma descrição minuciosa, temos um militar por detrás: “O fundeadouro defronte da praça é muito seguro em todas as estações porque o mar está sempre em calma com um fundo tão firme que com boas amarras em tempo algum há perigo. Apesar da bondade do porto, as entradas e saídas são de muita demora, visto que não é possível bordejar por causa dos numerosos baixos”. Dá elementos sobre o povoado de Bissau: “Umas 300 habitações, todas miseráveis palhoças, sendo seis mais sofríveis abertas com telha, formam a povoação que jaz debaixo do fogo da praça. Aqui assistem alguns negociantes portugueses, e o resto são pretos cristãos ou apenas batizados. Os gentios vizinhos não têm nenhum respeito, nem temor, deixam tremular a bandeira portuguesa por ser do seu interesse, tirando daqui a pólvora, aguardente e outros artigos que já são para eles quase de primeira necessidade. Todavia, vêm sempre ao mercado armados, e dizem por vezes que chegando as chuvas hão-de arrasar a fortaleza. É muito frequente matarem alguns habitantes da povoação e entram quando querem em casa do governador sendo muitas vezes paisano e negociantes, habita fora das portas da fortaleza, tiram-lhe o chapéu da cabeça ou algum outro traste que lhes agrada, e tudo isso ele sofre impunemente. O comércio é na totalidade explorado por Franceses, Ingleses e Americanos, porque navios portugueses poucos lá vão”.
E dá-nos igualmente outras informações sobre a nossa posição no distrito. Fala assim do Ilhéu do Rei: “Defronte do fundeadouro da Praça de Bissau está o lindo e arborizado Ilhéu do Rei, chamado pelos Ingleses e Franceses Sorciers e que nalgumas cartas portuguesas vem denominado de Superstição: nome que lhe foi dado por existir neste ilhéu a crença de que qualquer indivíduo que for caçar ou matar alguma coisa ali infalivelmente morre em breve. É de suma importância ocupar este ilhéu e talvez estabelecer ali sede das autoridades. O Governador Marinho por intervenção do Sr. Honório (Pereira Barreto) obteve em 1837 do gentio a cessão dele; resta agora fazer algum forte e construir casas para o governador e a tropa”.
É pormenorizado na descrição das ilhas dos Bijagós, faz largos comentários à cobiça inglesa, e depois segue para descrição de Fá e Geba. Fá situava-se a 40 léguas acima de Bissau, era uma posição ocupada depois de 1820, então um comerciante português dera início a uma feitoria que nos primeiros anos trouxe prosperidade, o comerciante morreu e o governador de Bissau mandou alguns soldados para ali. “Porém, não há forte algum, no ano passado havia um sargento e seis soldados desarmados que moram numa palhoça. O território pertence à Fidalga de Fá”. Geba situava-se a 60 léguas acima de Bissau, território de Mandingas. No princípio do século XIX tinha até 2 mil batizados que habitavam em 400 casas baixas. “Hoje existem ali só seis brancos. Há uma igreja que muitas vezes está sem sacerdote”.
Este general de origem polaca mostra que estudou metodicamente a geografia, as populações, o comércio, a indústria, é extremamente crítico sobre o estado geral das fortificações: “Não há senão miseráveis fortins, que fora do alcance da sua artilharia não exercem influência nenhuma, e os portugueses estabelecidos preferem o ganho fácil na troca dos géneros, à nobre, honrada e já tão adiantada arte nos países civilizados, a arte de cultivar a terra. O nome do colono tão estimado e honrado, é aqui ignorado. A fazenda da D.ª Rosa de Cacheu, no Poilão do Leão, é a única que existe nos limites da Guiné Portuguesa. Nos últimos anos, principiou o Sr. Honório alguma cultura da ilha de Bolama, e o Sr. Matos na das Galinhas; mas isto são coisas tão insignificantes que mal se podem mencionar. Talvez até a de Bolama já acabasse, desde que no ano passado os Ingleses invadiram esta ilha e roubaram ao colono 300 escravos que empregava nesta cultura. Na vizinhança de Farim, o Sr. Pascoal comprou terrenos que à falta de força não pode nem sequer semear por causa dos atrevidos ladrões gentios. A agricultura portanto não faz ainda nenhuns progressos nesta parte de África". E considera que chegou o momento de falar da população gentílica:
“Cada aldeia dos gentios é cercada de um vasto território, composto de bosques, prados e terras que são concedidas a quem quiser encarregar-se do trabalho e das despesas. No resto pastam os gados. Não é conhecido entre eles o direito da propriedade. A terra entanto é tão fecunda, que sendo húmida em oito dias depois de semeada já é um prado, em dois meses um campo coberto de espigas douradas. Nestes climas de fogo, a água é a principal condição de fertilidade. Todos os cereais, é verdade, são pequenos, de grão muito duro, mas em paga a natureza oferece aos mandriões dos habitantes palmas de diversas qualidades, milhares de várias árvores de fruta, debaixo das quais, tendo a sombra para abrigo e descanso, o suculento fruto lhes serve de alimento”.
E curiosamente vamos passar a ter informação sobre a cultura do arroz: “É principalmente cultivado no país dos Felupes, país abrangido entre o rio de Cacheu e o de Casamansa, ocupando uma região de mais de vinte léguas quadradas. Como o terreno é em parte lodoso, em parte arenoso, mas em geral cortado de regatos e alagadiço, promove muito as cearas de arroz que aqui se chamam bolanhas; como todavia, por falta de indústria nos seus trabalhos rurais, são expostos a verem num momento, pela invasão do mar, frustradas todas as esperanças da colheita. Não vendem nunca os Felupes a colheita do ano anterior sem terem já a do corrente segura. A única produção deste país é um arroz ordinário, muito miúdo, mas de bom gosto e de muita nutrição. A cor escura que ele tem, resultará talvez, como observou muito judiciosamente o Sr. Lopes Lima na sua Memória sobre os Felupes, de arrecadarem eles o seu arroz na palha dos sótãos das casas, aonde durante o decurso de todo o ano é exposto a um fumo insuportável. Nas beiras do rio de Cacheu cultiva-se também bastante arroz, que é muito claro, e de onde o vêm buscar os Ingleses da Gâmbia, e depois debaixo do nome desta sua colónia metem em comércio. A culpa disso não é só do Governo, como dos negociantes portugueses que deixam explorar aos estrangeiros um género tão lucrativo, não se lembrando que tomando o meio termo das importações, sai de Portugal só pelo arroz, 1 milhão e 300 mil cruzados por ano”. Refere igualmente Chelmicki que há culturas de milho, arroz, algodão e uma espécie de milho-painço nas vizinhanças das aldeias. Também refere que os Papéis de Bissau cultivam o arroz e o fundo. A lavoura dos Mandingas difere no milho e no arroz dos mais gentios. Mais adiante tem outra curiosidade: “Noutro tempo houve ali um grande ramo de comércio para Portugal, pimenta da Guiné. Os holandeses ao fim de muitos esforços conseguiram desacreditar tanto esta como a de S. Tomé, para poder lucrar mais na sua, que traziam das Molucas; por isso hoje, totalmente deixado ao esquecimento, esta especiaria já não é procurada”.
Exposto o estado da agricultura em Cabo Verde e na Guiné, enfatiza as causas, tome-se em consideração que ele está conjuntamente a falar de Cabo Verde e da Guiné: a imensidade dos morgados; os caminhos impraticáveis; a falta de instrução e educação; a miséria em que são criados os habitantes; a falta de povoações e o facto de não se facilitar aos colonos estrangeiros o seu estabelecimento. Mas Chelmicki ainda tem muito para nos dizer, a indústria, o comércio, o sistema defensivo e muito mais.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22147: Historiografia da presença portuguesa em África (260): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (2) (Mário Beja Santos)
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