1. VIII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.
VIII - De novo, Guiné…
E os trinta e cinco dias de férias esgotaram-se, num ápice!
Preparei tudo para o regresso à Guiné, mas sem vontade nenhuma, claro, pois bem sabia para onde ia e o que me esperava, mas os homens mereciam toda a minha consideração e apoio…
"Imagino, Adolfo!
Depois de um ano naquela situação, deve ter sido difícil encarar novo período, com privações e riscos constantes…"
O meu irmão fez questão de me acompanhar e despedir-se de mim, assim como um colega e amigo dele da Força Aérea, o Zé Durães, de quem fiquei amigo.
Noite numa discoteca, melhor, boate, e eu enfrascado e bem enfrascado, a não querer ir para o aeroporto.
Lá me levaram e conseguiram meter-me na zona do check-in, onde fiquei, sentado no chão, de saquito da TAP na mão, enquanto eles batiam nas vidraças para que alguém tratasse de mim, ao mesmo tempo que riam e riam…
Passados uns minutos, aparecem um comissário e uma hospedeira, perguntam-me o nome e pedem-me o bilhete, ao mesmo tempo que vasculham o meu saquito da TAP, onde encontram a minha carteira e identificação.
Confirmaram que o passageiro que faltava era eu, um militar.
Não tinha o bilhete comigo, mas fizeram eles próprios o check-in e levaram-me para o avião.
Sentaram-me e fiquei sossegado, embora triste e contrariado.
Descolagem efectuada, avião no ar, quando alguém chama e diz que tem um bilhete daquele voo, que encontrou numa rua de lisboa - era o meu bilhete!
Chegada a Bissau, seguindo para o Depósito de Adidos, obrigatório, para registo de entrada e rotinas da praxe.
Mas pirei-me, logo a seguir, pois não tinha paciência para os serviços a que era obrigado.
Na cidade, em andanças pela avenida principal, conheci um mercenário francês, o capitão Charles André, capturado na operação Mar Verde, de que já lhe falei, pois estava ao serviço do PAIGC, na altura, em Conacry.
O Charles André, naturalmente, como prisioneiro de guerra, tinha a assistência própria de um prisioneiro de guerra, mas sob vigilância da polícia militar e da PIDE, vinte e quatro horas, prática corrente.
Com trinta e sete anos, mercenário de guerra desde os dezassete anos, em missões já dos tempos das guerras da Indochina, a designada Indochina francesa, território que incluía os actuais estados do Vietname, Laos e Camboja, também tendo passado pela guerra da Coreia.
Na Indochina, casou com uma indochinesa, a única mulher que o levou ao casamento, não só pela beleza, mas pela cultura, pela educação - dizia.
Durante uma flagelação ao aquartelamento, a mulher morreu, mas salvou-se a filha, ainda bebé, que ela tinha escondido debaixo de um caixote.
A filha, entretanto, já com doze anos, se bem me lembro, estava num colégio interno, em Lyon.
Fazia questão de me falar da cultura indochinesa, que considerava exemplar e digna de referência, em qualquer parte do mundo.
Por exemplo, quando um casal se passeava pela rua e aparecia um homem a olhar e apreciar a mulher, o marido parava, apresentava-se e agradecia o olhar do outro para a sua mulher, sem qualquer gesto de desagrado, sinal de que o marido tinha bom gosto.
Alguém que passasse na rua e olhasse para uma casa onde havia festa, se o dono da casa visse, saía e vinha convidar essa pessoa para entrar e participar na festa, no fundo, em sinal de solidariedade para com essa pessoa.
Uma curiosidade: sempre que eu me referia à mulher e, por exemplo, dizia ‘a tua mulher era…’, logo reagia, com firmeza, e dizia ‘era, não, é…!’
Para ele, a mulher existia, apesar de morta…
Como o Governo da Guiné o hospedou no Hotel Portugal (uma espelunca) e, claro, lhe dava algum dinheiro, tudo controlado, logo me disponibilizou uma parte do quarto e pediu uma cama extra, para que eu não fosse obrigado a gastar os meus poucos pesos, uma vez que eu me recusava a dormir no Depósito de Adidos.
Repartia as refeições e cigarros comigo, o que evidenciava um autêntico espírito de partilha, solidariedade, digno de admiração, embora isso tivesse a ver com o que se aprende em cenário de guerra.
As provas de amizade e espírito de protecção foram evidentes e achava que a nossa guerra era estúpida e eu corria perigo de vida, pelo local em que estava - fronteira do sul, com a República da Guiné-Conakry, sede do PAIGC.
Quando saíamos para os subúrbios de Bissau, designados por ‘tabanca’, ‘poilão’ ou ‘pilão’, o Charles André logo se colocava em posição de segurança, embora desarmado, como que a proteger-me de uma qualquer eventual agressão.
Pudera, andava em guerras há vinte anos!
Falou-me em fugir e que eu deveria pensar nisso, também, pois era novo e tinha direito a viver, saudavelmente e em ambiente civilizado.
A saída seria pelo norte da Guiné, pelo Senegal e, depois, aventuras até chegarmos a França.
Frisou que tencionava passar o Natal com a filha, o que seria no mês seguinte, logo, dificuldade agravada.
Pediu-me que, caso lhe acontecesse alguma coisa, durante a fuga de Bissau, e eu pudesse passar por Lion, tentasse ver se a filha estava bem.
Claro que eu concordava com o que me dizia, mas só podia dizer-lhe que tinha homens à minha espera, em situação delicada, que não podia abandonar, além do enorme risco que correríamos na tentativa de fuga.
Como disse, eu deveria estar no Depósito de Adidos, enquanto em Bissau, em trânsito, sendo obrigado a fazer serviços de dia, mas continuava ‘desenfiado’.
Deveria fazer um trânsito curto, em Bissau, e regressar a Gadamael, o mais depressa possível, alugando avioneta civil ou aproveitando algum héli, mas não o fiz, pois sabia bem o que me esperava, em todos os aspectos.
Uma vez que fui ao Depósito de Adidos, só por precaução, fui informado que me enviavam rádios para Bissau a saberem de mim, mas era difícil encontrarem-me…
Doze dias em Bissau, escandaloso, e era hora de partir para Gadamael, onde era esperado, sabe-se lá como, pois o capitão andava em perseguição obsessiva…
Despedi-me do Charles André, que não correspondeu, pois dizia que não gostava de despedidas e insistiu que não aceitava que eu morresse naquele inferno.
Fui ao porto de Bissau e consegui lugar numa LDG que ia para sul e, depois, arranjei lugar numa LDM e batelão, até Gadamael Porto.
Já na LDG, quando abri o meu pequeno saco de campanha, encontrei um bocado de presunto e o cantil do Charles André, com um bilhete: ‘bonne chance et pensez à ma proposition’.
Mais tarde, soube que tinha sido executado pelos agentes da PIDE, durante a tentativa de fuga de Bissau!
Para estas acções, a PIDE tinha grande expediente, era organizada, inteligente, activa.
O mesmo não se podia dizer, quando eram necessárias informações concretas e indispensáveis à execução de operações militares, durante a guerra do ultramar…
Pode parecer lamechice, mas não mais esqueci aquele francês, apesar de mercenário, um homem direito, corajoso, resistente a adversidades, independente dos critérios que possamos ou queiramos ter em conta, um exemplo de solidariedade e espírito de grupo, além da particular preocupação que mostrava por mim, um menino de vinte e três anos, lançado às feras, embora consciente.
É com estes exemplos humanos que mais aprendemos e nos preparamos para a vida.
"Não vejo, apenas, sinto que o Adolfo vive as palavras, sempre que se refere a alguém, como exemplo que o marcou!"
A chegada a Gadamael Porto não foi seguida de uma boa recepção, por parte do capitão, bem pelo contrário, mas não esperava outra coisa.
Em contrapartida: uma calorosa recepção, por parte da companhia, que me deixou um pouco emocionado, mas sem conseguirem esconder a saturação e cansaço.
O capitão manda chamar-me e começam os ataques e as ameaças: ‘Cruz, tem aqui trinta e seis mil pesos para pagar, porque desapareceu uma data de material para o reordenamento!’
A minha reacção foi imediata: disse-lhe que fizesse o que entendesse.
Depois de explorar a que se referia, concluí que era material que vinha de Bissau, destinado a obras de reordenamento, um programa relacionado com a designada ‘psico’, e tinha desaparecido uma parte, o que era um hábito em qualquer ponto da Guiné, pois os diversos nativos eram conhecidos pela habilidade no desvio…
Ele ficava furioso, quando se reagia com indiferença à sua agressividade, apoiada nos galões, apenas!
"Falou em reordenamento e psico e gostava que me explicasse o que significam, realmente."
REORD, reordenamento, é uma acção estratégica que consiste na construção ou reconstrução de uma tabanca ou um conjunto de tabancas, visando a protecção da população e impedimento o seu contacto com o IN (inimigo).
Claro que esta e outras acções cabem no âmbito da designada ‘psico’, actividade que tem a ver com a captação da confiança e simpatia das populações indígenas, de forma que se sintam protegidas pelas NT (nossas tropas), importante para a nossa missão, como se entende.
Um dos dramas do capitão continuava a ser o facto de que a maioria dos graduados se mantinha afastada dele, mostrando-lhe indiferença, com evidente sinal de que o considerávamos ‘persona non grata’…
Daí, a sua obsessiva perseguição e agressividade, atitude contrária ao perfil de um líder.
Mas, afinal, além de o termos considerado um caso típico de sorte, pois nada lhe aconteceu, muitos de nós acabámos por sentir pena dele…
E continuámos a enfrentar o cenário de guerra, sem alternativa, claro, uns dias melhores do que outros.
Tínhamos ouvido qualquer coisa relacionada com tempos de estadia em determinadas zonas da Guiné, pela maior dificuldade operacional e psicológica, como era o caso de Gadamael Porto, o que significava o período máximo de doze meses para uma companhia completa, um pelotão de cavalaria e um pelotão de artilharia.
Assim, devia estar a aproximar-se a autorização de rendição da nossa companhia, pois já íamos em dezasseis meses.
Mas as coisas nem sempre acabam bem…
Uma das últimas operações, reconhecimento na zona de Sangonhá, pertinho da fronteira, saíram parte de dois grupos de combate, do segundo grupo, e do quarto grupo, o meu.
Tudo a correr bem, até que somos surpreendidos por mais uma emboscada, com alguma confusão, e o Fernandes, um dos furriéis do segundo grupo, é ferido, gravemente.
Foi a última ‘bofetada’ que levámos, naquela zona já tão massacrada e com tanto para contar!...
Finalmente, o prémio…
E a ordem chegou: seríamos rendidos, brevemente!
Como faz parte das estratégias militares, há um período de sobreposição, para que a companhia a ser rendida possa ‘passar o testemunho’ à nova companhia.
A entrega de armas e sua localização, os pontos mais vulneráveis do próprio aquartelamento, os locais estratégicos de saídas e entradas do aquartelamento, as picadas e trilhos de conveniência dentro e fora das matas, os pontos de instalação das nossas armadilhas e minas, os detalhes sobre a comunidade indígena, enfim, a preparação mínima da nova companhia para o que a espera…
Como a companhia tem quatro grupos de combate, saem dois para o novo destino de operações e ficam os outros dois, que fazem a sobreposição.
Chegados os batelões, toca a embarcar e seguir o rio Cacine, transbordar para as LDM, já no rio Geba, seguindo pelo mar, até Bissau, o trajeto contrário ao de dezasseis meses antes.
Depois, de viatura até aos quatro destacamentos, na zona noroeste da Guiné, um grupo de combate em cada um, como ‘prémio’ da campanha em Gadamael Porto, demasiado longa e cem por cento operacional e dura, assim classificada.
A mim, tocou-me Ome/Bijemita, o segundo destacamento, a partir de Bissau.
Zona de etnias Balanta e Biafada, principalmente, embora por lá andassem outras etnias.
Notava-se um pouco mais de movimento e evolução, pois estávamos perto da capital.
A missão, agora, limitava-se à defesa da área de Bissau, cujas ‘operações’ se reduziam a pequenos reconhecimentos e patrulhamentos na zona, incluindo os patrulhamentos do rio Mansoa, uma chatice…
Como era da praxe e bem importante, a designada ‘psico’ estava presente, quer para captar a simpatia da comunidade indígena, pela sua protecção, além da imagem que as forças portuguesas queriam fazer passar.
Os outros três grupos foram colocados em Ponta Vicente da Mata, Quinhamel e Biombo.
Ainda chegámos a ter connosco, uns tempos, o tal célebre Marcelino da Mata, guerrilheiro que ficaria na história desta guerra, por inúmeras e difíceis operações em que participou, nomeadamente, na operação Mar Verde, de que já lhe falei.
Voltarei a falar dele, se tiver oportunidade.
As condições deste destacamento permitiram apreciar alguns dos costumes das etnias locais, principalmente, quando em festa, a que chamavam ‘ronco’, assim como as cerimónias fúnebres que envolviam cenas dignas de filme.
Também era possível dar umas saltadas a Bissau, em viatura militar, sem grandes riscos, nomeadamente, para adquirir bens que não nos eram proporcionados pelo exército.
Recordo-me de um dos patrulhamentos que fiz, no rio Mansoa, com os designados ‘sintex’, barcos de fibra com motor fora de bordo, salvo o erro, com cinquenta cavalos, a que chamávamos banheira, pela configuração.
Saímos da zona posterior do destacamento, entrámos no rio e rumámos para a foz, que chegava mesmo ao Biombo, onde tínhamos um dos grupos.
Mas a operação limitava-se a uma parte do rio, embora tenhamos continuado um pouco mais, e mais, sem repararmos na quantidade de gasosa que tínhamos de reserva.
E as águas revoltas confirmavam o que já tínhamos ouvido sobre a fauna que ali habitava, como tubarão e crocodilo.
Já perto da foz e quase a atingir o Biombo, tivemos de aproveitar a corrente do rio, para conseguir lá chegar, pois a gasosa tinha acabado.
Quando já perto da margem, um dos homens resolve saltar para a água para empurrar o ‘sintex’- má ideia!
Começa a ficar rodeado por umas coisinhas avermelhadas e o corpo cheio de manchas e borbulhagem vermelha, comichão desesperante, difícil de suportar, que só foi atenuada com umas pomadas que o enfermeiro do Biombo lhe pôs no corpo, chamavam flor do congo ou coisa parecida.
E o que nos valeu foi o grupo que estava no Biombo ter gasosa suficiente para nos dispensar, para podermos voltar ao nosso destacamento, graças à solidariedade do Campinho, o alferes comandante do terceiro grupo.
Estas situações não deviam acontecer, pois os riscos estão sempre presentes, com forte probabilidade de consequências graves, mas sabemos que acontecem…
E não posso deixar de recordar as caldeiradas que um dos nossos homens fazia, aproveitando as minúsculas tainhas que as bajudas balantas ou biafadas apanhavam, com redes artesanais, enterradas nas lamas do rio, aguardando a maré.
Claro que as tainhas só serviam para dar o sabor, pois eram difíceis de comer, só espinhas…
Isto passava-se às seis da manhã, já com um calor insuportável, e era o pequeno-almoço.
E, realmente, acreditei no que nos disseram sobre o facto de terminarmos a comissão nestes destacamentos, como ‘prémio’, pelo facto evidente de termos estado aquele tempo todo em Gadamael Porto.
E já íamos em vinte e dois meses, quando sempre tínhamos ouvido falar em dezoito meses de comissão, quando se tratava da Guiné.
Faltava a ordem de saída para o COMBIS (comando de bissau), onde aguardaríamos avião para regresso à Metrópole.
"O Adolfo fala em prémio, como se isso fosse, realmente, um prémio!
Mas acredito que assim considerassem, tendo em conta a diferença de cenário de guerra que passaram a experimentar, com melhores condições e menos riscos, se bem entendi."
Isso mesmo, Daniel, melhores condições e menos riscos, permitindo o descanso merecido a todos nós.
Além disso, a parte psicológica enriquecida, pelo facto de estarmos perto de Bissau, naturalmente, local de partida para o regresso a casa…
Mas esta última etapa, a partida, rumo a Bissau, apesar de ansiada e muito desejada, deixou-me triste e marcado por um episódio simples, mas recheado de emoção.
A lavadeira que eu tinha neste destacamento tinha um filho com cerca de oito anos, a quem eu me tinha dedicado, pela doçura do olhar, simpatia e esperteza, que aceitava pequenas e simples coisinhas que eu lhe ia arranjando, principalmente, comida e alguns pesos.
E aquela minha dedicação nada tinha a ver com carência afectiva da minha parte ou outro qualquer sentimento, mas talvez com uma forma de agradecer o facto de estar no final da comissão, sem grandes mazelas físicas próprias daquela guerra, apesar de reconhecer que as psicológicas acabariam por emergir, mais tarde ou mais cedo.
Além disso, com o facto de ter acumulado uma forte dose de revolta e frustração, pois tinha estado em teatro de guerra que, a certa altura, depois de acordar, reconheci como desnecessária e injusta.
Pois é, este menino não conseguiu aguentar mais e desabafou comigo, mais ou menos, isto: ‘mê furiel, a mi miste bá com bó pr’a Lisboa!’
É um murro grande no estômago, já tão debilitado!...
E tive de pensar bem nas palavras de resposta a este miúdo, com todo o cuidado para não lhe fazerem mal, bem bastava o cenário onde vivia, mesmo que integrado na comunidade onde tinha nascido!...
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Nota do editor
Poste anterior de 8 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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domingo, 11 de dezembro de 2022
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022
Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias
1. VII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.
VII - Que mal fizemos nós?!...
O Comando de Bissau destacou um major para assumir o comando da companhia e, uns dias depois, vem um novo capitão, um profissional de artilharia e de comandos, como fazia questão de evidenciar, para comandar a companhia.
Este novo capitão entrou com postura de chefe, apoiado nos galões, e não como líder, o que nada ajudou na recuperação psicológica da companhia, ainda doente pela perda do capitão Assunção e Silva e já um pouco desgastada pelos frequentes ataques agressivos dos guerrilheiros do PAIGC.
Aquela atitude de chefe veio a revelar-se, cada vez mais, ao longo do tempo.
Os conflitos surgiram, as manifestações de revolta atingiram níveis impensáveis, o que nada ajudava na conjugação de esforços para ultrapassarmos as adversidades naturais daquela guerra.
No que me dizia respeito, empatia zero, logo de início, tendo dado origem a um divórcio antes de qualquer ‘relação’, com um convívio tóxico por circunstância, notado por todos, divórcio que se mantém, pois o meu íntimo nunca me permitiu ceder ou esquecer aquele comportamento…
Perseguição constante aos graduados e ameaças de tudo e mais alguma coisa aos soldados, com ‘piçadas’ (rabecadas) por tudo e por nada, sem esquecer agressões físicas.
A toda a hora prometia ‘porradas’ (castigos) e tentava impor a sua autoridade através dos galões, a única forma de conseguir alguma coisa da companhia.
Só por curiosidade, não era bem vindo na Tabanca, pela população nativa…
Também salientava que dois capitães do seu curso tinham morrido, facto agravado pela morte do nosso capitão, também, mas ele tudo faria para manter-se vivo, talvez uma desculpa para o seu comportamento…
Se todos tivessem este mesmo comportamento, só porque queriam manter-se vivos, imaginemos o cenário social e emocional da companhia…
Um militar profissional é suposto ter aprendido técnicas de liderança que permitam fazer face a circunstâncias deste tipo, mas não era o caso, claro…
As operações eram asseguradas por nós, milicianos, enquanto o capitão tratava dos assuntos da companhia, dentro do arame farpado, mais cómodo e um pouco mais seguro…
Desculpe, Daniel, mas lá vou eu falar naquela dos homens, que são todos iguais mas, felizmente, não pensam todos da mesma forma…
Entretanto, chega um 2º sargento, não me recordo porque razão, mas julgo que por uns tempos, apenas.
Algum tempo depois, por incompatibilidades e, ao deparar-se com a filosofia deste capitão e com as dificuldades daquela zona de guerra, cujas operações estavam na mão dos milicianos, acaba por sair de Gadamael Porto.
Segundo informações que me chegaram, logo que chegou a Bissau, este sargento relatou a autoridades militares de Bissau o cenário que se vivia em Gadamael Porto.
Conclusão: ordem de Bissau para que o capitão passasse a fazer parte de toda a actividade operacional, fora do aquartelamento…
A vida continuou e estava-me reservada mais uma surpresa: tanto andou, tanto andou, que foi inventando desculpas e pretextos que me impediram de vir de férias as duas vezes a que tinha direito, o que reforçou a minha revolta, bem notada, por grande parte da companhia.
Mas um pequeno esforço mental e uma certa dose de perseverança, a par de me sentir um pouco mais maduro, permitiu que já conseguisse viver melhor com o que não conseguia mudar.
E eu tinha a certeza - optimismo natural - que nada iria abalar o meu carácter, a minha personalidade, e tudo acabaria bem, pois era certa e forte a amizade e ligação fraternal com os homens da companhia, o mais importante.
E nunca esquecerei aqueles homens, fiéis, leais, apesar da condição humilde de muitos deles, a par de uma revolta natural, principalmente, dos que já vinham de uma experiência de prisão, como Penamacor, por vicissitudes da vida.
As minhas únicas férias!
Passou um ano e vim de férias, uma única vez, claro.
Segundo o primeiro-sargento Moreira, o meu historial não permitia as duas vezes, dada a má relação com o capitão, que tudo arranjou de forma a eu só gozar um período de férias.
O que ele queria era ver-me a reclamar e contestar, não sabendo a que ponto poderíamos chegar, o melhor caminho para a probabilidade de entrarmos em processo disciplinar…
Mas, apesar de tudo e mais alguma coisa, eu estava preparado para situações de conflito e cenários adversos, pelo que não cedia a tentações.
Aproveitei uma pequena avioneta que tinha vindo trazer correio e documentação para a companhia e lá fui, até Bissau, partilhando a avioneta com o Padre da Tabanca, o que significava segurança, para mim…
Dizia-se que, sempre que o padre se ausentava, tínhamos ataque mais cerrado, e ainda tive tempo de avisar alguém sobre essa probabilidade.
Voo da TAP marcado e lá vim até à Metrópole.
Uma escala inesperada, em Cabo verde, na ilha do Sal, por avaria técnica do avião, que durou umas duas ou três horas.
Aeroporto da Portela, Lisboa, parecia imaginação!
Foram trinta e cinco dias de recuperação, de conforto, de civilização, carregando pilhas para mais um ano ‘daquilo’…
Revi e abracei família e amigos, evitando comentários sobre aquela realidade que acabara de deixar e que voltaria a viver.
A minha mãe estava muito preocupada, claro, tanto mais que o Flórido, logo que chegou à Figueira da Foz, foi visitá-la e dizer-lhe que tinha estado comigo, antes de eu partir para o mato, frisando-lhe que ia para o pior sítio da Guiné!
Eu nem queria creditar nisto, pois tinha o Flórido como inteligente e de bom senso.
Ao mesmo tempo, logo que soube que eu tinha vindo de férias, a tia Jú telefona-me a agradecer a minha ajuda e a relatar a atitude do tal filho dos marchantes de Vieira do Minho, logo que chegou.
Antes da família, foi visitar a minha avó Júlia e tia Jú, felicitando-as pelo neto e sobrinho que tinham e dizendo que eu lhe tinha salvado a vida, pois poderia ter sido preso, mais uma vez, ou pior do que isso, se matasse o capitão e o alferes, como tencionava.
Mas, infelizmente, não ficou por ali, pois não deixou de dizer que eu estava no pior sítio e que tinha pena de mim e medo que me acontecesse alguma coisa!
Eu ia lá imaginar que alguém ia falar destas coisas à minha família, sem pensar no que poderia causar de preocupação e instabilidade emocional!
Isto faz-me lembrar aquela do Descartes: ‘se penso, logo, existo’…
Mas o que diria o Descartes se soubesse que pessoas que não pensam também existem…
"Realmente, Adolfo, com amigos assim, que não pensam um pouco, antes de falarem, é preferível termos inimigos!
Mas também podemos colocar a possibilidade de o fazerem debaixo de instabilidade emocional, logo, merecedores de algum desconto ou, pelo menos, do benefício da dúvida…"
Tem razão, mas há temas que requerem um pouco mais de ponderação, de discernimento…
O meu irmão já tinha regressado de Moçambique, há muitos meses, e estava a tentar reorganizar a vida, embora as dificuldades decorrentes do tal caso Guiomar e Carla tivessem tido tanto impacto na nossa família que os obstáculos cresciam e tornavam tudo mais difícil.
E eu não queria dar a entender aos meus pais que conhecia ou dava importância ao caso, estratégia pessoal.
Caso viesse a lume, defenderia a posição do meu irmão, o mais possível e de forma natural.
Só podia, em função da história que o meu irmão acabou por contar-me, mesmo não concordando ou aplaudindo, claro.
Uma aventura com uma menina, a Guiomar, professora de Liceu, durante as férias que tinha vindo passar à Metrópole, deu mau resultado, digamos, pois a menina ficou grávida.
As circunstâncias que os envolviam não permitiam tal responsabilidade, ideia comum aos dois, segundo falaram.
Apesar de ela dizer que o meu irmão era o homem da vida dela e de se ter convencido de coisas que não ofereciam garantia de ninguém, muito menos do meu irmão, lá acabou por aceitar resolver o assunto, para o que foram falar com uma médica amiga, pagaram os tratamentos, a meias, e cada um seguiria o seu caminho, como pessoas civilizadas.
Mas a menina fingiu que tratou do assunto e deixou vir o bebé, a Carla.
Quando achou conveniente, pediu a transferência para Coimbra, pois estaria perto da Figueira da Foz, logo, no caminho da entrada em casa da nossa família.
Mas só se aproximaria, quando o caminho estivesse livre de qualquer obstáculo, claro.
Porquê? Porque o meu irmão lhe tinha dito que nunca pensasse em compromissos ou casamentos, depois da falsidade que ela tinha cometido, e que o próprio irmão não aceitaria o casamento deles.
O meu pai, pelos seus princípios e posição profissional e social, logo que ela se apresentou, de menina ao colo, preparou a recepção e disse que o Victor era um rebelde, mas de bom coração, pelo que tratariam da união, com apoio.
Ela aproveitou logo para dizer ao meu pai que o Victor nunca casaria com ela porque o irmão ‘não deixava’...
Matou vários coelhos com uma só cajadada: armou-se em vítima, agravou a incompatibilidade entre o meu pai e o meu irmão e pôs o meu pai contra mim.
Mas foi aproveitando o patrocínio do meu pai: prendas para ela e filha, ajuda financeira em várias situações, fora o que não cheguei a saber.
Perto do final da comissão, o meu irmão foi confrontado com um documento que o comandante da unidade, em Moçambique, lhe apresentou: ou assina ou vai ter dificuldade em sair do serviço militar!
Ora, o meu irmão já estava com quase seis anos de serviço militar e logo respondeu que assinava tudo o que quisessem.
Pois é, assinou a perfilhação da miúda!
O que não sabia é que tudo tinha tido a mão de um primo da Guiomar, muito influente na TAP, naquele tempo.
Quando chegou ao aeroporto de Lisboa, a recepção foi calorosa: os meus pais, a minha irmã, a mãe da Guiomar, a Guiomar e a Carla.
O meu irmão, perante tal surpresa, cumprimentou todos e decidiu surpreender, também, desandando, sem perda de tempo - eu faria o mesmo…
A partir daí, a relação com o meu pai piorou, não mais voltando ao normal.
O meu irmão, controlador de tráfego aéreo, especialidade OCART, da Força Aérea, à semelhança de outros colegas, candidatou-se a controlador, no aeroporto de Lisboa.
Entregou o dossier uma vez, duas vezes, três vezes, mas sempre desapareciam!
Descobriu que o tal primo da Guiomar andava metido na coisa e nada havia a fazer.
Bem dizia ela ao meu irmão que lhe faria a vida negra!
Viu anúncios e candidatou-se a um lugar na Agência de Viagens Holitur, na Av Duque d’Ávila, Lisboa, tendo sido admitido e logo iniciou o trabalho.
Como eu tinha esses dias de férias, aproveitei para passar alguns com ele, o que me deu para espairecer um pouco, sem ficar limitado à Figueira da Foz.
Ele estava hospedado na Residencial Parisiense, no Rossio, e lá fiquei com ele, esses dias.
Mas estas curtíssimas férias não acabaram sem que me dessem uma má notícia: o meu amigo Vítor Caldeira tinha morrido, na Guiné, pouco tempo antes de eu vir de férias.
Era piloto da Força Aérea e sofreu um acidente fatal, na descolagem da avioneta, por ter batido nos arames farpados de um aquartelamento.
Voar baixo, por razões de segurança, pode dar acidente…
Mesmo absorvido por cenários como acabei de lhe descrever, ainda consegui ler umas coisas sobre os negócios do petróleo, um caso que começava a atormentar alguns países, pois as repercussões dos conflitos económicos à vista não deixavam antever outros resultados.
Como o Daniel se recordará, nesta altura, os EUA negociavam com a Arábia Saudita um tratado que visava absorver toda a sua produção de petróleo, mas com a cotação em usd, como moeda de transacção, em troca de armamento e protecção militar - era o início de uma nova moeda de transacção, o petrodólar!
O usd, criado pela reserva federal americana, independente do estado, era lançado no mercado sem limite, mas com o valor de papel, apenas, pois não apresentava o contraste em ouro ou prata, como sabemos.
Este acordo comercial obrigava todos os países interessados na compra de petróleo à Arábia Saudita a usarem os petrodólares, uma forma simples de valorização do usd.
Não conseguia imaginar o que isto iria dar, uns bons anos mais tarde, como todos constatámos!...
Como sabe, a Líbia e o Iraque resolveram adoptar o mesmo esquema, seja, adquirir petróleo à Arábia Saudita, mas usando a sua própria moeda.
Os EUA não gostaram e foi o que se viu, nomeadamente, invasão do Iraque, liquidação da Líbia, etc.
Engraçado que, no caso do Iraque, o pretexto dos EUA foram as armas de destruição massiva do Iraque e o facto de terem invadido o Kwait, geoestratégia…
Os EUA, pela mão do Bush filho, com a companhia de Blair, Aznar e Durão Barroso, na Cimeira das Lajes, em 2003, decidiram e formalizaram a invasão ao Iraque…
Este Durão Barroso, ‘um patriota puro e desinteressado’, como sabemos, teve a compensação - sair de Portugal, passar por Bruxelas, até ocupar o cargo importante no banco que sabemos, nos EUA… Patriotas destes, dispensamos!
Tudo isto ficará na História Universal, claro, embora saibamos que ‘pintado’ à maneira de cada um…
Quanto à China, a coisa foi diferente, pois usou o mesmo esquema, mas sem a oposição dos EUA, claro, e começou a comprar todo o ouro do mundo, permitindo aos agentes económicos a troca do Yuan por ouro ou prata.
A Rússia seguiu o exemplo da China, também, sem oposição dos EUA, da mesma forma, claro.
Tanto a China como a Rússia passaram a ser uma forte concorrência aos EUA.
Isto foi o primeiro dia do início da queda dos EUA, como primeira potência mundial da economia!
Nessa altura, pelas circunstâncias, tive pena de não ter acompanhado todo este assunto, em tempo útil, pois era bem interessante…
"Mas o Adolfo tinha de ocupar a mente com outos assuntos, melhor, problemas, não é?"
Diz bem, outros problemas me esperavam, infelizmente…
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando
VII - Que mal fizemos nós?!...
O Comando de Bissau destacou um major para assumir o comando da companhia e, uns dias depois, vem um novo capitão, um profissional de artilharia e de comandos, como fazia questão de evidenciar, para comandar a companhia.
Este novo capitão entrou com postura de chefe, apoiado nos galões, e não como líder, o que nada ajudou na recuperação psicológica da companhia, ainda doente pela perda do capitão Assunção e Silva e já um pouco desgastada pelos frequentes ataques agressivos dos guerrilheiros do PAIGC.
Aquela atitude de chefe veio a revelar-se, cada vez mais, ao longo do tempo.
Os conflitos surgiram, as manifestações de revolta atingiram níveis impensáveis, o que nada ajudava na conjugação de esforços para ultrapassarmos as adversidades naturais daquela guerra.
No que me dizia respeito, empatia zero, logo de início, tendo dado origem a um divórcio antes de qualquer ‘relação’, com um convívio tóxico por circunstância, notado por todos, divórcio que se mantém, pois o meu íntimo nunca me permitiu ceder ou esquecer aquele comportamento…
Perseguição constante aos graduados e ameaças de tudo e mais alguma coisa aos soldados, com ‘piçadas’ (rabecadas) por tudo e por nada, sem esquecer agressões físicas.
A toda a hora prometia ‘porradas’ (castigos) e tentava impor a sua autoridade através dos galões, a única forma de conseguir alguma coisa da companhia.
Só por curiosidade, não era bem vindo na Tabanca, pela população nativa…
Também salientava que dois capitães do seu curso tinham morrido, facto agravado pela morte do nosso capitão, também, mas ele tudo faria para manter-se vivo, talvez uma desculpa para o seu comportamento…
Se todos tivessem este mesmo comportamento, só porque queriam manter-se vivos, imaginemos o cenário social e emocional da companhia…
Um militar profissional é suposto ter aprendido técnicas de liderança que permitam fazer face a circunstâncias deste tipo, mas não era o caso, claro…
As operações eram asseguradas por nós, milicianos, enquanto o capitão tratava dos assuntos da companhia, dentro do arame farpado, mais cómodo e um pouco mais seguro…
Desculpe, Daniel, mas lá vou eu falar naquela dos homens, que são todos iguais mas, felizmente, não pensam todos da mesma forma…
Entretanto, chega um 2º sargento, não me recordo porque razão, mas julgo que por uns tempos, apenas.
Algum tempo depois, por incompatibilidades e, ao deparar-se com a filosofia deste capitão e com as dificuldades daquela zona de guerra, cujas operações estavam na mão dos milicianos, acaba por sair de Gadamael Porto.
Segundo informações que me chegaram, logo que chegou a Bissau, este sargento relatou a autoridades militares de Bissau o cenário que se vivia em Gadamael Porto.
Conclusão: ordem de Bissau para que o capitão passasse a fazer parte de toda a actividade operacional, fora do aquartelamento…
A vida continuou e estava-me reservada mais uma surpresa: tanto andou, tanto andou, que foi inventando desculpas e pretextos que me impediram de vir de férias as duas vezes a que tinha direito, o que reforçou a minha revolta, bem notada, por grande parte da companhia.
Mas um pequeno esforço mental e uma certa dose de perseverança, a par de me sentir um pouco mais maduro, permitiu que já conseguisse viver melhor com o que não conseguia mudar.
E eu tinha a certeza - optimismo natural - que nada iria abalar o meu carácter, a minha personalidade, e tudo acabaria bem, pois era certa e forte a amizade e ligação fraternal com os homens da companhia, o mais importante.
E nunca esquecerei aqueles homens, fiéis, leais, apesar da condição humilde de muitos deles, a par de uma revolta natural, principalmente, dos que já vinham de uma experiência de prisão, como Penamacor, por vicissitudes da vida.
As minhas únicas férias!
Passou um ano e vim de férias, uma única vez, claro.
Segundo o primeiro-sargento Moreira, o meu historial não permitia as duas vezes, dada a má relação com o capitão, que tudo arranjou de forma a eu só gozar um período de férias.
O que ele queria era ver-me a reclamar e contestar, não sabendo a que ponto poderíamos chegar, o melhor caminho para a probabilidade de entrarmos em processo disciplinar…
Mas, apesar de tudo e mais alguma coisa, eu estava preparado para situações de conflito e cenários adversos, pelo que não cedia a tentações.
Aproveitei uma pequena avioneta que tinha vindo trazer correio e documentação para a companhia e lá fui, até Bissau, partilhando a avioneta com o Padre da Tabanca, o que significava segurança, para mim…
Dizia-se que, sempre que o padre se ausentava, tínhamos ataque mais cerrado, e ainda tive tempo de avisar alguém sobre essa probabilidade.
Voo da TAP marcado e lá vim até à Metrópole.
Uma escala inesperada, em Cabo verde, na ilha do Sal, por avaria técnica do avião, que durou umas duas ou três horas.
Aeroporto da Portela, Lisboa, parecia imaginação!
Foram trinta e cinco dias de recuperação, de conforto, de civilização, carregando pilhas para mais um ano ‘daquilo’…
Revi e abracei família e amigos, evitando comentários sobre aquela realidade que acabara de deixar e que voltaria a viver.
A minha mãe estava muito preocupada, claro, tanto mais que o Flórido, logo que chegou à Figueira da Foz, foi visitá-la e dizer-lhe que tinha estado comigo, antes de eu partir para o mato, frisando-lhe que ia para o pior sítio da Guiné!
Eu nem queria creditar nisto, pois tinha o Flórido como inteligente e de bom senso.
Ao mesmo tempo, logo que soube que eu tinha vindo de férias, a tia Jú telefona-me a agradecer a minha ajuda e a relatar a atitude do tal filho dos marchantes de Vieira do Minho, logo que chegou.
Antes da família, foi visitar a minha avó Júlia e tia Jú, felicitando-as pelo neto e sobrinho que tinham e dizendo que eu lhe tinha salvado a vida, pois poderia ter sido preso, mais uma vez, ou pior do que isso, se matasse o capitão e o alferes, como tencionava.
Mas, infelizmente, não ficou por ali, pois não deixou de dizer que eu estava no pior sítio e que tinha pena de mim e medo que me acontecesse alguma coisa!
Eu ia lá imaginar que alguém ia falar destas coisas à minha família, sem pensar no que poderia causar de preocupação e instabilidade emocional!
Isto faz-me lembrar aquela do Descartes: ‘se penso, logo, existo’…
Mas o que diria o Descartes se soubesse que pessoas que não pensam também existem…
"Realmente, Adolfo, com amigos assim, que não pensam um pouco, antes de falarem, é preferível termos inimigos!
Mas também podemos colocar a possibilidade de o fazerem debaixo de instabilidade emocional, logo, merecedores de algum desconto ou, pelo menos, do benefício da dúvida…"
Tem razão, mas há temas que requerem um pouco mais de ponderação, de discernimento…
O meu irmão já tinha regressado de Moçambique, há muitos meses, e estava a tentar reorganizar a vida, embora as dificuldades decorrentes do tal caso Guiomar e Carla tivessem tido tanto impacto na nossa família que os obstáculos cresciam e tornavam tudo mais difícil.
E eu não queria dar a entender aos meus pais que conhecia ou dava importância ao caso, estratégia pessoal.
Caso viesse a lume, defenderia a posição do meu irmão, o mais possível e de forma natural.
Só podia, em função da história que o meu irmão acabou por contar-me, mesmo não concordando ou aplaudindo, claro.
Uma aventura com uma menina, a Guiomar, professora de Liceu, durante as férias que tinha vindo passar à Metrópole, deu mau resultado, digamos, pois a menina ficou grávida.
As circunstâncias que os envolviam não permitiam tal responsabilidade, ideia comum aos dois, segundo falaram.
Apesar de ela dizer que o meu irmão era o homem da vida dela e de se ter convencido de coisas que não ofereciam garantia de ninguém, muito menos do meu irmão, lá acabou por aceitar resolver o assunto, para o que foram falar com uma médica amiga, pagaram os tratamentos, a meias, e cada um seguiria o seu caminho, como pessoas civilizadas.
Mas a menina fingiu que tratou do assunto e deixou vir o bebé, a Carla.
Quando achou conveniente, pediu a transferência para Coimbra, pois estaria perto da Figueira da Foz, logo, no caminho da entrada em casa da nossa família.
Mas só se aproximaria, quando o caminho estivesse livre de qualquer obstáculo, claro.
Porquê? Porque o meu irmão lhe tinha dito que nunca pensasse em compromissos ou casamentos, depois da falsidade que ela tinha cometido, e que o próprio irmão não aceitaria o casamento deles.
O meu pai, pelos seus princípios e posição profissional e social, logo que ela se apresentou, de menina ao colo, preparou a recepção e disse que o Victor era um rebelde, mas de bom coração, pelo que tratariam da união, com apoio.
Ela aproveitou logo para dizer ao meu pai que o Victor nunca casaria com ela porque o irmão ‘não deixava’...
Matou vários coelhos com uma só cajadada: armou-se em vítima, agravou a incompatibilidade entre o meu pai e o meu irmão e pôs o meu pai contra mim.
Mas foi aproveitando o patrocínio do meu pai: prendas para ela e filha, ajuda financeira em várias situações, fora o que não cheguei a saber.
Perto do final da comissão, o meu irmão foi confrontado com um documento que o comandante da unidade, em Moçambique, lhe apresentou: ou assina ou vai ter dificuldade em sair do serviço militar!
Ora, o meu irmão já estava com quase seis anos de serviço militar e logo respondeu que assinava tudo o que quisessem.
Pois é, assinou a perfilhação da miúda!
O que não sabia é que tudo tinha tido a mão de um primo da Guiomar, muito influente na TAP, naquele tempo.
Quando chegou ao aeroporto de Lisboa, a recepção foi calorosa: os meus pais, a minha irmã, a mãe da Guiomar, a Guiomar e a Carla.
O meu irmão, perante tal surpresa, cumprimentou todos e decidiu surpreender, também, desandando, sem perda de tempo - eu faria o mesmo…
A partir daí, a relação com o meu pai piorou, não mais voltando ao normal.
O meu irmão, controlador de tráfego aéreo, especialidade OCART, da Força Aérea, à semelhança de outros colegas, candidatou-se a controlador, no aeroporto de Lisboa.
Entregou o dossier uma vez, duas vezes, três vezes, mas sempre desapareciam!
Descobriu que o tal primo da Guiomar andava metido na coisa e nada havia a fazer.
Bem dizia ela ao meu irmão que lhe faria a vida negra!
Viu anúncios e candidatou-se a um lugar na Agência de Viagens Holitur, na Av Duque d’Ávila, Lisboa, tendo sido admitido e logo iniciou o trabalho.
Como eu tinha esses dias de férias, aproveitei para passar alguns com ele, o que me deu para espairecer um pouco, sem ficar limitado à Figueira da Foz.
Ele estava hospedado na Residencial Parisiense, no Rossio, e lá fiquei com ele, esses dias.
Mas estas curtíssimas férias não acabaram sem que me dessem uma má notícia: o meu amigo Vítor Caldeira tinha morrido, na Guiné, pouco tempo antes de eu vir de férias.
Era piloto da Força Aérea e sofreu um acidente fatal, na descolagem da avioneta, por ter batido nos arames farpados de um aquartelamento.
Voar baixo, por razões de segurança, pode dar acidente…
Mesmo absorvido por cenários como acabei de lhe descrever, ainda consegui ler umas coisas sobre os negócios do petróleo, um caso que começava a atormentar alguns países, pois as repercussões dos conflitos económicos à vista não deixavam antever outros resultados.
Como o Daniel se recordará, nesta altura, os EUA negociavam com a Arábia Saudita um tratado que visava absorver toda a sua produção de petróleo, mas com a cotação em usd, como moeda de transacção, em troca de armamento e protecção militar - era o início de uma nova moeda de transacção, o petrodólar!
O usd, criado pela reserva federal americana, independente do estado, era lançado no mercado sem limite, mas com o valor de papel, apenas, pois não apresentava o contraste em ouro ou prata, como sabemos.
Este acordo comercial obrigava todos os países interessados na compra de petróleo à Arábia Saudita a usarem os petrodólares, uma forma simples de valorização do usd.
Não conseguia imaginar o que isto iria dar, uns bons anos mais tarde, como todos constatámos!...
Como sabe, a Líbia e o Iraque resolveram adoptar o mesmo esquema, seja, adquirir petróleo à Arábia Saudita, mas usando a sua própria moeda.
Os EUA não gostaram e foi o que se viu, nomeadamente, invasão do Iraque, liquidação da Líbia, etc.
Engraçado que, no caso do Iraque, o pretexto dos EUA foram as armas de destruição massiva do Iraque e o facto de terem invadido o Kwait, geoestratégia…
Os EUA, pela mão do Bush filho, com a companhia de Blair, Aznar e Durão Barroso, na Cimeira das Lajes, em 2003, decidiram e formalizaram a invasão ao Iraque…
Este Durão Barroso, ‘um patriota puro e desinteressado’, como sabemos, teve a compensação - sair de Portugal, passar por Bruxelas, até ocupar o cargo importante no banco que sabemos, nos EUA… Patriotas destes, dispensamos!
Tudo isto ficará na História Universal, claro, embora saibamos que ‘pintado’ à maneira de cada um…
Quanto à China, a coisa foi diferente, pois usou o mesmo esquema, mas sem a oposição dos EUA, claro, e começou a comprar todo o ouro do mundo, permitindo aos agentes económicos a troca do Yuan por ouro ou prata.
A Rússia seguiu o exemplo da China, também, sem oposição dos EUA, da mesma forma, claro.
Tanto a China como a Rússia passaram a ser uma forte concorrência aos EUA.
Isto foi o primeiro dia do início da queda dos EUA, como primeira potência mundial da economia!
Nessa altura, pelas circunstâncias, tive pena de não ter acompanhado todo este assunto, em tempo útil, pois era bem interessante…
"Mas o Adolfo tinha de ocupar a mente com outos assuntos, melhor, problemas, não é?"
Diz bem, outros problemas me esperavam, infelizmente…
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando
terça-feira, 6 de dezembro de 2022
Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando
1. Parte VI da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.
VI - Continuando…
Parte da primeira companhia de comandos africanos, comandada pelo célebre e temido João Bacar Jaló e pelo segundo comandante Zacarias Saeigh, logo a seguir, apareceu em Gadamael Porto, com indicação de que ficariam uns dias, participando em operações com a nossa companhia.
Aqui estava parte da razão da nossa espera em Bissau, até ao dia 27 de Novembro pois, parte deles, tinha participado na operação de que lhe falarei, a seguir.
Recordo alguns dos elementos: o Jalibá, o Bari, o Tomaz Camara, o Justo, o João Lomba, um felupe com dois metros, sempre de catana à tiracolo, que fazia colecção de crânios do inimigo, segundo diziam os outros, com convicção.
Tenho fotos de recordação com alguns deles.
Tinham feito parte da operação Mar Verde, invasão à República da Guiné-Conacry, em 22 de Novembro, ainda bem marcados e feridos pelos resultados.
Só por curiosidade, uma das nossas operações, em que alguns deles participaram, durante uma emboscada, o Tomaz Camara foi baleado na cabeça, mas de tal forma que a bala entrou pela fronte, não penetrou na parte óssea e deu a volta, ao longo do couro cabeludo, ficando retida na parte posterior da cabeça.
Concluiu-se que aquela bala foi sendo amortecida pelos ramos e folhagem das árvores, chegando à cabeça do Tomaz Camara já com pouca capacidade, a grande sorte dele.
Foi evacuado para o hospital de Bissau e lá se safou, após cirurgia adequada.
Voltando aquela operação Mar Verde, só para o Daniel ter uma ideia, foi uma operação liderada pelo capitão-tenente fuzileiro Alpoim Calvão, com o máximo sigilo e de forma a evitar que algum sinal pudesse indicar como obra de forças armadas portuguesas.
A equipa foi formada por fuzileiros do continente, fuzileiros guineenses formados no local e alguns comandos africanos.
Parte da equipa foi treinada pelo temido Marcelino da Mata, que também participou, de que lhe falarei, se me lembrar.
Como acontecia em outras operações, as armas e os uniformes teriam de ser iguais ou idênticas às usadas pelos militares do PAIGC, além das pinturas a negro, na cara.
Os próprios veículos usados nas operações teriam de ser o mais discretos possível, sem inscrições que os pudessem denunciar, assim como as próprias equipas que deviam ser caracterizadas de forma a confundirem-se com o inimigo, neste caso, africanos.
O objectivo seria destruir bases militares e equipamento, assim como pontos estratégicos que convinha neutralizar, libertar prisioneiros de guerra portugueses e prisioneiros políticos contra o regime de Sékou Touré, tendo em vista um golpe de estado que pudesse aniquilar Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Mas o objectivo não foi conseguido, na sua totalidade, claro.
Foram libertados 26 prisioneiros portugueses, cerca de 400 prisioneiros políticos guineenses, além de destruído bastante equipamento militar e causadas centenas de baixas aos guerrilheiros do PAIGC e população, inevitável…
Como era de esperar, as organizações internacionais receberam as queixas por parte do governo da Guiné-Conakry, nada de extraordinário, considerando a gravidade…
Segundo o relatório desta operação, parte do insucesso da operação deveu-se ao mau trabalho da PIDE, nomeadamente, deficientes passos no campo das informações.
Lembro-me da insatisfação do João Bacar Jaló, pelo facto de não termos comida suficiente, além da rotura do stock de ração de combate.
Já tínhamos enviado rádios para Bissau, solicitando alguns mantimentos, mas nada aparecia.
Foi preciso um rádio, com código do João Bacar Jaló, para enviarem frescos, de imediato.
Os frescos eram constituídos, normalmente, por peixe congelado, frango congelado, ovos, lançados em rede por um hélio, com o impacto no solo que se prevê…
Era assim, o reino do Sr Spínola, em Bissau!... O João Bacar Jaló veio a falecer, em combate, uns meses depois, penso que em Abril, na designada operação ‘nilo’.
"O Adolfo fala dessa sua passagem por África com alguma frieza, mas acredito que deixou muitas marcas, como todos sabemos e o Adolfo melhor saberá…"
Sim, mas já tive tempos mais difíceis do que agora.
Quando andava nos quarenta, quarenta e tal, recordo-me de dias e noites bem difíceis, com um grande esforço para evitar transparecer aos que me rodeavam, na empresa e na família.
Uma sensação de distúrbio mental, principalmente, durante a noite, com perturbações de sono, uma certa ansiedade sem razão aparente, uma mistura de revolta com instabilidade, desânimo, saltos repentinos da cama, o gesto tantas vezes lá repetido, tudo isso relatei aos médicos, neurologista e psiquiatra, que definiram como parte das consequências resultantes de momentos vividos neste tipo de cenários.
Não me imaginava a desabafar e, até, a chorar, mas foi uma realidade, logo justificada pelos médicos.
Falaram em stress traumático de guerra, o que atingiu alguns elementos da companhia, com graves consequências para o resto da vida, como constatado, aquando dos nossos encontros/convívio/almoços anuais.
Alguns medicamentos, por pouco tempo, também ajudaram.
Sabe, Daniel, nós só acreditamos nestas coisas quando, realmente, nos tocam pela porta, directamente.
Mas há gente que não compreende, nem os nossos sentimentos, nem a nossa linguagem, mas nós estamos preparados para compreender essa gente que não nos compreende…
A par dos acontecimentos próprios daquela guerra, como já lhe disse, o clima deixava-nos de rastos.
Humidade do ar, na ordem dos noventa por cento, temperatura, na ordem dos quarenta graus, um factor determinante de um certo desespero diário, sem nada se poder fazer para o evitar.
As operações de rotina, tantas vezes, dentro de matas virgens desbravadas à custa de catana, quase de rastos, incluíam entrar em regatos de águas geladas, que nunca viam o Sol, ou lamas negras que se agarravam ao camuflado.
Quando saíamos da mata e entrávamos nas designadas lalas, com aquelas temperaturas, as lamas coziam e eram como lâminas a rasgar a pele, provocando irritações e queimaduras, um tormento, só possível aliviar à custa de fórmula cinco, de que resultava um ardor tal, que só aos saltos!…
Dentro do camuflado, nem pensar em cuecas...
Outras agressividades nos surpreendiam, quando em progressão pelos trilhos ou dentro das matas, como os carreiros de formigas vermelhas, os enxames de vespas e as cobras cuspideiras.
As formigas começavam a entrar, não sabíamos por onde, e alojavam-se pelo corpo, principalmente, nas partes íntimas, cravando as tenazes nos testículos, o que deixava qualquer um desnorteado, pelas dores.
E nós tínhamos o camuflado bem apertado sobre as botas!...
Quando tentávamos tirá-las, a cabeça ficava cravada e apenas saía o corpo.
Os enxames estavam pendurados em ramos das árvores e, logo que algum de nós lhes tocava, elas começavam a sair, endiabradas, ferrando tudo o que podiam, do que resultavam uma espécie de monstros!
Aliás, diziam-nos que os próprios guerrilheiros do PAIGC preparavam esses enxames e colocavam-nos em locais estratégicos, picadas e carreiros de progressão que usávamos, nas nossas operações.
As cuspideiras, pequenas e verdes como os ramos das árvores, cuspiam nas partes brilhantes, logo, nos olhos.
Como imaginará, a população de baratas e formigas com asas, cá conhecidas por agúdias, era uma enormidade, mas habituámo-nos a viver com elas, a dormir com elas.
Também as limitações de alimentos e água ‘bebível’ faziam parte da nossa festa diária…
Tivemos um período que nem ração de combate havia, diziam que estava esgotada!
Outro problema era o paludismo, quando forte, podia matar.
Felizmente, foi coisa que não me tocou!
Mas as diarreias eram um cenário quase comum, deixando muitos de nós de rastos.
No meu caso, felizmente, um só episódio, mas levou-me a ‘buracos do mato’ um monte de vezes, num só dia, que ficaram bem registados!
"Ouvi falar de doenças desse tipo, como o paludismo, e também dos problemas provocados pelas águas, problemas em cima de problemas que vocês tinham de contornar - ossos do ofício…
Se calhar, era o tipo de problemas para o qual não estavam preparados".
Daniel, depois desta experiência, concluo que estamos preparados para muito pouco…
Também me lembro de um quadro muito engraçado, algumas vezes fazendo parte do nosso cenário, quando em progressão pelos carreiros ou picadas: as famílias de sancus (macacos).
Imagine que tínhamos de parar, com os riscos inerentes, para que as famílias atravessassem os carreiros ou as picadas, o pai de um lado, a vigiar o espaço, garantindo a segurança da família, enquanto a mãe ia atravessando com os filhos, todos de mão dada, até chegarem todos ao outro lado, sempre olhando-nos nos olhos e como que a dizerem-nos alguma coisa, numa linguagem acompanhada de um rosnar tipo cão.
Aliás, o macaco-cão abundava e dizia-se muito apreciado pela etnia Fula, que não consumia carne de porco.
E sabia-se que, muitas vezes, os bifes não eram de vaca, porco ou gazela, mas de macaco-cão…
A etnia Balanta criava e consumia porco.
Quando chegava correio, tarde, mas chegava, uma enorme festa para alguns, mas uma tristeza para outros, pois não eram contemplados.
Lembro-me de aerogramas partilhados, um gesto de solidariedade e amizade.
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, associávamos a correio, logo, toca a pegar no aerograma e escrevinhar qualquer coisa, à pressa, como: ‘meus queridos pais e irmãos, espero que estejam bem, eu estou bem, o resto vão ler aos anteriores, beijinhos.’
Também chegou a acontecer aparecer um héli e, ao dar a entender que tencionava baixar, um dos soldados pegou na G3, apontava para o ar, enquanto outro avisava, pelo radio móvel, que não se aventurassem a baixar, caso não trouxessem correio!…
As revistas da altura, como a Plateia, quando lá chegavam, enviadas por familiares e amigos de alguns, constituíam um alimento para o espírito de todos.
E liam-se, e reliam-se, e reliam-se,…
De vez em quando, eu recebia aerogramas das minhas amigas, que não me esqueciam, cujo significado e efeito não têm tradução, por palavras.
Uma delas enviava-me, de vez em quando, algumas cassetes com gravações de músicas acabadas de sair, o que me permitia estar ao corrente do que se ia passando, na ‘civilização’.
Ainda bem que tinha comprado o tal leitor de cassetes e que podia ouvi-las, sempre que chegavam à minha mão - um verdadeiro milagre…
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, logo associávamos a correio…
"Ó Adolfo, por falar nisso, lembro-me do Movimento Nacional Feminino que, embora algo contestado, ainda conseguia fazer alguma coisa válida, no apoio aos militares que chegavam feridos e aos familiares dos que morriam. Pelo menos, era o que me constava…"
Sim, Daniel, era um movimento interessante, mas…
Mais qualquer coisinha desagradável…
Mas nem tudo o que me chegava era agradável.
Recebo uma carta da minha mãe, não aerograma, com um texto normal de mãe, mas juntando uma foto dos meus pais com a criança Carla ao colo.
Claro que não incluía a mãe, por precaução.
Não foi preciso pensar e não respondi, como se nunca tivesse recebido aquela carta.
Obviamente, associei este quadro ao que o meu irmão me tinha relatado sobre uma Guiomar, embora sem pormenores, mas qualquer coisa seria de desagradável.
Mais tarde, recebi novo aerograma da minha mãe, pedindo-me autorização para levantar dinheiro da minha conta, pois a tia Jú estava aflita com umas despesas inesperadas que tinha de cumprir e a minha mãe já tinha ajudado, um pouco, mas não podia ajudar mais.
Logo respondi que sim, poderia levantar tudo o que a tia Jú necessitasse - para a tia Jú, tudo!
No entanto, deixou-me a pensar na coisa, pois era estranho...
Mesmo com algum problema inesperado, a tia Jú tinha o seu emprego, o marido o seu emprego, a avó Júlia a sua pensão, a sogra a sua pensão, as duas sem despesas, logo, porquê?!
Paciência, mais tarde teria oportunidade de conhecer a resposta e, no momento, era melhor esquecer.
"Adolfo, não consigo imaginar o que sente uma pessoa, em cenário de guerra e de falhas no mais elementar, como a comidinha, ao receber notícias da família, com situações que suscitam dúvidas e criam preocupações…"
Realmente, Daniel, era difícil conciliar a situação com algumas notícias que lá nos chegavam…
Mesmo o pouco tempo de descanso era assaltado por estas dúvidas e preocupações, apesar de sabermos que nada podíamos fazer.
Mas o meu relacionamento com toda a companhia continuava óptimo, em espírito de grupo saudável e imprescindível, com os condicionalismos próprios do contexto, mas com uma grande vontade de, em conjunto, procurarmos vencer todas as dificuldades que nos iam surgindo, sempre motivados pela esperança de um regresso a casa, sãos e salvos.
Mas as situações delicadas não podiam ser contornadas, pois faziam parte daquela realidade, e surgiam a cada momento.
Já com baixas, a moral ia ficando debilitada, mas o nosso espírito ia amadurecendo, a forma possível de continuarmos a nossa marcha.
Pouco mais de dois meses decorridos, durante uma emboscada que sofremos logo uns minutos depois do arame farpado do aquartelamento, ainda no início de mais uma operação, o capitão Assunção e Silva, um ranger bem preparado e bom líder, morre, com tiro certeiro no coração.
Além do capitão morto, mais dois ou três feridos, apenas.
Sim, mais uma operação, designada de reconhecimento, em que saía o primeiro grupo, do Ponte, o capitão Assunção e Silva, um ou dois dos comandos africanos e alguns milícias.
Como era necessário mais um graduado, o Ponte manifestou interesse em que eu participasse nesta operação, apesar de não ser o meu grupo, mas a solidariedade ‘obrigada’ sobrepunha-se a tudo, dadas as circunstâncias.
Mas não me esqueço de que, neste dia, eu estava muito mal disposto, com os meus problemas do aparelho digestivo, já conhecidos, e que se foram agravando.
Mas o cenário que vivíamos não tolerava más disposições…
Como o Daniel saberá, o desenrolar de uma emboscada pode durar segundos ou minutos, depende das circunstâncias.
Início, troca de tiros, uns segundos e… já está - final e retirada estratégica de ambas as partes…
Como o Daniel já deve ter ouvido, sempre que em situações como esta, toca a despir camuflados para apoiar em G3 e improvisar macas, até chegarmos ao aquartelamento, tudo rápido e em silêncio, claro, mais uma experiência para a vida.
Confesso que fiquei bastante abalado quando vi o capitão caído, já sem vida!
Aliás, um sentimento geral, em toda a companhia, quando entrámos no aquartelamento!
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto
VI - Continuando…
Parte da primeira companhia de comandos africanos, comandada pelo célebre e temido João Bacar Jaló e pelo segundo comandante Zacarias Saeigh, logo a seguir, apareceu em Gadamael Porto, com indicação de que ficariam uns dias, participando em operações com a nossa companhia.
Aqui estava parte da razão da nossa espera em Bissau, até ao dia 27 de Novembro pois, parte deles, tinha participado na operação de que lhe falarei, a seguir.
Recordo alguns dos elementos: o Jalibá, o Bari, o Tomaz Camara, o Justo, o João Lomba, um felupe com dois metros, sempre de catana à tiracolo, que fazia colecção de crânios do inimigo, segundo diziam os outros, com convicção.
Tenho fotos de recordação com alguns deles.
Tinham feito parte da operação Mar Verde, invasão à República da Guiné-Conacry, em 22 de Novembro, ainda bem marcados e feridos pelos resultados.
Só por curiosidade, uma das nossas operações, em que alguns deles participaram, durante uma emboscada, o Tomaz Camara foi baleado na cabeça, mas de tal forma que a bala entrou pela fronte, não penetrou na parte óssea e deu a volta, ao longo do couro cabeludo, ficando retida na parte posterior da cabeça.
Concluiu-se que aquela bala foi sendo amortecida pelos ramos e folhagem das árvores, chegando à cabeça do Tomaz Camara já com pouca capacidade, a grande sorte dele.
Foi evacuado para o hospital de Bissau e lá se safou, após cirurgia adequada.
Voltando aquela operação Mar Verde, só para o Daniel ter uma ideia, foi uma operação liderada pelo capitão-tenente fuzileiro Alpoim Calvão, com o máximo sigilo e de forma a evitar que algum sinal pudesse indicar como obra de forças armadas portuguesas.
A equipa foi formada por fuzileiros do continente, fuzileiros guineenses formados no local e alguns comandos africanos.
Parte da equipa foi treinada pelo temido Marcelino da Mata, que também participou, de que lhe falarei, se me lembrar.
Como acontecia em outras operações, as armas e os uniformes teriam de ser iguais ou idênticas às usadas pelos militares do PAIGC, além das pinturas a negro, na cara.
Os próprios veículos usados nas operações teriam de ser o mais discretos possível, sem inscrições que os pudessem denunciar, assim como as próprias equipas que deviam ser caracterizadas de forma a confundirem-se com o inimigo, neste caso, africanos.
O objectivo seria destruir bases militares e equipamento, assim como pontos estratégicos que convinha neutralizar, libertar prisioneiros de guerra portugueses e prisioneiros políticos contra o regime de Sékou Touré, tendo em vista um golpe de estado que pudesse aniquilar Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Mas o objectivo não foi conseguido, na sua totalidade, claro.
Foram libertados 26 prisioneiros portugueses, cerca de 400 prisioneiros políticos guineenses, além de destruído bastante equipamento militar e causadas centenas de baixas aos guerrilheiros do PAIGC e população, inevitável…
Como era de esperar, as organizações internacionais receberam as queixas por parte do governo da Guiné-Conakry, nada de extraordinário, considerando a gravidade…
Segundo o relatório desta operação, parte do insucesso da operação deveu-se ao mau trabalho da PIDE, nomeadamente, deficientes passos no campo das informações.
Lembro-me da insatisfação do João Bacar Jaló, pelo facto de não termos comida suficiente, além da rotura do stock de ração de combate.
Já tínhamos enviado rádios para Bissau, solicitando alguns mantimentos, mas nada aparecia.
Foi preciso um rádio, com código do João Bacar Jaló, para enviarem frescos, de imediato.
Os frescos eram constituídos, normalmente, por peixe congelado, frango congelado, ovos, lançados em rede por um hélio, com o impacto no solo que se prevê…
Era assim, o reino do Sr Spínola, em Bissau!... O João Bacar Jaló veio a falecer, em combate, uns meses depois, penso que em Abril, na designada operação ‘nilo’.
"O Adolfo fala dessa sua passagem por África com alguma frieza, mas acredito que deixou muitas marcas, como todos sabemos e o Adolfo melhor saberá…"
Sim, mas já tive tempos mais difíceis do que agora.
Quando andava nos quarenta, quarenta e tal, recordo-me de dias e noites bem difíceis, com um grande esforço para evitar transparecer aos que me rodeavam, na empresa e na família.
Uma sensação de distúrbio mental, principalmente, durante a noite, com perturbações de sono, uma certa ansiedade sem razão aparente, uma mistura de revolta com instabilidade, desânimo, saltos repentinos da cama, o gesto tantas vezes lá repetido, tudo isso relatei aos médicos, neurologista e psiquiatra, que definiram como parte das consequências resultantes de momentos vividos neste tipo de cenários.
Não me imaginava a desabafar e, até, a chorar, mas foi uma realidade, logo justificada pelos médicos.
Falaram em stress traumático de guerra, o que atingiu alguns elementos da companhia, com graves consequências para o resto da vida, como constatado, aquando dos nossos encontros/convívio/almoços anuais.
Alguns medicamentos, por pouco tempo, também ajudaram.
Sabe, Daniel, nós só acreditamos nestas coisas quando, realmente, nos tocam pela porta, directamente.
Mas há gente que não compreende, nem os nossos sentimentos, nem a nossa linguagem, mas nós estamos preparados para compreender essa gente que não nos compreende…
A par dos acontecimentos próprios daquela guerra, como já lhe disse, o clima deixava-nos de rastos.
Humidade do ar, na ordem dos noventa por cento, temperatura, na ordem dos quarenta graus, um factor determinante de um certo desespero diário, sem nada se poder fazer para o evitar.
As operações de rotina, tantas vezes, dentro de matas virgens desbravadas à custa de catana, quase de rastos, incluíam entrar em regatos de águas geladas, que nunca viam o Sol, ou lamas negras que se agarravam ao camuflado.
Quando saíamos da mata e entrávamos nas designadas lalas, com aquelas temperaturas, as lamas coziam e eram como lâminas a rasgar a pele, provocando irritações e queimaduras, um tormento, só possível aliviar à custa de fórmula cinco, de que resultava um ardor tal, que só aos saltos!…
Dentro do camuflado, nem pensar em cuecas...
Outras agressividades nos surpreendiam, quando em progressão pelos trilhos ou dentro das matas, como os carreiros de formigas vermelhas, os enxames de vespas e as cobras cuspideiras.
As formigas começavam a entrar, não sabíamos por onde, e alojavam-se pelo corpo, principalmente, nas partes íntimas, cravando as tenazes nos testículos, o que deixava qualquer um desnorteado, pelas dores.
E nós tínhamos o camuflado bem apertado sobre as botas!...
Quando tentávamos tirá-las, a cabeça ficava cravada e apenas saía o corpo.
Os enxames estavam pendurados em ramos das árvores e, logo que algum de nós lhes tocava, elas começavam a sair, endiabradas, ferrando tudo o que podiam, do que resultavam uma espécie de monstros!
Aliás, diziam-nos que os próprios guerrilheiros do PAIGC preparavam esses enxames e colocavam-nos em locais estratégicos, picadas e carreiros de progressão que usávamos, nas nossas operações.
As cuspideiras, pequenas e verdes como os ramos das árvores, cuspiam nas partes brilhantes, logo, nos olhos.
Como imaginará, a população de baratas e formigas com asas, cá conhecidas por agúdias, era uma enormidade, mas habituámo-nos a viver com elas, a dormir com elas.
Também as limitações de alimentos e água ‘bebível’ faziam parte da nossa festa diária…
Tivemos um período que nem ração de combate havia, diziam que estava esgotada!
Outro problema era o paludismo, quando forte, podia matar.
Felizmente, foi coisa que não me tocou!
Mas as diarreias eram um cenário quase comum, deixando muitos de nós de rastos.
No meu caso, felizmente, um só episódio, mas levou-me a ‘buracos do mato’ um monte de vezes, num só dia, que ficaram bem registados!
"Ouvi falar de doenças desse tipo, como o paludismo, e também dos problemas provocados pelas águas, problemas em cima de problemas que vocês tinham de contornar - ossos do ofício…
Se calhar, era o tipo de problemas para o qual não estavam preparados".
Daniel, depois desta experiência, concluo que estamos preparados para muito pouco…
Também me lembro de um quadro muito engraçado, algumas vezes fazendo parte do nosso cenário, quando em progressão pelos carreiros ou picadas: as famílias de sancus (macacos).
Imagine que tínhamos de parar, com os riscos inerentes, para que as famílias atravessassem os carreiros ou as picadas, o pai de um lado, a vigiar o espaço, garantindo a segurança da família, enquanto a mãe ia atravessando com os filhos, todos de mão dada, até chegarem todos ao outro lado, sempre olhando-nos nos olhos e como que a dizerem-nos alguma coisa, numa linguagem acompanhada de um rosnar tipo cão.
Aliás, o macaco-cão abundava e dizia-se muito apreciado pela etnia Fula, que não consumia carne de porco.
E sabia-se que, muitas vezes, os bifes não eram de vaca, porco ou gazela, mas de macaco-cão…
A etnia Balanta criava e consumia porco.
Quando chegava correio, tarde, mas chegava, uma enorme festa para alguns, mas uma tristeza para outros, pois não eram contemplados.
Lembro-me de aerogramas partilhados, um gesto de solidariedade e amizade.
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, associávamos a correio, logo, toca a pegar no aerograma e escrevinhar qualquer coisa, à pressa, como: ‘meus queridos pais e irmãos, espero que estejam bem, eu estou bem, o resto vão ler aos anteriores, beijinhos.’
Também chegou a acontecer aparecer um héli e, ao dar a entender que tencionava baixar, um dos soldados pegou na G3, apontava para o ar, enquanto outro avisava, pelo radio móvel, que não se aventurassem a baixar, caso não trouxessem correio!…
As revistas da altura, como a Plateia, quando lá chegavam, enviadas por familiares e amigos de alguns, constituíam um alimento para o espírito de todos.
E liam-se, e reliam-se, e reliam-se,…
De vez em quando, eu recebia aerogramas das minhas amigas, que não me esqueciam, cujo significado e efeito não têm tradução, por palavras.
Uma delas enviava-me, de vez em quando, algumas cassetes com gravações de músicas acabadas de sair, o que me permitia estar ao corrente do que se ia passando, na ‘civilização’.
Ainda bem que tinha comprado o tal leitor de cassetes e que podia ouvi-las, sempre que chegavam à minha mão - um verdadeiro milagre…
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, logo associávamos a correio…
"Ó Adolfo, por falar nisso, lembro-me do Movimento Nacional Feminino que, embora algo contestado, ainda conseguia fazer alguma coisa válida, no apoio aos militares que chegavam feridos e aos familiares dos que morriam. Pelo menos, era o que me constava…"
Sim, Daniel, era um movimento interessante, mas…
Mais qualquer coisinha desagradável…
Mas nem tudo o que me chegava era agradável.
Recebo uma carta da minha mãe, não aerograma, com um texto normal de mãe, mas juntando uma foto dos meus pais com a criança Carla ao colo.
Claro que não incluía a mãe, por precaução.
Não foi preciso pensar e não respondi, como se nunca tivesse recebido aquela carta.
Obviamente, associei este quadro ao que o meu irmão me tinha relatado sobre uma Guiomar, embora sem pormenores, mas qualquer coisa seria de desagradável.
Mais tarde, recebi novo aerograma da minha mãe, pedindo-me autorização para levantar dinheiro da minha conta, pois a tia Jú estava aflita com umas despesas inesperadas que tinha de cumprir e a minha mãe já tinha ajudado, um pouco, mas não podia ajudar mais.
Logo respondi que sim, poderia levantar tudo o que a tia Jú necessitasse - para a tia Jú, tudo!
No entanto, deixou-me a pensar na coisa, pois era estranho...
Mesmo com algum problema inesperado, a tia Jú tinha o seu emprego, o marido o seu emprego, a avó Júlia a sua pensão, a sogra a sua pensão, as duas sem despesas, logo, porquê?!
Paciência, mais tarde teria oportunidade de conhecer a resposta e, no momento, era melhor esquecer.
"Adolfo, não consigo imaginar o que sente uma pessoa, em cenário de guerra e de falhas no mais elementar, como a comidinha, ao receber notícias da família, com situações que suscitam dúvidas e criam preocupações…"
Realmente, Daniel, era difícil conciliar a situação com algumas notícias que lá nos chegavam…
Mesmo o pouco tempo de descanso era assaltado por estas dúvidas e preocupações, apesar de sabermos que nada podíamos fazer.
Mas o meu relacionamento com toda a companhia continuava óptimo, em espírito de grupo saudável e imprescindível, com os condicionalismos próprios do contexto, mas com uma grande vontade de, em conjunto, procurarmos vencer todas as dificuldades que nos iam surgindo, sempre motivados pela esperança de um regresso a casa, sãos e salvos.
Mas as situações delicadas não podiam ser contornadas, pois faziam parte daquela realidade, e surgiam a cada momento.
Já com baixas, a moral ia ficando debilitada, mas o nosso espírito ia amadurecendo, a forma possível de continuarmos a nossa marcha.
Pouco mais de dois meses decorridos, durante uma emboscada que sofremos logo uns minutos depois do arame farpado do aquartelamento, ainda no início de mais uma operação, o capitão Assunção e Silva, um ranger bem preparado e bom líder, morre, com tiro certeiro no coração.
Além do capitão morto, mais dois ou três feridos, apenas.
Sim, mais uma operação, designada de reconhecimento, em que saía o primeiro grupo, do Ponte, o capitão Assunção e Silva, um ou dois dos comandos africanos e alguns milícias.
Como era necessário mais um graduado, o Ponte manifestou interesse em que eu participasse nesta operação, apesar de não ser o meu grupo, mas a solidariedade ‘obrigada’ sobrepunha-se a tudo, dadas as circunstâncias.
Mas não me esqueço de que, neste dia, eu estava muito mal disposto, com os meus problemas do aparelho digestivo, já conhecidos, e que se foram agravando.
Mas o cenário que vivíamos não tolerava más disposições…
Como o Daniel saberá, o desenrolar de uma emboscada pode durar segundos ou minutos, depende das circunstâncias.
Início, troca de tiros, uns segundos e… já está - final e retirada estratégica de ambas as partes…
Como o Daniel já deve ter ouvido, sempre que em situações como esta, toca a despir camuflados para apoiar em G3 e improvisar macas, até chegarmos ao aquartelamento, tudo rápido e em silêncio, claro, mais uma experiência para a vida.
Confesso que fiquei bastante abalado quando vi o capitão caído, já sem vida!
Aliás, um sentimento geral, em toda a companhia, quando entrámos no aquartelamento!
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto
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domingo, 4 de dezembro de 2022
Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto
1. Parte V da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.
V - Gadamael Porto…
Avisados sobre a data de partida para Gadamael Porto, deram-nos uma ideia sobre o trajecto: descer o rio Geba, seguir pelo mar, passar entre a costa e o arquipélago dos Bijagós, até ao rio Cacine, com percurso até Gadamael Porto.
Dia 27 de Novembro, lá fomos, rio abaixo, com o equipamento de defesa adequado e acompanhados por uma corveta da marinha de guerra, com os transbordos planeados, sempre atentos às margens e a qualquer movimento suspeito, cumprindo as orientações recebidas, até Gadamael Porto, onde chegámos dia 29.
Início da tarde, chegada a Gadamael Porto.
Acostagem a um porto que mais parecia um pequeno cais de brincadeira, enorme decepção, com sensação estranhíssima de desânimo e vazio, imagem parecida com aquelas pequenas cidades perdidas ou abandonadas do tempo do faroeste, ainda sem ter noção de qualquer realidade.
Depois de desembarcarmos, uma olhada pelo cenário, identificação do verdadeiro solo que estávamos a pisar, pela primeira vez, sem sequer pensarmos no tempo que ali teríamos de viver.
Além do rio lamacento, mais lama do que outra coisa, com caudal quando a maré subia, claro, encontrámos terra castanha, circundada por capim e mata cerrada, parte dela, virgem, aguardando ser desbravada.
Pequenas tabancas de lama e colmo, a par das tabancas construídas pelos militares, à medida que iam chegando, dando vida diferente aquele cenário.
Estas tabancas construídas por nós também eram erguidas com tijolos de lama, feitos em formas de madeira dos nossos caixotes, que eram espalhados pelo chão e coziam ao sol.
A argamassa para a união era feita da mesma lama.
A cobertura era com pedaços de palmeira a servir de base e apoio das folhas de zinco que a Engenharia de Bissau enviava por batelões, chegando metade ao destino, pois os nativos iam desviando o que podiam, durante a viagem.
No meio do aquartelamento, um edifício térreo antigo, uma velha casa de comerciantes libaneses (designada Taufik Saad), dos tempos do comércio entre República da Guiné-Conacry, Guiné-Bissau e Senegal, que já tinha sido aproveitado para edifício do comando.
A um canto, uma pequena tabanca que fazia de enfermaria, onde o furriel enfermeiro, o Vítor Coelho, orientava a actividade possível.
Uma caixa de cartão com medicamentos tinha de ser bem gerida, pois era difícil recebermos medicamentos com a frequência adequada.
Por falar nisto, recordo-me de um indígena Fula que tinha o vício da injecção, pois dizia que tinha dores no corpo: ‘a mi miste agula, corpo di mi, manga di mal…’ (eu quero injecção porque tenho dores no corpo).
A primeira vez, perguntam-lhe o nome, para registo, ele diz: ‘afinal di contas’…
E lá estava, todos os dias, a pedir injecção.
Claro que levava injecção, mas de água destilada, e dizia: ‘manga di sabe sabe’ (muito bom!).
Depois, perguntavam-lhe: ‘corpinho di bó?’ (está bom?), a que respondia: ‘jametum!’ (está bom!)
Havia um outro que também lá estava caído, a toda a hora, a pedir pastilhas, e chamava-se ‘dinheiro có’.
Mas ele é que escolhia as pastilhas, pela cor da caixa…
Aquilo que mais chamou a nossa atenção foi a expressão de alívio da companhia que íamos render, cansados, saturados e ansiosos por deixar aquele local.
Mas a saudação à companhia que íamos render foi algo atribulada, ao contrário do que era suposto.
Um ajuntamento de militares, em frente ao tal edifício do comando, como que cercando um militar, tronco nu, calções, sujo e suado, de G3 apontada a uma porta do edifício: ‘Saiam daí, seus covardes, que eu limpo-lhes o sebo!’
Ninguém se mexia, ninguém falava.
Perguntei a um deles de que se tratava, respondendo-me que aquele ‘gajo’ queria limpar o capitão e um alferes que estavam escondidos dentro do edifício.
Da minha companhia, ninguém deu um passo, incluindo o capitão Assunção e Silva.
Eu olhei bem para o ‘gajo’ e vi algo de familiar.
Sim, era ele mesmo: um dos filhos de uma família de marchantes, donos dos talhos de Vieira do Minho!
Aproximei-me, ele virou a G3 para mim, de imediato, ameaçando e que não desse nem mais um passo.
Olhei-o bem nos olhos e perguntei-lhe se Vieira do Minho lhe dizia alguma coisa.
Ficou estático, de repente, o que interpretei como que uma certa abertura para uma iniciativa da minha parte.
Avancei, novamente, desviei a G3 e pedi-lhe que fizesse um esforço para me identificar.
Vitória, pois consegui tocar-lhe num braço e levá-lo uns metros para fora daquele círculo de malta, ao mesmo tempo que lhe dizia as palavras que me iam surgindo.
Largou a G3 e deu-me um abraço sentido, deixando-me aliviado, para espanto de todos os outros.
Tudo acalmou e pudemos iniciar as saudações.
No entanto, o meu capitão Assunção e Silva logo se me dirigiu e, de certa forma, depreciou o meu acto, dizendo que, além do risco que corri, era problema da outra companhia que só eles deveriam resolver.
Isto não me caiu bem, mas interpretei como que um gesto de protecção, mais pelo risco que ele dizia eu ter corrido.
A passagem do espólio militar, nomeadamente, das armas, era uma rotina e envolvia alguma tensão, cujo motivo entendi, mais tarde, quando a companhia rendida foi embora e nós constatámos que os acessórios das armas que tínhamos assinado como recebidos não correspondia ao número real.
Esta operação era feita com intervalos, para dar tempo a que um conjunto de acessórios desse para mais do que uma arma.
Enquanto se sugeria um intervalo, depois de se mostrar uma arma, alguém combinado pegaria no conjunto e colocava-a no local a seguir, como se pertencesse à nova arma.
As numerações gravadas passavam despercebidas, com um pouco de conversa.
O mesmo teríamos de fazer, quando fossemos nós a passar à outra companhia que nos viesse render.
Esta operação tinha mais impacto nas metralhadoras pesadas, a Breda m/938 e a Browning m/952, montadas na periferia do aquartelamento, junto ao arame farpado, embora também pudesse abranger os morteiros 60 e 81 e outro material, nomeadamente, acessórios e munições.
E os velhos Racal TR28, equipamento de transmissões, de origem sul-africana, usados pelos operadores, às costas, sempre que solicitados para participarem em operações, lá estavam sob vigilância apertada, dificultando qualquer ‘marosca’ na passagem para a outra companhia.
E as célebres pistolas Walther de 9mm requeriam uma especial atenção…
Isto acontecia com todos e cada companhia tinha de fazer um esforço redobrado na gestão do material de guerra, no sentido de garantir a mesma defesa com menos equipamento.
Desonesto, estúpido, inaceitável, claro, mas as realidades são diferentes da nossa vontade e necessidade.
Sem demora, escolhemos a tabanca que nos pareceu mais simpática, pela localização e possibilidade de melhoramento.
Dava para os três, o Artur Neves, o Carlos Amaral e eu.
Como ficava mesmo em frente ao que era designado como edifício do comando, acabou por gerar polémica e alvo de ataque cerrado por uma personagem que apareceu depois.
E, para animar a malta, cerca das seis da tarde, primeira flagelação, logo no primeiro dia - um aviso do inimigo!
Eu e o Neves, um dos furriéis do 3.º grupo, estávamos a tomar uma espécie de duche, dentro de uma casinha de madeira, junto a zona dos obuses da artilharia, em que a água possível jorrava de um bidão colocado em cima de umas estacas, que era enchido com uma lata de chouriço.
Típico do ‘periquito’, inocente, ingénuo, inconsciente, reage como se se tratasse de brincadeira, mas logo percebe que a coisa é a sério… Gadamael Porto era um aquartelamento que ainda resistia, mas tinha de cobrir uma zona onde tinham existido outros aquartelamentos e destacamentos que, pela força do avanço e pressão do inimigo, acabaram por ser desactivados, pois era difícil a sobrevivência.
O efectivo do aquartelamento completava-se com quatro pelotões distintos:
- um pelotão de cavalaria, comandado pelo alferes Gomes e furriéis Oliveira Soares, Martins Soares, Manso, Barreiros, Rio e Vitoriano, com duas viaturas blindadas Fox, velhinhas;
- um pelotão de artilharia, comandado pelo alferes Vasco Pires e furriéis Krus, Carvalheda e Oliveira, com três obuses;
- dois pelotões de milícia, muito importantes na progressão dentro da mata cerrada e picagem, utilizando a designada pica, uma espécie de pingalim em ferro, cabo de madeira, para ir picando o solo, no sentido da detecção de minas. Ainda me recordo de alguns nomes dos milícias: camisa conté, mamadú biai, abdulai baldé, samba camará, amadú bari, mamadu embaló,…
Falei em Carvalheda que suponho deve conhecer ou, pelo menos, de ouvir falar, ligado à rádio, o Armando Carvalheda.
"O Carvalheda, sim, o Carvalheda da rádio, não me recordo do nome da Rádio."
Da Antena 1, o Armando Carvalheda, que começou na Emissora Nacional, em 1972 ou 1973, já tínhamos regressado da Guiné, hoje, ainda na Antena 1.
Foi mobilizado, mais ou menos na mesma altura que eu, tendo ido parar a Gadamael Porto, para fazer parte do pelotão de artilharia.
Pouco tempo depois, pelo ‘trabalho’ desenvolvido pela mulher, em Lisboa, e por influência do João Paulo Dinis, também da Rádio, foi transferido para Bissau, para a Rádio, passando a fazer parte do PFA, programa das forças armadas, onde cumpriu a comissão, até finais de Outubro de 1972.
É assim, mais um exemplo de sorte, mas com o trabalho e forte empenho de alguém…
Por falar em Rádio, recordo uma curiosidade que ficou célebre, protagonizada por um operador dessa Rádio, um guineense formado pelos profissionais do continente que, quando iniciava o seu turno, nos discos pedidos, dizia:
‘E o PIFAS muda di ritimo! Pr’a Mamadu Jaló, qui firma no Catió, cançon Giani Morandi, non son dinho di bó!’
Os reconhecimentos e operações diárias tinham de manter-se, rigorosamente, e não podíamos deixar-nos cair na tentação de receios ou sentimentalismos, porque sabíamos da existência de comunidades indígenas, com mulheres e crianças, dentro dos espaços militares do PAIGC, aliás, como o nosso caso…
Isso não significava falta de responsabilidade ou de bom senso da nossa parte, mas estávamos ‘metidos’ naquilo, logo, sentido natural de defesa do nosso espaço e da nossa pele, o sentido humano espontâneo, mesmo que… desumano…
Também as armadilhas e minas tinham de ser montadas e instaladas, a par do levantamento das AP, minas antipessoal e AC, minas anticarro do inimigo, para posterior colocação nas supostas zonas de passagem do inimigo, junto à fronteira.
Foi montado um fornilho, pelo nosso pessoal de minas e armadilhas, com a supervisão do Carlos Amaral, um dos furriéis do terceiro grupo, na zona oriental do aquartelamento, no topo do arame farpado.
Era composto por um bidão de duzentos litros - dos que nos enviavam para abastecer as coitadas GMC - cheio de todo o tipo de desperdícios de metal e vidro, tnt e combustível, com uma ligação de fios eléctricos, do interior para o exterior, depois conectada a um detonador.
E os episódios foram surgindo, naturalmente, à medida das circunstâncias de cada momento de guerra, com mais ou menos consequências.
As flagelações, o meio mais utilizado pelo PAIGC, com o uso de diversos tipos de armas pesadas, obus, canhão sem recuo SPG82, os lança granadas RGP2 e RPG7, morteiro 120 perfurante, mísseis, algumas vezes, utilizando very-lights, para iluminação e melhor localização do aquartelamento, um designado ‘ataque aos arames’, chefiado pelo célebre Nino Vieira, mais flagelações, emboscadas, enfim, todo o conjunto de variantes cénicas daquele tipo de guerra, sabida subversiva e de informação.
O tal fornilho, infelizmente, não funcionou, quando foi accionado para fazer face ao designado ‘ataque aos arames’, a tal operação liderada pelo Nino Vieira.
Se tivesse funcionado, o resultado negativo para os guerrilheiros do PAIGC teria sido muitíssimo maior.
A Força Aérea representava uma boa ajuda, com os heli-canhão e os Fiat, em operações RVIS, voos de reconhecimento, mas tinha muita dificuldade de progressão, pois as antiaéreas do PAIGC, sem esquecermos os célebres mísseis terra-ar Strela (SAM7), fabrico soviético, estavam bem posicionadas, ao longo da fronteira, na nossa frente, e já tinham feito estragos, noutras ocasiões.
Para o Daniel ter uma ideia das múltiplas acções que entram nas probabilidades de ocorrência, apanhámos um infiltrado no lado da tabanca, onde tínhamos a pequena comunidade local sob nossa protecção, em cima de uma tabanca, ao anoitecer, a fazer sinais de luz com uma lanterna, bem na direcção da fronteira, uma das formas de facilitar a localização exacta do aquartelamento, no meio da mata.
Interrogado, concluiu-se ser um elemento guerrilheiro do PAIGC que se infiltrou na zona, vindo da fronteira em frente, cuja missão era aquela, apenas: marcar o ponto exacto do nosso aquartelamente, permitindo a regulação das armas já montadas ali perto de nós, para o ‘espectáculo’ que começaria, pouco depois.
Os guerrilheiros do PAIGC, supondo que o seu enviado tinha cumprido a missão e já estava retirado, em segurança, já tinham tudo preparado e estavam mais perto de nós do que poderíamos pensar, a prepararem mais uma operação que, caso conseguissem o resultado previsto, poderia ser o fim de Gadamael Porto, o fim de todos nós.
Ali ficou, deitado no chão, bem no centro do aquartelamento, como primeiro castigo, até tudo terminado…
Sim, porque o arraial começou pouco depois, durando umas horas, com as armas dos guerrilheiros do PAIGC bem reguladas, indicação da lanterna do infiltrado, prisioneiro…
Foi uma das noites horríveis de baixas e destruição, até termos ficado sem munições das armas pesadas, principalmente, ‘supositórios’ (munições dos obuses)!
Contra as expectativas dos guerrilheiros do PAIGC, que nem notaram que estávamos sem munições, a nossa sorte, os resultados não foram o suficiente para acabarem com Gadamael Porto.
No dia seguinte, a nosso pedido, chegaram dois hélis, um destinado ao prisioneiro, outro para os feridos, todos com destino a Bissau.
As ‘salgadeiras’ (urnas funerárias) vinham de batelão, a nosso pedido via rádio, depois de cada baixa declarada.
Depois de tudo tratado, as ‘salgadeiras’ eram enviadas, em batelão, para um outro aquartelamento perto, Cacine, como entreposto, antes de partirem para Bissau.
Depois, dois dias sem dormir e quase sem comer, para levantarmos o que era possível do aquartelamento.
Aqui, a vertente psicológica manda e vence!
Uma outra tarefa, bem desagradável, eram as colunas a Guilege, que fazíamos algumas vezes, para abastecimento de mantimentos, géneros alimentícios e material de guerra.
Os géneros que nos enviavam, acondicionados em redes, deixados cair dos hélis, ou trazidos de batelão, quando possível, eram repartidos com Guilege.
Era a única forma de Guilege os receber, o que justificava o sacrifício e riscos e nos motivava para tal operação.
Porquê? Porque Guilege não podia ser abastecido de outra forma, nomeadamente, de heli, pois estava um pouco mais a leste, ainda mais junto à fronteira, perto de Kandiafara, um posto militar do PAIGC, dentro da Guiné-Conacry, onde as antiaéreas estavam alerta, permanentemente.
Era um percurso de alguns quilómetros, por picada, com alguns homens a montar segurança, ao longo do percurso, mas de difícil progressão, pois os guerrilheiros do PAIGC andavam por ali, como rotina, e algumas vezes nos dificultaram a vida e nos causaram mossa…
Este percurso fazia parte do célebre ‘corredor da morte’, com início em Kandiafara, atravessando a fronteira, passando por Guilege e seguindo para Gadamael Porto.
Deste designado ‘corredor da morte’, também faziam parte Ganturé, Gadembel e Aldeia Formosa, compondo toda a zona de acesso às Matas Morés e Cantanhês, onde o PAIGC tinha estruturas fortes de protecção e tratamento dos feridos, uma espécie de hospital de campanha subterrâneo, e onde o acesso era quase impossível.
O PAIGC andava sempre em cima desta zona, pois tinham o objectivo de ir ganhando terreno, desde a fronteira, o que já tinham conseguido, de certa forma, e a prova estava nos nossos aquartelamentos e destacamentos desactivados ou abandonados, porque as nossas tropas já tinham atingido o limite da resistência, como Sangonhá, Gadamael Fronteira, Cacoca, Tombombofa, Ganturé, Gadembel.
Gadamael Porto tinha a missão de controlar e defender toda a zona, uma ZA (zona de acção) alargada, que requeria um esforço acrescido, originando um grande desgaste…
Um dos problemas da nossa posição e fragilidade, comum às outras zonas da Guiné, residia no facto de que tudo era perto, tudo se concentrava em área reduzida, os passos que se davam não permitiam a mais pequena distracção ou facilidade, uns metros de progressão poderiam terminar em tragédia, pela surpresa, claro.
Ouvi isto, ainda na metrópole, mas só o confirmei ali, quando comecei a viver essa realidade, sem poder voltar para trás.
Mesmo que pensasse na possibilidade desta alternativa, o pensamento nos homens que tínhamos preparado e ‘treinado’ sobrepunha-se a qualquer alternativa.
Não posso esquecer a criatividade e habilidade do Ferreira, o nosso furriel mecânico e sua equipa, na concepção de peças improvisadas para fazer funcionar as velhas GMC.
Uma das GMC tinha o equipamento mais ou menos completo, mais coisa, menos coisa, e servia de carrinho de choque para fazer andar as outras duas, que não tinham qualquer equipamento, acelerador, travão, embraiagem, limitando-se a uma velocidade engrenada.
Estas GMC eram usadas no transporte dos bens para abastecimento a Guilege, sem as quais não seria possível.
Depois de uns sacos de terra colocados em cima de algumas partes das viaturas, a única forma de reduzir o impacto provocado pelas minas anticarro, lá ia a coluna, na expectativa de missão cumprida, sem grandes estragos… A par dos episódios de guerra, as condições atmosféricas, bem agressivas, eram mais uma dificuldade a vencer e deixavam rasto de destruição, como nos aconteceu.
Trovoadas e chuvas monumentais, aumentavam as dificuldades dos terrenos que, já por si, eram bem ingratos.
Quando a coisa dava para o tornado, então, era esperar que alguma coisa ficasse de pé!
As duas pequenas viaturas blindadas do pelotão Fox ficaram reduzidas a uma só, pois a outra foi destruída por um disparo do canhão sem recuo dos guerrilheiros do PAIGC, aquando do ‘ataque aos arames’ de que lhe falei, de que resultaram baixas para as nossas tropas, mas muitas mais para os guerrilheiros do PAIGC.
Como tudo estava organizado/montado pelos guerrilheiros do PAIGC, mesmo ao cimo do aquartelamento, à saída do arame farpado, sem termos noção do que se tratava, muito menos, do efectivo e arsenal lá montado, foi decidido sair uma Fox, comandada pelo Oliveira Soares, e um pequeno efectivo da nossa companhia, escalado no momento, eu de um lado com dois ou três homens, e o Ponte, comandante do primeiro grupo, com mais dois ou três homens do outro lado, mas logo ‘levámos nos queixos’, uma morteirada de canhão sem recuo, sendo obrigados a parar e a optar por morteirada 60, o mais fácil de manusear, naquelas circunstâncias, já com o condutor morto e o Oliveira Soares ferido.
De noite, as coisas tornam-se ainda mais difíceis…
O resto, foi morteirada 60 e 81, acompanhados de batidas de obus, pois sabíamos que os ‘gajos’ tinham de recuar e retirar para a fronteira.
Na madrugada, constatámos o rasto de sangue bem marcado das baixas dos guerrilheiros do PAIGC, estendendo-se até à fronteira, e capturámos o material que deixaram, como vários carregadores de AK47, vários invólucros de canhão sem recuo, uma Tokarev 7,62 mm (origem soviética).
Ainda guardo fotos deste material, além de um invólucro de canhão sem recuo, fabrico chinês, que resolvi trazer, para fabricar um cinzeiro de pé.
Além disso, encontrámos um guerrilheiro morto, na mata, deixado pelos outros, talvez porque já não conseguiam levar mais mortos e feridos.
Era um chefe de grupo, pela forma como estava equipado, que calculámos ter cerca de dois metros, um pé de dimensões ‘anormais’ e uns roncos (anéis simbólicos) nas mãos.
Claro que ninguém deve mexer, pois fica armadilhado, uma prática corrente de qualquer dos lados.
Nós tínhamos conhecimento das baixas e destruições que causávamos ao PAIGC através da Rádio Libertação da República da Guiné-Conacry.
Era comum ouvirmos o Amílcar Cabral dirigir-se a nós, iniciando com as seguintes expressões:
‘Jovens colonialistas e assassinos de Gadamael Porto,…’
Uns dias menos ansiosos do que outros, uns dias menos atribulados do que outros, o que nos esperava durante os muitos meses que se seguiriam.
A população da Tabanca que tínhamos de proteger e que nos dava um certo apoio logístico, como era o caso das lavadeiras, envolvia algumas etnias como Fula, Tanda, Papel.
As nossas roupas eram lavadas um pouco à ‘porrada’ sobre as pedras carcomidas e agressivas da bolanha, naquela água salgada, resultando em botões partidos e alguns rasgões.
Mas isso nada nos importava, pois queríamos os camuflados lavados, sem aquela lama agarrada e a cheirar mal.
Só a população tinha direito a abrigos subterrâneos, que tínhamos de assegurar.
As entidades importantes da Tabanca eram o Padre, normalmente, muçulmano, o Régulo, ou chefe da Tabanca, e o Cipaio, o polícia da Tabanca.
Eu tive a sorte de ser bem recebido e acolhido na Tabanca, onde me refugiava, muitas vezes, ao anoitecer, participando em serões da família das minhas lavadeiras, a Cira e a prima Cadi, todos sentados no chão, à luz ténue e dissimulada de um pequeno bocado de madeira aceso, com grande esforço para entender o que diziam, pois os dialectos eram muitos, normalmente, cada etnia o seu dialecto - mas lá ia conseguindo, mais coisa, menos coisa.
O crioulo usado nesta zona era um idioma pobre, uma mistura de influências latina, francesa e inglesa, de outros tempos, mas os cabo-verdianos falam um crioulo mais rico, mais aperfeiçoado.
Mas, como tínhamos mais do que uma etnia, o próprio dialecto ou idioma não era igual em todas elas.
Na Guiné-Bissau, além do nosso português, fala-se o crioulo cabo-verdiano, o fulbe, o mandê e o mandinga, embora não usado em todas as etnias, dependendo das influências de vários povos, nas suas movimentações nómadas.
Cada homem grande, caso tivesse património, como galinhas, vacas, porcos, cabritos, pequenas parcelas de terra cultivadas, arroz (bianda), amendoim (mancarra), poderia ter mais do que uma mulher, regime poligâmico.
E não havia descriminação pela idade pois, apesar de velhos, tinham várias mulheres, algumas delas bajudas (raparigas).
Em determinadas zonas, embora eu nunca tenha sabido quais, também se praticava o regime poliândrico, pelo qual uma mulher pode ter vários homens, desde que reúna condições para tal.
Em Gadamael Porto, o património limitava-se a umas galinhas e umas pequenas parcelas de cultura de arroz e amendoim, quando as condições de segurança permitiam.
Cheguei a comer galinha cozinhada com frutos vermelhos da palmeira, tudo envolvido em bianda (arroz cozinhado).
E todos metíamos a mão dentro da meia abóbora seca, puxando e enrolando os bocados na mão, tipo almôndegas, que levávamos à boca.
Não esquecerei o rigor e disciplina impostos na Tabanca, controlados pelo Cipaio.
Por exemplo, uma cena que me deixou marcado, aconteceu com uma bajuda acabada de casar com um homem grande, mas os chamados casamentos forçados, negociados.
Na noite de núpcias, a consumação do casamento era feita na presença de uma mulher grande (mulher casada), com o objectivo de mostrar o pano sujo de sangue.
Depois da cerimónia, a bajuda, agora, mulher grande, resolve escapar-se para os lados da bolanha.
Apanhada pela população e pelo Cipaio, o castigo é brutal, começando com as chicotadas da praxe, continuando com outros castigos de que prefiro não falar…
Também não mais esquecerei a cultura da circuncisão, lá conhecida por fanado.
Tantos miúdos massacrados, cuja operação era feita com uma espécie de machadinha ou catana, em ferro, em cima de um improvisado pequeno cepo de madeira!
As infecções proliferavam e, alguns não resistiam!
"Ouvi falar e li alguns artigos sobre costumes e tradições de povos de diversos locais do planeta, alguns dos quais ainda parados no tempo, segundo a nossa cultura, claro.
Aquilo que o Adolfo acaba de me relatar, apesar do contexto, leva-me a pensar nas organizações humanitárias que angariam voluntários, com o objectivo de desenvolverem iniciativas, nomeadamente, na área da sensibilização e apoio alimentar, saúde, educação.
E nunca será demais, pelo contrário, sabemos que muitas e muitas acções continuarão na expectativa de resultados satisfatórios…"
Pois, mas algumas tradições estão presas a crenças religiosas, fora de tudo o que consideramos de bom senso ou racional, mas passaram séculos e sabe-se lá quantos mais passarão…
Não posso deixar de falar nas dúvidas, suspeições e reticências constantes com que tínhamos de conviver, uma vez que se tratava de uma guerra de informação, subversiva, em que tudo e todos os que nos rodeavam eram, supostamente, suspeitos.
Dizia-se, por exemplo, que o Padre era o maior ‘turra’ que tínhamos dentro daquela pequena comunidade, havendo alguns sinais disso, mesmo…
Por exemplo: sempre que tínhamos flagelações mais prolongadas e agressivas, o Padre nunca estava na Tabanca, tinha arranjado maneira de sair para Bissau, na véspera…
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné
V - Gadamael Porto…
Avisados sobre a data de partida para Gadamael Porto, deram-nos uma ideia sobre o trajecto: descer o rio Geba, seguir pelo mar, passar entre a costa e o arquipélago dos Bijagós, até ao rio Cacine, com percurso até Gadamael Porto.
Dia 27 de Novembro, lá fomos, rio abaixo, com o equipamento de defesa adequado e acompanhados por uma corveta da marinha de guerra, com os transbordos planeados, sempre atentos às margens e a qualquer movimento suspeito, cumprindo as orientações recebidas, até Gadamael Porto, onde chegámos dia 29.
Início da tarde, chegada a Gadamael Porto.
Acostagem a um porto que mais parecia um pequeno cais de brincadeira, enorme decepção, com sensação estranhíssima de desânimo e vazio, imagem parecida com aquelas pequenas cidades perdidas ou abandonadas do tempo do faroeste, ainda sem ter noção de qualquer realidade.
Depois de desembarcarmos, uma olhada pelo cenário, identificação do verdadeiro solo que estávamos a pisar, pela primeira vez, sem sequer pensarmos no tempo que ali teríamos de viver.
Além do rio lamacento, mais lama do que outra coisa, com caudal quando a maré subia, claro, encontrámos terra castanha, circundada por capim e mata cerrada, parte dela, virgem, aguardando ser desbravada.
Pequenas tabancas de lama e colmo, a par das tabancas construídas pelos militares, à medida que iam chegando, dando vida diferente aquele cenário.
Estas tabancas construídas por nós também eram erguidas com tijolos de lama, feitos em formas de madeira dos nossos caixotes, que eram espalhados pelo chão e coziam ao sol.
A argamassa para a união era feita da mesma lama.
A cobertura era com pedaços de palmeira a servir de base e apoio das folhas de zinco que a Engenharia de Bissau enviava por batelões, chegando metade ao destino, pois os nativos iam desviando o que podiam, durante a viagem.
No meio do aquartelamento, um edifício térreo antigo, uma velha casa de comerciantes libaneses (designada Taufik Saad), dos tempos do comércio entre República da Guiné-Conacry, Guiné-Bissau e Senegal, que já tinha sido aproveitado para edifício do comando.
A um canto, uma pequena tabanca que fazia de enfermaria, onde o furriel enfermeiro, o Vítor Coelho, orientava a actividade possível.
Uma caixa de cartão com medicamentos tinha de ser bem gerida, pois era difícil recebermos medicamentos com a frequência adequada.
Por falar nisto, recordo-me de um indígena Fula que tinha o vício da injecção, pois dizia que tinha dores no corpo: ‘a mi miste agula, corpo di mi, manga di mal…’ (eu quero injecção porque tenho dores no corpo).
A primeira vez, perguntam-lhe o nome, para registo, ele diz: ‘afinal di contas’…
E lá estava, todos os dias, a pedir injecção.
Claro que levava injecção, mas de água destilada, e dizia: ‘manga di sabe sabe’ (muito bom!).
Depois, perguntavam-lhe: ‘corpinho di bó?’ (está bom?), a que respondia: ‘jametum!’ (está bom!)
Havia um outro que também lá estava caído, a toda a hora, a pedir pastilhas, e chamava-se ‘dinheiro có’.
Mas ele é que escolhia as pastilhas, pela cor da caixa…
Aquilo que mais chamou a nossa atenção foi a expressão de alívio da companhia que íamos render, cansados, saturados e ansiosos por deixar aquele local.
Mas a saudação à companhia que íamos render foi algo atribulada, ao contrário do que era suposto.
Um ajuntamento de militares, em frente ao tal edifício do comando, como que cercando um militar, tronco nu, calções, sujo e suado, de G3 apontada a uma porta do edifício: ‘Saiam daí, seus covardes, que eu limpo-lhes o sebo!’
Ninguém se mexia, ninguém falava.
Perguntei a um deles de que se tratava, respondendo-me que aquele ‘gajo’ queria limpar o capitão e um alferes que estavam escondidos dentro do edifício.
Da minha companhia, ninguém deu um passo, incluindo o capitão Assunção e Silva.
Eu olhei bem para o ‘gajo’ e vi algo de familiar.
Sim, era ele mesmo: um dos filhos de uma família de marchantes, donos dos talhos de Vieira do Minho!
Aproximei-me, ele virou a G3 para mim, de imediato, ameaçando e que não desse nem mais um passo.
Olhei-o bem nos olhos e perguntei-lhe se Vieira do Minho lhe dizia alguma coisa.
Ficou estático, de repente, o que interpretei como que uma certa abertura para uma iniciativa da minha parte.
Avancei, novamente, desviei a G3 e pedi-lhe que fizesse um esforço para me identificar.
Vitória, pois consegui tocar-lhe num braço e levá-lo uns metros para fora daquele círculo de malta, ao mesmo tempo que lhe dizia as palavras que me iam surgindo.
Largou a G3 e deu-me um abraço sentido, deixando-me aliviado, para espanto de todos os outros.
Tudo acalmou e pudemos iniciar as saudações.
No entanto, o meu capitão Assunção e Silva logo se me dirigiu e, de certa forma, depreciou o meu acto, dizendo que, além do risco que corri, era problema da outra companhia que só eles deveriam resolver.
Isto não me caiu bem, mas interpretei como que um gesto de protecção, mais pelo risco que ele dizia eu ter corrido.
A passagem do espólio militar, nomeadamente, das armas, era uma rotina e envolvia alguma tensão, cujo motivo entendi, mais tarde, quando a companhia rendida foi embora e nós constatámos que os acessórios das armas que tínhamos assinado como recebidos não correspondia ao número real.
Esta operação era feita com intervalos, para dar tempo a que um conjunto de acessórios desse para mais do que uma arma.
Enquanto se sugeria um intervalo, depois de se mostrar uma arma, alguém combinado pegaria no conjunto e colocava-a no local a seguir, como se pertencesse à nova arma.
As numerações gravadas passavam despercebidas, com um pouco de conversa.
O mesmo teríamos de fazer, quando fossemos nós a passar à outra companhia que nos viesse render.
Esta operação tinha mais impacto nas metralhadoras pesadas, a Breda m/938 e a Browning m/952, montadas na periferia do aquartelamento, junto ao arame farpado, embora também pudesse abranger os morteiros 60 e 81 e outro material, nomeadamente, acessórios e munições.
E os velhos Racal TR28, equipamento de transmissões, de origem sul-africana, usados pelos operadores, às costas, sempre que solicitados para participarem em operações, lá estavam sob vigilância apertada, dificultando qualquer ‘marosca’ na passagem para a outra companhia.
E as célebres pistolas Walther de 9mm requeriam uma especial atenção…
Isto acontecia com todos e cada companhia tinha de fazer um esforço redobrado na gestão do material de guerra, no sentido de garantir a mesma defesa com menos equipamento.
Desonesto, estúpido, inaceitável, claro, mas as realidades são diferentes da nossa vontade e necessidade.
Sem demora, escolhemos a tabanca que nos pareceu mais simpática, pela localização e possibilidade de melhoramento.
Dava para os três, o Artur Neves, o Carlos Amaral e eu.
Como ficava mesmo em frente ao que era designado como edifício do comando, acabou por gerar polémica e alvo de ataque cerrado por uma personagem que apareceu depois.
E, para animar a malta, cerca das seis da tarde, primeira flagelação, logo no primeiro dia - um aviso do inimigo!
Eu e o Neves, um dos furriéis do 3.º grupo, estávamos a tomar uma espécie de duche, dentro de uma casinha de madeira, junto a zona dos obuses da artilharia, em que a água possível jorrava de um bidão colocado em cima de umas estacas, que era enchido com uma lata de chouriço.
Típico do ‘periquito’, inocente, ingénuo, inconsciente, reage como se se tratasse de brincadeira, mas logo percebe que a coisa é a sério… Gadamael Porto era um aquartelamento que ainda resistia, mas tinha de cobrir uma zona onde tinham existido outros aquartelamentos e destacamentos que, pela força do avanço e pressão do inimigo, acabaram por ser desactivados, pois era difícil a sobrevivência.
O efectivo do aquartelamento completava-se com quatro pelotões distintos:
- um pelotão de cavalaria, comandado pelo alferes Gomes e furriéis Oliveira Soares, Martins Soares, Manso, Barreiros, Rio e Vitoriano, com duas viaturas blindadas Fox, velhinhas;
- um pelotão de artilharia, comandado pelo alferes Vasco Pires e furriéis Krus, Carvalheda e Oliveira, com três obuses;
- dois pelotões de milícia, muito importantes na progressão dentro da mata cerrada e picagem, utilizando a designada pica, uma espécie de pingalim em ferro, cabo de madeira, para ir picando o solo, no sentido da detecção de minas. Ainda me recordo de alguns nomes dos milícias: camisa conté, mamadú biai, abdulai baldé, samba camará, amadú bari, mamadu embaló,…
Falei em Carvalheda que suponho deve conhecer ou, pelo menos, de ouvir falar, ligado à rádio, o Armando Carvalheda.
"O Carvalheda, sim, o Carvalheda da rádio, não me recordo do nome da Rádio."
Da Antena 1, o Armando Carvalheda, que começou na Emissora Nacional, em 1972 ou 1973, já tínhamos regressado da Guiné, hoje, ainda na Antena 1.
Foi mobilizado, mais ou menos na mesma altura que eu, tendo ido parar a Gadamael Porto, para fazer parte do pelotão de artilharia.
Pouco tempo depois, pelo ‘trabalho’ desenvolvido pela mulher, em Lisboa, e por influência do João Paulo Dinis, também da Rádio, foi transferido para Bissau, para a Rádio, passando a fazer parte do PFA, programa das forças armadas, onde cumpriu a comissão, até finais de Outubro de 1972.
É assim, mais um exemplo de sorte, mas com o trabalho e forte empenho de alguém…
Por falar em Rádio, recordo uma curiosidade que ficou célebre, protagonizada por um operador dessa Rádio, um guineense formado pelos profissionais do continente que, quando iniciava o seu turno, nos discos pedidos, dizia:
‘E o PIFAS muda di ritimo! Pr’a Mamadu Jaló, qui firma no Catió, cançon Giani Morandi, non son dinho di bó!’
Os reconhecimentos e operações diárias tinham de manter-se, rigorosamente, e não podíamos deixar-nos cair na tentação de receios ou sentimentalismos, porque sabíamos da existência de comunidades indígenas, com mulheres e crianças, dentro dos espaços militares do PAIGC, aliás, como o nosso caso…
Isso não significava falta de responsabilidade ou de bom senso da nossa parte, mas estávamos ‘metidos’ naquilo, logo, sentido natural de defesa do nosso espaço e da nossa pele, o sentido humano espontâneo, mesmo que… desumano…
Também as armadilhas e minas tinham de ser montadas e instaladas, a par do levantamento das AP, minas antipessoal e AC, minas anticarro do inimigo, para posterior colocação nas supostas zonas de passagem do inimigo, junto à fronteira.
Foi montado um fornilho, pelo nosso pessoal de minas e armadilhas, com a supervisão do Carlos Amaral, um dos furriéis do terceiro grupo, na zona oriental do aquartelamento, no topo do arame farpado.
Era composto por um bidão de duzentos litros - dos que nos enviavam para abastecer as coitadas GMC - cheio de todo o tipo de desperdícios de metal e vidro, tnt e combustível, com uma ligação de fios eléctricos, do interior para o exterior, depois conectada a um detonador.
E os episódios foram surgindo, naturalmente, à medida das circunstâncias de cada momento de guerra, com mais ou menos consequências.
As flagelações, o meio mais utilizado pelo PAIGC, com o uso de diversos tipos de armas pesadas, obus, canhão sem recuo SPG82, os lança granadas RGP2 e RPG7, morteiro 120 perfurante, mísseis, algumas vezes, utilizando very-lights, para iluminação e melhor localização do aquartelamento, um designado ‘ataque aos arames’, chefiado pelo célebre Nino Vieira, mais flagelações, emboscadas, enfim, todo o conjunto de variantes cénicas daquele tipo de guerra, sabida subversiva e de informação.
O tal fornilho, infelizmente, não funcionou, quando foi accionado para fazer face ao designado ‘ataque aos arames’, a tal operação liderada pelo Nino Vieira.
Se tivesse funcionado, o resultado negativo para os guerrilheiros do PAIGC teria sido muitíssimo maior.
A Força Aérea representava uma boa ajuda, com os heli-canhão e os Fiat, em operações RVIS, voos de reconhecimento, mas tinha muita dificuldade de progressão, pois as antiaéreas do PAIGC, sem esquecermos os célebres mísseis terra-ar Strela (SAM7), fabrico soviético, estavam bem posicionadas, ao longo da fronteira, na nossa frente, e já tinham feito estragos, noutras ocasiões.
Para o Daniel ter uma ideia das múltiplas acções que entram nas probabilidades de ocorrência, apanhámos um infiltrado no lado da tabanca, onde tínhamos a pequena comunidade local sob nossa protecção, em cima de uma tabanca, ao anoitecer, a fazer sinais de luz com uma lanterna, bem na direcção da fronteira, uma das formas de facilitar a localização exacta do aquartelamento, no meio da mata.
Interrogado, concluiu-se ser um elemento guerrilheiro do PAIGC que se infiltrou na zona, vindo da fronteira em frente, cuja missão era aquela, apenas: marcar o ponto exacto do nosso aquartelamente, permitindo a regulação das armas já montadas ali perto de nós, para o ‘espectáculo’ que começaria, pouco depois.
Os guerrilheiros do PAIGC, supondo que o seu enviado tinha cumprido a missão e já estava retirado, em segurança, já tinham tudo preparado e estavam mais perto de nós do que poderíamos pensar, a prepararem mais uma operação que, caso conseguissem o resultado previsto, poderia ser o fim de Gadamael Porto, o fim de todos nós.
Ali ficou, deitado no chão, bem no centro do aquartelamento, como primeiro castigo, até tudo terminado…
Sim, porque o arraial começou pouco depois, durando umas horas, com as armas dos guerrilheiros do PAIGC bem reguladas, indicação da lanterna do infiltrado, prisioneiro…
Foi uma das noites horríveis de baixas e destruição, até termos ficado sem munições das armas pesadas, principalmente, ‘supositórios’ (munições dos obuses)!
Contra as expectativas dos guerrilheiros do PAIGC, que nem notaram que estávamos sem munições, a nossa sorte, os resultados não foram o suficiente para acabarem com Gadamael Porto.
No dia seguinte, a nosso pedido, chegaram dois hélis, um destinado ao prisioneiro, outro para os feridos, todos com destino a Bissau.
As ‘salgadeiras’ (urnas funerárias) vinham de batelão, a nosso pedido via rádio, depois de cada baixa declarada.
Depois de tudo tratado, as ‘salgadeiras’ eram enviadas, em batelão, para um outro aquartelamento perto, Cacine, como entreposto, antes de partirem para Bissau.
Depois, dois dias sem dormir e quase sem comer, para levantarmos o que era possível do aquartelamento.
Aqui, a vertente psicológica manda e vence!
Uma outra tarefa, bem desagradável, eram as colunas a Guilege, que fazíamos algumas vezes, para abastecimento de mantimentos, géneros alimentícios e material de guerra.
Os géneros que nos enviavam, acondicionados em redes, deixados cair dos hélis, ou trazidos de batelão, quando possível, eram repartidos com Guilege.
Era a única forma de Guilege os receber, o que justificava o sacrifício e riscos e nos motivava para tal operação.
Porquê? Porque Guilege não podia ser abastecido de outra forma, nomeadamente, de heli, pois estava um pouco mais a leste, ainda mais junto à fronteira, perto de Kandiafara, um posto militar do PAIGC, dentro da Guiné-Conacry, onde as antiaéreas estavam alerta, permanentemente.
Era um percurso de alguns quilómetros, por picada, com alguns homens a montar segurança, ao longo do percurso, mas de difícil progressão, pois os guerrilheiros do PAIGC andavam por ali, como rotina, e algumas vezes nos dificultaram a vida e nos causaram mossa…
Este percurso fazia parte do célebre ‘corredor da morte’, com início em Kandiafara, atravessando a fronteira, passando por Guilege e seguindo para Gadamael Porto.
Deste designado ‘corredor da morte’, também faziam parte Ganturé, Gadembel e Aldeia Formosa, compondo toda a zona de acesso às Matas Morés e Cantanhês, onde o PAIGC tinha estruturas fortes de protecção e tratamento dos feridos, uma espécie de hospital de campanha subterrâneo, e onde o acesso era quase impossível.
O PAIGC andava sempre em cima desta zona, pois tinham o objectivo de ir ganhando terreno, desde a fronteira, o que já tinham conseguido, de certa forma, e a prova estava nos nossos aquartelamentos e destacamentos desactivados ou abandonados, porque as nossas tropas já tinham atingido o limite da resistência, como Sangonhá, Gadamael Fronteira, Cacoca, Tombombofa, Ganturé, Gadembel.
Gadamael Porto tinha a missão de controlar e defender toda a zona, uma ZA (zona de acção) alargada, que requeria um esforço acrescido, originando um grande desgaste…
Um dos problemas da nossa posição e fragilidade, comum às outras zonas da Guiné, residia no facto de que tudo era perto, tudo se concentrava em área reduzida, os passos que se davam não permitiam a mais pequena distracção ou facilidade, uns metros de progressão poderiam terminar em tragédia, pela surpresa, claro.
Ouvi isto, ainda na metrópole, mas só o confirmei ali, quando comecei a viver essa realidade, sem poder voltar para trás.
Mesmo que pensasse na possibilidade desta alternativa, o pensamento nos homens que tínhamos preparado e ‘treinado’ sobrepunha-se a qualquer alternativa.
Não posso esquecer a criatividade e habilidade do Ferreira, o nosso furriel mecânico e sua equipa, na concepção de peças improvisadas para fazer funcionar as velhas GMC.
Uma das GMC tinha o equipamento mais ou menos completo, mais coisa, menos coisa, e servia de carrinho de choque para fazer andar as outras duas, que não tinham qualquer equipamento, acelerador, travão, embraiagem, limitando-se a uma velocidade engrenada.
Estas GMC eram usadas no transporte dos bens para abastecimento a Guilege, sem as quais não seria possível.
Depois de uns sacos de terra colocados em cima de algumas partes das viaturas, a única forma de reduzir o impacto provocado pelas minas anticarro, lá ia a coluna, na expectativa de missão cumprida, sem grandes estragos… A par dos episódios de guerra, as condições atmosféricas, bem agressivas, eram mais uma dificuldade a vencer e deixavam rasto de destruição, como nos aconteceu.
Trovoadas e chuvas monumentais, aumentavam as dificuldades dos terrenos que, já por si, eram bem ingratos.
Quando a coisa dava para o tornado, então, era esperar que alguma coisa ficasse de pé!
As duas pequenas viaturas blindadas do pelotão Fox ficaram reduzidas a uma só, pois a outra foi destruída por um disparo do canhão sem recuo dos guerrilheiros do PAIGC, aquando do ‘ataque aos arames’ de que lhe falei, de que resultaram baixas para as nossas tropas, mas muitas mais para os guerrilheiros do PAIGC.
Como tudo estava organizado/montado pelos guerrilheiros do PAIGC, mesmo ao cimo do aquartelamento, à saída do arame farpado, sem termos noção do que se tratava, muito menos, do efectivo e arsenal lá montado, foi decidido sair uma Fox, comandada pelo Oliveira Soares, e um pequeno efectivo da nossa companhia, escalado no momento, eu de um lado com dois ou três homens, e o Ponte, comandante do primeiro grupo, com mais dois ou três homens do outro lado, mas logo ‘levámos nos queixos’, uma morteirada de canhão sem recuo, sendo obrigados a parar e a optar por morteirada 60, o mais fácil de manusear, naquelas circunstâncias, já com o condutor morto e o Oliveira Soares ferido.
De noite, as coisas tornam-se ainda mais difíceis…
O resto, foi morteirada 60 e 81, acompanhados de batidas de obus, pois sabíamos que os ‘gajos’ tinham de recuar e retirar para a fronteira.
Na madrugada, constatámos o rasto de sangue bem marcado das baixas dos guerrilheiros do PAIGC, estendendo-se até à fronteira, e capturámos o material que deixaram, como vários carregadores de AK47, vários invólucros de canhão sem recuo, uma Tokarev 7,62 mm (origem soviética).
Ainda guardo fotos deste material, além de um invólucro de canhão sem recuo, fabrico chinês, que resolvi trazer, para fabricar um cinzeiro de pé.
Além disso, encontrámos um guerrilheiro morto, na mata, deixado pelos outros, talvez porque já não conseguiam levar mais mortos e feridos.
Era um chefe de grupo, pela forma como estava equipado, que calculámos ter cerca de dois metros, um pé de dimensões ‘anormais’ e uns roncos (anéis simbólicos) nas mãos.
Claro que ninguém deve mexer, pois fica armadilhado, uma prática corrente de qualquer dos lados.
Nós tínhamos conhecimento das baixas e destruições que causávamos ao PAIGC através da Rádio Libertação da República da Guiné-Conacry.
Era comum ouvirmos o Amílcar Cabral dirigir-se a nós, iniciando com as seguintes expressões:
‘Jovens colonialistas e assassinos de Gadamael Porto,…’
Uns dias menos ansiosos do que outros, uns dias menos atribulados do que outros, o que nos esperava durante os muitos meses que se seguiriam.
A população da Tabanca que tínhamos de proteger e que nos dava um certo apoio logístico, como era o caso das lavadeiras, envolvia algumas etnias como Fula, Tanda, Papel.
As nossas roupas eram lavadas um pouco à ‘porrada’ sobre as pedras carcomidas e agressivas da bolanha, naquela água salgada, resultando em botões partidos e alguns rasgões.
Mas isso nada nos importava, pois queríamos os camuflados lavados, sem aquela lama agarrada e a cheirar mal.
Só a população tinha direito a abrigos subterrâneos, que tínhamos de assegurar.
As entidades importantes da Tabanca eram o Padre, normalmente, muçulmano, o Régulo, ou chefe da Tabanca, e o Cipaio, o polícia da Tabanca.
Eu tive a sorte de ser bem recebido e acolhido na Tabanca, onde me refugiava, muitas vezes, ao anoitecer, participando em serões da família das minhas lavadeiras, a Cira e a prima Cadi, todos sentados no chão, à luz ténue e dissimulada de um pequeno bocado de madeira aceso, com grande esforço para entender o que diziam, pois os dialectos eram muitos, normalmente, cada etnia o seu dialecto - mas lá ia conseguindo, mais coisa, menos coisa.
O crioulo usado nesta zona era um idioma pobre, uma mistura de influências latina, francesa e inglesa, de outros tempos, mas os cabo-verdianos falam um crioulo mais rico, mais aperfeiçoado.
Mas, como tínhamos mais do que uma etnia, o próprio dialecto ou idioma não era igual em todas elas.
Na Guiné-Bissau, além do nosso português, fala-se o crioulo cabo-verdiano, o fulbe, o mandê e o mandinga, embora não usado em todas as etnias, dependendo das influências de vários povos, nas suas movimentações nómadas.
Cada homem grande, caso tivesse património, como galinhas, vacas, porcos, cabritos, pequenas parcelas de terra cultivadas, arroz (bianda), amendoim (mancarra), poderia ter mais do que uma mulher, regime poligâmico.
E não havia descriminação pela idade pois, apesar de velhos, tinham várias mulheres, algumas delas bajudas (raparigas).
Em determinadas zonas, embora eu nunca tenha sabido quais, também se praticava o regime poliândrico, pelo qual uma mulher pode ter vários homens, desde que reúna condições para tal.
Em Gadamael Porto, o património limitava-se a umas galinhas e umas pequenas parcelas de cultura de arroz e amendoim, quando as condições de segurança permitiam.
Cheguei a comer galinha cozinhada com frutos vermelhos da palmeira, tudo envolvido em bianda (arroz cozinhado).
E todos metíamos a mão dentro da meia abóbora seca, puxando e enrolando os bocados na mão, tipo almôndegas, que levávamos à boca.
Não esquecerei o rigor e disciplina impostos na Tabanca, controlados pelo Cipaio.
Por exemplo, uma cena que me deixou marcado, aconteceu com uma bajuda acabada de casar com um homem grande, mas os chamados casamentos forçados, negociados.
Na noite de núpcias, a consumação do casamento era feita na presença de uma mulher grande (mulher casada), com o objectivo de mostrar o pano sujo de sangue.
Depois da cerimónia, a bajuda, agora, mulher grande, resolve escapar-se para os lados da bolanha.
Apanhada pela população e pelo Cipaio, o castigo é brutal, começando com as chicotadas da praxe, continuando com outros castigos de que prefiro não falar…
Também não mais esquecerei a cultura da circuncisão, lá conhecida por fanado.
Tantos miúdos massacrados, cuja operação era feita com uma espécie de machadinha ou catana, em ferro, em cima de um improvisado pequeno cepo de madeira!
As infecções proliferavam e, alguns não resistiam!
"Ouvi falar e li alguns artigos sobre costumes e tradições de povos de diversos locais do planeta, alguns dos quais ainda parados no tempo, segundo a nossa cultura, claro.
Aquilo que o Adolfo acaba de me relatar, apesar do contexto, leva-me a pensar nas organizações humanitárias que angariam voluntários, com o objectivo de desenvolverem iniciativas, nomeadamente, na área da sensibilização e apoio alimentar, saúde, educação.
E nunca será demais, pelo contrário, sabemos que muitas e muitas acções continuarão na expectativa de resultados satisfatórios…"
Pois, mas algumas tradições estão presas a crenças religiosas, fora de tudo o que consideramos de bom senso ou racional, mas passaram séculos e sabe-se lá quantos mais passarão…
Não posso deixar de falar nas dúvidas, suspeições e reticências constantes com que tínhamos de conviver, uma vez que se tratava de uma guerra de informação, subversiva, em que tudo e todos os que nos rodeavam eram, supostamente, suspeitos.
Dizia-se, por exemplo, que o Padre era o maior ‘turra’ que tínhamos dentro daquela pequena comunidade, havendo alguns sinais disso, mesmo…
Por exemplo: sempre que tínhamos flagelações mais prolongadas e agressivas, o Padre nunca estava na Tabanca, tinha arranjado maneira de sair para Bissau, na véspera…
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022
Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné
1. Parte IV da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.
IV - Guiné…
Dia 31 de Outubro de 1970, outra data marcante, lá estamos, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, onde o velho Carvalho Araújo nos aguardava para o embarque rumo à Guiné.
O agora capitão Assunção e Silva, promovido nessa altura, pôde confirmar a falta de mais dois graduados, o Cunha e o Rosa, nessa altura, já em França… Mas o Neves e o Cruz estavam presentes…
O capitão Assunção e Silva era conhecido, em Lamego, onde tinha dado instrução, por ‘assassino das falinhas mansas’, pelo baixo tom de voz e porque atingiu dois instruendos, durante a instrução, com bala real de G3.
Eu poderia ter pedido adiamento da ida para a Guiné, pois o meu irmão ainda estava em Moçambique, nesta altura, embora por mais dois ou três meses. No entanto, isso significaria mais tempo de serviço militar, para mim, abandonar a companhia já formada e ser mobilizado, novamente, em rendição individual, logo que o meu irmão chegasse.
Cerca do meio-dia, o Carvalho Araújo apita e começa a arrastar-se pelo Tejo, deixando aqueles lenços brancos a esvoaçar e as lágrimas das gentes a correr pelas tristes faces. A navegar, começámos a sentir uma certa instabilidade no navio, bastante de lado, água e lamas pelos corredores e pelos camarotes que utilizávamos, as portas dos corredores arrancadas para passarem a servir de passadeiras, sobre a água e lamas, uma maravilha. E eu que detestava barcos, não pelos barcos, em si, mas pela água, pois não conseguia ver o que estava lá em baixo…
Tudo indicava que não conseguiríamos comer com sossego e isso veio a verificar-se. Além do enjoo que se instalou, os tabuleiros com a comida deslizavam para todo o lado, ao sabor dos balanços do navio. Nos porões, onde era acondicionado o gado dos Açores, durante anos, os soldados tentavam descansar, com um enorme esforço para se alhearem daqueles odores impregnados, sem alternativa.
Ainda não tínhamos completado um dia de viagem, é-me entregue um telegrama. O sentido apurado de mãe e o facto de ter desconfiado da minha despedida, diferente do habitual, no seu dia de aniversário, levou-a a telefonar para o Campo Militar de Santa Margarida e correr tudo até lhe ser dito que eu tinha partido para a Guiné, já a navegar, no Carvalho Araújo! Aquele telegrama da minha mãe deixou-me um pouco triste mas, ao mesmo tempo, cheio de força para enfrentar a aventura que me esperava.
Um dia de felicidade, quando fizemos a escala em Cabo Verde, ilha de S. Vicente, cidade do Mindelo, onde estivemos cerca de doze horas, para abastecer o navio.
O capitão Assunção e Silva era conhecido, em Lamego, onde tinha dado instrução, por ‘assassino das falinhas mansas’, pelo baixo tom de voz e porque atingiu dois instruendos, durante a instrução, com bala real de G3.
Eu poderia ter pedido adiamento da ida para a Guiné, pois o meu irmão ainda estava em Moçambique, nesta altura, embora por mais dois ou três meses. No entanto, isso significaria mais tempo de serviço militar, para mim, abandonar a companhia já formada e ser mobilizado, novamente, em rendição individual, logo que o meu irmão chegasse.
Cerca do meio-dia, o Carvalho Araújo apita e começa a arrastar-se pelo Tejo, deixando aqueles lenços brancos a esvoaçar e as lágrimas das gentes a correr pelas tristes faces. A navegar, começámos a sentir uma certa instabilidade no navio, bastante de lado, água e lamas pelos corredores e pelos camarotes que utilizávamos, as portas dos corredores arrancadas para passarem a servir de passadeiras, sobre a água e lamas, uma maravilha. E eu que detestava barcos, não pelos barcos, em si, mas pela água, pois não conseguia ver o que estava lá em baixo…
Tudo indicava que não conseguiríamos comer com sossego e isso veio a verificar-se. Além do enjoo que se instalou, os tabuleiros com a comida deslizavam para todo o lado, ao sabor dos balanços do navio. Nos porões, onde era acondicionado o gado dos Açores, durante anos, os soldados tentavam descansar, com um enorme esforço para se alhearem daqueles odores impregnados, sem alternativa.
Ainda não tínhamos completado um dia de viagem, é-me entregue um telegrama. O sentido apurado de mãe e o facto de ter desconfiado da minha despedida, diferente do habitual, no seu dia de aniversário, levou-a a telefonar para o Campo Militar de Santa Margarida e correr tudo até lhe ser dito que eu tinha partido para a Guiné, já a navegar, no Carvalho Araújo! Aquele telegrama da minha mãe deixou-me um pouco triste mas, ao mesmo tempo, cheio de força para enfrentar a aventura que me esperava.
Um dia de felicidade, quando fizemos a escala em Cabo Verde, ilha de S. Vicente, cidade do Mindelo, onde estivemos cerca de doze horas, para abastecer o navio.
Antes de acostarmos ao cais, os miúdos mergulhavam nas águas transparentes daquele mar livre de poluição, para apanharem as moedas com a boca. Mas a felicidade acabou por ser aparente, durante aquelas horas pois, apesar de termos tido a possibilidade de comer bem e relaxar um pouco, o cenário encontrado deixou-nos infelizes, frustrados, revoltados.
Entrámos na cidade - aquilo era uma cidade?! - E procurámos os correios e um sítio onde houvesse jornais ou qualquer coisa que nos desse notícias. Estou nos correios, a preparar um telegrama para a Metrópole, quando sinto alguém a mexer-me nos pés: era um miúdo dos seus quinze anos a limpar-me os sapatos e com material para engraxar.
Entrámos na cidade - aquilo era uma cidade?! - E procurámos os correios e um sítio onde houvesse jornais ou qualquer coisa que nos desse notícias. Estou nos correios, a preparar um telegrama para a Metrópole, quando sinto alguém a mexer-me nos pés: era um miúdo dos seus quinze anos a limpar-me os sapatos e com material para engraxar.
Disse-lhe que não precisava, pois havia muito pó e iria sujar-me, logo a seguir. Logo me respondeu que precisava de ajuda, que tinha o quinto ano, mas não havia trabalho. Dei-lhe uns escudos, que trocaria por pesos, a moeda local.
A casa do governador, uma moradia de traça tropical, um liceu novo e um hotel novo, tudo o que sobressaía daquele mundo de casinhas de madeira, algumas transformadas em cafés, com esplanadas, e muito, muito pó castanho avermelhado pelo ar. Ficção, pensava eu, mas as cabras e vacas passeavam pelas ruas e comiam papel de jornal!
O pior deste cenário triste era a prostituição, como é costume dizer-se, porta sim, porta sim, ao longo daquelas ruelas de terra e pó castanho, sinal da necessidade instalada.
Hora do almoço e sou aconselhado a comer no hotel. Lagosta enorme, Pesos 70$00 (Esc 70$00 = € 0,35). Garrafa de Casal Garcia, Pesos 120$00 (Esc 120$00 = € 0,60). Claro que os produtos atingem preços altos, mais por força do custo do transporte.
Cenários que foram mal reconstruídos e continuaram mal tratados, podendo ter tido outro destino, principalmente, no acompanhamento dos mais pequenos, aqueles que mais sofrem, pois têm de ajudar os pais, pobres e sem horizonte. Aliás, tivemos esse exemplo por cá, em certas zonas do país, como já falámos.
A casa do governador, uma moradia de traça tropical, um liceu novo e um hotel novo, tudo o que sobressaía daquele mundo de casinhas de madeira, algumas transformadas em cafés, com esplanadas, e muito, muito pó castanho avermelhado pelo ar. Ficção, pensava eu, mas as cabras e vacas passeavam pelas ruas e comiam papel de jornal!
O pior deste cenário triste era a prostituição, como é costume dizer-se, porta sim, porta sim, ao longo daquelas ruelas de terra e pó castanho, sinal da necessidade instalada.
Hora do almoço e sou aconselhado a comer no hotel. Lagosta enorme, Pesos 70$00 (Esc 70$00 = € 0,35). Garrafa de Casal Garcia, Pesos 120$00 (Esc 120$00 = € 0,60). Claro que os produtos atingem preços altos, mais por força do custo do transporte.
Cenários que foram mal reconstruídos e continuaram mal tratados, podendo ter tido outro destino, principalmente, no acompanhamento dos mais pequenos, aqueles que mais sofrem, pois têm de ajudar os pais, pobres e sem horizonte. Aliás, tivemos esse exemplo por cá, em certas zonas do país, como já falámos.
Viagem retomada, restavam-nos as cartas, lerpa, sete e meio e montinho, principalmente, com muito dinheiro a rolar na nossa frente. Final do dia, já noite, notámos a falta do nosso enfermeiro, o Vítor Coelho. De um lado para o outro, corremos tudo e nada dele. Continuámos, até que, num camarote, um rabo e umas pernas saíam de uma janelinha redonda, constatando que o resto do corpo estava do lado de fora do navio.
Era o Vítor Coelho, debruçado para o lado de fora, com um cabo de vassoura na mão, a que tinha atado uma faca de mato, em ângulo recto, a tentar apanhar um peixe voador. Só o Vítor Coelho poderia lembrar-se disto!…
Algum tempo depois, passámos pela capital, a cidade da Praia, na ilha de Santiago, com pena de não ter sido possível conhecer, pois era a parte mais avançada do arquipélago. Limitámo-nos a apreciar, de longe…
No decorrer da viagem, fomos dando algum conforto moral aos soldados, pois eram os que mais mereciam, dadas as circunstâncias em que viajavam. Comer, uma grande dificuldade, pois tudo andava às voltas…
E a viagem continuava longa, como nos tinham dito. O que não nos disseram foi que o navio andava de lado, com água nos corredores e camarotes pelo meio da perna, lama, probabilidade de incêndio, etc.
E dez dias passaram, até que chegámos ao porto de Bissau. Não nos deixaram desembarcar, claro, pois o anoitecer estava perto e tornava-se perigoso.
Sabe uma coisa, Daniel? Tenho pena de não ter preparado uma garrafa de vidro, com uma mensagem dentro, e atirá-la borda fora, lá no alto mar, só para ver onde iria ter e se teria resposta, como tantos fizeram…
Porto de Bissau, oito da manhã, toca a sair do navio e entrar nas viaturas militares que ali nos aguardavam, rumo ao Depósito de Adidos, em Brá, perto do aeroporto de Bissau.
Não poderia imaginar que já éramos conhecidos ou falados, mas logo nos disseram:
- Ah, são a 2796, a que vai para a colónia penal da Guiné?!
Como acabávamos de chegar, logo, designados ‘periquitos’, eu pensei logo que poderia ser uma espécie de praxe, para nos amedrontar. Organizámos o ‘acampamento’, ajudando os nossos homens na distribuição dos espaços e das tendas de campanha, após o que nos deram uma refeição rápida, na cantina do Depósito de Adidos.
E dez dias passaram, até que chegámos ao porto de Bissau. Não nos deixaram desembarcar, claro, pois o anoitecer estava perto e tornava-se perigoso.
Sabe uma coisa, Daniel? Tenho pena de não ter preparado uma garrafa de vidro, com uma mensagem dentro, e atirá-la borda fora, lá no alto mar, só para ver onde iria ter e se teria resposta, como tantos fizeram…
Porto de Bissau, oito da manhã, toca a sair do navio e entrar nas viaturas militares que ali nos aguardavam, rumo ao Depósito de Adidos, em Brá, perto do aeroporto de Bissau.
Não poderia imaginar que já éramos conhecidos ou falados, mas logo nos disseram:
- Ah, são a 2796, a que vai para a colónia penal da Guiné?!
Como acabávamos de chegar, logo, designados ‘periquitos’, eu pensei logo que poderia ser uma espécie de praxe, para nos amedrontar. Organizámos o ‘acampamento’, ajudando os nossos homens na distribuição dos espaços e das tendas de campanha, após o que nos deram uma refeição rápida, na cantina do Depósito de Adidos.
Para os graduados, tendas individuais, um colchão pneumático, já com um ou outro gomo rasgado, mas era melhor do que nada. Silêncio, luzes de presença e segurança, ali estávamos a tentar descansar, já sentindo um certo cheiro a pó africano.
De repente, sinto qualquer coisa nas traseiras da tenda, que davam para a vedação de arame farpado, um som que correspondia a corte na lona. Mesmo na penumbra, vejo uma lâmina a entrar e a sair, lentamente, com cuidado, a cortar a lona, junto ao chão de terra castanha com tom avermelhado.
Consigo resvalar para o lado contrário, a saída da tenda, e rastejar de faca de mato na mão, a única coisa de defesa que tinha, pois ainda não tínhamos recebido as armas. Quando chego ao lado de trás, só vejo um vulto, africano, a correr em direcção ao arame farpado, dando um salto de peixe na primeira linha e novo salto na segunda linha, desaparecendo no escuro…
Logo chamei a atenção do sargento Moreira, no sentido de providenciar a distribuição de armas para o dia seguinte, logo de manhã, pois não se sabia que mais nos estava reservado, mesmo dentro do Depósito de Adidos.
Entretanto, tínhamos de aguardar disponibilidade de LDG (lancha de desembarque grande), com transbordo para LDM’s (lancha de desembarque média) e para LDP’s (lancha de desembarque pequena) ou batelões, caso apanhássemos a maré vazia, um grande problema.
O Daniel está a ver que lanchas são estas, as tais utilizadas no desembarque das forças aliadas, EUA, Inglaterra, França Livre e aliados, na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, considerada a maior invasão marítima da história, episódio que quase era dos nossos tempos. Parece que partiram todos de vários portos de Inglaterra, atravessaram o Canal da Mancha e invadiram a França ocupada pelos alemães, a Normandia.
Como eu ia dizendo, enquanto esperávamos pela hora da partida para o Sul, dava para umas visitas ali perto, Engenharia, Força Aérea, Comandos e à cidade, onde podíamos comer e beber umas coisas melhores do que no quartel, enquanto não nos avisavam da hora de partida para Gadamael Porto.
Na Força Aérea, encontrei um amigo da Figueira da Foz, o Flórido, que estava a acabar a comissão, logo, a preparar o regresso à Metrópole. Ficou contente por me ver e, ao mesmo tempo, preocupado comigo, quando lhe respondi que ia para Gadamael Porto, e isso respondeu à minha dúvida sobre o que nos tinham dito quando chegámos, ‘colónia penal…’.
Na cidade, além de tomarmos contacto com alguns locais que nos diziam interessantes e úteis, sinceramente, nada de jeito, tivemos a primeira noção de realidades estranhas, como produtos de consumo corrente com preços distintos, conforme procedentes da Metrópole ou importados, ou produtos inexistentes, sem justificação, para nós. Por exemplo, não havia água de Castelo, sumos e refrigerantes, logo, nacionais.
Havia água Perrier, coca-cola, logo, estrangeiras. Whisky, Gin, Licores de Whisky, por exemplo, imensas marcas, tudo original, importado - mais baratos do que qualquer bebida idêntica na Metrópole. Na esplanada de um café, um cálice balão de Whisky, Pesos 2,50 e uma água pequena Perrier, Pesos 7,50.
Os armazéns e retalho, principalmente, propriedade de portugueses, embora alguns de propriedade libanesa, pela tradição de comércio instalado, que era feito entre os países africanos, passando pela Guiné Conacry, atravessando a Guiné Bissau e seguindo pelo Senegal.
Vasta gama de equipamentos de alta-fidelidade e fotografia, pelo que adquiri um leitor gravador Hitachi, de boa qualidade, e uma máquina fotográfica Olympus.
Ainda me recordo de algumas casas, como a Casa Ultramarina, ligada ao BNU, a Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF, a Casa António Pinto, conhecida por Pintosinho.
E fomos sabendo de algumas das etnias indígenas que encontraríamos pela Guiné, como Bailundos, Nalús, Sossos, Manjacos, Futa-Fulas, Fulas, Papeis, Balantas, Mandingas, Beafadas, Bijagós, Mancanhas, Felupes, Banhus, Tandas… Cada etnia tinha a sua própria cultura e estou a lembrar-me dos Manjacos que se distinguiam pelos panos que produziam em teares artesanais, os panos coloridos muito apreciados, as danças e sons muito característicos, só a título de exemplo.
E, apesar da grande confidencialidade, conseguimos um ’cheirinho’ sobre a razão da demora em partirmos para Gadamael Porto: qualquer coisa relacionada com as tais lanchas, ao mesmo tempo que davam a entender qualquer coisa de operações em curso, enfim, coisas que nada nos diziam, mas tinham todo o sentido, pelo que veio, a seguir…
(Continua)
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Nota do editor
Poste anterior de 29 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha
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terça-feira, 29 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha
1. Continuação da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.
III - Abrantes e Santa Margarida…
Chegado ao RI 2 (regimento de infantaria), Abrantes, apresento-me ao oficial de dia, um tenente, que logo reage:
- Mas…, de onde vem?! Leiria?!... Então, em Leiria anda fardado dessa maneira?!’
- Não, propriamente, mas o calor...
- Olhe, fica registada a sua apresentação, mas eu não o vi! Deixe-me cá ver a que companhia pertence... Pois é, a 2796 formou e já saiu daqui há muitos dias, rumo ao campo militar de Santa Margarida, para o IAO...
Agradeci e parti para Santa Margarida, onde me esperava a Companhia de Caçadores Independente 2796.
Chegado, ainda passei um certo tempo até encontrar o local onde a companhia estava instalada, uma vez que o campo militar é bastante grande e ‘abriga’ muitas companhias, das diversas armas.
Apresentei-me ao comandante, o tenente Assunção e Silva e restantes companheiros de missão, após o que me informaram que ficaria integrado no 4º grupo de combate.
Na altura, o efectivo da companhia ainda não estava completo, pois ainda faltavam alguns elementos, graduados, 1ºs cabos e soldados, segundo informação, que iriam ter connosco à Guiné, em rendição individual.
Na altura, recordo-me dos graduados que já se tinham apresentado, Ponte, comandante do 1º grupo de combate, Manso, comandante do 2º grupo, Campinho, comandante do 3º grupo, e Rodrigues, comandante do 4º grupo, 1º sargento Moreira e 2º sargento Baptista, furriéis Magalhães, Ferreira, Neves, Amaral, Fernandes, Rosa, Cunha, Chaves, Silva, Oliveira, Coelho, Fabrício, Anjos.
Mais tarde, já em missão, na Guiné, para complemento do efectivo, por falhas ao embarque, casos do Rosa e Cunha, ou por baixas, recebemos o Tristão, o Esteves, o Pereira, o Queiroz, o Guimarães, o Vilas Boas e o Matias.
Normalmente, o IAO, instrução de aperfeiçoamento operacional, era feito em mês e meio, mas o nosso levaria três meses, pelas nossas contas.
Tudo foi correndo dentro do estabelecido e normal, com os fins-de-semana na Figueira da Foz ou em Lisboa, com saída do campo militar à quinta-feira, final da tarde, e regresso segunda-feira, às oito da manhã.
Nos intervalos das operações, aproveitei para experimentar vários tipos de viaturas militares, como o Jeep Willys, os Unimog 411 e 404, a Mercedes, a Berliet.
Descubro um amigo de cavalaria, de Coimbra, que me dá a oportunidade de experimentar um M47, o tradicional tanque de guerra, complicado de manobrar, primeiro, pelo reduzido espaço do habitáculo do condutor, depois, pelos instrumentos de manobra que requerem concentração e prática.
Três dias de detenção!
E já estava um pouco saturado e cansado daquele cenário, apesar de enorme, em dimensão, mas que se tornava um pouco claustrofóbico!
A vontade irresistível de sair dali, nem que fosse por uns momentos, tomou conta dos meus sentidos e levou-me a pegar num Unimog 411 e partir por aí fora.
Comigo, foi um enfermeiro de uma outra companhia que eu tinha conhecido nas Caldas da Rainha.
Partimos do campo militar cerca das nove da noite e, depois de quilómetros e quilómetros de maluquices, regressámos ao campo militar, pelas seis da manhã.
Antes de lá chegarmos, perdemo-nos um pouco, tendo ido dar a uma herdade, aguardando que alguém aparecesse, pois o ladrar dos cães acordaria qualquer um, num raio alargado.
Acendem-se luzes e aparece um senhor, em roupão, a quem perguntámos como chegar ao campo militar.
Olha para nós, com ar de reprovação, e diz-nos para irmos sempre em frente, até chegarmos às traseiras da capela.
Mais tarde, viemos a saber que se tratava de um coronel de cavalaria do campo militar, já com uns anos a viver ali.
Quando chegámos ao campo militar, só tive tempo de estacionar o Unimog e ir às instalações preparar-me para a formatura, pois tínhamos mais um treino militar.
O sargento Moreira chama-me, a pedido do tenente Fernando Assunção e Silva, nosso comandante de companhia, que me diz terem dado como desviado aquele Unimog, sem outra explicação, e lamenta ter de me punir pelo acto, tanto mais que não tinha carta de condução militar.
Respondi que tinha toda a razão e direito de me punir.
Acrescentou que seria para exemplo da companhia.
E, assim, levei três dias de detenção, correspondendo ao período do fim-de-semana, coisa a que já estava habituado, de certa forma, de experiências anteriores...
Mas esta punição já não podia ser apagada por ninguém, como foram as anteriores, pelo sargento-ajudante de Leiria, como lhe contei.
E confirmei isto, trinta e cinco anos mais tarde, quando tratei do meu processo para o estatuto de pensionista, em que era necessário apresentar a caderneta militar.
Fui aos serviços do exército, na Av de Berna e em Chelas, onde me disseram que não podiam dar-me a caderneta, pois tinha levado o mesmo caminho de algumas outras...
Perguntei o que queriam dizer com aquilo e acabaram por dizer-me que todas as que estavam um pouco ‘sujas’ foram destruídas, para bem dos seus proprietários...
Claro que entendi...
Mas deram-me um papel com o resumo do meu currículo militar, que ainda guardo, e lá constam os tais três dias de detenção, de Santa Margarida, ‘porrada’ que já ninguém pôde ‘limpar’...
Passar o fim de semana, em serviços, dentro do campo militar, era uma tortura.
Depois de todos terem saído, peguei nas minhas coisinhas e ala para a Figueira da Foz, final da tarde de quinta-feira.
Sábado, final da manhã, telefonei para o campo militar e falei com um elemento do meu grupo que logo me diz que as coisas não estavam bem - anda tudo ‘à porrada’ nos refeitórios - o que deu origem a queixas ao responsável pelos refeitórios e messes.
Eu pedi-lhe para falar com os nossos e tentar controlar a coisa, pois só poderia regressar na segunda de manhã.
Na segunda feira, o tenente Assunção e Silva pergunta-me:
- Então, Cruz, correu tudo bem?
- Sim, tudo bem!
- Tem a certeza?...
- Sim, tudo controlado!
Ele já sabia que eu me tinha pirado... Mas, que castigo pior do que ir para a Guiné?...
- Realmente, o Adolfo parece que nasceu para infringir regras...
Pois, uma espécie de instinto a atirar para o lado errado...
Entretanto, recebo um aerograma do meu irmão, ainda em Moçambique, que me fala em qualquer coisa relacionada com uma Guiomar, um conhecimento das suas férias à Metrópole, cerca de um ano antes, pedindo-me que, se ela aparecesse a querer aproximar-se, eu tratasse do assunto, como entendesse.
Mas ninguém apareceu nem ouvi nada que se relacionasse com o assunto, pensando que tudo estaria resolvido, sem que necessitasse da minha intervenção.
Se algo acontecesse, eu não estaria na Figueira da Foz, pois estava de partida para a Guiné.
E achei melhor nem falar em nada aos meus pais e irmã.
No entanto, isto seria o inicio de mais um problema...
O Rosa e o Cunha...
Dentro deste cenário do Campo Militar de Santa Margarida, alguns graduados eram notados com uma forte cumplicidade: o Rosa, o Cunha, o Neves, o Cruz (nomes de guerra).
Neste contexto, não é difícil imaginar que algo poderia acontecer, com prejuízo para a companhia, claro.
E, quem estivesse bem atento, reparava no temperamento e postura particulares daqueles graduados, além do facto de que o Cruz tinha sido punido pelo tenente Assunção e Silva.
Melhor dizendo, poderiam pensar na eventualidade daqueles graduados faltarem ao embarque para a Guiné, o que piorava a situação da companhia, que estava desfalcada de alguns elementos, esperado aparecerem em rendição individual.
E a suspeição deu sinais, pelas conversas entre o tenente Assunção e Silva e o alferes Ponte, comandante do 1º grupo.
"Pois, Adolfo, era mais um caso a juntar aos muitos que aconteciam, desde o início da guerra do ultramar - dar o salto para o estrangeiro..."
Entretanto, recebo mais uma boa notícia: nasceu a minha primita Filipa, a segunda filha da minha prima Lena, e a alegria aumentou e abraçou a família, restando-me esperar a oportunidade de uma visita para conhecer e dar as boas vindas à Filipa.
Finais de Outubro e dão-nos umas massas para comprarmos algumas roupas específicas, antes do embarque, o que faríamos no Casão Militar, Lisboa, o tal local já muito bem conhecido do Daniel...
Dia vinte e sete, vou à Figueira da Foz e fico para o dia seguinte, dia do aniversário da minha mãe.
Com beijos apertados, dou os parabéns à minha mãe e despeço-me, sem conseguir dizer mais nada...
(Continua)
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Nota do editor
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