sábado, 1 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23660: In Memoriam (453): Júlio Martins Pereira (1944-2022), ex-sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá e Porto Gole, 1965/67)... Natural de Paredes, vivia em Valongo... Nosso grã-tabanqueiro nº 653... Nascemos no mesmo dia, 12/6/1944 e conhecemos as mesmas estações do inferno (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Júlio Martins Pereira (1944-2022), ex-sold trms, CCAÇ 1439
(Enxalé, Missirá e Porto Gole, 1965/67). Foto: blogue A Minha Vida..



Torres Vedras > A dos Cunhados > Paradas > Associação de Desenvolvimento de Paradas >    15 de outubro de 2013 > Convívio do casal João & Vilma Crisóstomo com os parentes das famílias Crisóstomo & Crispim, bem com com os camaradas da Guiné. Na foto, do Júlio Martins Pereira, soldado de transmissões da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): camarada de armas do João Crisóstomo, veio propositadamemte do Norte com a esposa, Elisa, para lhe dar um abraço de parabéns e recordar os tempos de Guiné... Há quase 50 anos que não se viam... 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição: Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de João Crisóstomo, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1439 (1965/69 (vive em Nova Iorque desde 1977):

Data - 1 out 2022, 06:24
Assunto - Lembrando o Julio Pereira (*)

Caro Luís Graça, e caros camaradas amigos, especialmente da CCAÇ 1439, 

A Vilma acaba de ver no Facebook que o Júlio Pereira nos deixou. Segundo depreendo foi ontem mesmo (30 de setembro).

Nem sei o que dizer, mas sabes bem como é, que ainda há dois dias estive a enviar-te os meus sentimentos pelo teu cunhado que era também um amigo muito especial para ti.

O Júlio e eu ficámos irmanados no momento do nosso dia de nascimento. Uma irmandade que ia durar até ao seu último momento e que para mim de alguma maneira vai continuar.

Nascemos no mesmo dia, 22 de Junho de 1944 e durante 20 anos não sabíamos sequer um do outro até que nos encontramos na Guiné. Que fez de nós mais irmãos ainda.

Partilhamos muitos dias difíceis, como foi o dia terrível em que a nossa companhia sofreu duas minas, a primeira das quais numa coluna comandada pelo alferes Zagalo que vinha de Missirá a Enxalé  e que ocasionou vários feridos e a morte do furriel Mano. E quando eu fui com o meu pelotão e outros que se ofereceram para ir connosco, a socorrê-los , acabámos por cair noutra mina que levou o Manuel Pacheco, o “Açoreano". 

Foi neste dia trágico, 6 de outubro de 1966, que o Júlio mostrou o que era, correndo muitos quilómetros sozinho a corta-mato até Finete e depois, já acompanhado com alguns nativos, passou o Geba e foi a Bambadinca alertar do acontecido e pedir heicópteros de evacuação a Bissau.

Depois do regresso ficamos muito tempo sem nos vermos até que soube dos vários “encontros”. E cedo reencontramo-nos. Haviam passado 43 anos. Mas a partir desse momento cultivámos uma amizade grande, que não acabou mais, alimentada não só em encontros de camaradas da Guiné, como em visitas pessoais. 

A última vez que o vi foi em sua casa, depois de ele ter sofrido um AVC. Verifiquei a sua coragem e vontade extraordinária de não se desencorajar. Teve nessa fase da sua vida a sorte de ter uma esposa e uma família formidável (quem sai aos seus não degenera! E ao fim e ao cabo, crédito ao Júlio, que se eles eram assim eles eram aquilo que ele fez deles) que lhe davam um carinho, ternura e apoio sem limites. Era comovente mesmo. 

Entre outras coisas fico-lhe muito grato também pela inspiração e exemplo que nesses momentos senti e experimentei.

Adeus, meu caro Júlio. Que o senhor recompense a tua amizade e a tua bondade; uma amizade e bondade que não vamos esquecer mais.

João e Vilma

PS - Fotos: vd. postes P22558, P12456, P12460, P15998…
 

2. Comentário do editor LG:

João, é com grande tristeza que vimos partir mais um dos nossos bravos.  O Júlio Martins Pereira, natural de Recarei, Paredes, vivia em Campo, Valongo. Apreciei muito o gesto, nobre, de vir à tua festa, em 2013, em Paradas. Foi lá que o conheci, um homem simples, afável, solidário. Infelizmente não voltei a vê-lo. 

Sei que há uns largos anos teve uns sérios problemas de saúde. Recordo que ele entrou para a Tabanca Grande em 16/12/2013, sendo o nº 635. É justo lembrar que foi condecorado com a Cruz de Guerra de 4.ª classe, no dia 10 de junho de 1968, na Avenida dos Aliados, no Porto. Com a sua morte, ficas tu como único representante da CCAÇ 1439 na Tabanca Grande. Somos cada vez menos.  

Registo a tua comovedora homenagem a este teu "mano", pela data de nascimento e pela camaradagem na CCAÇ 1439. Obrigado por me teres alertado por email e, logo a seguir, telefonado. 

Nesta hora, que é sempre difícil para todos, envio em meu nome pessoal e do resto da Tabanca Grande os meus votos de pesar pela sua perda, à esposa Elisa, aos filhos e netos, demais família e amigos e camaradas do peito, em especial os da CCAÇ 1439.

PS - A CCAÇ 1439 teve como unidade mobilizadora o BII 19 (Funchal), partiu para o CTIG em 2/8/1965 e regressou a 18/4/1967, tendo passado por Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole, Missirá, Fá Mandinga. O comandante era o cap mil inf Amândio Manuel Pires, já falecido. Alferes (milicianos): Freitas (Funchal, Madeira), João Crisóstomo (Torres Vedras, hoje a viver em Nova Iorque), Sousa (Vila Nova de Famalicão), Luís  Zagalo (Lisboa, ator de teatro, já falecido). 
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Guiné 61/74 - P23659: Os nossos seres, saberes e lazeres (528): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (70): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 8 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Um dia teria que ser. Não se pode andar impunemente a circular à volta de um edifício que terá sido um dos maiores do século XIX, nunca encontrar ensejo para subir tão farta escadaria e pedir licença para entrar no colosso. Não tenho termo de comparação para o Palácio de Justiça de Bruxelas, é sombrio por fora, de manhã, à tarde e à noite, sempre o conheci com andaimes em qualquer uma das faces e até na cúpula, quando falava dele aos meus amigos belgas diziam-me sempre, não percas tempo com aquela grandiosidade fria. Poelaert foi o arquiteto escolhido, gozava de fama, tinha no seu currículo a construção da Coluna do Congresso, a reconstrução do Théâtre de la Monnaie, mas não se ficava por aqui o seu prestígio. Reza a lenda que nunca apresentou os planos completos e definitivos do que pretendia construir. Morreu em 1879, o seu isolamento era total e a obra estava inacabada. O Palácio foi inaugurado em 1883, demorara cerca de 20 anos a pôr aquele gigante de pé, mas era um edifício em progresso e em progresso se mantém, quem o visita fica sempre com a sensação de que há muito mais coisas para acabar, é o lado enigmático, quase fantasmático, da visita. Tanto gostei que irei repetir, logo que regresse a esta terra bem amada.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (70):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 8


Mário Beja Santos

No metro, a caminho de Hermann-Debroux, a estação mais próxima de Watermael-Boitsfort, recebo um telefonema de Alfons Driesen, o previsto guia para no dia seguinte percorrermos as cidades-jardim da comuna em que eu vivo, informa-me que tanto ele como o seu colega Emile Francqui estão impedidos por razões de saúde de me acompanhar, só depois de amanhã, agradeço, confirmo a minha disponibilidade e começo logo a dar voltar à cabeça para um programa de remedeio, já visitei Notre-Dame des Victoires no Sablon, Nossa Senhora do Bom Socorro, não sinto por ora grande disposição para percorrer os subterrâneos do Palácio Coudenberg, a residência de Carlos V, foi destruído por um terrível incêndio em 1731, o que resta são os vestígios arqueológicos, o mesmo ocorre de um conjunto de passeios guiados sobre o antigo porto de Bruxelas ou o museu de arquitetura. Ainda me sinto tentado por uma manhã de palestras dedicadas à família Bruegel na Biblioteca Real do Rei Alberto, um conjunto de peritos irá falar destes membros de família, logo Pieter Bruegel, o Velho, depois o jovem, e depois Jan Bruegel, o Antigo, no contexto da pintura do seu tempo em que se revelaram os génios de Bosch ou Bernard van Orley. É nisto que me passa pela cabeça ir finalmente ao Palácio de Justiça, o mais gigantesco edifício de Bruxelas, que me assombrara depois de ter lido o livro “Bruxelas, Percursos”, por François Schuiten e Christine Coste, uma edição do jornal Público com a ASA, 2011. É um guia que me acompanha sempre, nesta terra tão amada. Texto tão cativante que poderá servir para comentar as imagens a este babilónico templo da Justiça.
Não se lhe consegue escapar. Mais tarde ou mais cedo, avistamo-lo. De longe, a sua cúpula coroada e decorada a ouro serve de ponto de referência. De perto, o edifício monumental de aspeto sombrio e severo interroga-nos, inquieta-nos ou fascina-nos. O Palácio da Justiça de Bruxelas não deixa ninguém indiferente. Leopoldo I nomeou o arquiteto Joseph Poelaert, em 1861 para seu arquiteto. Durante 17 anos, Poelaert, glorificado e depois repudiado, enfrentou esta construção desmensurada, erguida sobre um canto de Marolles, tudo foi destruído à volta para implantar esta magnificência de colunas, arcos, escadarias e vestíbulos monumentais. Vou descobrir como o interior oferece um cenário fascinante. A construção continua inacabada. Fica-se especado frente a este edifício sombrio, à volta circulam elétricos e carros, o panorama que se desfruta do miradouro, ali bem perto, é de uma largueza sem paralelo, em frente ao edifício ciclópico pranta-se um monumento de homenagem aos combatentes da Primeira Guerra Mundial.
Sempre conheci o Palácio em obras, sempre com andaimes em qualquer ponto do colosso de pedra. Fiz a volta completa pelo exterior, é hora de nele penetrar, o guia usa expressões misteriosas, há imensos espaços que permanecessem inacessíveis, portas que nunca foram abertas, paredes falsas, catacumbas ainda por explorar, fala-se mesmo em símbolos maçónicos, tudo somado e multiplicado são 26.000 m2 de área, 576 divisões, 8 pátios interiores (hoje cobertos), sobem-se os degraus e entra-se neste templo desmesurado, atravessa-se o pórtico de colunas.

Tudo foi pensado para ser solene. Multiplicadas, aumentadas ou engrossadas, colunas, pilastras, cornijas, abóbadas e esculturas, temos um registo grave e grande eloquente, é uma espantosa mistura de estilos onde avulta o greco-romano, o egípcio e o mesopotâmico. A Grécia omnipresente, Roma menos, temos para ali estátuas de Cícero, Demóstenes, Sólon, um busto de Minerva, segue-se a apoteose do espaço, a Sala dos Passos Perdidos, 3.600 m2 de superfície, colocada no centro do edifício, e para quebrar a vertigem ao mastodonte temos a cúpula, 100 m acima do olhar, uma nesga de céu fictício. Aqui e acolá, passam advogados, clientes, magistrados, funcionários e visitantes como eu. Há mesmo um quiosque de jornais, no chão uma estrela de cinco pontas, com a ponta virada para o Sul, para o alto, símbolo maçónico benevolente, estrela que ilumina, luz sobre o mundo. E sobe-se para a galeria do 1º andar, há duas escadarias monumentais à escolha.
Aqui sente-se a Justiça, há tribunal criminal ou de primeira instância, Supremo Tribunal de Justiça, registo comercial, arquivo, bibliotecas, salas umas atrás das outras, viajo sem destino, já percebi que não vale a pena guiar-me pelos números das salas de julgamento, mas pode-se bisbilhotar pelas portas entreabertas enquanto avançamos pelo labirinto. Descanso e leio mais pormenores do meu percurso. À direta da Sala dos Passos Perdidos, a descida anuncia-se numa longa vaga gelada rodeada de galerias que desenham braços desnudos cada vez mais largos à medida que nos aproximamos da enorme porta de entrada. Poelaert imaginou uma praça, desafogada, nada se concretizou porque os habitantes do bairro de Marolles contestaram mais razia, aquele Palácio obrigara a que 15.000 habitantes tivessem procurado refúgio na parte baixa de Marolles ou na comuna de Saint-Gilles, tudo sem indemnização. Pode pensar-se no rancor desta população que foge de qualquer convívio com tal monstruosidade de pedra.
Enquanto por aqui me passeio, recordo que já percorri este itinerário à noite, há refletores suspensos no teto que espalham uma luz branca, fica uma atmosfera crepuscular que tornam este Palácio um cenário de cinema. Não é por acaso que aqui têm lugar filmagens. E venho para a rua lendo que há diligências oficiais para que o Palácio seja declarado património mundial. E o guia diz-nos ainda que este Palácio de Justiça é um enigma cujo corpo de delito escapa ao entendimento, à semelhança da cidade em redor. Como ele, Bruxelas cresce presa na teia das suas decisões e das suas errâncias, deslocando-se pelas partes mais cinzentas e destrutivas do seu espírito, assim como pelas mais luminosas e criativas. Concluída a visita, uma contemplação a quem deu a vida pela pátria, isto de ser antigo combatente tem muito que se lhe diga em redes de companheirismo e de solidariedades inatingíveis.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23642: Os nossos seres, saberes e lazeres (527): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (69): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 7 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23658: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (98): Em Mansabá havia 2 geradores Lister que trabalhavam alternadamente, em turnos de 4 horas (Carlos Vinhal, ex-fur mil art, MA, CART 2732, Mansabá, 1970/72)


Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 (1970/72) > 12 de Novembro de 1970 Ataque do PAIGC... Enfermaria militar atingida por munição de canhão sem recuo. A CART 2732 foi render a CCAÇ 2403.

Foto: © Carlos Vinhal (2010) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Brasão da madeirense CART 2732 (Mansabá, 1960/72)


1. Comentário do Carlos Vinhal ao poste P23654(*)  e em resposta ao pedido formulado no poste P23647 (**):

Estive há pouco a falar com o meu camarada da CART 2732, João Malhão, responsável pela manutenção dos geradores e da "rede elétrica" de Mansabá, que me confirmou haver no nosso tempo 2 geradores Lister que faziam turnos de 4 horas. Das 9 às 11 da manhã estavam ambos parados.

Contou também que numa altura em que um deles esteve inoperacional, o nosso comandante exigiu que aquele que ficou em serviço cumprisse escrupulosamente as ordens da Engenharia, 4 horas de funcionamento com 4 horas de descanso.

Quanto ao fornecimento de energia, seria só para o aquartelamento onde se incluía, para além das instalações militares e perímetro do arame farpado, o Posto Administrativo, a Enfermaria civil e a casa do Administrador.

Fora do arame farpado apenas se alimentava a casa do senhor José Leal, um civil metropolitano que vivia com a família numa casa contígua no exterior do arame farpado, que explorava madeira e que tinha uma sala de jantar onde quem podia ia de vez em quando saborear os apetitosos petiscos da D. Olinda.

Diz o Malhão que em determinada altura recebeu ordens para ligar a energia a uma casa onde morava uma senhora que teria alguma importância. Seria a casa da professora? Pergunto eu.

Embora não estivesse na Guiné na altura da independência, tenho quase a certeza que a Engenharia não recolheu nenhum destes geradores. Para quê? Deixámos lá coisas muito mais valiosas.

Carlos Vinhal
Fur Mil Art
CART 2732
Mansabá, 1970/72


30 de setembro de 2022 às 12:19



Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Mansabá, a sudeste de Farim. Pertencia à cirscunscrição de Mansoa. Era posto administrativo.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23654: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (97): os geradores militares: contributos para a história da eletricidade no território (Manfred Stoppok / José Nunes / Eduardo Estrela / Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Carlos Silva / Cherno Baldé / José Colaço / Magalhães Ribeiro / Valdemar Queiroz / Manuel Gonçalves / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 27 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23657: Agenda Cultural (812): "CONTOS DO SER E NÃO SER", livro da autoria de Adão Cruz (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887), posto ontem, dia 29 de Setembro, à venda

Capa do livro "CONTOS DO SER E NÃO SER", da autoria de Adão Cruz, que ontem foi posto à venda nas livrarias. Também pode ser adquirido em formato digital

Preço: 12,90€
Páginas: 184
Língua: Português
ISBN 9791220113465
Editora Europa
Email: info@editoraeuropa.com



CONTOS DO SER E NÃO SER

Este é um livro de contos, construído na sua maior parte por estórias verdadeiras, outras baseadas em acontecimentos reais e poucas totalmente ficcionadas. Umas muito antigas, outras menos e algumas relativamente recentes. Dei-lhe este título porque não encontrei outro mais adequado àquilo que sempre senti ao escrever estas estórias. Por um lado, são contos de vidas em que autor e personagens interagem nas suas próprias vivências, na tristeza e na alegria, no humor e na tragédia, na coragem e desânimo, questionando sempre o sentido da cumplicidade no caminho das certezas e incertezas, das verdades e das mentiras. Por outro lado, sinto que a nossa vida, nesta prodigiosa interface entre o sangue e a mente, não é mais do que um eterno dilema e um constante questionar entre o que somos e não somos.

Sempre li muito desde jovem. Sempre gostei de escrever. Não propriamente de escrever, mas de tentar criar Arte Literária ao escrever. Digo isto sem qualquer ponta de presunção. A literatura, seja prosa ou poema, é uma arte como outra qualquer, como a pintura, a música, a dança, o teatro… No meu entender, são sentimentos poderosos, não em termos sentimentalistas, mas em sentido neurobiológico. Por isso, sempre preferi chamar à Arte, Sentimento Artístico. Fazendo parte integrante deste, existe o Sentimento Poético, cuja amplidão e beleza percorrem transversalmente todas as formas de Arte, como sangue ou seiva. Daí, eu acreditar que qualquer forma de expressão artística só o é, se contiver dentro de si a poesia. Por isso eu a procuro em tudo o que escrevo. Não sei se alguma vez o consegui.

adão cruz


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DESCRIÇÃO

Entre alguma ficção e uma quase total realidade, os Contos do Ser e Não Ser reúnem histórias do passado do autor como médico em Portugal e em tempos de Guerra Colonial da Guiné, tempos em que um denso nevoeiro lhe cobriu a alma como sangue que corre das feridas do tempo, do tempo e do medo, do medo da guerra, da dor de uma mãe e do choro convulso de um pai, e da saudade arrancada à vida e à liberdade; relatos extremamente bem-humorados do dia a dia no Porto com um olhar atento às mudanças físicas, de humor e de perspetiva, devido ao passar do tempo, das terceira e quarta idades, a sua profunda poesia e a dramática coreografia da antecâmara da morte; contos de vida de uma época em que não era proibido sonhar, pelo contrário, era obrigatório sonhar; e reflexões acerca do ser único e absoluto, criador do Universo.
Quando vi que eras tu, o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.
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O AUTOR

Adão Cruz nasceu em Vale de Cambra há oito décadas. Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto foi médico generalista em Vale de Cambra, médico na Guerra Colonial da Guiné, ex-assistente hospitalar de cardiologia graduado em chefe de serviço, sócio da Sociedade Portuguesa de cuidados intensivos e um dos médicos cardiologistas pioneiros na técnica Eco-Doppler em Portugal.
É sócio da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, da Sociedade Europeia de Cardiologia, do Sindicato dos Médicos do Norte e da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos.
Tem doze livros publicados, entre poesia, contos, pintura e cardiologia, além de frequentes colaborações em jornais, revistas e blogues.
Pintor desde a década de oitenta, fez diversas exposições individuais e coletivas em Portugal e no estrangeiro, ilustrou a capa de livros de alguns autores e tem quadros seus em sete países.

- A devida vénia a Europa Editora

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23597: Agenda Cultural (811): A Orquestra Médica Ibérica (de que faz parte o nosso grã-tabanqueiro João Graça) irá dar, no domingo, dia 11 de setembro, na Aula Magna da Universidade de Lisboa, um concerto solidário, a favor da Associação Portuguesa contra a Leucemia

Guiné 61/74 - P23656: Notas de leitura (1501): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Como é evidente, a literatura universal possui relatos de altíssima qualidade sobre crianças que terão passado longos calvários até atingirem a libertação, tudo culminando com o futuro radioso pela frente, basta lembrar Oliver Twist e David Copperfield, de Charles Dickens. Amadu Dafé é cuidadoso, terno, socorre-se de um intenso lirismo e captura o leitor do princípio ao fim pela via mais eficaz da indignação: solta-se a voz da criança espancada e aviltada, em tanto confiante, mal sabendo que caiu numa teia de vis traficantes, e quando se despede do leitor avisa-nos que nada será como dantes, há o saber de experiência feito, Ussu de Bissau fora sujeito a riscos barbários, é hoje um homem livre, está escrito no seu coração. Amadú Dafé é uma grande promessa para a literatura luso-guineense, fica comprovado com este documento literário terno, vibrante, tantas vezes a magoar-nos nas vergastadas e no espezinhamento de uma criança que sonha voltar para casa. Que venha mais boa literatura da tua portentosa imaginação, Amadú Dafé.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (2)

Mário Beja Santos

Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, é uma inesperada surpresa: encontrar uma criança tão emotivamente registada por um escritor que denuncia, em toda a sua crueza, o tráfico de crianças sujeitas às mais degradantes humilhações e atentados à dignidade humana.

Ussu é recambiado para o Senegal, a mãe conta fazer dele um ser humano que faça pela vida, que ganhe bases culturais, a criança sai da miséria para bater à porta do Inferno, um canalha que parece dirigir uma escola corânica tem dezenas de crianças por sua conta que pedincham pelas feiras, que vivem como animais e são pasto de um negócio de pedófilia.

É neste cosmos de maus tratos que Ussu encontra um oásis, a bondade do tio Lamine e a estima do seu filho Adulai. É nesse contexto que alguém se lhe apresenta como treinador de futebol e ele é despertado para um sonho, prometem-lhe uma madrinha disposta a levá-lo para a Europa para jogar futebol ou estudar. Está sonhador, mas mostra-se hesitante: “Valeu a pena ter vindo para Senegal, pedinchar nas ruas e nos becos, para, no fim, ser compensado com uma madrinha que se propunha levar-me para a Europa! Ou valeria igual se tivesse ficado ao lado da minha mãe, lutando contra os feiticeiros e contra os invejosos? Não sei. Só sei que enquanto a morte não me chega, a minha vida tem de permanecer esperançosa e certa”. Vai dar a boa-nova ao tio Lamine, ele sugere que Ussu estabeleça o contato com a dita senhora. Pelo caminho, prosseguem as vergastadas na escola corânica, os tratamentos torpes, a mendigação.

Se até agora Amadú Dafé usa de uma grande segurança na descrição de todos estes emaranhados de miséria, de sadismo religioso, de exploração infantil, triunfa pela forma delicada com que vai tratar a pedofilia, são parágrafos em que ele discorre a infâmia em cima de uma lâmina afiada, Ussu insurge-se, grita e dá às vilas Diogo, almas caridosas aconchegam-no, Adulai comunica ao tio Lamine o que se está a passar, procura-se então o treinador. Entretanto aguarda-se pela senhora que iria levar Ussu para a Europa, aparece Raja, entra num barco, registam-se estranhas anomalias, vai aparecer a polícia, afinal a dita senhora fazia parte de um gangue de raptores. A narrativa acelera-se, os diálogos são velocíssimos, aquela inocente criança não consegue entender os enredos daquele crime, é na esquadra da polícia que ele é informado de que servira de isco para apanhar a teia de criminosos.

Tem aqui lugar, num momento que o autor intitula Posto, um dos mais belos monólogos desta prodigiosa narrativa:
“A pressão social prefere farsa a sinceridade. Prefere ilusão a realidade. Prefere mentiras e aparências. A minha mãe sujeitou-me a tudo o que passei, não por vontade própria, mas porque se sentia pressionada a fazê-lo para não ser isolada e para não ser vista como incapaz de criar um filho.
Que ganhou ela com isso?
Ou melhor, o que ganharam as pessoas que a pressionavam com tudo o que passei? E se a Raja me tivesse conseguido levar para a Europa? E se tivesse continuado a ir para a horta e a seguir os meus colegas para dar o cu por uma côdea? E se tivesse continuado na escola e apanhado o hábito de mendigar para sobreviver?
A partir do momento em que terminei a conversa com a Fámata, acordei, saí da ilusão, afastei a obscuridade e a falta de determinismo que era a minha vida. Mais ninguém decidirá por mim o que quer que seja, mais ninguém irá ter em suas mãos a minha felicidade e os meus sonhos, nem a minha própria mente, muito menos pressão social alguma.

Ela será apenas um órgão dentro do meu corpo, como os demais, e a sociedade será sempre a comunidade a que pertenço livremente, não o contrário. Tomei totalmente o controlo de tudo e da minha vida particularmente (…) Toda a minha vida foi um drama dramático. Tinha vindo para o Senegal aprender Alcorão. Sim, era esse o propósito e era essa a inequívoca vontade da minha mãe. A minha tia e outros familiares fizeram-na pensar que só longe dela poderia eu ser gente. E no que me tornei depois de tantos anos, era inimaginável.
Formei-me nas ruas, como um rato, e cresci sobrevivendo como um gato. A minha maturidade emancipou-se e a minha formação foi de um gato caçador (…) Tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência. Tinha-me emancipado e formado em vida. Que mais poderia levar de volta para os meus? Poderia encontrar a morança cheia, mas infelizmente a minha mãe não estava.

‘A tua mãe não se aguentou, Ussu. Ela não se aguentou’, disse-me a minha tia, à porta, choramingada.
Os que encontrei apareceram à porta com abraços, de muitos braços abertos, talvez cheios de saudade. Abraçaram-me, com força que lhes parecia de arrependidos, mas era do coração. Deveria isso bastar para aceitar a ausência da minha mãe? Até porque sinto que ela se tornara numa estrela, a mais brilhante.
Será para sempre o meu sol. Será a minha lua, para me seguir em todas as direções e condições? Irá saber como iluminar o meu caminho.
Pelo menos houve alguém em casa à minha chegada que me serviu água e arroz. Que me consolou e transmitiu as suas últimas palavras”
.

Jamais saberemos como Ussu se fará homem, somos levados a crer que agregou positivamente toda aquela via-sacra de criança traficada, pronta a ser raptada, sujeita à degradação suprema, mas que aprendeu os escaninhos por onde passam os raios da liberdade. Ele escrevera que tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência, abria-se agora a estrada para que Ussu de Bissau, que embarcara em tantas ilusões, pusesse os seus sonhos em prática, como homem de bem.

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Notas do editor

Poste anterior de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

Guiné 61/74 - P23655: Os bu...rakos onde vivemos (15): O destacamento da Ponta do Inglês que tinha um gerador que nunca funcionou e onde havia um poço a 700 metros do arame farpado, que servia três clientes: as NT, o IN e a população sob o seu controlo (e que, por isso, nunca foi envenenado) (António Vaz, 1936-2015, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)



Guiné > Região de Bafatá > Xime > Ponta do Inglês > O destacamento da Ponta do Inglês, um dos muitos "bu...rakos" onde viveu gente nossa, neste caso de dezembro de 1964 e outubro de 1968. Ilustrações de Vera Vaz (2012).


1. Houve muitos sítios "desgraçados" onde vivemos, ao longo da guerra da Guiné... Temos uma série a que chamámos "Os bu...rakos em que vivemos"... Publicaram-se 14 postes, em março e agosto de 2009. 

Pela amostra (*), vê-se que estamos longe de ter um painel representativo dos nossos aposentos "bunker...izados", sítios onde nem sequer havia geradores nem muito menos "climatizadores de pesadelos"... Muitos outros postes dos já 23 mil e tal que já publicámos, podiam caber nesta série...

Às vezes redescobrimos alguns e achamos que vale a pena "refrescá-los" e pô-los nesta série... Por uma razão ou outra. É o caso do poste P10009 (**), primorisamente escrito pelo nosso saudoso António Vaz (1936-2015) (***) e ilustrado pela sua filha (salvo erro) Vera Vaz. Eze topónimo, "Ponta do Inglês", tem mais de quatro dezenas de referências no nosso blogue.


O destacamento da Ponta do Inglês

por António Vaz (1936-2015) 
(ex-cap mil, CART 1746. Bissorã e Xime, 1967/69)

− Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo… − disse, ao aterrar  [no seu heli] o brigadeiro Spínola. 

−  Saiba V. Exa. que está na Ponta do Inglês − respondeu o alf mil João Mata, da CART 1746,  que usava na ocasião calções, barba, tronco nu e uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal.

[É com este saboroso diálogo, entre o novo "homem grande de Bissau" e um oficial miliciano já completamente "apanhado do clima", que poderei  contar a história ou o resto da história do destacamento da Ponta do Inglês.]  A Cart 1746 saiu de Bissorã a 7 de janeiro de 1968,  seguindo de Bissau para o Xime via Bambadinca,  a bordo da barcaça Bor. Um grupo de combate seguiu directamente para a Ponta do Inglês onde rendeu o pessoal da CCAÇ 1550.

Este pelotão da Cart 1746 era comandado pelo alf mil Gilberto Madail [mais tarde, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, entre outros cargos], e que lá permaneceu [naquele bu...rako,] cerca de 4 meses, sendo substituído por outro, comandado pelo alf Mil João Guerra da Mata que lá esteve até outubro [de 19681], data em que este destacamento foi abandonado,[por ordem de Spínola] .

A Ponta do Inglês foi ocupada e os abrigos construídos em dezembro de 1964 na Op Farol pela CCAÇ 508,  comandada pelo malogrado capitão Torres de Meireles, morto em combate na Ponta Varela.

Não controlavam nada na foz do Corubal e nada podiam fazer em conjunto com o pessoal do Xime para manter aberto o itinerário Ponta do Inglês / Xime porque a Companhia do Xime ocupava também Samba Silate, Taibatá, Demba Taco e Galomaro. Assim o seu isolamento era, foi, praticamente total.

Os géneros só a Marinha os podia levar e o mesmo se pode dizer das munições, correio, tabaco, combustível, etc.

A chegada dos abastecimentos era motivo de alegria geral como se pode ver nas imagens que junto.

Por muito que o pessoal controlasse os gastos, a falta de quase tudo fazia-se sentir. Bem podia o Comando da Companhia pedir insistentemente pela vias normais a satisfação dos pedidos que não conseguíamos nada. Cheguei a tentar meter uma cunha directamente na Marinha, mas as prioridades eram outras. Como alguns géneros recebidos da Companhia que lá tínhamos rendido, estavam deteriorados, a situação ainda foi pior. Esta situação originou, a pedido do alf Madail, o Fado da Fome, que o Manuel Moreira ilustrou nas quadras populares da sua autoria.

O destacamento da Ponta do Inglês era a pequena distância da margem do Rio Corubal e tinha a forma quadrangular. A guarnição era formada por 1 Gr Comb + 1 Esq Pel Mort 1192 e pelo Pel Mil 105.

O destacamento era formado por 4 abrigos principais nos vértices para o pessoal, para a mecânica e rádio. O combustível e as munições ficavam na parte mais perto do rio Corubal; na parte central sob uma árvore frondosa (poilão?) um abrigo mais pequeno onde ficava o alferes, o enfermeiro e, logo ao lado, o forno do pão e uma cozinha, tudo muito rudimentar. Tinha o espaldão do morteiro na parte central. Não tinha, ao contrário do Xime, paliçada e apenas duas fiadas de arame farpado.

Os abrigos eram de troncos de palmeira com as indispensáveis chapas de bidão, terra e não eram enterrados. Uma saída na direcção do rio e outra no lado oposto para as idas à água e à lenha. No destacamento havia um Unimog para estas tarefas.

A água era tirada a balde de um poço existente a cerca de 700 metros do arame farpado que também era utilizado pela população, totalmente controlada pelo IN, e pelo próprio IN, sem nunca este ter aproveitado as nossas idas à água e à lenha para nos incomodar e vice-versa

Diz o Manuel  Moreira  [1945-2014]

O poço era um só,
Estava longe do abrigo,
Dava a água para nós
E também p’ro inimigo.

As noites eram passadas como se calcula, com as sentinelas nos quatro cantos do quadrado e a malta a ver e a ouvir os rebentamentos que vinham da direcção de Jabadá, de Tite, Porto Gole e do Xime, claro. Pode ser sinistro mas não é difícil pensar que muitos diriam.
Este destacamento teve sempre uma triste sina porque não tinha meios senão para... "estar". A dispersão de meios que encontramos no 
[sector] L1 a isso conduzia. Nunca serviu de nada a não ser castigar, sem culpa formada, as guarnições que para lá eram enviadas.

− Antes eles do que nós.

Como de costume, depois das tarefas de rotina, quando o calor era menos intenso seguia-se o eterno futebol com bolas dadas pelo MNF, de péssima qualidade, substituídas pelas tradicionais trapeiras. Num dos reabastecimentos que se fizeram, conseguimos levar para, além de gado mais miúdo, algumas vacas, que como sabemos, na Guiné são de pequeno porte. Como o futebol também farta, houve alguém que sugeriu tourear uma das vacas que ainda estava viva para tardios bifes.

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A vaca tísica... Ilustração de Vera Vaz (2012)

Foi uma festa com as peripécias inerentes à Festa Brava e todos os dias “a las cinco en punto de la tarde” soltava-se a vaca e era um corrupio de faenas com cornadas… incompetentes. O tempo foi passando e já só restava um dos pobres animais para animar os fins da tarde.

Como o reabastecimento nunca mais chegava e o atum com arroz já não se podia ver e muito menos comer, o alf Mata teve de decidir entre o partido pró-tourada e o partido pró-bife. Não foi fácil, mas acabou por vencer este último. Convocou-se o soldado condutor J. Viveiro Cabeceiras que também era padeiro, magarefe e pau para toda a obra, que procedeu à matança. Começando a esquartejar a rês, vai ter com o alferes e informa-o que a vaca estava tísica, pulmões quase desfeitos.

− Come-se a vaca... ou não se come a vaca?

Nova discussão e resolveu-se não aproveitar as vísceras e apenas o músculo. Assim se comeu carne assada sem problema de maior. Quando esta acabou voltou-se ao atum aos enlatados, tudo coisas que já escasseavam mas o pessoal andava triste com a falta dos fins de tarde taurinos. Então o Cabeceiras foi ter com o Alferes e disse-lhe:

− Meu alferes, a malta anda tão triste que se quiser e autorizar eu faço de vaca pois guardei os... cornos.

E assim de conseguiram mais uns fins de tarde…

Nunca percebi por que razão se fez o destacamento, afastado do único poço com água potável... Uma proposta de sã convivência? O caso é que resultou.

O que se passou nos tempos infindáveis em que o gerador esteve avariado, assunto já abordado neste Blogue, por quem o foi substituir, depois de aturados pedidos a Bissau sem que se resolvesse em tempo útil, é inenarrável. : [Em comnetário ao poste P7590 (****), o José Nunes, ex-1º cabo mec eletricidade, BENG 447, 1968/70; escreveu:  

(...) "O aquartelamento da Ponta do Inglês estava operacional em abril de 1968, quando aí nos deslocámos pra montar o grupo gerador, ficava junto ao rio e não havia cais, o Unimogue avançou rio dentro até da LDP [Lancha de Desembarque Pequena] de onde se descarregou o gerados a pulso. A iluminação era feita [, até então,] com garrafas de cerveja com uma mecha, cheias de combustível, e as havia a servir de alarme, havia muitos macacos na zona que causavam problemas, ao agarrar o arame farpado da zona de protecção. Foi uma permanência de horas por causa das marés." (...) 

As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível, tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a malta corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil, era enorme, embora, que me lembre, nunca tenha havido flagelações nessas alturas.

Flagelações houve muito poucas - seis - sem grandes consequências, a água do poço nunca foi envenenada e, mesmo sabendo que a resistência oferecida pelas NT, aquando dos ataques, fosse de nutrido fogo mantendo o IN em respeito, penso que este nunca empenhou efectivos suficientes e capazes para provocar danos consideráveis. No fundo o IN sabia que enquanto aquele pessoal ali estivesse enquistado, a tropa do Xime, com a dispersão acima referida, estaria muito menos apta a fazer operações complicadas.

As relações entre o pessoal podem considerar-se muito boas, não havendo atitudes condenáveis, que até seriam possíveis num ambiente concentracionário como aquele. A convivência com a milícia logo de início se mostrou muito favorável porque, abastecendo-se de géneros junto das NT, passaram a pagar muito menos do que anteriormente porque os preços eram os mesmos que nos eram debitados sem alcavalas de qualquer espécie.

Não me recordo da existência de familiares a viverem com o pessoal africano, mas, segundo o testemunho do tabanqueiro Manuel Moreira, uma mulher deu à luz na época em que lá esteve e foi o 1.º cabo aux enf Cordeiro Rodrigues, o "Palmela", ajudado por ele, que assistiu ao parto.

Com a falta de géneros tudo se aproveitava incluindo a caça, que se resumia a tiro de rajada para bandos de aves grandes, pernaltas (não sabemos quais) e, se caíam nas redondezas, eram o pitéu desse dia.

Felizmente com a redistribuição das Forças no terreno, iniciada pelo brig Spínola, foi a Ponta do Inglês evacuada sem problemas em 7/8 de Outubro de 1968, pondo-se fim ao disparate da sua existência.

Há uma enorme falta de informação (para mim) sobre a evacuação da Ponta do Inglês; nem na história do BART 1904, nem na da CART 1746, apenas é mencionada a data em que se efectuou. Tenho ideia que, para além do pelotão da 1746, Secção de Morteiros e Milícia, estiveram na Ponta do Inglês pessoal de outras unidades a montar segurança (mas quais?) enquanto o pessoal carregava a barcaça Bor de todo o material e bagagem da rapaziada. Estivemos nas imediações da Ponta Varela a assegurar a passagem da Bor a caminho de Bambadinca. Foi uma operação, para mim sem nome, que envolveu mais meios que não recordo.



Guiné > Carta de Fulacunda (1955) > Escala de 1/ 50 mil > Posição relativa da Ponta do Inglês, na maregm direita do Rio Corubal, fente à pensínsula de Gampará.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2012)


Segundo informação de oficiais do BART 1904, o brig Spínola com o respectivo séquito aterrou na Ponta do Inglês, já ia adiantado o carregamento da Bor, mandando evacuar a segurança, depois de se ter armadilhado o que estava determinado, e só depois reparou que já não havia segurança nenhuma e que ele e os outros oficiais que o acompanhavam tinham ficado, como hei-de dizer, abandonados na margem do Corubal com o pessoal do ou dos helis a chamá-los quando se aperceberam da situação.

O pelotão da Cart 1746 chegou ao Xime sem problemas e todos tivemos uma enorme alegria por voltarmos a estar juntos. ...E na verdade o que vos doi... É que não queremos ser heróis (Fausto).

António Vaz, ex cap mil

PS - Esta estória da Ponta do Inglês só foi possível com as recordações do Manuel Moreira (releiam o Fado da Fome), do João Guerra da Mata, o ex-Alferes – último comandante daquele destacamento, e de Vera Vaz nas interpretações desenhadas.

[ Revisão / fixação de texto / parênteses retos,  efeitos de publicação deste poste: LG ]


Leiria > Monte Real > Palace Hotel de Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande >  21 de Abril de 2012> O ex-alf mil João Mata (à esquerda) e o ex-cap mil António Vaz, à direita, ambos da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69). 

O João Guerra da Mata foi o último comandante do destacamento da Ponta do Inglês, um dos míticos topónimos da guerra da Guiné.  Julgo que vive em Évora. Infelizmente, não é membro da Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados   [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

 (*) Vd. postes de:

21 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)

3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4632: Os bu... rakos em que vivemos (13): Sare Banda um dos bu…rakos em que morremos! (A. Marques Lopes)

8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4481: Os bu...rakos em que vivemos (12): Cafal Balanta contribui para o desenvolvimento nacional (Manuel Maia)

18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4369: Os bu...rakos em que vivemos (11): Banjara City, capital do Oio (Fernando Chapouto, CCaç 1426, 1965/66)

14 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4346: Os bu...rakos em que vivemos (10): Também havia um em Nova Lamego (Luís Dias)

11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4321: Os Bu...rakos em que vivemos (9): No Mato Cão, com o Ten-Cor Polidoro Monteiro, em finais de 1971 (Paulo Santiago)

11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4317: Os Bu... rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)

27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4252: Os Bu... rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)

19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4211: Os Bu...rakos em que vivemos (6): Banjara, CART 1690 (Parte II): Lugar de morte (A. Marques Lopes / Alfredo Reis)

12 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4175: Os Bu...rakos em que vivemos (5): Guileje bem se podia considerar um hotel de 5***** (Manuel Reis)

10 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4168: Os Bu... rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)
7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4153: Os Bu... rakos em que vivemos (3): Acampamentos de apoio à construção da estrada T.Pinto/Cacheu (Jorge Picado/José Câmara)

5 de Abril de 2009 Guiné 63/74 - P4141: Os Bu... rakos em que vivemos (2): Bula, CCCAÇ 2790 (António Matos)

31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

(**) Vd. 7 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)

(***) Vd. 30 de 20 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012

(****) Vd. poste de 11 de janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23654: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (97): os geradores militares: contributos para a história da eletricidade no território (Manfred Stoppok / José Nunes / Eduardo Estrela / Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Carlos Silva / Cherno Baldé / José Colaço / Magalhães Ribeiro / Valdemar Queiroz / Manuel Gonçalves / Luís Graça)


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem... (José Silvério Correia Nunes, ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade,  BENG 447m Brá, 1968/70: esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau).

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentários ao poste P23647 (*): 

(i) Manfred Stoppok, antropólogo social,  Universidade de Bayreuth, Alemanha

Muito obrigado pelos vossos valiosos comentários! Posso partilhar aqui algumas informações sobre a evolução do sistema de eletricidade na Guiné:

Distribuição e iluminação publica em Bolama e Bissau a partir de 1930; em Bafatá a partir de 1933. Nos anos 1920 já tinha iluminação de alguns prédios em Bubaque, e provavelmente também em Bolama, mas não foi uma distribuição publica.

Em outros lugares somente depois da segunda guerra mundial, respetivamente a partir de 1947 foram instalados geradores em vários sítios (cerca 20 lugares).

O fornecimento de energia elétrica 24/7 somente realizou se em Bissau. Existiam planos para criar uma rede de distribuição em alta tensão mesmo para o interior – mas não foram realizados. A administração optou pelo sistema de pequenos geradores em todos lugares, porque no curto prazo foi o mais viável, o mais barato, o mais rápido. Mesmo que, já naquele tempo, se subesse que um sistema assim iria criar muitas problemas na manutenção e  ser muito fraco ao longo prazo.

Deve ser por isso que os militares instalaram a maior número de geradores no país na sequência da guerra.

A fonte sobre os geradores no país é um relatório do engenheiro José Correia da Cunha Barros,  de 1969. Em anexo ao relatório há uma tabela que lista 73 lugares, dos quais 59 têm gerador. E daqueles, a maioria eram propriedade do exército. Naquele tabela constam de mesmo os nomes e números dos geradores – tudo bem detalhada.

Barros, José Correia da Cunha (16.07.1969): Problemas eléctricos na Província de Guiné - Visita efectuada de 18 a 30 de Junho de 1969. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), PT/IPAD/MU/DGOPC/DSE/1579/00782.

Bem, foi este fonte que me avisou, que os militares têm um certo papel na história da eletricidade na Guiné. E parece que este papel foi maior de que somente iluminar os próprios aquartelamentos.

Sie alguém está interessado nos detalhes dos geradores,  posso partilhar o relatório com a tabela numa versão digital. Parece que esta lista não é completa. Como eu li nos comentários havia mais aquartelamentos, e todos tinham um gerador.

Em geral, o engenheiro Cunha Barros descreve o sistema dos geradores como um sistema muito degradado já no final dos anos 1960. Falta de peças, faltas de manutenção, diferentes marcas, mal instalados, sistemas avariados há muito tempo e ele não entende porquê. Ele deu algumas ideias para melhorar o sistema (entre outras, unificar os geradores, ter somente uma marca, e somente três, quatro diferentes potências), mas aparentemente não se realizou antes da independência.

Depois, aquele sistema de geradores caiu totalmente. Por outro lado, o sistema é persistente. Ate hoje, a distribuição elétrica na Guiné funciona a partir de pequenos grupos de geradores, são frequentemente adquiridos novo grupos, instalados, abandonados, degradados, um circulo vicioso. Mas é desta maneira que o sistema de eletricidade funciona principalmente até hoje. O fundo do poço foi em 2008, quando mesmo a cidade de Bissau raramente tinha luz – isso melhorou bastante desde 2014/15.

Por isso o meu projeto fala de um período de eletrificação (até os anos 1980): eletrificação (anos 1980 – até 2008) e re-eletrificação (a partir de 2008),  na Guiné-Bissau.

Neste sentido, quero comprender melhor qual foi o impacto da electricidade fornecida pelas forças armadas.


(ii) Eduardo Estrela:

Os geradores que operavam no interior do quartel de Bolama, alimentavam os candeeiros de iluminação pública da cidade.

(iii) Fernando Gouveia: 

Tanto quanto me lembro, em Bafatá acontecia um caso curioso. Ali, em 1968/70, o quartel, pelo menos o do Comando de Agrupamento nº 2987 e o do Esquadrão de Cavalaria ao lado, recebiam a energia elétrica pública da Administração a troco do combustíbel para os geradores.

(iv) António J. Pereira da Costa:

Nos quartéis onde estive, quem trabalhava com o gerador era um soldado que tinha jeito e tinha aprendido a reabastecer, mudar o óleo e vigiar os manómetros... Era como se fosse uma viatura. Recordo-me que em Cameconde, os dois condutores "residentes" eram os responsáveis pelo motor.

(v) Carlos Silva:

No meu Sector O2 - Farim que compreendia, além de Farim, o subsector de Jumbembem onde estive 18 meses, o aquartelamento era dotado de um gerador que apenas funcionava durante a noite e a população que até meados de Setembro também beneficiava da iluminação porque estava enquadrada dentro do aquartelamento. Com o reordenamento a partir de meados de 1970 a população ficou fora do arame farpado e, como tal, deixou de beneficiar de iluminação, excepto as tabancas que estavam próximas do arame farpado.

Creio que esta situação também se verificava nos aquartelamentos de Canjambari e Cuntima. Estive no mês de Novembro de 1969 no K3/Saliquinhedim, e o abastecimento/funcionamento eléctrico era igual.
Os frigoríficos eram alimentados a petróleo.

Quanto à vila da Farim onde estive 4 meses até Dezembro 1969, os edifícios militares dispersos, e os arruamentos tinham iluminação pública abastecida por uma central eléctrica que lá existia / existe junto às piscinas. Actualmente creio que não funciona, mas existe iluminação com a implantação de postes solares.

Os comerciantes, alguns, tinham geradores.

Mas para mim, presumo que a electrificação ou fornecimento de energia nos aquartelamentos em toda a Guiné, era semelhante com recurso aos geradores excepto nos grandes aglomerados, como Farim, Mansoa, Teixeira Pinto, Bafatá, Nova Lamego, Cacheu etc, etc

Portanto para mim, esta era a característica geral da Guiné no que se refere à energia.

(vi) Cherrno Baldé:

No quartel de Fajonquito (sede da companhia) situado ao lado da aldeia, havia um pequeno e barulhento gerador a diesel que servia para iluminar dentro e à volta do aquartelamento que, se a memória não me falha, chegou em meados de 1968/69, antes utilizavam-se candeeiros vácuos em alguns sítios (para iluminar a zona do refeitório e a messe de oficiais e sargentos, entre outros). Havia um militar encarregue especialmente dos seus cuidados de manutenção.

Após a independância, ainda funcionou durante alguns meses (penso que enquanto durou a reserva de combustível deixado pela tropa portuguesa), mas com a decisão de acabar com o aquartelamento e centralizar tudo na sede do Sector (Contuboel), destruiram as instalações que eram antigas casas comerciais e levaram consigo o gerador. Ninguém deu satisfação à populaçao local, também não fazia muita falta, porque nunca tinham beneficiado dos seus serviços, salvo a criançada que procurava as zonas iluminadas para brincadeiras nocturnas.

De qualquer modo a nossa aldeia ficou mais escura e triste com a partida da tropa e, mais tarde, da confiscação do gerador. Sou de opinião que a tropa metropolitana concentrada mais nas manobras da sua retirada e regresso a casa, nao teria qualquer interesse em retirar os geradores nos aquartelamentos que já tinha entregue, de forma pacifica e amistosa, aos guerrilheiros.

(vii) Tabanca Grande Luís Graça:

Obrigado, Cherno, mais uma vez, pela partilha das tuas memórias de menino e moço em Fajonquito. Também me parece que, com a retirada das NT, ao longo de julho/agosto/setembro de 1974, o essencial do equipamento (geradores, incluidos...), tirando o armamento, ficou lá nos quartéis do mato, e naturalmente em Bissau... Era um gesto de paz e amizade, depois dos acordos de Argel...

De resto, o custo de transporte para a metrópole era elevado, para não dizer proibitivo...nem havia meios de transporte suficientes... Para os guinenenes, o grande desafio era depois a manutenção... E aí foi um desastre, o PAIGC foi um "bluff", não tinha quadros para desempenhar tarefas, aparentemente tão simples como a manutenção e reparação da "rede elétrica" deixada no mato... Confiaram nos amigos russos, suecos, cubanos e outros... Em Bissau, não sei como foi, mas pelo que vi, "in loco", em 2008, era uma dor de alma aquela cidade... Não consegui sequer entrar nos meus antigos aposentos, em Bambadinca, tive vontade de chorar...

(viii) José Botelho Colaço

Luís,  nem dá para comentar,  é do conhecimento geral o PAIGC só foi rico em propaganda antes da independência, porque após independência não preservou nada, foi a  degradação total tanto de móveis como de imóveis. Enquanto durou e funcionou OLm  a seguir sucata ou ruinas. Veja-se a linda cidade colonial de Bolama como eu a conheci, hoje um abandano total de ruínas, mas é que não foi só Bolama foi a totalidade de quase tudo para não dizer tudo, o que os tugas lá deixaram. É desolador.

(ix) Eduardo Magalhães Ribeiro:

Em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974, naquela que era a central eléctrica, localizada entre o quartel e a cidade, ficaram perfeitamente funcionáveis 2 geradores movidos a diesel, não me lembro se eram de 0.8 ou 1,1 MW. Dias antes e uns dias após, foi explicado e estiveram em estágio conjunto de formação aos futuros donos da central vários elementos da tropa portuguesa e do P.A.I.G.C.

A CCS do BCAÇ 4612/74 e toda a tropa ainda estacionada em Mansoa abandonaram o quartel no dia acima indicado. A CCS a que eu pertencia,  foi deslocada para o Batalhão de Engenharia 447 em Brá.
Três dias depois estava eu de sargento de dia, junto à porta de armas, quando surgiu um jipe com 4 PAIGC a pedirem para falar com o nosso comandante. Perguntei qual o assunto que pretendiam os trazia ali. Resposta de um deles: "Os geradores deixaram de trabalhar."

Liguei então, via telefone, ao coronel Américo Varino a narrar a informação recebida. Passado um tempo vem o nosso furriel mecânico com 2 soldados num jipe dos nossos que seguiu atrás dos PAIGC.

Horas mais tarde surge o nosso jipe. Perguntei ao furriel: "Então, pá, o que se passou?"... Resposta: "Aqueles nabos trocaram tudo. Meteram diesel no depósito do óleo, água no sítio do óleo e óleo no depósito do diesel. Está todo partido por dentro e sem reparação possível."

PS - Ainda me segredou que os PAIGC  murmuraram que foram os nossos homens que sabotaram os ditos geradores. Coisa que eu nem vou comentar aqui, para não meter nojo, claro.

(x) Valdemar Queiroz:

Julgo que em Nova Lamego o gerador produzia electricidade para os civis e para a tropa, e penso que a manutenção e a segurança eram feitas por gente da administração e sipaios. Digo isto por, nunca a minha CART 11 ter feito segurança ao gerador, mas montava emboscados e rondas nocturnas como o pessoal do Batalhão.

Quando Nova Lamego foi atacada por foguetões122 mm,  os nosso soldados foram fazer a segurança ao gerador, o meu pelotão não foi e não me lembro se estava assim pré-definido ou se foi alguma ordem ocasional. Mas os frigoríficos da companhia trabalhavam a petróleo.

Não vem a propósito mas pode interessar, o sistema de iluminação que estava montado na fiada interior do arame farpado em volta de Giro Iero Bocari era o cúmulo do desenrasca das invenções. Guiro Iro Bari era um destacamento de Paúnca com dois pelotões junto da população, apenas com umas tendas, valas e duas fiadas de arame farpado em todo o perímetro.

Uma lata vazia, das grandes, de doce/feijão aberta ficando a tampa presa por forma a ser dobrada para se aproveitar ao máximo, como uma pala virada para o céu. Dentro da lata uma garrafa de cerveja com petróleo tapada com uma carica furada e uma torcida. Á noite acendia-se a torcida e a luz refletida na tampa da lata dava um bom candeeiro que só dava luz para a frente.

(xi) Manuel Gonçalves:

O nosso amigo e camarada, transmontano de Bragança, Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Manutenção da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73) (e que estudou nos Pupilos do Exército), disse-me ao telemóvel o seguinte sobre os geradores:

(i) havia dois em Aldeia Formosa, no seu tempo;

(ii) a responsabilidade pela sua gestão era do pelotão de manutenção da CCS/BCAÇ 3852, de que ele era o responsável, enquanto alferes miliciano;

(iii) em caso de avaria, é que se chamava o BENG 447 (que estava em Brá, Bissau);

(iv) funcionavam os dois, alternadamente, até à 1h00 da noite, depois eram desligados;

(iv) forneciam luz para o quartel e parte da tabanca;

(v) não tinham potência para iluminar a tabanca toda;

(vi) ele chegou a sugerir a eletrificação da pista de aviação (onde aterravam todas as aeronaves, exceto o FIAT G-91); mas nunca se concretizaou: em caso de emergência, à noite, usavam-se garrafas a petróleo para balizar a pista (!)...

(vii) ficou de nos dar mais informação técnica sobre os geradores de Aldeia Formosa (hoje Quebo).

Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 26 de Setembro de 2022:

Caros camaradas,
Por me parecer oportuno, face ao desafio do Mário Beja Santos - que me "empurrou" - fez ele bem - para este tema, aqui vai a terceira parte. Outros andarão bem melhor nesta matéria: historiadores, antropólogos, padres...
Fica este registo.

Saudação camarada.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação – III

Paulo Salgado

Vejo-me compelido, por imperativo histórico, a trazer junto de vós, camaradas que me ledes neste Blogue, sério e participativo, uma reflexão que se deve ao Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa».[1] Mas, antes, não posso deixar de relembrar que «a bula Acquum Reputamos, de Paulo III, conhecida como a "magna carta" do padroado real português, para além dos conteúdos habituais das bulas precedentes concedidas a Portugal, reflecte uma realidade político-religiosa ligeiramente diferente da que se viveu em décadas anteriores».[2] Este documento papal favorecia e privilegiava a missionação portuguesa, concedendo a possibilidade de evangelização, mas igualmente a responsabilidade de zelar materialmente pela manutenção das igrejas fundadas ou a fundar. Também conferia a sede episcopal de Goa. Refira-se que o padroado português sofreu ao longos dos séculos diversos episódios, em especial os relativos ao surgimento de outras igrejas cristãs apoiadas por países não católicos e que fundaram as suas missões, algumas com relevo notável e que se mantêm hoje em actividade. Igualmente, são de mencionar os diversos acordos efectuados e reajustados ao longo do século XIX e mesmo no século XX da parte da Igreja e dos reis de Portugal.

Na missionação utilizava-se o termos “infiéis”. Ainda que não concorde com esta designação (infiéis, porque não pertenciam ao Cristianismo… designação que surge afastada, como defende o Papa Francisco), que surge abundantemente em vários textos desde o século X (ou antes) e por aí adiante, mesmo por Francisco Xavier e outros célebres missionários, tem de fazer-se o seu registo.

Transcrevo, pois:
«A missionação portuguesa desenvolve-se ao longo dos séculos, em torno da obra dos prelados diocesanos e das ordens religiosas que se vão fixando nos territórios de missão: franciscanos, dominicanos, capuchinhos, jesuítas, ursulinas, merecendo uma menção especial os religiosos da regra de Santo Agostinho, cuja acção foi importante na interpelação dos governantes para que agissem, e fizessem agir os súbditos, como cristãos».

E acrescenta:
«Com S. Francisco Xavier, o "Apóstolo das índias", abre-se uma era nova na missionação do Oriente. Para além dos 30.000 baptismos que lhe são atribuídos, de uma acção constante em Cochim, Malaca, Molucas e Cantão, deve-se-lhe uma atitude diferente em relação a povos e culturas, de forma que não se hesita em reconhecer que, com S. Francisco Xavier, começa a missionação moderna. Japão, China e Indochina recebem também missionários portugueses, e, não obstante o sucesso da presença de S. Francisco Xavier no Japão, a missionação aqui acaba por sofrer inclemências terríveis do poder político, de que é símbolo o martírio de Nagasáqui. Mas, significativa é esta exclamação de S. Francisco Xavier, em carta escrita do Ceilão: "Bendito seja Deus, porque tornou tão florescente o nome de Cristo entre esta multidão de infiéis!".
Despedida de Xavier na corte do rei D. João III
In: https://devocaofrancsicoxavier.blogspot.com/p/iconografia-gravuras.html

À missionação no Brasil está imperecivelmente ligado o nome do Padre Manuel da Nóbrega, fundador da Província do Brasil e da cidade de São Paulo, o primeiro jesuíta do Brasil e da América, como o designou o Padre Serafim Leite. Nóbrega teve tal actuação, como exímio religioso e verdadeiro homem de Deus, na concertação com governantes, em defesa de autóctones, que o historiador Robert Southey não hesitou em chamar-lhe "o maior político do Brasil". Contudo, a sua figura grada brilha mais como parte dessa tríade de construtores de missão no Brasil: Nóbrega / Anchieta / Vieira».
Padre jesuíta no Brasil Colonial

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Notas:

[1] - Janus 1999-2000, Missionação portuguesa. In https://www.janusonline.pt/arquivo/1999_2000/1999_2000
[2] - David Sampaio Barbosa - Padroado Português: privilégio ou serviço (séc. XIX)?

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Nota do editor:

Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23649: Notas de leitura (1499): Algumas (breves) notas sobre missionação (II) - Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)