Queridos amigos,
A exigência de Annette move montanhas, ao pôr em marcha uma cronologia de acontecimentos, no caso vertente uma comissão na guerra da Guiné, esta meticulosa organizadora descobre que falta um antes, ninguém entra diretamente num teatro de guerra, embarcou, encontrou gente, desembarcou e deu com nova gente, sentiu-se ou não embeiçado por tudo quanto estava a ver e que nada tinha a ver com o mundo de onde vinha, embora não houvesse engano que aquela cidade de Bissau era um proscénio dos territórios onde se combatia, bastava ler aquelas viaturas, aqueles seres fardados para se intuir que era daqueles bastidores que se chegava aos muitos palcos por onde se espalhava a guerrilha e a contraguerrilha. E Annette quis saber ao pormenor o que se passou entre o cais de Alcântara e uma travessia de canoa para uma extensa picada enlameada, esburacada, que levava até Finete e cerca de 16 quilómetros à frente, a Missirá. E da correspondência que está a receber da adaptação no seu adorado Paulo Guilherme a Bambadinca confunde-a um turbilhão de coisas em que ele anda envolvido, tenta perceber porque é que ele está a chegar a um estado de depressão, e é razão essencial para se procurar entender o conteúdo desta carta.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (51): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Annette adorée, de plus en plus adorée, foi muito consolador termos estado ontem à noite tanto tempo ao telefone, a preparar tão ardorosamente uma semana para nós, aproveitando os meus feriados de junho e as tuas folgas relativas a fins de semana vividos em conferências de trabalho. Pediste-me em concreto duas coisas para a constituição do dossiê da minha comissão, tarefa que levas cada vez mais a sério. Em primeiro lugar, queres ver esclarecido todo aquele período anterior a Missirá, embarque, a viagem, a chegada a Bissau, como de Bissau viajei pelo Geba até Bambadinca, as primeiríssimas impressões de Missirá e Finete. E por último, mesmo sabendo que estás a tocar em pontos um tanto íntimos, como é que eu te enviei um apontamento em que falava de um estado de depressão, ainda não era havido um mês em Bambadinca, o que eu chamei a ansiedade à espera do que há de haver. Vou enviar-te filmes retirados dos arquivos da televisão portuguesa quanto aos embarques no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, perto de Alcântara, por ali passeámos a pé até ao Padrão dos Descobrimentos, lembras-te? A censura não deixava passar as cenas lancinantes de mães e mulheres agarradas aos filhos, eram quadros comoventes, ninguém ignorava os mortos e os estropeados. Verás lenços brancos, as tropas perfiladas, os acenos no portaló, nas amuradas, as famílias espalhadas ao longo do cais ou nas varandas. E o navio a afastar-se, e cada um de nós à procura do lugar onde estacionar, já se sabia qual o camarote que nos fora destinado, no caso dos oficiais, e eu queria ir cumprimentar os meus antigos soldados da Amadora, quem tinha sido afastado por ser considerado “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Desci ao porão e vi aquilo que está escrito em inúmeros livros, as condições indignas em que ali se vivia, com o passar das horas e dos dias todas aquelas atmosferas ficarão fétidas com tanta gente a vomitar, para muitos era a sua primeira viagem de barco. As praças comiam mal e porcamente, os oficiais, pelo contrário, todos sentados à mesa, menu à frente, sempre variado. Como viajava com o estatuto de rendição individual, cedo encontrei rapaziada dos cursos de Mafra e logo confraternizámos. Entre refeições havia conversas soltas, admirava-se o mar e até os peixes voadores, havia intermináveis jogos de cartas, perguntas sobre o destino de muitos dos outros dos nossos cursos. E assim se passaram aqueles poucos dias até que num dado momento se percebeu uma alteração na temperatura do ar, parecia termos entrado numa turbina de vapor e olhos mais capazes apontaram para tufos de arvoredo, o navio Uíge parecia que ia a apontar para um largo canal, veio depois uma embarcação que se pôs à frente como se estivesse a marcar o compasso da viagem, a vegetação crescia, tal como a humidade, viam-se pirogas, gente a trabalhar em campos alagados, e depois casario misturado com casas circulares com tetos de palha, ou coisa parecida, e muito lentamente o navio lançou ferro em frente de uma pequena cidade, da luz do fim de tarde rapidamente se passou à noite, houve jantar de festa, meteu lagosta e espumante, muita doçaria. E depois fomos convocados para um salão onde uma equipa de sargentos chamava como pregoeiros em leilão os nossos nomes, quando anunciaram o meu disseram que eu ia para o Enxalé, finda a reunião recebemos ordens para descermos com os nossos haveres até a uma embarcação que nos poderia em terra onde teríamos transporte para Santa Luzia. Ia havendo um acidente grave com um dos meus malões, soltou-se uma das pegas, o militar que ia à frente bem tentou encostar toda aquela carga ao casco do navio, o que interessa é que o malão seguiu disparado para dentro da embarcação, foi tal o alarido que deu tempo a vários oficiais fugirem do pesado intruso que ficou descansado no fundo da embarcação, e bom trabalho deu para ser transportado para terra e daqui para o camião que nos deixou em Santa Luzia. Era a madrugada de 29 de julho de 1968 quando eu e mais três alferes recebemos a chave de uma moradia e metemos todos os nossos trastes lá dentro, acalmámos as emoções e respeitámos o sono de cada um. Depois de almoço, fui ao quartel-general apresentar-me, um outro sargento informou-me que partiria num barco civil a partir do cais do Pidjiquiti ou a 1 ou a 2 de agosto, que lá fosse saber sempre da parte da manhã ou da parte da tarde, logo no dia 30. Dei-lhe a confirmação de que ia para o Enxalé, não senhor, vai para Bambadinca, de lá segue para o seu destino.
Acicatado pela curiosidade, procurei Bissau, nada de viaturas, tudo a pé, para ver e sentir os primeiros contatos com África. E dei comigo a observar aqueles andares bamboleantes de mulheres com vestes garridas e filhos nas costas, homens que caminhavam com andar de reis, uma postura hierática dentro de vestes brancas, vozes estrídulas, crianças que pareciam brincar com arcos ou jogar à macaca, nas bermas da estrada um casario pobre, mesmo abarracado, com pontos de mercado de levante, jovens a vender pacotes de amendoim, e aproximaram-se de crianças de mão estendida dizendo “parte peso!”, vim a saber que estavam a pedir uma moeda de escudo, a viagem prosseguiu até virar à direita para uma praça onde se impunha o Palácio do Governador, uma rotunda ajardinada com um estranho monumento, uma haste de pedra a subir aos céus, aproximei-me e li que se tratava de uma homenagem ao esforço da raça, termo mais exótico para aquela construção com uma mulher nua à frente não me teria ocorrido. Depois descobri um café, o sabor de uma boa bica e desci uma avenida chamada da República, em direção ao cais de onde partira na véspera e de, dentro de dias, seria encaminhado do rio Geba até ao meu destino.
Meu adorado amor, era tudo descoberta, andei a pé no mercado dessa Avenida da República, havia um cinema com o nome UDIB, mais abaixo dei com a catedral, nome excessivo para a dimensão do templo, passei por um edifício pintado de azul, uma bela construção em ferro, dizia Pensão Central, infleti à esquerda para ruas que me disseram ser o Bissau Velho e com ligeiras adaptações me pareceram reminiscências de casario das Beiras, sobrados no rés-do-chão e habitações por cima circundadas de varanda. Os dias passaram rapidamente, recebi guia de marcha e instruções para no dia dois de manhã estar num determinado ponto do cais, ali apareceu um furriel que saiu de um jipe e me entregou um garrafão de água e uma ração de combate. Passava das dez da manhã quando entrei num barco civil, já cheio de homens, mulheres e crianças, lá entraram os meus malões, uma mala de roupa e um saco de livros, mais a bebida e comida para as cerca de dez horas de viagem. Um petiz, aí de 8/9 anos, um rosto cheio de esperteza, linguagem fluente, meteu conversa, de dedo apontado foi-me indicando os diferentes locais por onde passávamos: “Ali ao fundo é Jabadá, passaremos por lá ao entardecer, mas antes o barco para em Porto Gole, sai gente, sai mercadoria, entra gente, entra mercadoria”. Deu para perceber que Porto Gole tinha alguma dimensão, Jabadá continuou a ser um ponto ao longe, e abruptamente anoiteceu, a voz do petiz já não era tão vivaz, agora temos que ter cuidado, o nosso rio vai estreitar, há sempre o perigo de sermos atacados. Ninguém nos atacou, mas por um bom lapso de tempo navegou-se num silêncio sepulcral, e depois aquele barco andava ziguezagueante, e noite fechada, dentre o espesso arvoredo, vi alumiado o cais de Bambadinca, muita gente à espera, a alegria da chegada, a garrulice da miudagem, e também um jipe à minha espera, os meus dois transportadores não acharam graça nenhuma à carga trazida por aquele novo alferes, um deles, não escondendo a ironia, até me perguntou se dentro daqueles esquifes de madeira não vinham obuses ou caixas de munições…
E subo a rampa de Bambadinca, a primeira de muitíssimas vezes, o jipe para dentro de uma construção num longo U, sou informado que vou para aquele quarto, a resfolegar depositam a carga e despedem-se, que estivesse descansado, a messe de oficiais tinha-me guardado o jantar. Passei uma porta de vaivém, veio gente ao meu encontro, apresentações sumárias, serviram-me a comida que bem me soube depois dos enlatados acompanhados de água engarrafada. Pretextando fadiga lá fui para a minha camarata em miniatura e dormi como um justo. O resto Annette, conheces muito bem, pela manhã do dia seguinte, depois de uma rábula bem montada como apresentação do que me esperava no Cuor, fui avisado solenemente que ai de mim se falhasse alguma vez a proteção de Mato de Cão, foi advertência que nunca mais esqueci. E para ser breve, depois de um mês em Bambadinca, de novembro para dezembro de 1969, começo a ensimesmar com aquela vida de quartel que parece ter horários de funcionalismo público e um conjunto de unidades que acorre às mais díspares tarefas, há muitos sinais de inquietação, o PAIGC está ativo nas redondezas, intimida com incêndio de moranças, roubos de vacas, assalta ou flagela tabancas em autodefesa, há informações de que se vem abastecer às claras a Mero ou aos Nhabijões, a nossa contraparte é patrulhar, visitar as tabancas, e descubro rapidamente que temos que fazer colunas até ao Xitole, operações em Mansambo e no Xime e as malfadadas emboscadas à volta da pista, não há horários, aquilo não é intervenção, é um posto de socorro, aqueles patrulhamentos à volta da pista põem-me os nervos em franja, insidiosamente adoeço, ganho insónias, ando amargurado, resmungo, começo a dizer em voz alta que ando farto de tanta vadiagem, de tanta nomadização sem critério. Mas isso, meu adorado amor, vou completar com tudo quanto se passou nesse período de dezembro para janeiro, tens que ter paciência, houve para ali tanta coisa dolorosa que vou rememorar a custo.
Não tenho palavras para te agradecer o passeio que tu preparas de Ypres até ao cemitério de Pas de Calais. Mas o mais importante de tudo é estar ao pé de ti, meu prenúncio de que em breve viveremos sempre juntos, e agora não importa saber onde, porque tu és a fonte da minha vida, essa estuante ternura que me dás é o pomo da minha alegria. Bien à toi, et toujours, Paulo
Missirá, onde cheguei em 4 de agosto de 1968, e escrevi bem afligido para Lisboa, muito mais tarde, a recordação do primeiro contato: "Mal avistei o destacamento onde vivi 15 meses ininterruptamente, apertou-se-me o coração: o quartel tinha os postos de vigilância velhíssimos, o armamento era obsoleto, a mata avançava densa e perigosamente para o arame farpado, não sei o que a guerra me reservava, mas tinha pela frente um plano de obras públicas que me ultrapassava, para o qual não estava minimamente preparado”. Pois aconteceu, e não me dei mal com o produto final e com a saudade que dele ficou.
Pescadores bijagós, Imagem retirada do blogue LusONDA, com a devida vénia
Antigo posto militar da Ilha das Galinhas, fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.A sombra do poilão, uma quase atmosfera mágica
A estrada Xime (à direita) - Bambadinca (à esquerda), com a respetiva ponte no rio Undunduma, imagem do blogueMulheres na pesca
____________Nota do editor
Último poste da série de 30 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22155: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (50): A funda que arremessa para o fundo da memória
2 comentários:
"Contato", "contato", "contato"... Este blogue é brasileiro? Também escrevem "fato" em vez de facto?
Na foto da Ilha das Galinhas, de Francisco Nogueira, podemos ver a floresta a "comer" uma casa abandonada de cimento e pedra no espaço de tempo de cerca 50 anos.
Evidentemente, não se trata duma grande almoçarada por mais de mil de anos, como na floresta da América Central e do Sul, mas é mais um testemunho da dieta da floresta apreciadora de edifícios de envergadura variada.
Valdemar Queiroz
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