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domingo, 23 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24499: (In)citações (257): Não basta sermos velhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


NÃO BASTA SERMOS VELHOS

adão cruz

Esta reflexão não é só em relação ao SNS que existe, mas também ao SNS que poderia vir a existir se houvesse vontade política. Ao que o SNS poderia vir a ser, se houvesse uma vontade séria de eliminar os defeitos, as imperfeições e as carências, no sentido de o amparar no seu tão ansiado e promissor caminho de um futuro indispensável à saúde de um povo.

Hoje, o conhecimento e a experiência médica são muito grandes. A investigação científica atingiu uma dimensão incalculável e a sua aplicação prática trouxe avanços inimagináveis na assistência aos doentes. Existem muitíssimos profissionais idóneos, com excelente formação técnica e humana e com grande vontade de colaborar no radioso futuro de um SNS de alto nível, mas também se verifica o contrário, nesta furiosa corrida ao desumano negócio da saúde. Apesar de estarmos num bom lugar a nível mundial, não podemos escamotear os defeitos, grandes imperfeições e carências em toda a assistência médica em Portugal, sobretudo na incapacidade de atendimento atempado e na ausência de um exercício clínico profundo e correcto, A substituição da sábia observação clínica de um doente por um computador e por uma fábrica de exames, a avaliação clínica atamancada e a abordagem vulgarmente negligente e irresponsável da situação do paciente, pode redundar em diagnósticos errados, prescrições inadequadas e exames dispendiosos, muitas vezes nefastos e até mortais.

Vem tudo isto a respeito do doente idoso, isto é, aquele doente da chamada terceira idade. Este doente é muito diferente do indivíduo jovem. É mais atingido por doenças, especialmente doenças crónicas e tem muitas comorbilidades. Além disso, as alterações fisiológicas próprias da idade são comuns, levando a problemas de absorção, de metabolismo e de excreção de substâncias.

Chegado ao ponto intencional deste pequeno texto, eu queria dizer que quando há necessidade de prescrever um medicamento a uma pessoa idosa, os principais problemas prendem-se com as patologias não tratadas ou patologias mal tratadas, com a indicação de tratamentos e fármacos inadequados, com a polimedicação, com o baixo nível de instrução, com as fracas condições sociais e económicas, e, sobretudo, com as reacções adversas aos medicamentos e as interacções medicamentosas. O idoso tem duas a três vezes mais probabilidades de sofrer uma reacção adversa do que um jovem. Um idoso a tomar vários medicamentos tem grandes probabilidades de interacções e reacções mais graves e de mortalidade duplamente mais elevada do que as pessoas mais novas.

Neste drama da terceira idade, porque de um drama se trata, essencialmente por passar à margem da responsabilidade e do bom senso, centra-se um dos maiores defeitos e um dos mais graves problemas da assistência médica, pública e privada. Não a que é praticada por profissionais conscientes, responsáveis e competentes, mas a que se faz em muitas dessas clínicas, por vezes quase de vão de escada, que por aí proliferam. A ignorância, a incompetência e a falta de juízo crítico e clínico estão na base de boa parte da morbilidade e mortalidade desta faixa etária.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24480: (In)citações (256): Sigamos a andorinha de Candoz (Luís Graça)

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23944: Blogoterapia (310): Não estou bem, e como anteriormente já dissera, voltei a ir para o "Corredor da Morte" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Gaspar, ex-Fur Mil Art, Minas e Armadilhas da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 2 de Janeiro de 2023:

Caros Camaradas Luís, Carlos e Todo o Blogue,
É do Vosso conhecimento que fui hospitalizado no Hospital das Forças Armadas (HFAR) em janeiro de 2022 e de 35 depois transferido para a Clínica de São José de Camarate.
Após Alta volto a ser hospitalizado em 25 dias em julho. Para cúmulo regressei ao HFAR no dia 30 de dezembro, encontrando-me hoje em casa, tendo de ser internado amanhã de Urgência no Hospital de Santa Maria.

Não estou bem, e como anteriormente já dissera voltei a ir para o "Corredor da Morte". A Medicina no meu caso falhou desde o início. Um exemplo: - Pesava em janeiro 100 quilogramas e após um mês tinha 58,5. Julgo estar neste momento com 70 quilos.
Em lugar de se virarem para o coração (sou cardíaco), foram à procura de outros problemas.

Camaradas, não entendo este nosso grande SNS.
Alimento-me, pessimamente, de iogurtes, queijo fresco, sopa e pouca fruta devido a diabetes.

Abraços para toda a Tabanca, em breve, se possível darei novas.
Mário Vitorino Gaspar

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23844: Blogoterapia (308): As desejadas férias e a angústia do regresso à Guiné (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

terça-feira, 31 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23314: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte IX (Penúltima)

1. Continuação da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte IX

Durante a minha permanência em Có tive alguns casos de saúde muito complicados que me obrigaram a puxar pela minha cabeça e pedir a Deus ajuda e inspiração.

Um deles aconteceu pelo Natal de 1970. Um dos militares tinha recebido nesse dia uma encomenda da família onde vinham enchidos. Acontece, que devido ao tempo da demora da chegada e principalmente com as diferenças de temperaturas, estes enchidos já não chegaram em bom estado de qualidade.

Aproximou-se a noite e, eis que aquele militar, juntamente com alguns amigos, veio ao meu encontro gritando de desespero tal eram as dores de cabeça sentidas e o aumento de volume desta. Fiquei impressionado com o que estava observando. Pensei primeiro, em procurar um contacto Médico via rádio, mas o desespero do militar fez com que eu me concentrasse e arriscasse um primeiro tratamento que sabia mal não lhe faria. Deste modo, ordenei ao Enfermeiro que naquele dia tinha como ajudante ao Posto Médico, aplicar-lhe uma injeção indo-venosa para combater a alergia e, logo de seguida, uma injeção anti palúdica. Entretanto e finalmente, dirigi-me ao posto de rádio para que me localizassem um Médico.

Finalmente um Médico entrou em linha comigo a quem relatei o acontecido bem como as medidas que já havia tomado. Do outro lado da linha a voz do Médico deixou-me tranquilo e de certo modo feliz, por ouvir que melhor ele não teria feito. Na verdade, fui encontrar o paciente mais calmo. Disse-lhe para se ir deitar e, acaso as coisas se complicassem, para rapidamente me chamarem. Respirei fundo e ouvi palavras carinhosas do capitão da Companhia que, com um abraço me agradeceu por me encontrar com eles naquela unidade.

Um outro caso que também já mais esquecerei, aconteceu com uma criança de tenra idade já que apenas tinha cerca ano e meio.

Eram já cerca das dez horas da noite quando ao meu quarto o Capitão me foi chamar preocupado com a criança que estaria a morrer e, com mãe, que desesperada, com a criança nos braços, chorava.

Vesti-me rapidamente dirigindo-me ao Posto Médico para observar a criança. Fora deste, muitos militares se juntaram mais alguns civis da aldeia de Có.

Deitado já na maca, verifiquei que a criança vinha gelada e com os membros apresentando rigidez. Da sua boquita brotava espuma que lhe dificultava a respiração que, por sinal, já não se sentia. Pedi ao Enfermeiro que naquele momento tinha para me ajudar que lhe sugasse a expetoração enquanto eu com uma agulha fui picando a base dos seus pezinhos tentando ver se tinham recção. Nada! A criança tinha entrado em coma. Como já não se podia evacuar a criança para o Hospital em Bissau por via aérea, dado o avançado da noite, aos choros agonizantes da jovem mãe, concentrei-me e mentalmente pedindo ajuda ao Criador, mandei preparar meia injeção de Coramina ao mesmo tempo que comecei a fazer-lhe massagem cardíaca e respiração boca a boca. Todo eu já transpirando eis que, de repente, vi mexer uma pestana e dei um grito de alegria dizendo “já temos homem!”. Continuei fazendo massagem cardíaca até que a criança abriu os olhos e começou a chorar. Em pensamento agradeci a Deus que me inspirou. Recebi um abraço forte da jovem mãe. Todos os companheiros militares se encontravam comovidos. O Capitão deu-me um grande abraço e pediu ajuda para que de Bula onde se encontrava uma Companhia de Cavalaria, visse das possibilidades de transportarem se possível, a criança mesmo de noite para Bissau juntamente com a mãe, a fim de poder ser bem observada no Hospital. É a principal e gratificante recordação do meu trabalho na saúde que trouxe da Guiné.

Um outro acontecimento que acompanhei em Có foi quando um dia já noite, o quartel ficou em polvorosa com o aparecimento junto ao comando de um homem fisicamente bem constituído e com a saliva a escorrer-lhe da boca tal a raiva que trazia dentro dele ou, como suspeitei, a quantidade de droga que teria ingerido para vir preso à capela por populares da aldeia. Vinha preso com uma corda pela cinta com duas pontas da corda soltas onde, três de cada lado desta, controlavam o avanço de ataque para cada um dos lados. Os populares que o traziam amarrado, cheios de medo diziam que o dito já tinha matado um homem à dentada na aldeia e gritava que vinha para matar o Capitão China.

O Capitão Rodrigues, natural de Macau e de origem chinesa, ficou assustado com a convicção do prisioneiro que mesmo ali manietado, continuava lançando ameaças. O Capitão, voltando-se para mim solicitou-me que, com medicação, conseguisse dominar a fera de modo a ser possível ficar em prisão durante a noite de modo a poder ser enviado para Bissau no dia seguinte. Naquela noite, fiquei já com poucas dúvidas, da utilização de drogas por parte do PAIGC em ações suicidas levadas a cabo por parte da guerrilha. A quantidade de saliva que escorria da boca do homem mais o seu olhar de fera enjaulada, tiraram-me qualquer dúvida. Foi um fim de dia atribulado.

Recordo-me do último Natal que passei na Guiné (Natal de 1970) em Có. Estas datas eram muito atribuladas porque por norma, a guerrilha adorava flagelar os nossos quartéis. Um ambiente carregado e melancólico se fazia sentir porque, tínhamos os nossos militares patrulhando a zona, e deste modo, termos a garantia de segurança. A ceia só seria servida com todos já regressados do mato.

Enquanto esperávamos pelo regresso dos nossos militares ausentes, recordo o Capitão Rodrigues sentado ao balcão do pequeno bar que lá possuíamos, bebendo cerveja acompanhada de camarão. A quantidade de camarão era considerável e, como tal, convidou-me para me sentar junto a ele. A nossa conversa foi sobre os momentos que estávamos vivendo e da ansiedade sentida principalmente naquele dia. Era já de madrugada quando nos foi servida a ceia de Natal. Três dias depois festejei ali o meu vigésimo quinto aniversário.

Durante a minha permanência neste aquartelamento, desloquei-me uma única vez ao Pelundo. Aqui ia ser inaugurado um novo Posto Médico com condições de trabalho melhoradas bem como tendo anexada uma pequena enfermaria.
Para este novo Posto Médico, tinha sido eu encargado, antes de ser transferido para Có, de requisitar tudo o que fosse necessário para que o mesmo funcionasse em pleno. Sucede que ao chegar ao Pelundo, verifiquei que muito do material faltava, principalmente as camas na enfermaria.

Como era habitual nos Comandantes dos Batalhões, pelo menos no meu, foi convidado o Comandante-chefe General Spínola para a dita inauguração. O General, ao entrar e verificar as falhas que se notavam, gritou ao meu Comandante dizendo que palhaçada era aquela, ser convidado para inaugurar paredes! Eis que o meu Comandante de Batalhão, tremendo como varas verdes, chamou-me para dar explicações ao General. Coube-me então a mim, que já há mais de dois meses me encontrava afastado noutro local, explicar ao General que tudo o que ali faltava, a tempo e horas eu tinha requisitado aos serviços competentes em Bissau. O General chamou o seu Ajudante de Campo, que era o Capitão Ramos, dizendo-lhe que fosse imediatamente a Bissau tratar daquelas falhas junto dos Serviços de Material de Saúde e das razões do não envio atempado. Deste modo não ouve inauguração nenhuma e o General deu meia volta e apanhou o helicóptero de regresso a Bissau.

Ao fim do dia regressei também a Có, não sem antes passar pelo Posto de Saúde ao qual pertencia e tinha a meu cargo, confraternizar uns instantes com o pessoal.

Encontrei aqui nesse dia a jovem que sempre tinha cuidado da minha roupa, com um ar adoentado. O Médico ao ver-me, aproveitou para a provocar dizendo-me que era eu o culpado pelo estado de saúde que a moça apresentava.
Tentei animá-la dizendo que brevemente estaria de volta. Na verdade, o seu aspeto tinha pouco de saudável. Sobre esta jovem, dedicarei a parte final das minhas memórias de Tempos de Guerra.

Regressado a Có, continuei com o meu trabalho de zelar pela saúde dos nossos militares bem como da população que dos mesmos cuidados necessitava.

Chegou-se ao dia de preparar a transferência de funções e de material a quem me vinha substituir ou seja, a Companhia que nos vinha render naquele lugar e, permitir o meu regresso ao Pelundo e assim poder ajudar lá também nos preparativos da passagem de testemunho àqueles que nos iriam render.
Porém, antes tive que verificar em Có o material existente e as falhas mais importantes a repor para que o novo Furriel Enfermeiro encontrasse as condições possíveis para poder desempenhar as suas funções.

Com uma campanha desgastante, tive a necessidade de me deslocar a Bissau e aos Serviços de Material de Saúde requisitar agulhas e outro material de consumo corrente. Aqui vim encontrar os responsáveis destes serviços tremendamente aborrecidos para com a minha pessoa por tudo o que tinha acontecido com a não inauguração do novo Posto Médico do Quartel do Pelundo. Pelo que vim a ser informado, o General provocou um reboliço enorme com aquela gente que se viram forçados a tirar três camas do Hospital e enviá-las para o Pelundo. Respondi-lhes que apenas me tinha limitado a informar o General do que a tempo e horas eu tinha feito todas as requisições.
Zangados, fartaram-se de chamar de “Macaco Fula” ao General. Sempre notei que o pessoal de Bissau não gostava do General porque lhes apertava os calos várias vezes.

Antes de fazer o trespasse de funções ao Furriel que me iria render, fiz um levantamento exaustivo de todo o material já que o Primeiro-sargento me havia dito querer ser ele a fazer o dito trespasse. Durante os meses que ali permaneci, poucas vezes a este Primeiro-sargento lhe dirigi palavra.
Desde o primeiro dia que ali cheguei, as guerras foram uma constante entre nós os dois. Eu era bem diferente daquele outro que fui render. O Lemos, por motivos que não vou aqui descrever, foi preso e enviado para outro local como já foi por mim referido anteriormente.
Mandei chamar então o Primeiro-sargento ao Posto Médico para lhe mostrar todo o material de uso corrente como agulhas, seringas, tesouras, caixas de enfermeiro, etc.
Verificou que havia umas agulhas que sobravam do lote obrigatório a entregar e pediu que, acaso eu não me importasse, poder levar umas seis para oferecer a uma Enfermeira da terra dele. Respondi-lhe que podia oferecer à dita senhora o que quisesse porque sempre me tinha dito, que no fundo, quem mandava ali era ele. Ficou corado de atrapalhação com mais uma ferroadela que lhe dava.
Regressei no dia seguinte à minha unidade, CCS do Batalhão 2884 no Pelundo.
Aqui já se encontrava a Companhia que nos ia render bem como a Companhia operacional que acompanhava a CCS.
Encontrei o Quartel remodelado. Com Posto Médico novo, quartos dos Sargentos novos, enfim, vim encontrar outras condições habitacionais bem melhores do que aquelas que durante tantos meses tive.

Liberto de funções, embora tivesse que orientar o novo Furriel Enfermeiro e Médico sobre como a população estava habituada a ser tratada, como deveriam continuar a lidar com ela e, a pedido do Médico, fui mostrar a este a aldeia e fornecer-lhe as orientações necessárias que eu achava por convenientes. Este Médico tinha estado preso em Penamacor por razões políticas.
Achei esquisito ter-me pedido para que o informasse das casas onde viviam prostitutas. Não contei nada a ninguém mas vi logo que era tentar passar e receber informações do outro lado. Sei que não regressou com os seus ao Continente porque ficou creio a viver lá com a professora. O Mundo é pequeno e, na FNPT em Lisboa, onde comecei a trabalhar, encontrava-se também e no mesmo departamento, o compadre do dito cujo Médico. Este companheiro de trabalho de vez em quando dava-me informações do seu compadre.

Comecei então a despedir-me das pessoas da população com quem mais lidei de perto e de todos que por mim passavam e me cumprimentavam apertando-me as mãos de agradecimento pela forma como tinha lidado com todos eles. Como surpresa, um grupo de mulheres veio ter comigo implorando para que eu não regressasse ao Continente e ficasse a tomar conta da saúde deles no Posto Médico Civil que o General tinha lá mandado construir. A custo e deveras emocionado, respondi-lhes que estava cheio de saudades da minha família mas que lhes agradecia do fundo do coração o carinho que me tinham e que eu nunca iria esquecer.

Estes últimos dias no Quartel no Pelundo foram passados no quase descanso total.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23303: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro) Parte VIII

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22078: Blogoterapia (297): Obrigado, a todos, por se terem lembrado de mim no dia dos meus anos... sozinho em casa, com o computador nos "cuidados intensivos" e agarrado à máscara de oxigénio por causa do pó do Saara... (Valdemar Queiroz, Agualva-Cacém)


Cacém > PC-Doctor > Rua Marquês de Pombal,nº 89, loja, esquerdo... Tem página aqui. (Passe a publicidade, mas é uma informação que pode ser útil para os camaradas da Tabanca da Linha)


1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem mais  de 120 referências no nosso blogue, e é um activo e incansável comentador]:


Date: terça, 6/04/2021 à(s) 23:58
Subject: Obrigado, Luís Graça


Luís, muito obrigado pelo teu telefonema.

Já estou um pouco melhor, embora agora com uma ciática (?) numa perna, e deu para ir buscar o meu computador que já está pronto para mais umas viagens.

Embora com algum atraso, já fiz um comentário no post do meu aniversário no nosso blogue. (*)

Teve piada o meu computador ter estado em cuidados intensivos na loja dum PC-Doctor, indicado pelo meu filho por terem sido colegas no Secundário.

E cá vamos andando.
Abraço
Valdemar

PS - Anexo uma foto do consultório do PC-Doctor


2. Comentário do Valdemar Queiroz, no poste P22050 (*)


Obrigado a todos.

Não é por ser meu hábito, mas só agora estou a agradecer a atenção pelo vossos Parabéns no dia do meu 76º. aniversário. Fico muito sensibilizado.

Este atraso de agradecimento deves-se ao facto do meu computador não ter escapado a mais um vírus e ter de ser internado nos cuidados intensivos num PC-Doctor com internamento de 24/03 até 05/4/2021. Afinal não era propriamente um vírus, era mais um problema da idade avançada com necessidade de substituição dumas peças (, afinal até nos humanos assim acontece).

Mas, com a saída,  expus-me às ditas poeiras/areias do Saara e fiquei bastante enrascado com o meu problema DPOC [doença pulmonar obstrutiva crónica] e foram dias seguidos a máscara de oxigénio, incluindo o dia dos meus anos.

Sem o computador que faz de livro, jornal de notícias, sala de cinema e teatro, troca de conversas com familiares, amigos e camaradas da Guiné, e sem poder sair de casa, deu para voltar a ler "Viagem a Portugal", de José Saramago, e reler algumas "Vida Mundial" e uns Suplementos Literários do "Diário de Lisboa" que, com uns filmes do Estúdio do Cinema Império, faziam parte da 'militância de ser culto' para fazer boa figura em tertúlias de mesa de café... naqueles belos anos sessenta.

Obrigado, Cherno Baldé, o que será feito dos outros Embalós?
Obrigado, Luís Lomba, nunca mais voltaremos a passar naquela inesquecível Ponte Caium.
Obrigado, Gaspar, não te esqueças de quem nos lixou aqueles belos anos sessenta.
Obrigado, Luís Graça,  pela amabilidade do teu telefonema.
Obrigado,  Duarte, para o mês de Junho não pode faltar a nossa sardinhada.
Obrigado a todos.
Os meus Parabéns ao António Graça Abreu e à Rosa Serra.
Para o ano há maís.

Abraços
Valdemar Queiroz

6 de abril de 2021 às 23:22

3. Comentário do editor LG:

A gente às vezes pensamos que somos "os mais coitadinhos do mundo"...Basta dar uma vista de olhos pelas salas de espera dos nossos hospitais, centros de saúde, consultórios... Cada um, cada uma, mergulhado/a na "sua dor"... Enfim, basta ouvir as conversas, agora mais mitigadas pelas restrições impostas pelo confinamento: ai a minha perna, ai o meu braço, ai o meu problema de saúde que é muito maior do que o teu, ai os meus medicamentos que são muito mais caros do que os teus... 

Mas adiante, não vim falar de mim... nem do meu umbigo, parafraseando o nosso camarada Alberto Branquinho (que tem andado arredado do nosso blogue). Venho, sim, dizer que fiquei, há dias, sensibilizado com a situação d0 nosso camarada Valdemar Queiroz que vive há anos sozinho na sua casa em Agualva-Cacém, e tem que saber lidar com uma doença crónica tramada, uma DPOC (**)... Foi o Renato Monteiro, outro portador de uma DPOC, que me deu o seu nº de telemóvel. 

Fiquei a saber que o Queiroz divide os 365 dias do ano entre a Holanda (onde tem filho e netos) e Agualva-Cacém... O clima da Holanda é tramado para um portador de DPOC, razão por que passa cá uns meses... E aqui só sai para o estritamente necessário, tem o carro à porta, mas é de uma autonomia impressionante. Está habituado a (e gosta de) cozinhar. E tem um sentido de humor que o ajuda a superar as dificuldades e contrariedades... 

Há dias o seu PC "pifou" e foi preciso ir ao PC-Doctor... Valeu-lhe o filho, na Holanda, que à distância lhe deu umas dicas... Meteu-se o Queiroz ao caminho até ao consultório do PC-Doctor, mas em mau dia, com a atmosfera carregada de pó do Saara... Resultado: teve uma crise dos diabos...

No dia dos anos, não consegui que ele me atendesse. Consegui ontem, e ele ficou sensibiizado. Até o gesto de pegar no telemóvel lhe custa.

Conversámos um pouco, não quis maçar. O meu respeito por ele aumentou. Já estava a ficar mais aliviado, depois de uma crise de vários dias. E estava entusiasmado porque o PC estava pronto e ia buscá-lo. É a sua ligação ao mundo, para mais neste tempo de não-tempo de Covid. 

Fico feliz por saber que ele também já pode voltar ao nosso convívio na Tabanca Grande. E se alguém quiser telefonar-lhe, que me peça o número: dá-lo-ei, com todo o gosto... Sabe tão bem ouvir uma voz amiga quando se está doente e sozinho, em casa!... (***)
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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)










Luís Graça, Tabanca de Candoz, 2011

Fotos (e legenda): © Luís Graça  (2011) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis >  Don't worry, be happy! 

por Luís Graça


1. O que é que um gajo faz, das oito às nove, junto à entrada de um hospital, para mais oncológico ?

Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, coirões velhos,  cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam pela Pátria.

Joga-se com a teoria das probabilidades: daqui a cinco a anos, terás cinco por cento de hipóteses de estar vivo, se te diagnosticarem um cancro no pâncreas, diz o teu amigo que está lá dentro a esta hora… Pálido como a cal da parede, sentado na sala de espera, esperando o pior, imaginas tu...Como o réu que aguarda a sentença do juiz...

Também ele espera, desespera, espera. Imaginas tu, que nunca entraste no IPO, por medo, por superstição, ou muito simplesmente porque nunca até agora precisaste de lá ir.  (Cruzes, canhoto!)... 

Enganas-te, já não se pintam paredes com cal, que era antigamente um bom desinfetante. Nem se cobrem os mortos com cal, hoje são cremados, sobretudo se morrerem de cancro. Dantes, no tempo em que morreu a tua mãe, não se pronunciava sequer a palavra cancro, escrevia-se nos jornais, na notícia necrológica, que o fulano de tal morrera de doença de evolução prolongada. Ou maligna. Um eufemismo. Um pudor hipocrático. Uma hipocrisia social. Como se houvesse doenças benignas!...

Esperas dentro do carro, mal estacionado, em segunda fila. E, talvez para não desesperares, jogas o jogo do “voyeurista”. Não, não espreitas o mundo pelo buraco da fechadura, mas estás meio escondido, na semiobscuridade do interior do teu carro, a ver o que se passa lá fora, à tua volta… Simplesmente, para passar o tempo, fazer horas... Não sejas cínico: estás apenas a tentar a disfarçar o nervoso miudinho, a tentar esquecer ao que vieste, acompanhar um amigo em sofrimento, com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça...

Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.

Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda.

E que nada tem de deslumbrante, empolgante ou até de interessante essa nesga do planeta. O que vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas, uns com cancro,  outros sem cancro... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…

Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século,  um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio  e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor. 

Nunca tiveste grandes amigos. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida.  Estiveram, ambos, na guerra. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde,  era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas. 

Ele sempre foi muito mais corajoso e determinado do que tu: como  caçador saía ao lusco-fusco, sempre convicto de que ia caçar alguma coisa de jeito, na orla da bolanha  ou, à noite, no fim da pista de aviação. Quem espera, sempre alcança. E ele apanhava, lebres,  galinhas de mato, rolas, raramente caça grossa, uma gazela ou um javali. Qualquer coisa, enfim, com que a malta pudesse matar a malvada nos dias seguintes, lá na messe. 

Tu eras como o fotojornalista do quotidiano: punhas a máquina a tiracolo, e ias dar um giro domingueiro pelas tabancas. Nunca fostes capaz de levar a máquina para o mato, para uma operação. Aliás, nunca fostes sequer um fotógrafo de jeito. E  perdeste tantos momentos de tirar fotos com sangue, suor e lágrimas,  ou seja com emoção, que é afinal o sal da vida!

Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra...parece que estou com um cancro", respondeu-te ele...Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer,  enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mai<<<s tranquilizador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou  com um cancro na próstata... Fiz uma biópsia, vou lá saber o veredicto".

Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas,  de solidariedade: " Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei... mas a gente desenrasca-se".

Em Lisboa não tem ninguém. E dos dois filhos, o que está mais perto é em Angola, de quem, aliás,  és padrinho de casamento . Tem um outro na Austrália. Somos um raio de um povo repartido pelos cinco continentes, com os filhos, os sobrinhos  e os netos separados dos pais, dos tios e dos avós.  

E quem vem da província, não está habituado ao trânsito de Lisboa. Foste buscá-lo ontem a Sete Rios. Desta vez, veio no "Expresso", de vespera. Ficou na tua "morança", agora demasiado grande para um homem que vive só. Ofereceste-te para ir buscá-lo a casa. Recusou, polidamente. Se tivesses insistido, teria aceite, Quando vier aos tratamentos, se vier, virá de ambulância. É sócio dos bombeiros da terra, não longe da capital, em Samora Correia. Trabalhou como técnico agrícola lá nas Lezírias.

2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a saudade, a neuratesnia, o medo ...Tomava-se com uísque, as "pastilhas LM"...

Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te mata ?!...E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá.

“Absorvit – don't worry, be happy!”: em inglês, em letras garrafais, para consumo do turista estrangeiro que, por engano, se aventurar por estas bandas da cidade onde o trânsito é caótico, por causa das obras na Praça de Espanha.

E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo ? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter chumbado no exame em inglês!).

Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça ?!)

Fazes coleção de frases feitas, expressões lapidares, lugares comuns, grafitos, provérbios excêntricos, anexins, citações famosas... É um dos teus passatempos, além da sopa de letras, no café do teu bairro, com a bica depois do almoço. Disseram-te que era bom para prevenir o Alzheimer, ou pelo menos adiá-lo. És um hipocondríco de merda, tens um medo das doenças que te pelas. De resto, quem não tem ? Até os médicos e os padres... Espantosamente os muros do IPO parecem estar livres dessa peste dos grafiteiros. Talvez os gajos  sejam supersticiosos e lá, no íntimo, tenham um medo do caraças do deus do cancro que os vigia, qual big brother. Não acreditas em deus, mas começas a suspeitar que há um deus do cancro.

E vem-te á cabeça, uma frase cruel que te iumpressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Càcere"... Deixa-me ver se a encontro aqui... ""Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é ukm blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"...

Enfim, ficas a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, rádio, quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste ?

Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita  pneumonia, a seguir a uma  vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdical, sezóes de África ? ... Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar no baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à gfrehte do doente...

Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm ?!


3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano"  e teu compadre que vieste acompanhar.  Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Acabaste por nascer prematuro.

Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. 

Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar  ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu não conheces... 

Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves. 

À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar  com
 o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces.

Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na guerra. Mas tentam,  uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da  multidão, ao dobrar da esquina. Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro.

As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus,  dão pão de plástico às criancinhas ?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.

Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras.  Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19 ? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando   lá  estiveste. 
Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta.

Não é mal pensado, um  comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve). 

E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário,  IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro". 

Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é  verdade mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com  "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares.

Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função. 

4. Não sabes qual é a função do pâncreas mas deve ser um órgão fodido...Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado ? E do baço ? E da tripa ?  E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua... 

"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato,  no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal. se ainda acreditas nalguma coisa.

Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo ?" Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te " "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!". 

Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda,  também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar quem nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.

"Don't worry, be happy!"...É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico. 

Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos ? ... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.

Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa  para o trabalho... O que fará ela ?... "Call centre", adivinhas tu!...Bingo!... Mais uma aventura do país dos "call centre".

Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor.

Um assistente operacional (é assim que  se diz  agora ?!, dantes dizia-se operário), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações.  És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes. 

Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!...O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pàncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...

Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação ? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias,  com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente.

Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e tão terno,  há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária ? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)

Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que  estás hoje mais sensível e intolerante ?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.

Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80 ?... Grande estúpido!

Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no caderninho,.

A Farmácia Curie não tem mãos  a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os SPA, os ginásios, os hospitais. "Teme a velhice, que nunca vem só", apontaste há dia este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Vade mecum", também lhe chamas.

Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30.  Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... (Patacão, graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)

A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto,  e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO.

Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas.  Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!

Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo...E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.

5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam  uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.

Pelo retrovisor, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, marialva do Ribatejo)

- Está no ir, mano : começo para a semana a quimeoterapia,  daqui a umas semanas radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me  o urologista...

Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se!, sè feliz!"

Não falaram mais  pelo caminho, foste levá-o a casa, a 30 ou 40 quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas,  mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO... 

Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros.  Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente,  acionou uma mina anticarro  reforçada, já no início da época das chuvas.  

Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos,  e trabalhavam  antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias,  na coudelaria. Adorava touros e cavalos.  Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto. 

Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido,  onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Lérias, o Zé Conde, o teu doente do IPO, só te disse, com um sorriso amarelo:

- Lembras-te ?... Há cinquenta anos,  a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano,  a vida continua... dentro de momentos!

- "Don't worry, be happy!" - martelaste tu, très vezes,  com a cabeça no retrovisor...

© Luís Graça (202o). Revisto: junho de 2023.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média





Fotos: cortesia de Alice Cruz (2009) (*)



1. Até ao séc. XVI, há três grandes epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. Vamos abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19. 

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam  disponíveis na minha página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas as citações e referências bibliográficas.

E a melhor maneira é ver como a experiência da doença e da morte ficou fixada na linguagem do dia-a-dia, ou melhor, nos provérbios populares enquanto "representações socais".

Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática:

(i) Está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");

(ii) E, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569, no reinado de Dom Sebastião: terá morto um terço da população da cidade, qualquer coisa como 60 mil);

(iii) É vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode");

(iv) Se não acaba na morte, é de prognóstico reservado ("A doença vem a cavalo e vai a pé"; "O mal vem às braçadas e sai às polegadas");

(v) É quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");

(vi) E que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam");


(vii) Por fim, a doença é repulsiva, estigmatizante e ruinosa para o indivíduo e a família ("Não tenhas medo que eu não tenho lepra"; "Em casa de doente o lugar não se aquente"; Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"; "Um doente come pouco e gasta muito").

2. Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime, ou seja, até à Revolução Francesa) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.

Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa.

Durante a Idade Média, não há sequer um clara noção do que seja a saúde, individual ou colectiva. A única excepção são a lepra e as epidemias (, nomeadamente de peste) que devastam a Europa medieval.

O conceito positivo e multidimensional de saúde que temos hoje em dia, e que remonta à criação, em 1948, da OMS - Organização Mundial de Saúde, seria então completamente ininteligível para os nossos antepassados medievos.

A brutalidades dos números da morbimortalidade, a terrível impotência humana, o triunfo da morte e a exclusão social caracterizavam, então, a experiência da doença. Com as epidemias medievais, não há doentes: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte. Inelutável, indizível e fatal, a doença só tem uma saída: a morte ou a exclusão social (, que era uma forma de morte em vida). 


A resposta das nossas sociedades era a do internamento forçado e da brutal segregação, sexual, social e espacial, dos doentes. Foi assim que lidámos, por exemplo, com a lepra. E continuámos a lidar (ou somos tentados a continuar a lidar: veja-se o "lazareto", o "manicómio" ou o "sanatório" nos finais do séc. XIX/princípios do séc. XX;  os "hospitais-colónias" e os "sidatórios", no séc. XX)...


A lepra, a Doença por Excelência 


3. No caso da lepra, e devido ao terror infundido pela doença e à crença infundada no contágio pela simples presença do leproso, os doentes (alguns sendo portadores de simples afecções cutâneas!) eram apartados da comunidade e da família, despojados dos seus bens, submetidos a um macabro simulacro de funeral em vida, além de serem obrigados a viver da caridade, a usar um vestuário distintivo e a fazer-se anunciar através do toque de matracas, junto às povoações e nas vias públicas. Eram literalmente apartados dos vivos.

Hoje sabemos que a doença só é transmitida por contacto físico íntimo e prolongado (por ex., entre mãe e filho ou nas relações sexuais). Mas na altura o conhecimento médico da doença era grosseiro, o que explica os erros de diagnóstico cometidos e o radicalismo das soluções adotadas pelo Ocidente cristão. Os suspeitos eram então examinados por júris, compostos por autoridades civis e religiosas, incluindo um médico ou um cirurgião.

4. A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes...Era uma doença "repugante", caracterizada sobretudo pela desfiguração do rosto: provoca(va) danos principalmente nos nervos periféricos (nervos localizados no exterior do cérebro e da medula espinhal), na pele, nos testículos, nos olhos e nas membranas mucosas do nariz e da garganta...

No baixo latim infirmus (doente), tal como malaud (na língua occitana), assumia por vezes o sentido específico de leproso.

Causada pelo bacilo 
Mycobacterium Leprae  ou Mycobacterium 
Lepromatosis [só identificado em 1874 pelo norueguês Gerhard E.A. Hansen (1841-192), que estará em Lisboa, em 1906, sendo um das vedetas do XV Congresso Internacional de Medicina ), era conhecida desde a Antiguidade (vd. por ex., Bíblia, Levítico, 13 e 14: Deus, através de Moisés e Aarão, divide os judeus em puros e impuros, sendo estes os portadores de lepra).

Em Portugal chegou a haver "mais de sesenta  casas de São Lázaro, predominantemente no Norte e no litoral", fruto da caridade cristão, manifestada sob a forma de doações e legados. As mais importantes eram "as gafarias de Coimbra, Guimarães e Santarém, além do Hospital de São Lázaro, no termo de Lisboa. (***)

5. Desde o Séc. VI, diversos concílios da Igreja Católica (Orleães, Arles, Lyon) recomendavam o isolamento dos doentes, se bem que na altura a lepra ainda fosse endémica, ou seja não epidémica, localizada ou circunscrita a uma dada região

Com as Cruzadas (as expedições cristãs para a "reconquista" dos lugares santos de Jesrusalém, ocupados pelos muçulmanos), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Séc. XIII.

A partir do Séc. XV, esta terrível doença que marcou o imaginário medieval, tenderá a regredir no Ocidente, Crê-se que a exclusão social na Idade Média, a par da imposição de interditos sexuais, pode em parte explicar este recuo da lepra...

A desafectação progressiva das leprosarias (em Portugal, gafarais) vai, por seu turno, fazer aumentar a rede hospitalar, nomeadamente em países como a França.

6. No nosso caso, as gafarias obedeceriam, a "três tipos de governo" (i) As criadas por iniciativa do rei, e dirigidas por representantes seus; (ii) ass municipais (por exemplo, Braga, Guimarães, Lisboa e Porto); e, finalmente, (iii) as estabelecidas pelos próprios gafos e por eles administradas, embora sob protecção régia.

Embora associada à promiscuidade e à pobreza, a lepra também vitimava gente da alta nobreza e do alto clero;  D. Afonso II, por exemplo, morreu em 1223, vítima de lepra. Tal como seu pai, D. Sancho I.

Algumas destas gafarias sobreviveram até ao séc. XX, como foi o caso da Gafaria para Lázaros e Lázaras (ma prática, para "doentes de chagas incuráveis", anexada em 1721, ainda fazia parte dos "hospitais menores" da Misericórdia do Porto, no início de década de 1930.

De qualquer modo, quando comparado com as regiões europeias transpirinaicas (por ex., a França), o nosso país terá tido poucas gafarias. Só em França, no Século XIII, contavam-se mais de duas mil. Fora da Pensínsula Ibérica, o desenvolvimento da doença terá sido muito maior, a partir sobretudo das Cruzadas (finais do Séc. XI).

Tal facto tende a ser imputado a uma menor mobilidade das populações cristãs peninsulares: estando empenhadas na "Reconquista" até tardiamente (em Portugal até meados do séc. XIII), não teriam podido (nem precisado de) ir combater ou peregrinar à Terra Santa. Recorde-se que o último reino muçulmano, o de Granada, só cairá nas mãos dos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492.

No reinado de D.Afonso IV, há já notícias de abusos na administração dos bens destinados aos "gafos". Tal facto, aliás bastante corrente, conduzirá à intervenção do poder régio, nomeadamente no caso do Hospital de São Lázaro de Coimbra. Assim, por carta de 30 de março de 1326, ordenava-se ao maioral e ao escrivão da gafaria de Coimbra que se não dessem rações a pessoas de fora que, além de sãs, tivessem com que se sustentar.







Guiné-Bissau > Bissau > Cumura > Missão Católica e Hospital de Cumura > 14 de Dezembro de 2009 &gt > 18h > Mural com as seguintes inscrições: "Obrigado, Bispo Settimio"; "X Aniversário da Morte de Dom Settimio"; "A Verdade Vos Libertará".

O missionário Settimio Arturo Ferrazzetta, da ordem franciscana, foi o 1º bispo da diocese de Bissau, criada em 1977. "Homem Grande" da Igreja Católica de África, nasceu em Itália, em 8 de Dezembro de 1924, e morreu, com fama de santidade, em Bissau, em 26 de Janeiro de 1999.


O Hospital da Cumura foi construído nos anos 50 pelos Franciscanos de Veneza. Dedicava-se à Lepra. Hoje também, mas sobretudo à Sida e à Tuberculose.(**)

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



7. Até ao final do Século XIV, não parece haver ainda uma clara distinção semântica (nem muito menos conceptual) entre gafarias, albergarias, mercearias, hospícios, hospitais e estabelecimentos assistenciais similares. 

Algumas gafarias, como a de Lisboa (fundada provavelmente pelos Hospitalários, por volta de 1220) e a de Coimbra eram também conhecidas como hospitais de S. Lázaro, mas na prática não prestavam quaisquer tipos de cuidados, limitando-se pura e simplesmente a segregar os doentes em relação ao resto da população

Não temos números sob os "gafos" ou leprosos no nosso país e o resto da Europa. No séc. XVI ainda existiam: por exemplo, em 1514, dá-se por concluída a reforma geral dos legados pios e estabelecimentos assistenciais, com a publicação do Regimento de como os contadores das comarcas hão-de prover sobre as capelas, hospitais, albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e residos.


E hoje ainda está longe de ter sido erradicada. Na Guiné-Bissau, por exemplo, é ainda endémica. E, para se evitar o estigma social, já não há "leprosos", mas sim "doentes de Hansen". Mas de acordo com um inquérito de 1937, em Portugal, onde a doença começou a recrudescer a partir do séc. XVIII, haveria 1.127 casos, concentrados sobretudo na região Centro (distritos de Viseu, Aveiro, Coimbra e Leiria). No Sul, havia duas manchas, nos distritos de Santarém e Faro. (***)


8. Com o tempo, as gafarias ou leprosarias destinadas ao internamento dos "gafos" ou leprosos, passam, mais tarde a ser conhecidas por lazaretos, termo que deriva do facto de a lepra ser então igualmente conhecida como o mal de S. Lázaro. 

Os lazaretos, com a reforma da saúde pública, liderada por Ricardo Jorge (1899-1901), passam a ter outras funções,  nomeadamente o confinamento de passageiros, oriundos, em geral por via marítima, de países ou portos com surtos epidémicos de doenças "exótico-pestilenciais": por exempo, o lazareto da Trafaria (que já existia no séc. XVI, com essa função).

Endémica em Portugal, a lepra chega aos nossos dias: nos anos 40 do séc. XX,  é criado, sob inspiração de Bissaia Barreto (Castanheira de Pera, 1886-Lisboa, 1974), o Hospital-Colónia Rovisco Pais, na Tocha, que chegou a te
r um milhar de internados. (O internamento era compulsivo.)

Este estabelecimento assistencial foi criado graças à herança de José Rovisco Pais (Sousel, 1862 — Lisboa, 1932), um grande proprietário, lavrador, industral de cervejas, dono da Cervejaria Trindade, filantropo: em testamento doou aos Hospitais Civis de Lisboa as suas herdades de Pegões, qualquer coisa com sete mil hectares, que deram origem depois,  nos anos 50, à Colónia Agrícola de Pegões.

O Hospital-Colónia Rovisco Pais ficou conhecido pela sua natureza repressiva, senão mesmo totalitária (*). 

Nascido em 1947, no auge do Estado Novo, e na sequência da "luta contra a lepra"   (D.L. nº 36450, de 2 de Agosto de 1947)(***), a disciplina era implacável: até à década de 1960, havia uma cadeia privativa e os próprios médicos puniam os doentes com penas de prisão, por simples faltas ao regulamento como sair para o exterior sem autorização.

A partir de 1996, nas antigas nas instalações do Hospital-Colónia Rosvisco Pais, antiga "Leprosaria Nacional",  foi instalado o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro - Rovisco Pais.

(Continua)
_____________

Notas do autor:

(*) Alice Cruz - O Hospital-Colónia Rovisco Pais: a última leprosaria portuguesa e os universos contingentes da experiência e da memória. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.16 nº 2, Rio de Janeiro,  Apr/June 2009 [Consult em 1/4/2020. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-59702009000200008].


RESUMO

"O Hospital-Colónia Rovisco Pais foi inaugurado em Portugal na década de 1940, com vistas ao tratamento, estudo e profilaxia da lepra, de acordo com modelo de internamento compulsivo, cuja configuração remete ao conceito de instituição total proposto por Goffman. Trata-se de um importante projeto higienista do Estado Novo. O seu paradigma educativo combinava elementos inspirados na medicina social europeia e na ideologia do regime ditatorial paternalista português. 


"O Hospital-Colónia será aqui ponderado como dispositivo disciplinar, desenvolvendo-se reflexão acerca do confronto entre o poder disciplinar e a experiência. A memória emerge como instrumento contingente para o acesso às práticas e aos significados intersticiais tecidos no quotidiano do Hospital-Colónia, buscando-se auscultar a experiência de seus ex-doentes como sujeitos políticos."


(**) Vd. poste de  21 de abril de  2011 > Guiné 63/74 - P8146: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (8): 14/12/2009, das 16 às 18h: Visita ao hospital de Cumura: lepra, sida, tuberculose... e compaixão

Vd. também poste de 13 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)

(***) D.L. nº 36450, de 2 de Agosto de 1947: "Organiza o regime jurídico do combate à lepra. Cria o Instituto de Assistência aos Leprosos, estabelecendo a sua orgânica, competências e funcionamento. Determina que a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, passe a denominar-se Hospital-Colónia Rovisco Pais, que fica subordinado administrativamente aos Hospitais Civis de Lisboa, e dispõe sobre a sua estrutura, gestão financeira e assistência médica aos doentes."

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20609: Banco do Afeto contra a Solidão (25): Comandei um secção de morteiros em Gadamael Porto, fiquei surdo e recebo 37 euros mensais, inicialmente pagos pela Caixa Nacional das Doenças Profissionais (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Cópia do cartão de beneficiário por doença profissional


Foto: © Mário Gaspar  (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem,  enviada hoje às 2h45, do nosso amigo e camarada Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68:


Caras Amigas e Caros Amigos

Comandei uma Secção de Morteiros em Gadamael Porto, Sul da Guiné, bem perto da fronteira da Guiné Conacri. Fiquei Surdo e recebo 37 euros mensais, inicialmente pagos pela Caixa Nacional das Doenças Profissionais, mas devia ter esse direito como Deficiência de Guerra.

Foi simples: foram tantos as granadas saídas do morteiro que comandava, descuidei-me e encerrei a boca, e os tímpanos deram sinal.

Já passou… O poema [, que anexo,  já aqui publciado em tempos, ] é de Guerra Junqueiro Ou melhor, "O Morteiro" é um paródia a "Lágrima" de Guerra Junqueiro, incluído no Relatório de combate de 9 a 12 de Abril de 1918 - Lembranças, caderno manuscrito por Raul Pereira de Araújo, alferes de Artilharia, sobrevivente da Batalha de La Lys. (**)

NOTA: De qualquer modo vai em Anexo o Cartão de Doenças Profissionais. Por exemplo – para quem não sabe – governos consideraram que um Combatente é e foi um Trabalhador no Serviço Militar. Enganaram-se decerto… E ninguém deu pelo engano...

Acabaram com o Jornal “Ridículos” e com “Parodiantes de Lisboa”.

E esta?


(...) "O morteiro", paródia à "Lágrima" de Guerra Junqueiro
(Mota, 2006, pp. 104-107)

Noite de frio intenso, uma trincha escavada,
Lúgubre, sepulcral, agoirenta... e mais nada,
Trincheira onde a morte apanha vis pancadas
Em banquetes de sangue arrancado em ciladas
Na trincha oposta, onde o boche reina e impera
Em rasgos e expansões de forte besta-fera.
Um oficial audaz, olho do batalhão,
Descobriu, dum morteiro grosso, a posição,
Maquinismo feroz que se cumpre o dever,
Ao perto e ao longe tudo faz estremecer. (...)