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segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27130: Notas de leitura (1830): "África Contemporânea", por Castro Carvalho, editado em S. Paulo - Brasil, 1962 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Suscitou-me a curiosidade este livro brasileiro intitulado "África Contemporânea", editado em S. Paulo em 1962, por um investigador amador, que não esconde o seu deslumbramento pelo despertar de África para a autodeterminação, resolve fazer uma obra que enumera os Estados africanos enquanto Repúblicas, Enclaves, Protetorados, Monarquias (Líbia e Etiópia), Federações, um sultanato (Zanzibar) e três províncias ultramarinas portuguesas (Guiné, Angola e Moçambique, não há qualquer referência a Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe). É uma obra puramente de divulgação, o autor terá ingenuamente tirado nalguma documentação de propaganda que se permitiu falar em mais de 3000 km de estradas que substituíam vantajosamente os caminhos de mato, numa exuberância de fauna e flora onde não faltavam chimpanzés e ruínas de Cacheu e o Forte de S. José de Bissau a atestar os tempos heróicos das Descobertas. Castro Carvalho não previra que no segundo semestre da publicação do seu livro de divulgação iria começar a sublevação do Sul da Guiné, a tal autodeterminação que tanto o entusiasmava, dava os seus primeiros passos.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa num livro brasileiro de 1962

Mário Beja Santos

Numa loja solidária, numa aldeia perto de Óbidos, encontrei uma obra em estado lastimável, mas que me acicatou a curiosidade por ter sido editada no Brasil em 1962 e falar da Guiné Portuguesa. O seu autor, Castro Carvalho, foi médico e farmacêutico, ex-deputado estadual e capitão médico do Exército Brasileiro, apresenta bibliografia como a sua tese de doutoramento sobre moléstias infeciosas, escreveu mesmo em francês um romance realista de sexologia. Explica o que o atraiu a escrever esta obra sobre uma África em que a ignorância sobre ela é quase total. “O Brasil acompanha com simpatia a evolução rápida que os países recém-criados possuem no conceito geral das nações”, lembra a independência do Gana e como em menos de dez anos 22 novas nações alcançaram a sua autodeterminação. Escreveu este livro para se avaliar o grande desenvolvimento no rumo certo da real independência socioeconómica e política destes nossos Estados. E daí esta síntese que envolve geografia, história, mosaico étnico, distinções culturais, pan-africanismo. Lembra-se ao leitor que em 1960 o Brasil despertara para uma nova realidade política. Um quase obscuro Jânio Quadros ganhara as eleições presidenciais com farta maioria e João Goulart, também com farta maioria, fora eleito vice-presidente dos Estados Unidos do Brasil.

O Brasil virara à esquerda, houvera mesmo a condecoração de Che Guevara, deu escândalo. O país recebia oposicionistas de diferentes cartilhas, por ali andou Humberto Delgado, ali vai regressar Henrique Galvão depois de sequestro do paquete Santa Maria.

O médico e farmacêutico Castro Carvalho procura dar um resumo histórico do continente, como está a organizar a nova África, não deixa de mencionar as expedições dos exploradores do século XIX e dirige-se para aquilo que ele denomina como o drama da libertação: um continente cheio de recursos, com mais de 90% da população analfabeta, uma libertação conquistada por vezes com sangue, enumera alguns dos líderes africanos com proeminência na altura, as tentativas de neocolonialismo, os esforços de alguns novos Estados para fazerem federações, tudo com maus resultados, as potencialidades turísticas, o quadro da presença islâmica no continente. Postos estes resumos, pretende dar-nos uma imagem de quem é quem em África: o Sudoeste Africano, Alto Volta, Angola, Argélia, Camarões, República Centro Africana, Chade, Congo Brazzaville, ex-Congo Belga, Costa do Marfim, Daomé, Egito, Etiópia, Enclaves Britânicos (Suazilândia e outros), Enclaves Espanhóis, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné Portuguesa, Libéria, Líbua, Republica Malgaxe, Mali, Mauritânia, Moçambique, Níger, Nigéria, Quénia, Rodésia, Rolanda, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Tanganica, Togo, Tunísia, Uganda, África do Sul (então União Sul Africana) e Zanzibar. Não há qualquer menção a Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe. Vejamos como ele nos apresenta a Guiné Portuguesa.

Menção da chegada de Nuno Tristão em 1446 à Costa da Guiné, início das expedições de penetração no interior, “A Guiné Portuguesa desempenhou desde o século XV ao século XIX um papel predominante do povoamento e na economia do Arquipélago de Cabo Verde, a que esteve estritamente ligada até 1869, data em que adquiriu autonomia administrativa. No começo do século XX, esse pequeno território português estava empobrecido, desorganizado e rebelde. Criou-se, então, um conselho em Bolama e comandos militares nas povoações de Buba, Geba, Cacheu e Bissau (não foi exatamente assim, mas adiante); a centralização dos serviços públicos principais, em Bolama, atraíra à vila o grosso da população portuguesa.”

E continua:
“A completa pacificação da Guiné foi realizada pelo Chefe do Estado-Maior, João Teixeira Pinto, sem o concurso do exército metropolitano, utilizando-se, apenas, dos recursos militares locais (também não foi assim, Abdul Indjai não era recurso local, era o chefe de mercenários, oriundo dos povos Jalofos). Foi só depois de 1886, época em que ficaram marcadas as fronteiras da Guiné Portuguesa, que esse território começou a progredir sendo isso hoje uma realidade incontestável.
Para atingir essa finalidade, muito esforço foi despendido, pois essa terra era olhada como inferno de vida e de morte. No decorrer dos anos, porém, pacificou-se o indígena, fizeram-se obras de saneamento e criou-se uma estrutura sanitária eficaz e completa
(longe de ser verdade, mas faz de conta).
Nasceram aglomerados urbanos, cimentou-se uma cultura, rasgaram-se mais de 3000 quilómetros de estradas que substituindo vantajosamente os tortuosos e inumeráveis caminhos do mato, permitiram a ocupação efetiva da Província. Em consequência, abriram-se grandes perspetivas na valorização das terras. E assim é que hoje a Guiné Portuguesa segue pela estrada reta do soalheiro.”

Castro Carvalho pontua pela localização, os limites e fronteiras, a superfície, a população, os dados religiosos, os recursos económicos, as potencialidades turísticas e os meios de comunicação. Uma palavra sobre este último tópico. É referida a TAGP (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa) que estabelecia ligações entre as principais localidades da província e entre Bissau e Varela. Um elevado número de veículos e barcos a motor faziam a ligação regular dos portos marítimos (Bissau, Bubaque, Catió e Cacheu) com o interior, através de uma vasta rede fluvial a cerca de 1800 km; como referido atrás, a rede rodoviária atingia mais de 3000 km. Com o exterior, e principalmente com a Europa, as comunicações eram feitas através de Dacar, a TAGP mantinha contacto duas vezes por semana com a capital do Senegal. A Sociedade Geral de Transportes mantinha duas carreiras marítimas por mês, entre Lisboa e Bissau. A rede rodoviária da Guiné ligava-se através de Cacine e de Pitche com a República da Guiné; de Pirada com a Gâmbia; de Colina do Norte (Cuntima) com Sedhio e Kolda, com o Senegal.

Segundo Castro Carvalho, Bissau contava então com 20 mil habitantes, era um porto de mar bastante movimentado, e os principais aglomerados eram Bafatá, Bolama, Cacheu e Farim. É o que cumpre dizer de um livrinho redigido por um investigador amador sobre o tal continente ignorado, estávamos no início da década de 1960 e o Brasil abria-se declaradamente aos ideais da autodeterminação. Tudo vai mudar com a chegada da ditadura militar, em 1964.


Uma das mais belas fotografias tiradas ao icónico monumento de Bolama. Imagem de Francisco Nogueira, com a devida vénia, este monumento é considerado o mais impressionante monumento Arte Deco da África Ocidental
Bissau, José Luís de Braun, 1780. Propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Fotografia tirada numa picada da Guiné, por Andrea Wurzenberger, com a devida vénia
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Nota do editor

Último post da série de 15 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27122: Notas de leitura (1829): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27088: Notas de leitura (1826): "África No Feminino, As Mulheres Portuguesas e a A Guerra Colonial", por Margarida Calafate Ribeiro; Edições Afrontamento, 2007 (Mário Beja Santos)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Trata-se de uma investigação relevante e vincadamente singular. Como observa a autora, Margarida Calafate Ribeiro, é uma recolha de vivências da memória da guerra colonial a partir das perspetiva de mulheres portuguesas que acompanharam os maridos numa retaguarda ou num destacamento atreito à guerra. "Nasceu do meu espanto sobre o registo apenas ficcional do rosto destas mulheres, e da generosidade das mulheres que entrevistei quando um dia lhes bati à porta e lhes disse: 'Sei que esteve em África. Quer contar?'.

 Uma coletânea de testemunhos onde se exprimem as diversidades na formação destas mulheres nossas contemporâneas, o quadro ideológico envolvente de todas elas, há uma imensa saudade por aqueles amplos espaços, pelas rasgadas solidariedades, quem ali deu à luz ou levou crianças pequenas guarda recordações ao milímetro, há quem não queira voltar, sobretudo as mulheres que ali estiveram presentes nos últimos anos, com realce para a Guiné e Moçambique, houve a clara perceção que o mundo desabava e em muitos dos depoimentos há o claro desconforto em dizer que nem tudo correu bem na descolonização, mas que foi o resultado inevitável de uma teimosia sem limites que levou muita gente a ter que fugir e ao sofrimento de guerras civis. Oxalá que esta obra tenha continuação.

Um abraço do
Mário



Mulheres que foram à guerra ou que andaram ali bem perto

Mário Beja Santos

O essencial dos testemunhos de quem participou ou viveu o teatro de guerra é dado pelos militares, como comprova a literatura produzida de 1961 até hoje. Há, evidentemente, testemunhos de mulheres, referem sempre nomes como os de Lídia Jorge ou Wanda Ramos que ousaram, pela via da ficção, pôr na escrita a experiência do que viram em África. Daí o conjunto de iniciativas de dar voz a quem esteve na Ribalta, logo as enfermeiras paraquedistas, depois as mulheres dos militares.

E é neste nicho da memória do feminino que Margarida Calafate Ribeiro [na foto à direita], investigadora do Centro Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, desenvolveu um projeto de auscultação de mulheres que acompanharam os maridos em Angola, Guiné e Moçambique; não foram poucas as que viveram em aquartelamentos sujeitos a flagelações ou transitaram por estradas onde podiam ocorrer emboscadas ou deflagrar minas.

E o todo desta obra é de uma impressionante qualidade, são depoimentos enriquecedores, iremos ser confrontados com memórias onde é difícil não acreditar na sua total sinceridade; um todo que clarifica (ou comprova) que o estudo da guerra colonial não pode deixar de dar visibilidade às mulheres destes militares, muitas delas guardam recordações felizes, outras não tanto, lendo "África no Feminino, As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial", Edições Afrontamento, 2007, ganha-se consciência de que se queremos interpretar a guerra colonial num sentido individual e coletivo, é indispensável ouvir os diferentes testemunhos e não tratar a presença das mulheres na guerra como um mero acidente histórico.

Sendo completamente inviável ir pontuando e distinguindo esta vasta galeria de testemunhos recolhidos pela investigadora, há que procurar classificar em termos amplos quem testemunha e a matéria desse testemunho. Um número elevado delas tem formação académica ou cursou os liceus e pôde ministrar no ensino enquanto o marido cumpria a sua comissão. São, por conseguinte, referências de mulheres de oficiais e alguns sargentos. Pesam os testemunhos de mulheres que alegam não ter então qualquer formação política, viver em ambiente conservador e religioso; há uma lembrança comum a todas, o horror das partidas no cais, ninguém esqueceu aqueles lenços a acenar e os gritos das despedida; há depoimentos bem vincados de mulheres de médicos, a partilha daquele sofrimento por verem vidas a apagar-se; elas nunca esquecem a procura de normalidade na vida, o vínculo estabelecido entre mulheres, mas há quem guarde más memórias da leviandade de outras mulheres de militares, e como recusaram o convívio; não são poucas as referências à formação católica e depois como, também graças à universidade, entraram nas suas vidas Graham Greene, Kafka, Saint-Exupéry, Malraux, Camus, Garcia Lorca, o novo cinema; os testemunhos dividem-se, compreensivamente, quando se fala em viver em cidades em que se sentia ou não a guerra.

Alguém testemunhará assim:

“Em Bissau, não tínhamos bem consciência da guerra, embora ouvíssemos os bombardeamentos, víssemos os helicópteros e muita tropa. Mas as desgraças que eu vi no hospital militar de Bissau não aconteciam em Bissau. Havia duas coisas que me davam a consciência da presença da guerra: primeiro, o regresso do meu marido das operações, vinha cheio de febre, com o corpo todo cheio de picos, que eu com uma pinça ia tirando devagarinho, vinha completamente esgotado física e psicologicamente. Íamos à missa na capela da Marinha, pelos que tinham morrido, que podiam ser do destacamento do meu marido ou de outro qualquer, mas havia sempre missas na capela e foi aí que comecei a aperceber-me de que estávamos realmente em guerra, morriam pessoas. Os helicópteros eram outro sinal da guerra. Transportavam sempre mortos ou feridos graves. Lembro-me como esperava por eles, quando o meu marido saía em missão. Os helicópteros só chegavam quando amanhecia e a minha primeira aula da manhã começava pelas 7h00. Entre as 7h05 e as 7h10 começavam a chegar os helicópteros. Ainda hoje tenho, muito dentro de mim, aquela angústia.”

E, mais adiante:

“Em Bissau havia casas, eletricidade, frigorífico, comida, bem-estar, lojas, vida. Estávamos bem, embora vivêssemos alienados da realidade. Quando hoje penso nisso, nós não estávamos na vida real, o que era aquilo? Vivíamos numa euforia falsa, entre ataques e regressos no mato e muitas festas.”

A eficácia deste levantamento de testemunhos é podermos sentir a multiplicidade dos olhares, a mulher como sujeito histórico da guerra e veiculadora de uma ética de reconhecimento, olhares sobre o ensino, sobre o racismo, a generosidade; e há o fator temporal a pesar na narrativa, sobretudo na Guiné e em Moçambique, quem ali viveu entre 1973 e 1974 observou se tinham entrado na diluição; é nesta diversidade de depoimentos que se pode entender como as produções literárias se demarcam perfeitamente nos três teatros de guerra. O depoimento de uma mulher em Angola ajuda a iluminar a complexidade de todos estes olhares:

“Em Angola os costumes eram muito mais brandos, a vida social muito mais descontraída e isso tornava as pessoas mais livres. O adultério era uma prática corrente precisamente porque havia muitas mulheres em Luana cujos maridos estavam no mato. Viajava-se muito, havia muitas pessoas que trabalhavam com empresas sul-africanas ou da Rodésia ou de Moçambique e havia muita gente que ficava sozinha. As mulheres dos militares que estavam no mato eram muito observadas. Estávamos permanentemente sobre a mira das pessoas. As mulheres dos militares eram consideradas presas fáceis, o que, por vezes, tornava a vida um bocado complicada. Estar com alguém fora do habitual ou com alguém do sexo oposto era muitas vezes objeto de mexericos e más-línguas.”

Há um extremo cuidado na composição do relato, a investigadora pede a quem inquire que fale das suas origens, da mentalidade doméstica, onde e como estudou, depois a narrativa encaminha-se para o modo como o casal se acompanhou e se acarinhou, e qual a importância da experiência na vida depois do regresso, muitos destes casamentos acabaram em ruturas, inevitavelmente fala-se do stress pós-traumático da guerra. Há depoimentos a que as mulheres não se furtam a refletir sobre o significado da guerra, como dela falam aos filhos, alguém depõe assim:

“Porque fui eu? Não sei bem, na altura fui o que desejei fazer, sem pensar numa realidade mais remota que não a simples companhia a alguém de quem gostava, uma coisa que me pareceu ser a atitude mais natural. Acho que, para a maioria dos milicianos, o fator mais importante foi exatamente a falta de empenhamento naquela guerra, não era uma guerra para a qual corrêssemos cheios de entusiasmo, como para as Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola. Não foi uma guerra de ideologia, foi uma obrigação que nos surgiu no caminho. Ficou a experiência da solidariedade que vivia no mato e os espaços sem limites que desconhecíamos.”

Sem margem para dúvida, um indispensável alinhamento de apontamentos que contribuem para se conhecer melhor o que estas mulheres com formação académica ou escolar guardaram na memória do tempo em que acompanharam os seus maridos nas três frentes de guerra.

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Nota do editor

Último post da série de 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1825): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26806: Notas de leitura (1797): "As Raças Humanas", de Louis Figuier, editado em Lisboa em 1881, no tempo em que se acreditava nas raças superiores e inferiores… (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Temos versado a questão colonial em diferentes dimensões, aqui no blogue, a dimensão racial tem sido a menos analisada. Em plena ascensão do colonialismo africano, os antropólogos deram uma mãozinha e puseram banho lustral nos ideais civilizadores do branco, o negro era infantil, menos inteligente que o branco, um quase inapto para as artes plásticas, tribal e sorna, precisava de monitores brancos. É dentro desse contexto e recorrendo ao livro "As Raças Humanas", de Louis Figuier, editado entre nós em 1881, que se pode dar entendimento ao nosso olhar sobre África e o africano, quando avançamos, depois da perda do Brasil, para os sonhos do Terceiro Império, a nossa missão civilizadora associar-se-ia à exploração de riquezas, face às quais o negro era totalmente inapto, não passava de uma criança mandriona.

Um abraço do
Mário



No tempo em que se acreditava nas raças superiores e inferiores…

Mário Beja Santos

Quando o livro "As Raças Humanas", de Louis Figuier, foi editado em Lisboa, em 1881, já tinha conhecido quatro edições em França. É obra profusamente ilustrada, com elevada qualidade gráfica, o tema das raças estava no auge, as doutrinas evolucionistas, o pensamento filosófico positivista, os ideais republicanos laicos tinham entrado em colisão, daí a pergunta o que é o homem, de onde vem, se tinha ou não o papel de centro único da criação, como se tinham processado ao longo da História as migrações dos povos, etc. Figuier concluirá que a ciência não pode explicar a diferença existente entre os principais tipos da espécie humana, dirá mesmo que os homens são todos irmãos pelo sangue, que as diferentes raças eram derivadas de uma espécie única pelas modificações que o clima imprimiu no tipo positivo, competia à antropologia classificar as raças e Figuier acha que tal classificação se baseia na cor da pele, é uma apreciação de um valor secundário mas com ele pode formar-se um quadro exato e metódico dos povos habitantes da Terra. E dá um sentido à sua análise com apreciações que são hoje completamente dadas como erróneas: as medidas antropométricas constituíam a chave esclarecedora para distinguir o que essencialmente diferencia a raça branca da raça amarela, a raça amarela da raça parda, a raça parda da raça vermelha e a raça vermelha da raça negra.

E vamos viajar a partir da raça branca, um tal ramo europeu onde destacam as famílias teutónica, latina, eslava (do Norte do Sul), fino-húngara, grega; passa-se para o ramo aramaico e o leitor permitir-me-á que avance para a raça negra. Escreve Figuier:
“A raça negra distingue-se pelos seus cabelos pouco compridos e lanosos, pelo nariz achatado, pela maxila saliente, pelos lábios grossos, pelas pernas arqueadas, pela cor preta ou cinzenta carregada. Estes povos vivem nas regiões centrais e meridionais da África, nas partes meridionais da Ásia e da Oceânia.
Os habitantes da Guiné e do Congo são muito pretos, mas os Cafres são apenas cinzentos-escuros e parecem-se com os Abissínios. Os Hotentotes e os Bosquímanos são amarelados comos os chineses, posto que tenham as feições e a fisionomia dos negros.”


Figuier enuncia os Cafres e os Hotentotes e assim chegamos aos negros:
“Os negros ocupam uma grande parte da África Central e Meridional, a Senegâmbia, a Guiné, uma parte do Sudão Ocidental, a Costa do Congo, assim como a extensa região que ainda há pouco quase completamente desconhecida entre a Costa do Congo a Oeste e a Este da Costa de Moçambique e do Zanzibar, são os lugares habitados pelos negros propriamente ditos. A Guiné e o Congo são as terras clássicas dos negros. É ali que vivem os representantes desta raça com as feições mais características e repelentes. Julga-se que a invasão na África dos povos asiáticos e europeus, tendo-se sempre feitos pelo istmo do Suez e pelo Mar Vermelho, os negros foram empurrados para o Oeste do continente africano. Os habitantes da Guiné e do Congo serão, pois, os descendentes e os representantes contemporâneos dos negros primitivos.

(…) A fisionomia do negro é de tal modo característica que é impossível o não reconhecer à primeira vista, mesmo quando o indivíduo tivesse a pele branca. Os seus lábios proeminentes, a fronte curta, os dedos salientes, os cabelos lanosos, a pouca barba, o nariz largo e achatado, o queixo retraído, os olhos redondos dão-lhe um aspeto particular entre todas as demais raças humanas. Muitos têm as pernas arqueadas, quase todos pouca barriga de perna, os joelhos flexionados, o corpo inclinado e o andar preguiçoso. Podemos acrescentar que nesta raça o tronco tem menos largura que nas outras raças, que os braços são proporcionalmente um pouco mais compridos, que as pernas têm uma curvatura assaz sensível e que a barriga das pernas é um pouco achatada. A cavidade óssea da bacia é muito mais estreita no negro do que no europeu, mas é mais larga no sentido do osso sacro, o que torna para as negras fáceis os partos. Segundo medidas exatas, a bacia superior é 1/4 mais larga no europeu do que no negro. Também as coxas dos negros diferem das dos brancos: no primeiro são sensivelmente achatadas. O pé participa desta fieldade das formas. O vício de conformação que entre nós isenta do serviço militar, o pé chato, não só para o negro não é uma deformação, mas é também um caráter constante.

(…) A cor da pele tira à fisionomia do negro toda a beleza. O que dá graça à cara do europeu é cada parte do rosto ter o seu colorido próprio. As maçãs do rosto, o nariz, a fronte, o queixo, têm, no branco, tons particulares. Na fisionomia do negro tudo é negro. As sobrancelhas, negras como o rosto, perdem-se na cor geral. Apenas há um tom diferente na linha de contacto dos lábios. A pele dos negros é muito porosa e tanto que os poros se apresentam de modo visível. Nem todos os negros têm a pele dura, pelo contrário, pelo contrário, alguns têm-na macia e acetinada. O que há de desagradável na pele do negro é o cheiro nauseabundo que exala suando. Estas emanações são tão difíceis de suportar como as que são exaladas de certos animais. A natureza apropria o negro às regiões em que vive. Em geral, o seu temperamento é linfático. O seu andar vagaroso, a sua preguiça invencível, impacientam o europeu, que não pode compreender tanta indolência. Os negros são menos sensíveis que os europeus à influência de excitantes. A aguardente, a mais forte, o rum, a pimenta, os mais irritantes condimentos francamente excitam a inércia do seu palato.”


Chegámos agora à contundente questão da inteligência e da inferioridade racial. Socorrendo-se de argumentos antropomórficos hoje dados como anacrónicos, Figuier refere o ângulo facial, a fronte muito inclinada para trás, as maxilas muito proeminentes e classifica:
“Aproximava-se do macaco, cujo ângulo facial, nos macacos antropomorfos, tais como o orangotango e o gorila, é de 50º. Esta fraqueza relativa de inteligência que nos é revelada pela pequenez do ângulo facial dos negros vai ser confirmada por nós, examinando-lhe o cérebro. (…) A inferioridade intelectual do negro é evidente na sua fisionomia sem expressão nem mobilidade. O negro é uma criança e como uma criança é impressionável, inquieto, sensível ao bom tratamento suscetível de dedicações, mas, em certos casos, sabendo também odiar e vingar-se. Os povos da raça negra que existem no interior de África, os estados de liberdade mostram-nos pelos seus hábitos e pelo estado do seu espírito que não podem passar de além da vida de tribo. Além disso, em muitas colónias custa tanto tirar bom resultado da educação dos negros, a tutela dos europeus é-lhe de tal modo indispensável para lhe manter os benefícios da civilização, que a inferioridade da sua inteligência, comparada com a do resto da humanidade, é um facto incontestável.”

Instituiu-se assim a inferioridade do negro, a plena dependência do civilizado, a fatalidade da sua anatomia, a sua indolência masculina pondo a mulher a trabalhar como escrava, as suas crendices em divindade secundárias, a crença no poder do acaso. E, de repente, Figuier descobre que os negros possuem muitas vezes uma extraordinária memória, uma extrema facilidade para aprender as línguas, o seu enorme talento nas imitações. Os negros, enfatiza Figuier, são rebeldes às artes plásticas, mas são muito sensíveis à música e à poesia. E conclui dizendo que a família negra tem menos inteligência que qualquer outra família humana e que é preciso dar muito tempo aos negros libertos para viverem numa igualdade com outras raças.

Era esta a doutrina que alimentava o pensamento colonialista e que efetivamente só se começou a desmoronar no fim da Segunda Guerra Mundial. O racismo mudou de figura, está associado a uma religião eleita, a certos fundamentalismos monoteístas, à emergência do nacionalismo de base racial e ao terror das migrações que assolam a Europa e a América do Norte; mas não sejamos ingénuos, os chineses não querem contaminações com outros grupos populacionais… O racismo diminuiu, tem uma face muito obscura, mas está muito longe de se ter extinguido.

Três imagens retiradas do livro de Louis Figuier
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Nota do editor

Último post da série de 12 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26793: Notas de leitura (1796): "Pára-quedistas em Combate 1961-1975", por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26661: Notas de leitura (1787): Libelo acusatório sobre o colonialismo, como não se escreveu outro, no livro "Discurso Sobre o Colonialismo", por Aimé Césaire, editado em 1955 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,

Passando em revista os nomes sonantes do pensamento anticolonial, verifiquei que faltava nesta listagem uma referência a uma figura de primeiro plano, Aimé Césaire, hoje e ainda figura de proa surrealista, dos anos 1950 e 1960, alguém que, no primeiro Congresso dos Escritores Artistas Negros, em 1956, aludiu entusiasticamente às relações entre a situação colonial e a cultura, defendendo a necessidade militante de os intelectuais se comprometerem na luta popular de libertação nacional, a fórmula iria ser tomada à letra por líderes anticoloniais, como Amílcar Cabral, que reclamaram o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história. 

Este discurso sobre o colonialismo tem a datação daqueles meados dos anos 1950, Césaire dirige um libelo acusatório à intelectualidade francesa e não subsistem dúvidas de que o seu documento faz parte da documentação fundamental do impulso anticolonial, um chamamento à ação dos intelectuais negros para as lutas de libertação.

Um abraço do
Mário



Libelo acusatório sobre o colonialismo como não se escreveu outro

Mário Beja Santos

A Martinica forneceu ao pensamento anticolonial duas figuras de referência: Aimé Césaire [foto à direita] e Franz Fanon, obviamente com características diferentes.

 Aqui se têm referenciado algumas obras indispensáveis para entender como se foi alicerçando o pensamento anticolonial, no continente americano, na própria atmosfera europeia onde ideólogos do antigo colonialismo foram bastante ativos, em África e na Ásia. De todos os nomes destes intelectuais que vão emergindo no Pós-Guerra ganhou preponderância o testemunho de alguém que ao tempo era dado como um poeta consagrado, um surrealista de peso, alguém que vinha da Martinica e que se formara em Paris, com altíssima classificação.

A obra que sujeitamos a análise, Discurso Sobre o Colonialismo, foi editada em 1955, (por coincidência, o ano da Conferência de Bandung, ponto de viragem para as lutas anticoloniais) o poeta lança-se num requisitório, como escreve Mário de Andrade, jamais um outro escritor negro proferiu, com tamanho talento, ao rosto dos opressores.

 Césaire escolheu claramente a quem se dirigia: aos intelectuais burgueses do seu país, a França, que ostentavam representar a consciência liberal, e ao fazê-lo alimentou a revolta nacionalista, como um seu colega de estudo, Leopold Senghor, mais tarde relembrou. O poeta começou por coligir testemunhos de colonialistas assumidos, irá fazer desfilar os horrores da dominação francesa em África, dará ênfase em Madagáscar, na Indochina e nas Antilhas.

Procurou reverter toda aquela argumentação da civilização dita cristã e ocidental. Começa por observar o que não é colonização: nem evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras da ignorância, da doença, da tirania, nem propagação de Deus, nem extensão do Direito. Colonizar é assunto de aventureiros e piratas, de comerciantes e de armadores, de pesquisadores de ouro e de mercadores. Tudo isto é uma hipocrisia recente.

 Nem Cortez, ao descobrir o México, nem Pizarro, diante de Cuzco, se proclamaram os mandatários de uma ordem superior, mataram, saquearam, enriqueceram a Espanha. A responsabilidade recai sobre o pedantismo cristão, ao considerar que o cristianismo é civilização e o paganismo selvajaria. Esta colonização esmerou-se em descivilizar o colonizador, embruteceu-o na verdadeira aceção da palavra, despertou-lhe os instintos para a cobiça, para a violência, para o ódio racial.

O colonialismo não aspira à igualdade, mas sim à dominação. E Césaire lança a questão das raças ditas superiores e das inferiores. Civilizar, para certos apologistas do colonialismo,  é não tolerar a “preguiça” dos povos selvagens. E o seu libelo acusatório sobe de tom:

“Onde quero eu chegar? A esta ideia: que ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente; que uma nação que coloniza, que uma civilização que justifica a colonização é uma civilização doente e a colonização é testa de ponte numa civilização de barbárie.”

Daí, ele enuncia as expedições coloniais e os seus cadáveres: o coronel de Montagnac, um dos conquistadores da Argélia, o conde d’Hérrisson, que veio com um barril cheio de orelhas, o marechal Bugeaud que dizia que se devia fazer uma grande invasão em África que se assemelhasse ao que faziam os Francos, ao que faziam os Godos.

Importa não esquecer os massacres e as execuções, as conquistas coloniais fundadas sobre o desprezo pelo homem indígena, e assevera:

“Bem vejo as civilizações em que a colonização introduziu um princípio de ruína: Oceânia, Nigéria, Niassalândia. Vejo menos bem o que ela lhes trouxe. Segurança? Cultura? Juridismo? Entretanto, olho e vejo por toda a parte por onde existem, frente a frente, colonizadores e colonizados, a força, a brutalidade, a crueldade, o sadismo, o choque, e, parodiando a formação cultura, a fabricação apressada nuns tantos milhares de funcionários subalternos, ‘boys’, artesãos, empregados de comércio e intérpretes necessários à boa marcha dos negócios.”

Dirige-se em réplica de contraponto:

“Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de canais, de caminhos de ferro. Mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano. Falo dos que, no momento em que escrevo, cavam à mão o porto de Abidjan. Falo de milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à dança, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem colocaram sabiamente medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo.”

Dentro do seu libelo acusatório, vai desmascarando posições racistas, posturas de superioridade cultural e questiona os tais intelectuais burgueses franceses: 

“Os vietnamitas, antes da chegada dos franceses ao seu país, eram gente de cultura antiga, delicada e requintada. Estes malgaxes, que hoje são torturados, eram, há menos de um século, poetas, artistas, administradores. Impérios sudaneses? Bronzes de Benim? Escultura Songho? Livrar-nos-ia de tantos mamarrachos sensacionais que adornam tantas capitais europeias. O pequeno burguês não quer ouvir mais nada.”

Césaire também vai zurzir em missionários, etnólogos, amadores do exotismo, sociólogos agrários, a todos aqueles que, diz ele, desempenham o seu papel na sórdida divisão do trabalho, escarnece dos estudos sobre o primitivismo, os romancistas da civilização que negam os méritos às raças não-brancas, sempre para chegar à conclusão que todos os progressos da Humanidade acabaram por ser desencadeados pela raça branca, dirige-se mesmo a uma figura de proa do tempo, Roger Caillois:

“A inaudita traição da etnografia ocidental que, há algum tempo, com uma deterioração deplorável do sentido das suas responsabilidades, se engenha a pôr em dúvida a superioridade omnilateral da civilização ocidental sobre as civilizações exóticas”.

Acusa-o por favor parte do lote dos intelectuais europeus que se encarniçam a renegar os diversos ideais da sua cultura, isto quando no fundo, todos pensam pela mesma cartilha: o Ocidente inventou a ciência, só o Ocidente sabe pensar, no entanto, esses mesmos ocidentais esquecem certas verdades: a invenção da aritmética e da geometria pelos egípcios; a descoberta da astronomia pelos assírios; o nascimento da química pelos árabes; o aparecimento do racionalismo no Islão numa época que o pensamento ocidental tinha uma feição pré-lógica. 

“Nunca o Ocidente, no próprio momento em que mais se deleita com esta palavra, esteve tão longe de poder assumir as exigências do humanismo verdadeiro, de poder viver o humanismo verdadeiro – o humanismo à medida do Mundo.”

E despede-se na sua catilinária prevendo o que na prática veio a acontecer:

“Se a Europa Ocidental não toma de modo próprio em África, na Oceânia, em Madagáscar, isto é, às portas de África do Sul, nas Antilhas, isto é, às portas da América, a iniciativa de uma política das nacionalidades, a iniciativa de uma política nova fundada no respeito dos povos e das culturas, se a Europa não galvaniza as culturas moribundas ou não suscita as culturas novas, se não se torna despertadora de pátrias e civilizações, a Europa terá perdido a sua derradeira oportunidade.”

Eis, em síntese, um dos documentos de referência que levou ao conclave da liberdade dos povos colonizados, um conteúdo que chamou à atenção de futuros líderes anticoloniais, Amílcar Cabral seguramente que tomou em conta o princípio que Césaire enuncia, o direito dos povos, em situação colonial, a terem a sua própria história, como Cabral escreveu:

“(…) a libertação nacional de um povo é a reconquista da personalidade histórica desse povo, é o seu regresso à História, pela destruição do domínio imperialista a que esteve sujeito.”

Césaire foi um notável poeta que nos deixou um poderoso lirismo de combate, como se exemplifica: “Vejo a África múltipla e una/vertical na sua tumultuosa peripécia/com os seus refegos, os seus nódulos/um pouco à parte, mas ao alcance/do século, como um coração de reserva.”
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Nota do editor

Último post da série de 4 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26651: Notas de leitura (1786): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Na Terra do Novo Deus: O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 2 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26165: Notas de leitura (1745): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Aqui se versa a história do comércio de escravos, a era colonial e o quadro das independências no continente africano. A par de dados inequivocamente rigorosos, é nítido o desconforto de Basil Davidson a analisar o pacto estabelecido ao longo de séculos pelas chefaturas africanas e os comerciantes de escravos. É fidedigno o relato deste crescendo comercial polarizado para as Américas, tocou o Brasil, o Caríbe e a América Central e uma boa parte do que é hoje os Estados Unidos da América, prende-se com o açúcar, o tabaco, o algodão, a prata e o ouro e os diamantes, o trabalho do engenho, das plantações, das minas, até mesmo como na África do Sul o negro era escravizado ou induzido ao trabalho forçado. Houve escravos que resistiram, foi o caso do Haiti, revoltaram-se e foram massacrados pelos exércitos franceses.. Estes escravos africanos foram pioneiros do Novo Mundo,na Virgínia, Carolinas, na Geórgia, reformularam a estrutura do Brasil. A era colonial que despontou no século XIX entrará no ocaso no fim da Segunda Guerra, dos anos 1960 em diante o quadro político irá transfigurar-se. Desgraçadamente, ainda se pode utilizar o título de uma obra de René Dumont, "A África negra começou mal", este mesmo agrónomo escreverá mais tarde sobre a África estrangulada e o drama dos africanos nordestinos, em particular na região do Sahel.

Um abraço do
Mário



À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Chegou o momento de nos centramos no comércio de escravos, em devido tempo já se observou que Davidson é francamente omisso quanto à natureza do comércio de escravos que se fazia dentro do continente, do Norte de África na bacia do Mediterrâneo e através do Norte de África para a Península Arábica e arredores. Dirá, de raspão, que o comércio de escravos remontava à época romana e que fazia parte importante da vida quotidiana da Europa, fala em escravos europeus, e dirá em dado passo:
“Estados cristãos, especialmente as cidades-Estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e Ásia Ocidental. E quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também.”
Suaviza a vida destes escravos, dizendo que eram muito bem tratados porque eram caros e acrescenta:
“Enquanto o comércio de escravos se confinou à Europa e África pouco mais foi do que um comércio de cervos domésticos e artífices, dado que as condições de vida dos escravos eram muito semelhantes às da maioria da gente pobre desses tempos.”

Há algo de muito cor-de-rosa nesta narrativa, para contrastar com a brutalidade do tráfico negreiro que se processará por europeus de África para as Américas, tráfico que envolveu portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses e dinamarqueses, sobretudo. Tornara-se vital encontra mão de obra para a indústria açucareira, seguir-se-á o cultivo de algodão e a pesquisa de ouro e pedras preciosas. Os chefes africanos entraram no comércio de escravos, fizeram acordos amigáveis, aceitaram auxílio militar ocasional de piratas, ficaram satisfeitos por comprar produtos europeus, venderam ouro, marfim, pimenta e as provisões alimentares às tripulações dos navios europeus. Estes reis, ávidos de riquezas, lançaram-se em guerras para ter mais prisioneiros que seriam feitos escravos. Davidson encontra uma explicação para este comportamento dos chefes africanos: sentiam a atração por possuir esses produtos longínquos e queriam comprar armas, medida que irá merecer a reprovação de muitos, há mesmo testemunhos de quem protestava dizendo que aquela venda de armas era como entregar aos africanos uma faca para cortar os nossos próprios pescoços. Davidson elenca o funcionamento do comércio e depois o seu termo, e as consequências futuras destes africanos que passaram a integrar o destino dos povos americanos. Releva igualmente a importância dos escravos na fase pioneira do Novo Mundo trabalhando como mineiros, agricultores e criadores de gado.

E assim chegámos ao último capítulo da obra, caminha-se para a África moderna, entre a era colonial e a África de Estados independentes. Enumeram-se as razões que conduziram povos europeus ao colonialismo africano e não se esconde que os africanos pagaram um preço extra pelo envolvimento dos seus reis e mercadores no comércio de escravos. Este processo colonialista fez-se acompanhar, obviamente, de uma lógica de extração de riqueza, depois da Conferência de Berlim as potências coloniais foram implicadas na ocupação efetiva do território e Davidson faz uma súmula de quatro períodos principais:
“Como funcionou o sistema colonial? Qual o seu significado para a África? As respostas a estas perguntam podem achar-se se observarmos o que aconteceu entre cerca de 1880 e 1960. Podemos distinguir quatro períodos principais.
Primeiro, o período de invasão e conquista anterior e posterior à Conferência de Berlim de 1884-1885. Durou até cerca de 1900
Segundo, o período de montagem do sistema colonial e de destruição dos últimos remanescentes da resistência armada africana. Este prolongou-se até 1920, ou mais tarde em algumas colónias.
Terceiro, o período central do domínio colonial. Na maioria dos casos, este estendeu-se de cerca de 1920 até cerca de 1950, embora também com exceções.
Quarto, o período em que uma nova e sempre bem-sucedida forma de resistência política africana contra o domínio estrangeiro ocupou o centro do palco. Isto começou a acontecer cerca de 1950. A nova forma de resistência política chamou-se nacionalismo. Era um nacionalismo orientado, não para a conquista de outros, mas para a recuperação da independência africana adentro das fronteiras coloniais, que os africanos agora aceitavam como sendo as fronteiras das novas nações independentes que queriam construir.”

Conhecemos bem as guerras que ocorreram dentro deste quarto de período. O autor procura fazer uma reflexão sobre os insucessos africanos, é o caso do baixo nível tecnológico, a desunião no interior dos Estados africanos, a propagação de tribalismo, as debilidades da educação colonial (que refletiam atitudes das classes dominantes da Europa). Conta-se sumariamente a história das vias de resistência africana, a importância que teve a Segunda Guerra Mundial na desarticulação dos ideais imperiais, a alvorada da liberdade política e os casos de luta armada.

Os graves problemas não desapareceram com as independências, é o caso das fronteiras. “A ideia europeia de Estado, legado aos africanos, é que ele deve consistir numa única nação, com uma fronteira a limitá-lo. Para além da fronteira ficam outras nações diferentes. Contudo, esta asseada ideia de que devia ser um Estado não foi a ideia que os europeus efetivamente aplicaram em África. Eles retalharam a África em cinquenta colónias, ao sabor dos puxões e empurrões dos interesses e rivalidades europeus, e de maneira nenhuma de acordo com os interesses dos povos cujos países invadiram.
Muitas vezes os europeus limitaram-se a traçar linhas em mapas, mesmo quando tinham apenas uma vaga noção acerca dos povos e dos países através dos quais as linhas passavam. O resultado foi que poucas das fronteiras coloniais faziam qualquer sentido para a gente que vivia lá dentro.”

O Congo é um exemplo flagrante.

Subsistem os perigos da herança colonial e de um nacionalismo estreito. O fim da Guerra Fria parecia anunciar a retoma da via democrática, em muitos casos estes países imobilizaram-se e aguardam vias para o desenvolvimento, isto a despeito da ajuda da cooperação internacional se fazer com inegáveis benefícios, como é flagrante a gradual descida da mortalidade infantil e de doenças devastadoras.

Basil Davidson (1914-2010)
Mercado de escravos na região do atual Senegal
Aguarela sobre papel "Engenho manual que faz caldo de cana", Jean-Baptiste Debret, 1822
Divisão de África, finais do século XIX
Grupo ligado à Casa de Estudantes do Império, Amílcar Cabral é o segundo de pé à direita
Nelson Mandela
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Notas do editor

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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Desta edição em português se fez outra destinada ao Ministério da Educação da República Popular de Angola, em 1981. A este país recentemente independente interessava um relato que não se cingisse à visão colonial ou mesmo à história monumental da UNESCO. Confiou-se no poder divulgador de Davidson que pesquisou em diferentes livros o passado africano, e há que reconhecer que fez um levantamento corretamente cingido a investigações de referência. Mas ao abordar a questão ainda hoje muito tensa do comércio de escravos tudo se irá polarizar no negócio europeu, passa-se uma esponja sobre o tráfego praticado entre a Arábia e o Norte de África, a vida destes impérios do norte, centro e sul do continente onde se praticava o comércio negreiro e onde ninguém possuía direitos. Ora o que ele vai enfatizar é o comércio negreiro praticado pelos europeus, o outro, praticado durante séculos entre gente da mesma cor, não conta. Assim se pretendia fazer lavrar o mito de que tinham sido os colonialistas europeus a definhar África através do comércio mais ignóbil do mundo. Mas Davidson era um homem comprometido com estes movimentos de libertação e fez parte fraca. O passado de África teve os seus momentos de glória e as múltiplas fraquezas e ações ignóbeis que encontramos nos outros impérios.

Um abraço do
Mário


À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Já viajámos por impérios do passado, Gana, Mali e Songai, seguidamente o autor transporta-nos para a África Oriental e Central, dá-nos uma descrição da cultura Suaíli, o viajante árabe Ibn Battuta, que referenciou Tombuctu e as cidades do Mali e Songai, rumou para o sul, esteve onde é hoje a capital a Somália, Mogadíscio, e depois Quíloa, o principal centro do comércio do ouro e do marfim da África Oriental, situada numa pequena ilha junto da costa da parte sul da Tanzânia. Tudo vai mudar em 1498, com a viagem de Vasco da Gama, ele não encontrou Quíloa na sua primeira viagem, esteve em Mombaça e depois Melinde. Davidson refere os reinos Xonas, foram visitados por portugueses que partiam de Sofala e que avançaram para esta região entre os rios Zambeze e Limpopo. No século XV, quando os Xonas se lançaram num importante período de expansão política, eles já tinham criado importantes Estados e haviam completado as altas muralhas do Grande Zimbabué, residência dos seus governantes mais poderosos, cerca de 1400.

Impõe-se uma referência ao reino de Angola, há a considerar o reino do Congo e o dos Quimbundos, a sul, na atual parte ocidental e central de Angola, chamava-se Ndongo e o rei tinha o título de Ngola. Em 1500, os portugueses do Congo confundiram o título do rei com o nome do país, entrou em uso o nome de Angola. O autor recorda a correspondência entre os reis de Portugal e os do Congo. E voltamos à África Ocidental, fora a região mais densamente povoada do continente, sabe-se que tudo mudara com a avassaladora extensão do deserto, foi aqui que se deu o impacto do comércio de escravos do Atlântico, levaram para a América as artes, as técnicas e o trabalho da gente negra. O autor dá-nos o quadro do passado recente antes da vinda dos europeus:
“Os africanos ocidentais comerciavam com o Norte e o Leste. Vendiam os produtos das suas florestas, o ouro e a noz de mascar aos mercadores viajantes do Sudão, do Mali e a gente do território dos Haússas. Toda a África Ocidental era atravessada por uma rede de rotas comerciais ligadas às cidades mercantis, tais como Djenne, Tombuctu e Kano. Os africanos ocidentais ao sul do Sudão também comerciavam muito entre eles próprios.” O autor fará referência aos reinos Iorubas, ao império do Oyo, ao império do Benim, que manteve boas relações com os portugueses. “O povo de Benim viu que os europeus estavam desejosos de comprar a pimenta que eles cultivavam em quantidade, pois a pimenta era então um produto valioso na Europa. Descobriram também que os europeus tinham grande admiração pelos excelentes algodões tingidos e queriam comprá-los. Em contrapartida, o povo do Benim achou que os europeus possuíam coisas úteis para lhes vender, nomeadamente artigos de linho e de metal.” As obras de arte produzidas deste intercâmbio são hoje altamente disputadas pelos museus e grandes colecionadores.

Uma palavra agora para o reino do Achanti, que englobava a maior parte do que é agora a República do Gana. Depois de 1700, os Achantis dominaram um vasto território durante quase 200 anos. E depois de uma descrição feita deste reino de Achanti, Davidson descreve o sistema político africano, a governação, as linhagens, as sociedades secretas, mas também a religião, o encontro entre o cristianismo e o Islão, a feitiçaria, a tecnologia prática, o tratamento dos metais, a fiação, tintura e tecelagem; e igualmente pormenoriza a arte de viver, a literatura, a música, o teatro. E assim chegamos à história do comércio de escravos entre África e o Mundo Ocidental.

Chama-se a atenção do leitor que Davidson, não se sabe bem porquê, não tem uma palavra sobre o comércio de escravos antes da chegada dos portugueses e outros, ora a escravatura vem desde os tempos antigos, em qualquer conquista entre povos africanos se escravizava população e esta era comerciada pelo continente. A sua narrativa começa exclusivamente com a chegada dos portugueses, mas antes, porém, socorre-se de uma descrição mirabolante, truncada do que fora a escravatura no passado. Vale a pena reproduzi-la para se ver a onde nos leva a manipulação e a ignorância:
“As primeiras incursões em busca de cativos negros que pudessem ser vendidos na Europa têm de ser encaradas no contexto da época. Em 1441, quando Antão Gonçalves zarpou da costa portuguesa, o comércio de escravos já era muito antigo na Europa. Remontava à época romana e, mais atrás ainda, à Grécia antiga. Continuou parte importante da vida quotidiana na Europa até ao fim da Idade Média e mesmo posteriormente. Tratava-se sobretudo de comércio de escravos europeus. Estes vinham, normalmente, dos países eslavos da Europa Oriental, porque os povos eslavos converteram-se ao cristianismo mais tarde que os outros europeus; e os cristãos, como os muçulmanos, não viam nada de errado em escravizar os não-crentes. Este comércio não se confinava à Europa. Estados cristãos, especialmente as cidades-estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e da Ásia Ocidental e quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também. Os genoveses eram tão ativos na venda de cristãos que o Papa Martinho V, em 1425, emitiu uma ordem de excomunhão contra eles. Mas o destino destes cativos era muito diferente do dos escravos transatlânticos de épocas posteriores. Tal como em África, eles tornavam-se pessoas sem direitos que podiam ser compradas e vendidas, ou oferecidas de presente, para servirem como pessoal doméstico ou artífices especializados. Podiam ascender a postos de autoridade, casar no seio das famílias dos amos, trabalhar para reaverem a liberdade. Eram muito bem tratados, porque eram caros. Apenas os ricos podiam tê-los. Por conseguinte, Gonçalves e os seus colegas capitães, trazendo prisioneiros africanos para Lisboa, não viam crime no que faziam e sabiam que a carga era valiosa.”

Assim se passa uma esponja sobre a história do comércio negreiro africano que antecede o comércio negreiro europeu em África…

(continua)

Basil Davidson (1914-2010)
Bronzes do Benim, coleção do Museu das Belas Artes de Boston
A Grande Mesquita, Djenne, Mali
Gao e o rio Niger
Mapa do império Mali, cerca de 1337
Saleiro de Marfim, arte cingalo-português, séc. XVI, império do Benim, peça do Museu Britânico
Saleiro, séc. XVI, arte cingalo-portuguesa, peça do Museu Nacional de Arte Antiga
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Notas do editor

Vd. post de 4 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926", por Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
A obra de Basil Davidson não esconde os objetivos subjacentes: mostrar como houve civilizações e culturas prodigiosas antes da chegada do europeu, é uma escrita com o seu poder elegíaco, e se assim não fosse não tinha havido uma edição a pedido do Ministério da Educação da República Popular da Angola. Tendo sido um ativista fervoroso pelas causas dos movimentos independentistas (PAIGC, MPLA e FRELIMO), também aqui deixa a sua marca da água, veremos adiante que trata a questão da escravatura na África pré-colonial como cão por vinha vindimada, era quase tudo compra de gente que ficava em família, segue-se então o comércio ignóbil dos europeus, que deixou os seus filhos e filhas povoarem vastas regiões das Américas e das Caraíbas, e que deram um contributo vital para o desenvolvimento do Novo Mundo. A despeito de óbvia parcialidade no tratamento das chamadas "questões quentes", Davidson é um excelente escritor e o seu livro uma lição de divulgação, uma boa obra de consulta para certos investigadores e universitários que queiram procurar aprender a escrever para o grande público.

Um abraço do
Mário



À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Tudo começa com a descoberta em 1888 das ruínas de grandes edifícios de pedra na região do Zimbabué, quem teria construído aquelas grandiosas muralhas de pedra e sabido fazer elegantes pulseiras de ouro batido? Os primeiros arqueólogos não encontravam resposta. Hoje sabe-se que estas paredes do Zimbabué terão cerca de mil anos. Como se sabe que houve povos africanos pioneiros no último período da Idade da Pedra e a paleontologia dá como certo e seguro de que o homem, tal como o conhecemos, tem aqui a sua origem.

O povo mais bem-sucedido foi aquele que vivia nas margens do rio Nilo, no território que depois foi o Egito. Davidson dá-nos um quadro de tão portentosa civilização e a sua cronologia. Ali perto nasceu outra civilização, o reino de Kush, construído em duas fases, a primeira sobre a influência egípcia e a fase em que a capital era Méroe, a cerca de 140 km a Norte da moderna Kartum, a capital do Sudão, o poder e a influência de Méroe durou aproximadamente oito séculos. Estes kushitas eram grandes viajantes e comerciantes, inventaram um alfabeto novo com signos para 23 letras (os cientistas ainda trabalham na sua decifração); hábeis agricultores, mas também fortes na guerra, utilizavam a cavalaria, domesticaram o elefante africano; no auge do seu poderio, entre aproximadamente 300 a.C. e 200 d.C., os kushitas dominavam a parte das parcelas do Norte e do centro do Sudão Oriental.

O autor volta-se agora para os povos berberes; antes do ano 2000 a.C., uma grande parte do que é atualmente o deserto do Saara consistia em pradarias bem irrigadas onde viviam e labutavam muitos grupos africanos da Idade da Pedra; as alterações climáticas reconfiguraram estes povos saarianos, deram-se impressionantes migrações; os Tuaregues estão entre os descendentes destes primeiros saarianos; aqueles que viviam no Norte de África aprenderam a metalurgia com os vizinhos do outro lado do Mediterrânio, na Hispânia. O autor refere Cartago e Roma em África e dá um enfoque aos primeiros reinos cristãos de África. O Egito chegou a ser terra cristã; mas a comunidade mais original é a Igreja Copta, criou elegantes igrejas, belas bibliotecas, muitas pinturas e esculturas religiosas; tiveram diferendos com Bizâncio, mas ficaram independentes; há também a registar o cristianismo núbio.

África foi sempre um continente difícil, se bem que possuidor de territórios aprazíveis, ao longo de alguns dos grandes rios, ou nas margens dos lagos, ou nas férteis terras altas orientais que constituem atualmente o Quénia, a Uganda, o Norte da Tanzânia, o Ruanda e o Burundi; mas a maioria dos africanos só pode sobreviver e prosperar respondendo a severos desafios de clima e solo.

“Por vezes foram ajudados pela exuberância da natureza de África, pelas suas altas florestas ou grandes manadas de animais de boa carne, tais como antílopes e búfalos; mas estas mesmas vantagens também acarretavam desvantagens. As florestas eram de difícil penetração; com frequência era difícil viver nelas. Os animais incluíam perigosas feras. A maioria dos africanos teve também de resistir às doenças peculiares das regiões tropicais. Estas incluíam a malária, transmitida pelos mosquitos; certas outras doenças, tais como a bilharzíase, transmitida por caracóis aquáticos ou a debilitação provocada pelos ancilóstomos (infeção parasitária); e, entre as piores, a doença transmitida pela mosca tsé-tsé.”

A despeito destas adversidades, a população fixou-se, desenvolveu a sua agricultura, utilizou o ferro, gerou civilizações. Podemos falar do mundo africano dedicado ao comércio, em duas regiões distintas. A primeira foi o império de Monomotapa, ligado ao comércio mundial pelos mercadores suaílis que, das cidades da costa oriental, penetravam no interior; a segunda, foi a África Ocidental a sul do Sudão, dotou-se de mercadores sudaneses e berberes do Saara do Norte de África. Os africanos produziram e exportaram muitas centenas de toneladas de ouro.

É a vez de ser referenciado o Andaluz, em inícios do século VIII muçulmanos do Norte de África ergueram uma civilização nas regiões meridional e central de Espanha que durou até 1492, quando os Reis Católicos conquistaram Granada. É descrita esta brilhante civilização andaluza, a sua arte e os seus eruditos.

A sul do Saara temos os impérios das savanas. Estes povos centravam-se principalmente em ricas cidades-mercados onde os seus reis e mercadores viviam, eram povoados como forte atrativo para outros negociantes. E fala-se do Gana, teve o auge do seu poder cerca do ano 1000, os seus reis controlavam as rotas que levavam para o Sul, do Gana para o país que ficava à volta das nascentes do rio Níger, tinha o domínio da exportação do ouro, produziam moedas que circularam em dois continentes. A ascensão do Mali foi em grande parte obra do povo Mandinga de Wangara. Depois de 1250, o Mali expandiu-se até se transformar num dos maiores Estados do seu tempo. São desconhecidas as datas dos reinados dos primeiros monarcas do Mali. Sabe-se mais do bem-sucedido Kankan Mussa, que tomou o poder cerca de 1312, reinou até 1337. Dele sabemos mais através de um viajante árabe Ibn Batuta que nos deixou um relato palpitante do rei e da sua civilização. Este Kankan Mussa ficou na história por uma famosa peregrinação a Meca. “Diz-se que Mussa levou com ele cerca de 80 carregamentos de ouro do Mali, 500 dos seus servos traziam um bastão de ouro com o peso de 2 quilos. O imperador deu a maior parte deste ouro no Cairo, enquanto os cortesões também se serviam do ouro para fazerem compras nos mercados elegantes da capital egípcia.” O autor faz uma descrição deste império e depois fala-nos dos Songhai do Sudão Central que se impuseram depois da derrocada do Gana.

Deles iremos falar adiante, bem como de Tombuctu, haverá uma curta referência às cidades da costa Oriental e voltaremos à África Ocidental.


Mário Pinto de Andrade, Ana Maria Cabral, Pedro Pires e Basil Davidson, Cidade da Praia. 1980. FMSMB - Arquivo Mário Pinto de Andrade
Basil Davidson (1914-2010)
Ruínas localizadas a 20 km de Masvingo, sul de Zimbabwe. Era o centro de uma poderosa civilização conhecida como Império Monomotapa, cobrindo áreas do Zimbabwe e Moçambique.
Um pormenor do que foi o reino de Kush
Igreja de São Jorge em Lalibela, Etiópia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26111: Notas de leitura (1740): "Poemas de Han Shan" (China, séc. VIII), organização, tradução e apresentação de António Graça de Abreu, no Centro Científico e Cultural de Macau, Lisboa, 26/9/2024