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terça-feira, 23 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11447: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (10): Regresso a Samba Cumbera, a sudoeste de Galomaro, 42 anos depois...

1. Mensagem do Rui Felício, com data de 19 do corrente:

Meu Caro Luis Graça,

Retomando uma longa ausência e na sequência dos teus últimos e-mails, deixo à tua consideração a eventualidade de publicação do texto que anexo, rememorando a última das passagens que fiz pela Guiné, esta há cerca de dois anos.

Um abraço

Rui Felicio
[ Ex-Alf Mil Inf,
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
Dulombi, 1968/70]


2. Estórias de Dulombo  (10) (*) > Regresso à Guiné

Estava destacado com o meu pelotão em Samba Cumbera, pequena tabanca perdida no mato.

Há dois dias que chovia torrencialmente, sob um céu plúmbeo, abafado, abrasador. Um rio de lama saltitava pelos degraus de terra batida de acesso ao abrigo subterrâneo, coberto com grossos troncos de palmeira, com terra e com chapas de zinco. Lá dentro, precocemente enterrado, eu jazia exausto, fraco, cheio de febre, estendido no colchão de espuma empapado em suor. Em volta da cama de ferro, no lamaçal castanho de uns 10 centímetros formado pela água que entrava no abrigo, boiavam pequenos objectos, uma bota, um cinto, umas chinelas de plástico.

O médico estava na sede do Batalhão a muitos quilómetros de distância e, com a picada intransitável, tornava-se impossível deslocar-me até ele.

Desde anteontem que não comia nada. O estômago não aguentava qualquer bocado de comida, nem sequer a água que de vez em quando eu tentava beber para matar a sede intensa que me secava, expulsando-a em prolongados vómitos. Era a segunda vez em pouco tempo que era acometido por um fortíssimo ataque de paludismo.

O Samba, chefe da tabanca, e a sua jovem e bonita filha Fatwma, assomaram à entrada do abrigo, e ele chamou-me no seu português arrevesado:
- Alfero! Pudi entra? Bo stá milhor?

Resmunguei que estava pior, mas que sim, que podia entrar, e ele curvou-se, desceu para o abrigo, chapinhou no lamaçal e, com um molho de ervas na mão, disse-me:
- Tem mezinho manga di bom, qui bai cura alfero!

A Fatwma começou a esfregar as ervas que o pai lhe dava, na minha testa, nos lábios, no pescoço e no peito, formando com o suor, uma pasta esverdeada à medida que as ia esmagando. Ardia um pouco, mas nada que não se suportasse.

Senti-me psicologicamente melhor. Principalmente porque alguém se preocupava comigo. Com alguém que era um intruso em terra alheia!

No dia seguinte, amainado o temporal, cambaleante, trôpego, consegui enfiar-me no Unimog com meia dúzia de soldados. Vencemos os obstáculos da picada numa viagem lenta e atribulada e chegámos horas depois a Bafatá, onde o médico me deu duas injecções que me aliviaram o mal.

Passados 42 anos, por sinuosos carreiros que a mata invadira há muito e por onde o jeep abria caminho com dificuldade, afastando à sua frente os intrincados ramos da floresta, voltei ontem a Samba Cumbera [, a sudoeste de Galomaro, vd. carta Duas Fontes]. Disseram-me que o Samba já morreu há muitas luas. A Fatwma, abriu um largo sorriso ao reconhecer-me e correu a ir buscar uma cabaça com água fresca. Pareceu-me ver lágrimas nos olhos dela e senti-as também nos meus.
Está velhota a Fatwma, mas ainda é uma mulher muito bonita...

Nota de rodapé:

Tento resumir as características da doença, na minha ignorância médica, sujeita às correcções dos especialistas na matéria, aquilo que nos era ensinado nos manuais militares:

A malária é uma doença potencialmente mortal se não for atacada a tempo. Durante muito tempo supunha-se que a sua causa provinha directamente da proximidade de terrenos pantanosos fétidos e daí o seu nome originário de “mau ar” que redundou em malária. Descobriu-se que, afinal, a causa estava numa bactéria injectada no nosso sangue pela picadela do mosquito “anofelis” que a transporta consigo. O que explica a relação entre esse insecto e o seu habitat perto dos pântanos. Este mosquito alimenta-se exclusivamente do sangue dos mamíferos, razão da sua ferocidade e persistência, ditadas pela sua própria sobrevivência.

A bactéria, acomodada no circuito sanguíneo humano, imune às defesas do organismo, desenvolve-se, destrói paulatinamente os glóbulos vermelhos, ataca o fígado e vai enfraquecendo as resistências, provocando sintomas que na fase inicial da doença se assemelham a uma gripe forte, degenerando em febres altíssimas, vómitos, debilitação geral e prostração física e psicológica.

Na Guiné chamam-lhe paludismo, que deve ser prevenido, com tomas regulares semanais de comprimidos ou injecções de medicamentos elaborados à base de quinino.

Rui Felício - 29/06/2011
( Ex-Alf.Mil. CCAÇ 2405, Galomaro e Dulombi, 1968/70 )
__________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

(...) O Natal aproximava-se… Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito…. O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia… O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos. (...)


14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

(...) Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado. Aproximei-me e comentei:
- Eh, pá, não estejas a pensar na morte da bezerra… Já faltou mais e não tarda estaremos em Lisboa a beber umas imperiais e a olhar as bajudas brancas que por lá abundam. (...)


19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

(...) 20 de Julho de 1969. Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transístores que nos mantinham ligados ao mundo. Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo. (...)


5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

(...) Daí a poucos dias íamos finalmente embarcar em Bissau no Carvalho Araújo para o ansiado regresso… Tínhamos acabado de receber no Dulombi a Companhia de atónitos periquitos que, durante uma semana, iam ficar em sobreposição connosco. Acolhemo-los com o aquele ar superior de guerreiros invencíveis, calejados pelos combates, a pele tisnada dos sóis tropicais, e além das costumadas praxes, meio inofensivas, que exercemos sobre eles, dedicámos-lhes, com a proverbial simpatia característica dos Baixinhos do Dulombi, um hino de recepção ao periquito que ainda hoje cantamos em todos os almoços anuais de comemoração que realizamos. (...)


18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

(...) Já de si, o apelido originário da ascendência estrangeira da sua Família, o tornava notado. A sua invulgar estatura de quase dois metros, os olhos salientes, o cabelo arruivado, a pele branca e sardenta e o corpo magro, longilíneo e desengonçado, completavam a estranha figura propicia ao sorriso e aos mais díspares comentários. Falo do Parrot, que conheci em Mafra e que fez parte do meu pelotão do 1º Ciclo do COM da incorporação de Abril de 1967. Não era fácil, porém, tirar o Parrot da sua fleumática postura de não te rales, por mais provocações que se lhe tentassem fazer. Ele era a calma personificada, e senhor de uma inteligência fora do comum. (...)


27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo

(...) Sinchã Lomá é uma pequena tabanca a Sudoeste de Dulo Gengele e esta por sua vez fica a Sul de Pate Gibel. Quando a CCAÇ 2405 chegou a Galomaro, destacou três dos seus Grupos de Combate para regiões circundantes da sede da Companhia com a missão de marcar posição no terreno e fazer ao mesmo tempo uma espécie de guarda avançada para protecção da Companhia. A mim, coube-me ir para Pate Gibel, a tabanca mais a sul de Galomaro. (...)


8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405)(7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)

(...) No terço final da comissão, com a Companhia finalmente concentrada no Dulombi, pensou-se em encontrar um emblema e uma divisa para a nossa Unidade. Não deveríamos deixar acabar a comissão sem legar aos vindouros um símbolo que nos identificasse, tal como a maioria das outras unidades já o tinham feito. Acolhida a ideia, estabeleceu-se um período de tempo para que fossem apresentados projectos para futura escolha daquele que merecesse o consenso geral. E assim surgiram meia dúzia de ideias para a o emblema da Companhia. (...)


30 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2073: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (8): O Fula, a galinha e o vestido

(...) Galomaro, Maio de 1981. Passados 11 anos após o regresso da CCAÇ 2405, retornei à Guiné, em 1981, naturalmente já civil, e passei alguns dias em Galomaro onde esteve sediada a Companhia antes da sua deslocação final para o Dulombi. Percorri, de jeep ou de bicicleta, toda aquela região que tão bem conheci por força dos patrulhamentos militares efectuados entre 1968 e 1970. (...)


26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2683: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (9): O Jorge Félix e o Prisioneiro

(...) Num certo dia de Agosto de 1969, o Jorge Félix transportou no seu helicóptero um grupo de paraquedistas que iam fazer um assalto, a uma base do PAIGC, identificada pelos serviços de informações militares da Guiné, como estando localizada na região de Galomaro. Ao procurar local para a aterragem perto do objectivo, em plena mata, o Jorge Félix foi descendo o helicóptero e, a uns 5 metros do chão, a deslocação de ar provocada pelo movimento das pás do aparelho, afastou uma série de ramos de arbustos deixando a descoberto um guerrilheiro do PAIGC que ali se havia emboscado. O homem estava armado com um RPG7, e a granada colocada, apontando para o helicóptero, o que naturalmente deixou em pânico o piloto e os tripulantes. (...).

sábado, 1 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10313 Efemérides (108): No dia em que o primeiro homem pisou a lua... Neil Armstrong (1930-2012), um herói do nosso tempo, visto de Samba Cumbera, tabanca fula a sudoeste de Galomaro, longe do Vietname, a 400 mil km de distância do nosso satélite (Rui Felício / Luís Graça)



Neil Armstrong (1930-2012), antigo combatente da guerra da Coreia, astronauta da NASA, o primeiro homem a pisar a lua... Foto da NASA, tirada a 1 de julho de 1969. (Fonte: Wikipédia).


1. Ontem foi um dia especial, 6ª sexta-feira, 31 de agosto de 2012... Dia de lua cheia, a "lua azul" (nome da lua quando ocorre duas luas cheias no mesmo mês: tinha ocorrido uma primeira lua cheia a 2 de agosto e a agora ocorreu a segunda: é um fenónemo com alguma raridade, acontece em cada  dois anos e picos...  A lua azul anterior ocorreu em dezembro de 2009, e a próxima será em julho de 2015).

Por estranha coincidência ou não, o primeiro homem que pisou a lua, Neil Armstrong, foi ontem a enterrar, numa cerimónia privada. Tinha morrido dias antes, a 25 de agosto de 2012. Com 82 anos. Na Grécia antiga, seria um herói, um semideus. Para os norte-americanos, e para todos os habitantes do planeta, o dia 20 de julho de 1969 foi uma datas mais memoráveis do séc. XX, e o comandante da missão Apolo 11 tornou-se um "ícone global", A família definiu-o como um "herói americano relutante"...Milhões de pessoas viram-no, pela televisão, em direto, descer na superfície lunar. Ele e Edwin Aldrin foram os primeiros humanos a descer no satélite da terra e explorar, durante 2 horas e meia, a sua superfície.

Nascido em 1930, Neil Armstrong começou por servir o seu país, na marinha de guerra, foi piloto e combateu na guerra da Coreia. Entrou para a NASA em 1962 e em 1965 comandou a missão Gemini VIII, indo pela primeira vez para o espaço.

Em 20 de julho o nosso camarada Rui Felício estava com o seu grupo de combate reforçando o sistema de autodefesa de uma tabanca, Samba Cumbera,  a sudoeste de Galomaro. Ele era um dos "baixinhos de Dulombi", alf mil da CCAÇ 2405, adido ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Eu. por minha vez,  tinha chegado Bambadinca, sede do setor L1, em 18 de julho, vindo de Contuboel. A minha companhia, CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12), passava a estar às ordens do comando daquele batalhão.

Em 20 de julho de 1969, domingo, não soube lamentavelmente desse grande acontecimento, de imediato reconhecido como um marco na história da humanidade. Ou se soube, não me lembro. Alguns dias depois, a 24 de julho, 3 grupos de combate da minha companhia tiveram o seu batismo de fogo, em farda nº 3, ainda nem sequer tinham chegado os camuflados para os nossos  soldados africanos. Em Madina Xaquili, a sudeste de Galomaro... na Guiné, longe do Vietname, a menos de 400 mil km da lua... 

Sobre esta efeméride o Rui Felício, um, homem sábio, escreveu um poste de antologia, na I Série do nosso blogue (nº 640, de 19 de março 2006).  Muitos leitores não o conhecem, nem ao poste nem ao autor. É da mais elementar justiça reeditá-lo. É ao mesmo tempo quádrupla homenagem, (i) ao Rui Felício, português, ecuménico, tolerante, sábio;  (ii) ao seu companheiro daquela noite, o Samba, chefe da tabanca de Samba Cumbera, um outro homem sábio, fula, guineense, muçulmano;   (iii)  ao primeiro homem que pisou a lua e que acaba de nos deixar, um herói do nosso tempo; e  ainda, e porque não, (iv) à lua, ora azul, ora vermelha, ora prateada, o satélite do nosso planeta que nos fascina, emociona, inspira, intriga, interpela, provoca, desafia...e a quem os cães ladram...LG


A lua, nosso satélite... Foto da NASA


Aldrin, da missão Apolo 11, na superfície lunar, em 20 de julho de 1969. Foto da NASA.



31 de agosto de 2012 > A minha "lua azul", tirada de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, Portugal... (Foto de Luís Graça)




2. O dia em que o homem foi à lua
por Rui Felício


Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta [, Neil Armstrong] afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transistores que nos mantinham ligados ao mundo.

Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.

Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas. Por mim, preferia meditar sobre o assunto, silenciosamente... Afinal os nossos avós jamais imaginariam que alguma vez o homem pudesse chegar à Lua, apesar de Júlio Verne, o visionário do século anterior, já o ter previsto…

E, longe das mais modernas evoluções da ciência e da tecnologia, os naturais da Guiné que nasciam e morriam na sua aldeia da selva sem nunca sairem do pequeno perímetro onde viviam, muito menos sonhariam com essa utópica possibilidade de o homem chegar à Lua.

Como muitas vezes fazia, depois de jantar, sentei-me numa cadeira de fula, onde descansava semi deitado, olhando o céu, nessa noite muito limpo e estrelado…Bem alto, a luz branca da lua, em quarto crescente, derramava-se pela orla da floresta e pelos cones de capim dos telhados das tabancas, desenhando sombras fantasmagóricas pelo terreno limpo do centro da aldeia.

E mantive-me assim deitado, o olhar fixo na lua, tentando perscrutar o mais pequeno sinal da presença do homem que eu sabia estar ali vagueando, em qualquer lugar do Mar das Tempestades…

Não sei quanto tempo assim me mantive, absorto, atento e quieto… Despertei e voltei à realidade com a voz do meu simpático amigo Samba, Chefe da Tabanca de Samba Cumbera, que me perguntava se podia sentar-se a meu lado, para o qual arrastara uma cadeira semelhante à minha…

Era um homem de grande cultura árabe, que conhecia muito da história do islamismo, que sabia com um estranho rigor a exacta direcção de Meca, que lia e escrevia árabe, que conhecia em pormenor toda a história dos Fulas e da razão de ser da sua permanência na terra da Guiné… Para onde, dizia, foram empurrados em sucessivas lutas tribais com os seus rivais Mandingas…

As nossas conversas eram normalmente muito agradáveis e, posso dizer, sempre aprendi mais com ele do que ele comigo…Temos a tendência e o preconceito de avaliar os outros pelos nossos parâmetros e pela nossa cultura, catalogando-os de bárbaros e analfabetos só porque não têm o conhecimento e a instrução, medidos pelos nossos padrões.

Aprendi que no meio daquela gente existiam homens com conhecimento mais vasto e aprofundado que muitos dos nossos soldados… O Samba era um deles…Perguntou-me porque estava tão pensativo e quieto… Respondi-lhe que aquela noite era muito especial para o mundo, porque estava se passando algo que nunca antes tinha acontecido…

Franziu o rosto, comentando que, pelo meu ar, não devia ser coisa boa… Sorri, dizendo-lhe que era exactamente o contrário…E, embora sabendo de antemão a resposta, perguntei-lhe apenas como forma de iniciar a revelação do que estava acontecendo:
- Sabes que neste preciso momento um homem como nós caminha na lua que está ali em cima diante dos nossos olhos?

A reacção foi inesperada e contrária a tudo o que eu teria imaginado:
- Alfero! Não é um homem como nós, não! É o profeta Maomé que, juntamente com Alá, dali nos vigia a todos, para nos proteger, nos ensinar o caminho justo e para nos castigar quando dele nos desviamos…

E prosseguiu:
- Como é possível que homem grande e instruído como o Alfero, só hoje soubesse isso? Não entendo mesmo!...

Pensei durante uns segundos se devia argumentar, puxar dos meus galões de homem civilizado, e demonstrar-lhe a minha superioridade, provando-lhe que não era nada daquilo que ele dizia. Desisti de o fazer…

Afinal, ambos nos estávamos alimentando de sonhos… e, cada um à sua maneira, sentíamo-nos felizes pela beleza insubstituível de um luar africano em noite calma e limpída…Independentemente de quem lá estava caminhando naquele momento…

Rui Felício,
Ex-Alf Mil Inf,
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
(Dulombi, 1968/70)

P.S. - Passados dias, com a chegada de um jornal de Lisboa, mostrei-lhe as fotografias do astronauta pisando a Lua. E, então expliquei-lhe o que realmente se tinha passado naquela noite… Pelo seu ar meio trocista, ainda hoje não sei se o convenci… Mas como ele também não me convenceu que por lá andavam Alá e o Maomé, ficamos quites, cada um na sua... em paz!

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Notas do editor:


Último poste da série > 10 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10246: Efemérides (107): Dia 10 de Agosto de 1972 - Naufrágio no Rio Geba de um sintex com pessoal da CART 3494 (Jorge Araújo)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (21): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)

20 de Julho de 1969 > Apolo 11 > O astronauta Edwin 'Buzz' Aldrin caminha sobre o solo lunar... A quinta missão tripulada do Programa Apolo, constituída pelos pelos astronautas norte-americanos Neil Armstrong, Edwin 'Buzz' Aldrin e Michael Collins, chega à lua... Faz hoje 40 anos. Foto da NASA.

Na Guiné portuguesa, seis anos depois do início da guerra colonial, em Samba Cumbera, a sudoeste de Galomaro, na zona leste, um tuga, o Alf Mil Rui Felício, tem os olhos pregados na lua e mantém uma conversa filosófica com o seu amigo Samba, chefe da tabanca e homem sábio...

Onde é que estacam os meus camaradas da Guiné nesse dia ?

Eu (e a malta da minha CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, saímos de Contuboel, a caminho de Bambadinca, sector L1:

"A partir de 18 de Julho de 1969, finda a instrução de especialidade, a CCAÇ 12 foi dada como operacional, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, ficando pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5). Durante a sua primeira comissão (1969/71), actou sobretudo no Sector L1 (Bambadinca, correspondente ao triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, mas incluindo também, a norte do Rio Geba, o regulado Cuor onde começava o famoso corredor do Morès...) (...).

"Ainda não haviam sido distribuídos os camuflados às praças africanas quando a CCAÇ 12 fez a sua primeira saída para o mato. A 21 [de Julho de 1969], três Gr Comb (2º, 3º e 4º) seguiam em farda nº 3 para Madina Xaquili a fim de reforçar temporariamente o sub- sector de Galomaro,[a sul de Bafatá] (...).

"Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24, à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos]" (...) (*).

Nesse dia, em todo o TO da Guiné, apenas terá morrido um homem, não em combate, mas por doença, o Sold Morna Nalé, diz o obituário da Liga dos Combatentes... (LG)

Foto: Apollo 11 > Wikipédia (Copyleft)

1.Reprodução de um texto de Rui Felício, ex-Alf Mil CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 (Subsector de Galomaro, Zona Leste), na altura destacado em Samba Cumbera, com o seu 3º Grupo de Combate :


O dia em que o homem foi à lua (**)
por Rui Felício


Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade (***), era escutada repetidamente nos pequenos transistores que nos mantinham ligados ao mundo.

Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.

Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas.Por mim, preferia meditar sobre o assunto, silenciosamente... Afinal os nossos avós jamais imaginariam que alguma vez o homem pudesse chegar à Lua, apesar de Júlio Verne, o visionário do século anterior, já o ter previsto…

E, longe das mais modernas evoluções da ciência e da tecnologia, os naturais da Guiné que nasciam e morriam na sua aldeia da selva sem nunca sairem do pequeno perímetro onde viviam, muito menos sonhariam com essa utópica possibilidade de o homem chegar à Lua.

Como muitas vezes fazia, depois de jantar, sentei-me numa cadeira de fula, onde descansava semi deitado, olhando o céu, nessa noite muito limpo e estrelado…Bem alto, a luz branca da lua, em quarto crescente, derramava-se pela orla da floresta e pelos cones de capim dos telhados das tabancas, desenhando sombras fantasmagóricas pelo terreno limpo do centro da aldeia.

E mantive-me assim deitado, o olhar fixo na lua, tentando prescrutar o mais pequeno sinal da presença do homem que eu sabia estar ali vagueando, em qualquer lugar do Mar das Tempestades…

Não sei quanto tempo assim me mantive, absorto, atento e quieto… Despertei e voltei à realidade com a voz do meu simpático amigo Samba, Chefe da Tabanca de Samba Cumbera, que me perguntava se podia sentar-se a meu lado, para o qual arrastara uma cadeira semelhante à minha…

Era um homem de grande cultura árabe, que conhecia muito da história do islamismo, que sabia com um estranho rigor a exacta direcção de Meca, que lia e escrevia árabe, que conhecia em pormenor toda a história dos Fulas e da razão de ser da sua permanência na terra da Guiné… Para onde, dizia, foram empurrados em sucessivas lutas tribais com os seus rivais Mandingas…

As nossas conversas eram normalmente muito agradáveis e, posso dizer, sempre aprendi mais com ele do que ele comigo…Temos a tendência e o preconceito de avaliar os outros, pelos nossos parâmetros e pela nossa cultura, catalogando-os de bárbaros e analfabetos só porque não têm o conhecimento e a instrução, medidos pelos nossos padrões.

Aprendi que no meio daquela gente, existiam homens com conhecimento mais vasto e aprofundado que muitos dos nossos soldados… O Samba era um deles…Perguntou-me porque estava tão pensativo e quieto… Respondi-lhe que aquela noite era muito especial para o mundo, porque estava se passando algo que nunca antes tinha acontecido…

Franziu o rosto, comentando que, pelo meu ar, não devia ser coisa boa… Sorri, dizendo-lhe que era exactamente o contrário…E, embora sabendo de antemão a resposta, perguntei-lhe apenas como forma de iniciar a revelação do que estava acontecendo:
- Sabes que neste preciso momento um homem como nós caminha na lua que está ali em cima diante dos nossos olhos?

A reacção foi inesperada e contrária a tudo o que eu teria imaginado:
- Alfero! Não é um homem como nós, não! É o profeta Maomé que, juntamente com Alá dali nos vigia a todos, para nos proteger, nos ensinar o caminho justo e para nos castigar quando dele nos desviamos…

E prosseguiu:
- Como é possivel que homem grande e instruido como o Alfero, só hoje soubesse isso? Não entendo mesmo!...

Pensei durante uns segundos se devia argumentar, puxar dos meus galões de homem civilizado, e demonstrar-lhe a minha superioridade, provando-lhe que não era nada daquilo que ele dizia. Desisti de o fazer…

Afinal, ambos nos estávamos alimentando de sonhos… e, cada um à sua maneira, sentiamo-nos felizes pela beleza insubstituível de um luar africano em noite calma e limpída…Independentemente de quem lá estava caminhando naquele momento…

Rui Felício,
Ex-Alf Mil Inf,
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
(Dulombi, 1968/70)

P.S. - Passados dias, com a chegada de um jornal de Lisboa, mostrei-lhe as fotografias do astronauta pisando a Lua. E, então expliquei-lhe o que realmente se tinha passado naquela noite… Pelo seu ar meio trocista, ainda hoje não sei se o convenci… Mas como ele também não me convenceu que por lá andavam Alá e o Maomé, ficamos quites, cada um na sua... em paz! (****)


2. Comentário de L.G.:

Camaradas, é uma efeméride como muitas outras... Era domingo e o Rui Felício estava em Samba Cumbera, a sudoeste de Galomaro, destacado com o seu pelotão... Numa pobre tabanca, fula, em autodefesa. Escreveu este belo texto (e até agora o único, creio eu, publicado no nosso blogue,na I Série), em que se fala da nossa chegada à lua...

Eu tinha acabado de chegar a Bambadinca... Alguns dias depois, a 24, ainda em farda nº 3, a malta da CCaç 12 apanha o seu primeiro enxerto de porrada... A vida era simples, na Guiné, longe do Vietname, a menos de 400 mil km da lua...

E vocês onde estavam nesse dia, camaradas ?

Um Alfa Bravo para todos. Boas férias para quem está de partida...

Luís Graça

PS - Fiz questão de recuperar o texto do baixinho de Dulombi...

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Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)

(**) Vd. poste de 19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL [640]: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

Vd. também poste de 12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXV: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)

(***) O astronauta Neil Armstrong foi o primeiro homem a pisar a Lua... Ficou célebre a sua frase: "Este é um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade". Os outros dois tripulantes da nave Apolo 11 eram Edwin Aldrin e Michael Collins.

(****) Vd. último poste da série Efemérides 23 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3925: Efemérides (16): Portugal e o Futuro, de António Spínola, um best-seller há 35 anos