Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (1969/71) > O sold cond auto Aniceto Rodrigues da Silva, natural de Anadia (1947-2021). Vitima de Covid-19, entra para a Tabanca Grande a título póstumo. (*)
Anadia > Paredes de Bairro > Dezembro de 2018 > Da esquerda para a direita, a Susana, o pai, Aniceto, a mãe e o irmão mais novo,
Anadia > Agosto de 2019 > Selfie, foto de grupo
Fotos (e legendas): © Susana Almeida Novo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem de Susana Almeida Novo, enfermeira e professora de enfermagem em Inglaterra;
Data- 1 fev 2021 12h00
Assunto - Morte do Aniceto R. da Silva, sold cond auto, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) (*)
Bom dia a todos [, editor, LG. e vários camaradas da CCAÇ 12],
Não sabem a emoção que tenho, ao ler os e-mails recebidos!
Eu moro, sim, no estrangeiro, na Inglaterra (perdoem-me algumas palavras sem acentos, o autocorretor português só reconhece metade).
Vim para cá em Janeiro de 2013. Sou enfermeira com especialidade em cuidados intensivos e professora de enfermagem. [Foto à esquerda, do perfil no Linkedin]
O meu pai ficou doente no início de Dezembro, inicialmente sem sintomas de COVID, mas o que parecia ser uma gripe. Sentia frio e cansaço extremo, mas nunca tosse ou febre.
Ele era um tanto teimoso, evitava ao máximo médicos. Embora ele tenha sempre insistido que não tinha medo de morrer, o certo e que ele evitava estabelecimentos de saúde ao máximo. Nesta situação não foi diferente. Ele insistia que ia passar e dizia-nos de manhã que se sentia melhor, para tentar diminuir a nossa insistência em procurar um médico.
No dia 15 de Dezembro, à noite, os meus pais estavam sentados na sala a ver televisão e ele desmaiou por uns minutos. Ai a minha mãe não hesitou em chamar uma ambulância. O enfermeiro disse que ele tinha a tensão arterial demasiado baixa, provavelmente por desidratação uma vez que ele tinha perdido o apetite e também não bebia o suficiente.
Quando o levaram para o hospital testaram para COVID e regressou positivo. Ele manteve-se na enfermaria até ao dia 21, sem melhoras, depois foi transferido para os cuidados intensivos e no dia de Natal foi sedado e entubado. Falou com a minha mãe e o meu irmão mais novo uma vez, enquanto esteve no hospital por videochamada e a última vez comigo no dia 23 de Dezembro.
Uma das ultimas coisas que lhe disse foi precisamente que ele tinha ido à guerra e nem isso o tinha vencido, que ele ia vencer isto. Mas eu estava enganada e temos agora, enquanto família, uma dor sem fim. Não o poder ter abraçado, beijado, dado o apoio e incentivo que ele precisava e merecia. Quantas vezes temos de reler o certificado de óbito para nos convencermos que ele partiu, porque todos os dias acordamos à espera que ele nos entre pela porta adentro.
Eu não sou filha legitima dele. Quando ele e a minha mãe começaram a namorar, eu tinha uns 3 anos. No entanto ele é e sempre será o meu único pai. Quem sou hoje enquanto pessoa depende tanto dele e do quanto ele aspirava para que os seus filhos fossem as melhores pessoas que conseguissem ser.
Em Agosto de 1968, antes de o meu pai iniciar a Recruta, os pais e irmãos dele mudaram-se para os EUA, chamados por uma tia. Eles fizeram isso para livrar o meu tio também de ser chamado para a guerra. Em Outubro de 1968 o meu pai iniciou a tropa e depois de regressar da guerra juntou-se à família nos EUA.
Entretanto vinha a Portugal de visita e namorou uma rapariga que depois levou para os EUA, já casados. Desse primeiro casamento ele teve dois filhos (uma rapariga com quem ele perdeu a relação nos anos 90, e um rapaz que hoje tem 43 anos, casado e com dois filhos pequenos no EUA). O primeiro casamento acabou e ele continuou a morar nos EUA com o filho. Em 1995, já a namorar a minha mãe através de cartas, ele chamou-nos para lá. Em 2000 casaram. Enquanto esteve nos EUA fez vários trabalhos (construção, dono de uma lavandaria, soldador).
Em 2001 o meu ‘irmão mais velho’ (filho do primeiro casamento) casou-se e em Julho regressamos para Paredes do Bairro, Anadia, Portugal (de onde os meus pais são ambos naturais). Eu tinha na altura 11 anos.
Em 2002 os meus pais tiveram o meu irmão mais novo, o André (agora com 18 anos) que conseguem ver em várias fotos, que anexo. Ao olharmos para as fotos do meu pai na guerra vemos que o André é uma fotocopia do pai. O sentido de humor igual também.
Desde o regresso a Portugal o meu pai e a minha mãe dedicaram-se às terras. Tinham ambos saudades da natureza e passavam o tempo na terra e com animais de criação para ocupar o tempo. O meu pai era alguém exigente e muito brincalhão. Ele não conseguia passar muito tempo sem se estar a meter com quem estivesse para rir.
Ele relembrava o tempo da guerra com dor e revolta. A minha mãe falava ontem à noite da dor com que ele recordava o colega perdido Antonio Manuel Soares. Ele descrevia essa experiência como tendo sido uma das piores da vida dele. Ele recordava-nos do quanto éramos privilegiados por nunca termos tido a experiência da guerra, por sermos livres, fartos e protegidos. Ele tinha e tem razão, quanto abençoados nós somos sem saber.
Tenho tanta pena do facto de ele ter sido tão resistente às novas tecnologias porque imagino que voltar a encontrar-vos ter-lhe-ia dado tanta alegria. E convosco, que sabem melhor que ninguém o quanto passaram, ele poderia ter conversado sobre essa dor e revolta.
Obrigada pelo vosso sacrifício! Digo isto em nome de toda a minha família de coração. Enquanto hoje as pessoas vivem imbuídas em egoísmo e perdem o sentido comunitário e de respeito pelo outro, a vos era-vos pedido que deixassem tudo e todos em nome da pátria, que dessem a própria vida em nome da pátria. Que isso não seja nunca esquecido por mais gerações que passem!
Acima anexei algumas fotografias que tenho, estejam a vontade para editar e publicar no blogue. Em nome de toda a família temos todo o gosto que ele conste dele. E sempre que precisem de algo do qual achem que possa ajudar, por favor disponham, pois é com muito gosto que me disponibilizo.
Na campa do meu pai tencionamos pôr excertos do seguinte poema [Epitáfio, de Merrit Malloy, (n. Pensilvânia, EUA, 1950], porque o amor e tudo o que resta quando a vida acaba; isso e as marcas desse amor na vida dos outros com quem nos cruzamos.
Quando eu morrer
Dá o que restar de mim
às crianças
E aos idosos que esperam para morrer.
E se precisares chorar,
Chora por teu irmão
Que anda pelas ruas a teu lado.
E quando precisares de mim,
Coloca teus braços
Em volta de alguém
E dá-lhe o que precisas me dar.
Quero deixar-te algo,
Algo melhor
Do que palavras
Ou sons.
Busca-me
Nas pessoas que conheci
Ou amei,
E se não podes me deixar partir
Ao menos deixa-me viver em teus olhos
E não em tua mente.
Podes amar-me mais
Deixando as mãos
Tocarem as mãos,
Deixando os corpos tocarem os corpos,
E libertando
As crianças
Que precisam ser livres.
O amor não morre,
Pessoas sim.
Por isso, quando tudo que resta de mim
É amor,
Deixa-me partir.
Com carinho e os meus melhores cumprimentos,
Susana Almeida Novo
2. Resposta do editor Luís Graça:
Susana: é um hino de amor o que acaba de escrever e partilhar connosco, e que muito me tocou, pessoalmente.
Como gostamos de dizer, aqui no nosso blogue, "os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são". A Susana acaba de ser acolhida por todos nós, os amigos e camaradas da Guiné. As palavras que escreveu sobre os seus pais e a sua família, merecem ser partilhadas, como um humanissima história de vida, onde nos retratamos todos um pouco (a época difícil em que nascemos, a geração do seu pai e da sua mãe, a minha geração, a guerra do ultramar que mobilizou quase um milhão de jovens, o difícil regresso e readaptação a uma sociedade em profunda mudança, a emigração para muitos daqueles a quem a Pátria foi madrasta, a constituição e reconstituição das famílias, etc.).
A Susana é uma mulher de grande sensibilidade. Também não é por acaso que escolheu uma tão nobre e exigente profissão como a enfermagem. Falo com algum conhecimento de causa: também fui professor, nos anos 90, nalgumas das nossas melhores escolas de enfermagem, tive depois alunos de enfermagem em cursos de pós-graduação (como administração hospitalar) e de mestrado e doutoramento (gestão de saúde, saúde pública...). Eu próprio tenho uma irmã enfermeira, 19 anos mais nova do que eu... E uma sobrinha, em Inglaterra, em Londres, há cerca de 10 anos, a Raquel Calado, na área da neurologia.
Por outro lado, e como a Susana também é professora, pode ser que ainda possam ter alguma utilidade os muitos textos (mais de 200) que tenho na minha página pessoal, criada em 1999 (e, infelizmente, por atualizar há anos...)... Chama-se Saúde e Trabalho, Luís Graça, sociólogo, e inclui "papers" na área da sociologia histórica da medicina, enfermagem e outras profissões de saúde.
Dito isto, e uma vez que nos autoriza a partilhar a sua história, a história do seu pai e da sua família, vou selecionar apenas duas ou três das fotos que nos mandou, e apresentar o meu camarada Aniceto Rodrigues da Silva à Tabanca Grande, a comunidade virtual constituída por 826 amigos e camaradas da Guiné, uma rede social criada para partilhar memórias e afectos. Ele foi um dos 15 condutores auto, "excelentes e valorosos", da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (1961/71).
Infelizmente ainda temos poucas fotos do pai, enquanto militar. Mas pode ser que nos cheguem mais... Ele ficará, aqui connosco, em espírito, no lugar nº 828 (**), sob a proteção do nosso mágico, secular e fraterno poilão, a árvore sagrada da Guiné que existe no centro de todas as tabancas (aldeias).
Procuramos resgatar a memória de todos aqueles que, como nós, sabem ou souberam, no corpo e na alma, o significado da expressão "sangue, suor e lágrimas"... E não queremos que os camaradas que já partiram antes de nós, sejam inumados ou sepultados na "vala comum do esquecimento". É o mínimo que podemos fazer por eles. É o mínimo que podemos fazer pelo nosso camarada Aniceto.
Está explicado, também, o paradeiro desconhecido do seu pai, de quem não tínhamos nenhuma morada, e que nunca compareceu a nenhum dos nossos convívios, e já já vão duas dezenas e meia, desde 1994. Vamos guardar o seu endereço de email.
Obrigado pelo tempo que nos quis dispensar. Imagino que, sendo enfermeira de cuidados intensivos, não tenha muito tempo para si e para descansar, no meio desta horrível pandemia de Covid-19 que está a provocar baixas também nas nossas fileiras.
Vamos dando notícias. Desejo-lhe boa saúde e bom trabalho. Luís Graça, fundador e editor principal do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
PS - A Susana tem também aqui as cartas militares de alguns dos lugares por onde andámos, nós e o Aniceto e os demais camaradas condutores auto da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12:
Bafatá (1955)Bambadinca (1955)
Bissau (1949)
Contuboel (1956)
Galomaro / Duas Fontes (Bengacia) (1959)
Geba / Bambadinca (1955)
Mansambo / Xime (1955)
Padada (1959)
Saltinho / Contabane (1959)
Sonaco (1957)
Xime (1955)
Xitole (1955)
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