sábado, 1 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23659: Os nossos seres, saberes e lazeres (528): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (70): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 8 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Um dia teria que ser. Não se pode andar impunemente a circular à volta de um edifício que terá sido um dos maiores do século XIX, nunca encontrar ensejo para subir tão farta escadaria e pedir licença para entrar no colosso. Não tenho termo de comparação para o Palácio de Justiça de Bruxelas, é sombrio por fora, de manhã, à tarde e à noite, sempre o conheci com andaimes em qualquer uma das faces e até na cúpula, quando falava dele aos meus amigos belgas diziam-me sempre, não percas tempo com aquela grandiosidade fria. Poelaert foi o arquiteto escolhido, gozava de fama, tinha no seu currículo a construção da Coluna do Congresso, a reconstrução do Théâtre de la Monnaie, mas não se ficava por aqui o seu prestígio. Reza a lenda que nunca apresentou os planos completos e definitivos do que pretendia construir. Morreu em 1879, o seu isolamento era total e a obra estava inacabada. O Palácio foi inaugurado em 1883, demorara cerca de 20 anos a pôr aquele gigante de pé, mas era um edifício em progresso e em progresso se mantém, quem o visita fica sempre com a sensação de que há muito mais coisas para acabar, é o lado enigmático, quase fantasmático, da visita. Tanto gostei que irei repetir, logo que regresse a esta terra bem amada.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (70):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 8


Mário Beja Santos

No metro, a caminho de Hermann-Debroux, a estação mais próxima de Watermael-Boitsfort, recebo um telefonema de Alfons Driesen, o previsto guia para no dia seguinte percorrermos as cidades-jardim da comuna em que eu vivo, informa-me que tanto ele como o seu colega Emile Francqui estão impedidos por razões de saúde de me acompanhar, só depois de amanhã, agradeço, confirmo a minha disponibilidade e começo logo a dar voltar à cabeça para um programa de remedeio, já visitei Notre-Dame des Victoires no Sablon, Nossa Senhora do Bom Socorro, não sinto por ora grande disposição para percorrer os subterrâneos do Palácio Coudenberg, a residência de Carlos V, foi destruído por um terrível incêndio em 1731, o que resta são os vestígios arqueológicos, o mesmo ocorre de um conjunto de passeios guiados sobre o antigo porto de Bruxelas ou o museu de arquitetura. Ainda me sinto tentado por uma manhã de palestras dedicadas à família Bruegel na Biblioteca Real do Rei Alberto, um conjunto de peritos irá falar destes membros de família, logo Pieter Bruegel, o Velho, depois o jovem, e depois Jan Bruegel, o Antigo, no contexto da pintura do seu tempo em que se revelaram os génios de Bosch ou Bernard van Orley. É nisto que me passa pela cabeça ir finalmente ao Palácio de Justiça, o mais gigantesco edifício de Bruxelas, que me assombrara depois de ter lido o livro “Bruxelas, Percursos”, por François Schuiten e Christine Coste, uma edição do jornal Público com a ASA, 2011. É um guia que me acompanha sempre, nesta terra tão amada. Texto tão cativante que poderá servir para comentar as imagens a este babilónico templo da Justiça.
Não se lhe consegue escapar. Mais tarde ou mais cedo, avistamo-lo. De longe, a sua cúpula coroada e decorada a ouro serve de ponto de referência. De perto, o edifício monumental de aspeto sombrio e severo interroga-nos, inquieta-nos ou fascina-nos. O Palácio da Justiça de Bruxelas não deixa ninguém indiferente. Leopoldo I nomeou o arquiteto Joseph Poelaert, em 1861 para seu arquiteto. Durante 17 anos, Poelaert, glorificado e depois repudiado, enfrentou esta construção desmensurada, erguida sobre um canto de Marolles, tudo foi destruído à volta para implantar esta magnificência de colunas, arcos, escadarias e vestíbulos monumentais. Vou descobrir como o interior oferece um cenário fascinante. A construção continua inacabada. Fica-se especado frente a este edifício sombrio, à volta circulam elétricos e carros, o panorama que se desfruta do miradouro, ali bem perto, é de uma largueza sem paralelo, em frente ao edifício ciclópico pranta-se um monumento de homenagem aos combatentes da Primeira Guerra Mundial.
Sempre conheci o Palácio em obras, sempre com andaimes em qualquer ponto do colosso de pedra. Fiz a volta completa pelo exterior, é hora de nele penetrar, o guia usa expressões misteriosas, há imensos espaços que permanecessem inacessíveis, portas que nunca foram abertas, paredes falsas, catacumbas ainda por explorar, fala-se mesmo em símbolos maçónicos, tudo somado e multiplicado são 26.000 m2 de área, 576 divisões, 8 pátios interiores (hoje cobertos), sobem-se os degraus e entra-se neste templo desmesurado, atravessa-se o pórtico de colunas.

Tudo foi pensado para ser solene. Multiplicadas, aumentadas ou engrossadas, colunas, pilastras, cornijas, abóbadas e esculturas, temos um registo grave e grande eloquente, é uma espantosa mistura de estilos onde avulta o greco-romano, o egípcio e o mesopotâmico. A Grécia omnipresente, Roma menos, temos para ali estátuas de Cícero, Demóstenes, Sólon, um busto de Minerva, segue-se a apoteose do espaço, a Sala dos Passos Perdidos, 3.600 m2 de superfície, colocada no centro do edifício, e para quebrar a vertigem ao mastodonte temos a cúpula, 100 m acima do olhar, uma nesga de céu fictício. Aqui e acolá, passam advogados, clientes, magistrados, funcionários e visitantes como eu. Há mesmo um quiosque de jornais, no chão uma estrela de cinco pontas, com a ponta virada para o Sul, para o alto, símbolo maçónico benevolente, estrela que ilumina, luz sobre o mundo. E sobe-se para a galeria do 1º andar, há duas escadarias monumentais à escolha.
Aqui sente-se a Justiça, há tribunal criminal ou de primeira instância, Supremo Tribunal de Justiça, registo comercial, arquivo, bibliotecas, salas umas atrás das outras, viajo sem destino, já percebi que não vale a pena guiar-me pelos números das salas de julgamento, mas pode-se bisbilhotar pelas portas entreabertas enquanto avançamos pelo labirinto. Descanso e leio mais pormenores do meu percurso. À direta da Sala dos Passos Perdidos, a descida anuncia-se numa longa vaga gelada rodeada de galerias que desenham braços desnudos cada vez mais largos à medida que nos aproximamos da enorme porta de entrada. Poelaert imaginou uma praça, desafogada, nada se concretizou porque os habitantes do bairro de Marolles contestaram mais razia, aquele Palácio obrigara a que 15.000 habitantes tivessem procurado refúgio na parte baixa de Marolles ou na comuna de Saint-Gilles, tudo sem indemnização. Pode pensar-se no rancor desta população que foge de qualquer convívio com tal monstruosidade de pedra.
Enquanto por aqui me passeio, recordo que já percorri este itinerário à noite, há refletores suspensos no teto que espalham uma luz branca, fica uma atmosfera crepuscular que tornam este Palácio um cenário de cinema. Não é por acaso que aqui têm lugar filmagens. E venho para a rua lendo que há diligências oficiais para que o Palácio seja declarado património mundial. E o guia diz-nos ainda que este Palácio de Justiça é um enigma cujo corpo de delito escapa ao entendimento, à semelhança da cidade em redor. Como ele, Bruxelas cresce presa na teia das suas decisões e das suas errâncias, deslocando-se pelas partes mais cinzentas e destrutivas do seu espírito, assim como pelas mais luminosas e criativas. Concluída a visita, uma contemplação a quem deu a vida pela pátria, isto de ser antigo combatente tem muito que se lhe diga em redes de companheirismo e de solidariedades inatingíveis.
(continua)
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Nota do editor

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