Foto nº 1 > Barroso, Montalegre, Covelo do Gerès > Carreto da lenha (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 32)
Foto nº 2 > Chaves, Soutelinho da Raia > Segada (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 24)
Foto nº 3 > Barroso, Montalegre, Paredes do Rio Antiga esc0ola, com cobertura de colmo (Fonte: Fontes, 1977, op cit, foto 4)
1. O Padre Fontes é uma figura popular na sua região (Barroso, Trás-Os-Montes, concelhos de Montalegre e Boticas). Tornou-se melhor conhecido, e desta vez a nível nacional, quando em 1983 organizou o primeiro Congresso de Medicina Popular para escândalo de alguns, a começar pelo seu bispo, de Vila Real, que náo gostou da "heresia" de misturar o sagrado e o profano, Deus e o Diabo.
É padre e etnógrafo. Conheci-o no verão de 1980, na sua casa em Vilar de Perdizes, Montalegre. Fui passar férias em família, mais um grupo de amigos, em Pitões das Júnias, Montalegre (a aldeia mais alta de Portugal, na serra do Gerês, a par da Gralheira, Cinfáes, na serra de Montemuro, ambas a cerca de 1110 metros acima do nível do mar), e onde a maior parte (ou boa parte) das casas ainda eram de colmo; teria na altura c. de 238 habitantes, hoje menos de 151, contando na emigração, desde o Rio de Janeiro a Paris, pelo menos o triplo da população de 1980).
E devorei dois dos seus livros, Etnografia transmonta, 1º volume: Crenças e tradições do Barroso, 1974; 2º volume: O comunitarismo de Barroso, 1977.(*).
Deste segundo volume tomamos a liberdade de reproduzir alguns excertos onde se descreve, resumidamente, traços do comunitarismo agropastoril de montanha (Rio de Onor e Vilarinho das Furnas eram até aos anos 50 os exemplos mais típicos e estudados), traços esses que chegaram aos anos 70, no Barroso , e que hoje inevitavelmente desapareceram, ou tendem a desaparecer ou a transformar.se com as profundas mudanças económicas, sociais, demográficas, tecnológicas e culturais ocorridas desde então.
O Lourenço Fontes, ele próprio um Barrosão de alma e coração, começou a fazer recolhas etnográficas, desde os primeiros tempos de seminário, nos anos 50, sendo a sua própria mãe uma primeira (e privilegiadfa) fonte de informação e conhecimento.
Barroso (ou Terras de Barroso) em sentido restrito é a região tradicionalmente formada pelos concelhos de Montalegre e Boticas.
Em homenagem a este homem, e naturalmente aos demais homens e mulheres do Barroso [ região de Trás-os-Montes que todos nós conhecemos mal, ficando pela "carne barrosá" DOP, o "vinho dos mortos" (Boticas) ou o "presunto de Chaves" e pouco mais... ] , damos a conhecer alguns dos seus escritos, que também falam de "coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços" (*).
Além disso enriquecem o nosso vocabulário, havendo aqui termos e expressóes que não são familiares à maior parte dos nossos leitores, nomeadamente citadinos, e alguns dos quais nem sequer ainda vèm dicionarizados:
- quentar o forno
- ferrenhas
- boi do povo
- chegas
- pastoria
- limpaderia
- tocar gado
- manteça
- carreto da lenha
- segar
- mangação
- colmar / colmador
- soqueiro
- cabaneiro
- boticairo
- ceibe
- pontilhão
- merca
- couto
- ementes o vizinho vai botar um copo / ementes ninguém vem
- à roda do povo
- ó ano
- banços do andor
- pau de lodo
- fojo do lobo
- ardenhas
- estadulhada, etc.
Excertos > Coletivismo agropastoril: Manifestações atuais e antigas do omunitarismo em Barroso - Parte I (pp. 55-57)
Referência: FONTES, António Lourenço - Etnografia transmontana: II - O comunitarismo do Barroso. Montalegre, ed. do autor, 1977, il., 299 pp, + 48 inum, (Tipografia Minerva Transmontana, Vila Real).
(..:) Toda a vida
do barrosão está imbuída de sentido comunitário, familiar.
Todos os
trabalhos pesados ou leves são motivos de entreajuda e colaboração:
- a segada
do centeio, do feno,
- a recolha dos mesmos,
- o arranque ou plantação da batata,
- a
malhada,
- a desfolhada do milho, onde ele predomina,
- o carreto da lenha,
- a cavada
do centeio,
- o arranjo dos caminhos,
- a abertura dos regos ou presas de rega,
- os próprios moinhos comunitários,
- o forno e a sua obrigatoriedade de quentar,
- a utilização dos baldios, seja para pasto, carvão, lenha, roçar mato ou fazer a cavada
são manifestações evidentes e reminisiscências de uma unidade familiar de cada aldeamento.
O boi do
povo, um dos maiores proprietários da aldeia, é
de todos os que têm vacas. Todos colaboram na sua manutenção e pastoria.
Todos têm de lhe ir:
- segar e recolher o feno,
- semear as batatas do boi,
- recolhê-las,
- pedir pão ou milho ou mesmo roubá-lo, quando os mais velhos os não
querem dar às boas.
Em Cambezes, quando é o tempo das ferrenhas tenras, o boi anda
à roda pelos vizinhos, cada um tem de dar ferrenha ao boi ou bois, tantos dias como de vacas têm para cobrir.
Todos pagam ao pastor do boi, conforme o número de vacas.
Em Pitões pagam em alqueires de centeio ao que guarda o rego da rega, no tempo da
respetiva. O tratador é gratuito, trata do boi para vender ou chegar com outro.
Nas chegas, o desporto usual das aldeias do Barroso, todos
vão acompanhar o seu boi, de pau na mão, e rogar aos santos da igreja que ele seja
campeão.
Se não for
campeão, ou o vendem, ou o tratam para vir a sê-lo. Por isso, nem
sempre o ser bom reprodutor é o motivo de conservar um boi, mas o ser o melhor
lutador. Está aqui uma das razões da degenerescência da raça Barrosã, além de
outras.
Nas festas
religiosas, mistas de superstição e de cristianismo, também o sentido de responsabilidade se
reparte por todos à roda. Cada comissão nomeia, para o ano seguinte, a comissão
respetiva. Um juiz e os mordomos necessários para angariar fundos pedindo
pelas aldeias, de saco e alforge, esmola para o santinho. Há devotos que fazem,
então promessa de ir pelas aldeias, fazer uma penitência.
No dia da festa, todos
têm de colaborar na manteça dos músicos, do armador, do fogueteiro, dos padres, gratuitamente e as horas que fizerem falta.
Nas
procissões, os rapazes novos têm até brio de serem eles a pagar, para pegarem
nos banços dos andores. Arrematam o banço do andor e todo o percurso, arrotam
com o peso de enormes andaimes, em que vai o santo ou santos enfeitados com
sedas, balões, fitas, luzideiras estrelas, anjos de papel, dinheiro, etc.
Nas feiras e
festas a rapaziada junta-se em determinado local, mais ou menos central, ou a
saída do povo, cada qual com o seu pau de lodo, antes, hoje com a sua pistola
no bolso. [ A GNR acabou com os paus, diz o autor em nota de rodapé, pág. 56]
Se tocam gado para a feira, cria, vaca, porco ou burro, esperam uns pelos outros, ou
tocam uns o gado dos familiares e vizinhos. Para as crias irem melhor, há um
que toca as vacas, para apoio das crias
ou vitelos de todos.
Na feira, guardam o
gado, ementes o vizinho vai botar um copo, à tenda e, se calhar, até lha vende, pois já sabe quanto
vale e quanto tem de pedir aos mercadores, que passam, fazendo mangação dos possíveis
exorbitâncias do lavrador acanhado, envergonhado no pedir.
Nos barulhos
ou contendas, entre pessoas da aldeia diferentes, também a coesão e unidade se
manifesta. Um por todos e todos por um, gritam logo. E toca de desgalhar paulada
ou estadulhada nos inimigos do nosso vizinho.
Há aldeias que não se ligam bem,
apesar de serem da mesma freguesia ou muito próximas, que não se gramam por uma pequena questão particular. O Jogo do Pau era espectáculos nestas marés. (Salto).
Até no
estrangeiro, o emigrante barrosão vive e pratica o mesmo modo de vida
comunitária. Mal tem trabalho, logo chamam a família e amigos que podem para
ali fazer uma segunda aldeia familiar comunal.
Que o digam todos as comunidades
de Barrosões em várias cidades do mundo. Ludlow, Milford, New Bedford, Mass e Bridgeport Conn, New Jersey, N.W, nos Estados Unidos da América do
Norte. Em Montreal, Ontário, no Canadá. Em São Paulo, Rio, no
Brasil. Em Paris, Londres, S. Sebastião, Orense, África, Angola ou Moçambique, eram notadas as comunidades de Transmontanos, especialmente os Barrosões, pelo
seu sentido de união e colaboração como sendo de uma família só.
Na
manutenção do padre e da conservação de monumentos de interesse público, todos
contribuem, por derrama com a sua quota parte, ou com dias de
trabalho. ao padre Todos pagam em alqueires de pão ou milho, vinho, segundo tabela
antiga, e segunda as posses das famílias.
Ao padre dão além disso, a lenha para
todo o ano, na matança, dão-lhe o melhor do porco, a assadura, a rodela
do pescoço e a língua, para que fale bem na igreja; vão.lhe fazer os trabalhos
agrícolas, dão-lhe feno para o cavalo etc.
Os altares das capelas têm zeladoras, à roda do povo ou por promessa. As capelas são conservadas por comissões, nomeadas autonomamente, pelos vizinhos.
In: Etnografia transmontana: II - O comunitarismo do Barroso. Montalegre(pp. 55/57)
© António Lourenço Fontes (1977).
(Continua)
[ Seleção / fixação e revisão de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste; LG. (Com a devida vénia ao autor... ]
______________Notas doo editor;
(*) Ver aqui um resumo biobliográfico;:
António Lourenço Fontes, mais conhecido por Padre Fontes, nasceu em Cambezes do Rio, Montalegre, Barroso, em 1940. É um padre católico português "com ampla ação cívica, social, cultural e literária", diz a Wipédia.
É o principal impulsionador do Congresso de Medicina Popular, em Vilar de Perdizes, Montalegre, e das "Sextas-Feiras 13", em Montalegre. O Congresso de Medicina Popular realiza-se desde 1983 atrai curandeiros, bruxos, videntes, cartomantes, etc,. além de psiquiatras, antropólogos e... turistas de todo o lado (Em 2023, foi a 37ª edição). Outro evento, que se realiza desde 2002, sob a organizaçáo da Câmara de Montalegre, é a "Noites das Bruxas" que decorrem em todas as "Sextas-feiras 13").
Oriundo de um família pobre, de 12 irmãos (o pai esteve emigrado na Américva, em 1927), Lourenço Fontes fomou-se no seminário em Vila Real (1950-1962). Em 1980, concluiu a licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Já desde o seminário era uma figura rebelde e contestatária ("com um terço na mão e o diabo no coração", escreveu ele no seu diário secreto da adolescència). Como jpvem padre, desterrado em Tourém e depois colocado em Vilar de Perdizes, lutou contra a situação política em vigor até ao 25 de Abril de 1974 bem como contra a guerra colonial. No Barroso morreram 41 jovens na guerra de ÁfriCA: 12 em Boticas: 12 ( sendo 3 no TO da Guiné); e 29 em Montalegre (9 no TO da TO da Guiné).
Um dos mortos foi o Manuel Lourenço Fontes, que pode ser irmão ou parente do Padre Fontes: tem o mesmo apelido, é natural da mesma terra, Cambezes do Rio, Montalegre, era sold at inf, CCAÇ 2321 / BCAÇ 2837, morreu em combate em 5 de janeiro de 1969, na serra do Mapé, no TO de Moçambique, juntamente com mais 6 camaradas.
O António Lourenço Fontes editou e colaborou em várias obras: Etnografia Transmontana (2 volumes), Usos e Costumes de Barroso, Milenário de S. Rosendo, Antropologia da Medicina Popular Barrosã, Chegas de bois, Raça Barrosã, Las fronteiras invisibles, Contos da raia, Crenzas e mitos da raia seca ourensana, Ponte da Mizarela, ponte do diabo, Roteiro dos castros de Montalegre, Roteiro dolménico de Montalegre.
Tem ampla colaboração em vários jornais e revistas regionais. Colaborador permanente da RTP, TVE, TVG. Participou em filmes da região: Terra de Abril, Terra Fria, 5 dias e 5 noites, Não cortes o cabelo que meu pai me penteou, Os demónios, documentários para a BBC, TV da Holanda e França, UNESCO, Odisseia...
Fez centenas de conferências por todo o país e no estrangeiro, em universidades, grupos culturais, escolas, autarquias, etc. Organizou diversos congressos, nacionais e internacionais.
Fundou e dirigiu o mensário Notícias de Barroso (de 1971 a 2006). Exerceu as funções de empregado, chefe de pessoal nos Serviços Médico Sociais de Vila Real (Montalegre), de 1973 até 1990. Exerceu as funções de secretário do gabinete da Presidência na Câmara Municipal de Montalegre desde 1990 a 2000 e reformou-se.
É considerado o maior etnógrafo de Trás-os-Montes depois do Abade de Baçal. O Ecomuseu de Barroso tem o seu nome. Em 2012, por iniciativa dos deputados eleitos pelo distrito de Vila Real foi solicitado ao Presidente da República Portuguesa que o Padre Fontes fosse distinguido com a Ordem do Mérito.
Apesar dos seus 83 anos e da doença de Parkinsom, ele continua a ser um trabalhador incansável e um Barrosáo apaixonado pela sua terra.