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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25840: Timor: passado e presente (17): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VIII: O campo de concentração de Liquiçá e Maubara


António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.


Capa do livro "Quando Timor foi Notícia", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Tem um prefácio propagandístico, datado,  do escritor António de Seves Alves Martins: " Estar, agora, Portugal  vitoriosamente em armas, como vitoriosamente esteve em paz na segunda grande guerra, dá plena atualidade a este livro bem revelador da força moral de um povo que não abdica dos seus direitos porque também não se demite dos seus deveres" (pág. 12)

Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942) (*), irá casar depois  com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, no campo de concentração de Liquiçá, em 1943. Viu a morte á sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois 



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.  O autor regressou a Portugal em 8 de dezembro no velho navio "Angola", com o governador e  a sua família e mais cerca de 170 refugiados.  Chegada a Lisboa em 24 de fevereiro de 1946!



Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.



Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Na II Grande Guerra, conheceu por duas vezes a invasão e ocupação por tropas estrangeiras (os Aliados, em 17 de fevereiro de 1941; e depois os japoneses, em 20 de fevereiro de 1942). Na altura teria pouco mais de 400 mil habitantes.  E tinha uma força militar simbólica.  Lugar de desterro, tinha mais deportados do que colonos e funcionários públicos.  O território era administrado por Portugal desde o início do Séc. XVIII.  Os timorenses tinham uma forte identificação com Portugal, o que não acontecia com os outros timorenses do outro lado da ilha, em relação à Holanda.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Timor  (uma descolonização difícil, hoje um país independente,  lusófono, desde 2002, como República Democrática de Timor Leste)  foi o único território  português ultramarino (na altura, designado como "colónia", até 1951)  
que, à revelia da declaração de neutralidade de Portugal,  
foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, durante a II Guerra Mundial (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945),  tropas aliadas (anglo-australianas  e holandesas) e  japonesas, respetivamente. 

Em fevereiro de 1942, ia uma força militar portuguesa, enviada de Moçambique, a caminho de Timor, quando se deu a invasão japonesa, em 19 desse mês, tendo sido desviada para Macau. A soberania do território seria retomada três anos e meio depois, em setembro de 1945.
 (A capitulação japonesa é a 22,  ainda sem a presença militar portuguesa: o nosso contingente só lá chega uma semana depois.)

Recorde-se que Portugal, mesmo não tendo participado na II Guerra Mundial, fez um elevado esforço militar, mobilizando bastantes efetivos para a defesa do continente,  das ilhas atlânticas e do império... Os efetivos em 1942 são já da ordem dos 116 mil homens. Chegam aos 130 mil a partir de 1943.  Há 3 divisões, totalmente equipadas, para defesa do continente.  
Para os Açores foram mobilizados  c. de 26,5 mil homens,
 para a Madeira, 3,4 mil, para Cabo Verde 6,7 mil 
e para Angola e Moçambique 20 mil... 
Não havia plano de defesa para Timor (**).

Mesmo publicado trinta anos depois dos acontecimentos, em 1972 (portanto, numa época em que ainda havia a censura a obras literárias, e os autores faziam autocensura),  o livro em apreço, "Vida e Morte em Timor" "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive,  continua a ser um documento importante para o estudo deste dramático  período da história do Timor português,  uma terra de que, afinal, pouco ou nada sabíamos. No entanto, o autor  usa muito  fonte  os livros do Cal Brandão e do António Liberato. 

Devido à censura (que esteve vigor entre nós, desde 1926 e 1974, e que era mais "apertado" em tempo de guerra,  em 1939-1945 e depois em 1961-1974), o "caso de Timor", com  todo o seu horror,  só foi conhecido após a II Guerra Mundial.  E que depois disso foi novamente silenciado. Enfim, só mais recentemente, 80 anos depois (!), a televisão e o cinema se interessaram pelo que aconteceu naquele território. 
 
Para ajudar a leitura que estamos a fazer, voltamos a  reproduzir neste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos (contrariamente ao que se passou na Guiné-Bissau ou em Angola, por exemplo, os topónimos continuam a ser os mesmos): 

(i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  | (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  ! (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  | (iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.

 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte VIII:  O campo de concentração de Liquiçá e Maubara


(i) Depois das chacinas de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942, e contactado por telegrama, em linguagem aberta, o governo central, em Lisboa, a escassa população portuguesa, de origem europeia, está numa situação "dificílima", para não dizer desesperada. 

De Lisboa não virá qualquer socorro... Os portugueses estão isolad0s (e literalmente abandonados). Mas era preciso que ficassem, estoicamente, quais mártires cristãos,  para assegurar, no fim da guerra, a soberania sobre o território... Homens, válidos,  civis e militares, incluindo os deportados, mais as  mulheres, as crianças, os doentes  e os velhos... Não seriam mais do que 3 centenas...

Uma parte da população portuguesa europeia acaba 
por se conformar  com a solução imposta pelos japoneses, 
a da concentração  dos sobreviventes em Liquiçá e Maubara,
 no distrito de Díli,  a oeste da capital. Ironicamente, 
"sob a proteção das tropas nipónicas"... 

Estamos em novembro de 1942.
Não era "campo" mas "zona", sem arame farpado... ! 
"Zona de proteção", segundo a Cacilda Liberato. 
Uma designação eufemística. 
A estratégica das sinistras tropas do Japão Imperial, 
xintoísta, militarista, xenófobo, racista  e ultranacionalista,
 era claramente a de separar os portugueses dos timorenses, e deixar os primeiros morrer de fome, doenças, vexames, arbitrariedades (e chacinas, 
em consequência dos "raides" das "colunas negras")... 
Afinal, os portugueses , tal como os holandeses, os ingleses, os franceses, etc, eram o rosto do odiado colonialismo europeu.
 
 Num dos seus livros de memórias, o capitão Liberato (**) 
sintetisou este acordo, nestes termos: «A zona de concentração (...) 
 abrangeria as áreas dos postos administrativos de Liquiçá e Maubara.

"Ali se concentrariam todos os portugueses. Os destacamentos militares,
 o meu e o do tenente Ramalho dos Santos, estabelecer-se-iam respetivamente em Boebau, área de Liquiçá, e nas montanhas de Maubara, com a missão de defender a integridade da zona, contra os ataques dos indígenas.

"Cada português poderia conservar em seu poder uma arma de fogo 
para defesa pessoal. Os indivíduos cujas funções obrigassem 
a permanecer em Díli, residiriam no hospital Dr. Carvalho, 
em Lahane». (...)


(...) Entretanto, haviam sido montados os serviços indispensáveis a vida da pequena comunidade agora reunida na região Liquiçá-Maubara (1). 

Como administrador da zona, continuou o engenheiro Canto, com todo o seu entusiasmo e desejo de bem servir. Agindo sob a sua direcção, ficaram à testa dos postos de Liquiçá e Maubara, dois militares, sargentos António Joaquim Vicente e José Miranda Relvas (...)

Na zona de concentração funcionavam, também, os Serviços de Fazenda, dirigidos pelo Dr. Tarroso Gomes, e a assistência médica era prestada pelo Dr. Francisco Rodrigues, coadjuvado por vários enfermeiros e enfermeiros auxiliares, em serviço nas enfermarias de Liquiçá e Maubara.

 (...) «E era tudo. Os vagos Serviços de Abastecimentos, que também se organizaram, mostraram-se pouco eficientes. A sua acção só se fez sentir, enquanto o problema da alimentação não apresentou dificuldades» (1) .

«Quanto à defesa da zona contra as possíveis arremetidas do gentio das regiões limítrofes, ficou unicamente a cargo do destacamento português acampado em Boebau e na Granja Eduardo Marques. As forças do tenente Ramalho dos Santos,desarmadas em Baucau, não puderam ocupar as posições que lhe estavam destinadas, para assegurarem, a defesa da região de Maubara. Dissolvidas, apenas dois ou três elementos europeus e o seu comandante se juntaram aos concentrados (1).

Na zona, logo introduziram os japoneses a sua terrível «Kempy» (1), chefiada por um simples cabo, o famigerado Kato, a qual se instalou numa casa próxima da enfermaria de Liquiçá." (...)


 (ii) Face ao ocupante nipónico, os portugueses estavam divididos em dois grupos: os que acatavam as ordens do governador Ferreira Carvalho (o mesmo é dizer, do governo central);   e os que resistiam contra os japoneses, juntando-se à guerrilha australiana e timorense, como era o caso do advogado portuense, deportado, o dr. Cal Brandão, e outros deportados, bem como  os administradores Manuel de Jesus Pires  e A. Sousa Santos, o luso-timorense Júlio Madeira e diversos "liurais" (régulos), aliados dos portugueses como Dom Aleixo Corte Real.


Manuel de Jesus Pires, antigo administrador de Baucau ("Vila Salazar") consegue, com a ajuda dos australianos, e à revelia 
do governador Ferreira Carvalho,  salvar cerca de 
uma centena de mulheres e crianças, 
que serão levadas para a Austrália, 
em 18 de dezembro de 1942, 
numa navio que aportou  em Aliambata,
na parte sul do território. 


(...) Conta-nos o dr. Cal Brandão o que se passou por estes tempos no reino do Suro de que era liurai D. Aleixo Corte Real (2). A sua gente havia-se afastado das povoações e embrenhara-se no mato, ou estabelecera-se nas montanhas, para evitar relações com os invasores. Depois do ataque a Same, que tivera lugar em 10 de dezembro, os australianos deram ordens às suas guerrilhas para abandonar toda a região de oeste, concentrando-se na área de Fátu-Berliu, donde foram evacuados para a Austrália, embarcando na Aliambata.

A secção instalada junto de D. Aleixo fora, também, levando consigo os europeus que nessal altura ainda estavam acoitados naquelas paragens, com excepção do sargento José Estêvão Alexandrino, chefe do posto de Atsabe, com o seu pequeno grupo constituído pelo deportado sr. Felner Duarte e os senhores José Cachaço e Romualdo Aniceto, que se negaram a acompanhá-los. 

O sargento Alexandrino, com o seu grupo, desde os primeiros dias da revolta da Fronteira, reunira os arraiais dos timorenses fiéis, à frente dos quais estava o sempre dedicado chefe Cipriano, de Suro-Craic, e de montanha em montanha, de povoação em povoação, foi levar o castigo aos rebeldes. Quando lhe foi dada ordem para se apresentar ao tenente Liberato, a fim de seguir para a zona de concentração, negou-se a cumpri-la. 

Por muito tempo se conservou na área do seu posto, nessa guerra de movimento, até que os japoneses, julgando importuna a sua presença, deram uma ajuda às colunas negras para o desalojar. Já a essa data se lhe viera juntar o chefe Tálu-Bere, de Loi-Cíbu, Maliana, que, reunindo a sua gente de guerra se dera a castigar os inimigos rebeldes seus vizinhos, depois do que, num gesto de audácia e bravura, abriu caminho através das hostes adversárias e veio congregar os seus esforços aos da autoridade portuguesa que lhe ficava mais próxima. 

Recuando perante a forte pressão a que não podiam resistir, vieram acolher-se todos à protetora amizade do Suro. Nos primeiros tempos alsl metralhadoras e granadas australianas eram elementos convincentes para manter as colunas negras a razoável distância. Mas, mesmo depois da partida destes, o ardor dos portugueses não esmoreceu (1). (...)


(iii) E chegamos ao ano 1943, cujos acontecimentos o autor resume em menos de uma dúzia de páginas (pp. 68-79); além da violência dos japoneses e das "colunas negras",   portugueses e timorenses estavam sujeitos ao bombardeamentos dos Aliados.

Há, entretanto, mais um suicídio, heróico, de um médico, o dr. Correia Teles. No final da guerra, dos 4 médicos existentes na colónia, só restará o dr. José dos Samt0s Carvalho, que era o mais novo (em idade e antiguidade, segundo sabemos)


(...) Em princípios de janeiro , alguns indígenas, dirigidos por um oficial e dois ou três soldados japoneses, assaltaram, pela calada da noite, a casa onde residiam, em Liquiçá, o administrador Virgílio Duarte e o chefe de posto Moreira Rato, vasculharam, minuciosamente, a residência, à procura de australiano escondidos, e levaram, sob prisão, os dois funcionários que, prudentemente, se haviam refugiado no sótão da habitação, ao sentirem aproximar-se os díscolos. Depois de uma noite de interrogatórios, libertaram-nos (1).

 No dia 3, à tarde, fomos surpreendidos no hospital de Lahane pela inesperada aparição do chefe de posto, encarregado da administração da circunscrição do Oecússi, sr. Fernando Tinoco. Contou-nos que, tendo-lhe os japoneses falado num pacordo com os portugueses que referiam à sua maneira, ele os convencera a deslocar-se a Díli, num beiro timorense (3),para pessoalmente receber instruções do Governador. No território do Oecússi, tudo decorria normalmente, estando todos bem.

(...) Conta-nos o capitão Liberato num dos seus livros (***) que em Liquiçá logo se viu a necessidade imperiosa de se tomarem rápidas, e enérgicas medidas para pôr cobro aos desmandos dos meliantes, apesar de serem, certamente, considerados pelos nipónicos como tropa sua. 

Resolveu-se fazer uma batida a Quene-Açu, improvisando-se, rapidamente, uma coluna de voluntários chefiada pelo engenheiro Canto e pelo tenente Liberato que, por acaso, então se encontrava em Liquiçá e de que faziam, também parte, o sr. Jaime de Carvalho, Administrador da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, os deportados, senhores Jaurés Viegas, Serafim Martins, Viegas Carrascalão, Joaquim da Silva, João Pinto e José Pinto, o aspirante administrativo José Duarte Santa e seus irmãos Vítor Santa e Mário Santa.

A coluna de voluntários atacou de surpresa, sendo três mortos e meia dúzia de prisioneiros no campo adverso, o resultado da breve escaramuça, podendo, assim, o sr. Jaime de Carvalho entrar na palhota onde encontrou, sãos e salvos, o sr. JúlioLemos e toda a sua família, a quem os captores haviam dito que seriam fuzilados dentro de um quarto de hora ! (1)

 «Ê interessante registar que, coincidindo com o tiroteio em Quene-Áçu, se ouviu o matraquear das metralhadoras nipónicas em Liquiçá. Levou-se isso à conta de sinal previamente combinado entre os dominadores e a «coluna negra». Assim era, efectivamente.» (1).

 Por este tempo, a guerrilha do sr. Júlio Madeira incomodava, fortemente, os japoneses, movimentando-se por terras da Hátu-Lia e Ermera, o que lhes deu o pretexto de exigirem a saída, de Boebau, do destacamento do tenente Liberato, por pretensa assistência àquele guerrilheiro (1). Assim o destacamento teve de trânsferir-se pára Guguleur, na região de Maubara, onde se instalou, no dia 9 de eevereiro (1 .

 (...) Na tarde do dia 26 chegou ao hospital uma camioneta japonesa donde se apearam dois europeus, o cabo reformado Francisco Migule e um seu filho. Por eles então soubemos do embarque para a Austrália da maioria dos portugueses foragidos de Baucau e do abandono de alguns, pelo mato, sem alimentos nem assistência, perseguidos pelas colunas negras e minados pela fome e doença. Os dois, não tendo, também, conseguido embarcar para a Austrália, haviam-se entregado aos japoneses, em Viqueque, que os transportaram para Díli. 

Mais nos informaram que o dr. Correia Teles se havia suicidado e que o enfermeiro Senanes fora assassinado à catanada por indígenas das colunas negras que o apanharam isolado, tendo eles ouvido o brado de terror que precedeu a sua morte — Meu Deus!.

 Conta-nos o Dr. Cal Brandão, no seu livro, pormenores sobre a morte do Dr. Correia Teles, que, prestando serviços clínicos aos seus companheiros de odisseia, adoecera gravemente (2). 

As condições de saúde do médico, que bem conhecia o seu estado, agravaram-se, sentindo que não podia caminhar ou montar a cavalo e que seria penoso e difícil o transporte em padiola, Num gesto de desânimo afastou-se dos companheiros,deitou-se no leito duma ribeira, e, com os dedos dos pés, desfechou a espingarda caçadeira que possuía, com os canos apoiadoscontra o maxilar (2).  Passara-se esta tragédia no dia 6 de fevereiro.

(...) Em princípios de maio, os japoneses forçaram os agricultores europeus de Maubara a abandonar os suas plantações e a concentrarem-se na povoação, tendo o mesmo acontecido em Liquiçá, para os empregados da granja Eduardo Marques e da plantação da Pahata, da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho.

Não tardaram depois a impor aos civis residentes na zona de concentração, a entrega de todo o armamento que, conforme o acordo negociado, quando da concentração, cada português podia conservar em seu poder, para defesa pessoal (1) .

 Na tarde do dia 11 de maio apareceram no hospital de Lahane, transportados numa camioneta japonesa, os padres António Manuel Serra e Júlio Augusto Ferreira, o secretário de circunscrição José Luís Howell de Mendonça, o aspirante administrativo Eugénio Vaz de Oliveira e o deportado sr. Américo de Sousa.

 Satisfazendo a nossa ansiosa espectativa contaram-nos a sua odisseia, desde a saída de Baucau, em 24 de novembro, administrativo Eugénio Vaz de Oliveira,

 Escondidos na região de Viqueque, souberam que um navio australiano viria à praia da Aliambata, no dia 18 de dezembro, para levar para a Austrália os portugueses foragidos de Baucau, de Kelicai, de Laga e de todos os postos que se despovoaram à aproximação das colunas japonesas que eles sabiam não respeitar ninguém (2).

 Assim, apresentaram-se na praia da Aliambata, no dia combinado. Porém, com grande estupefacção da sua parte, foram informados, então, pelo sargento Martins (o qual acompanhava o oficial australiano que superintendia no embarque) que não faziam parte da lista das pessoas autorizadas a embarcar e ele estva encarregado de os impedir de o tentarem, mesmo que tivesse de fazer uso da sua metralhadora.

Pelo Dr. Cal Brandão (2) podemos comprender o explicar o sucedido. O tenente Pires, que era o chefe natural da gente foragida e contactava com os militares australianos, intentou salvá-la, especialmente mulheres e crianças, das colunas negras lançadas em sua perseguição. Para isso, avistou-se com o chefe do grupo da Inteligência Militar Australiana, capitão Brothers, sugerindo-lhe uma evacuação, como as que já tinham sido feitas pelos australianos.

«O oficial português deseja ficar com os funcionários seus subordinados, para manter, enquanto possível, a soberania e a autoridade portuguesa naquela área. O inglês acede, mas pretende que mais alguns portugueses voluntariem para colaborar na resistência. As famí-lias desses voluntários terão preferência no embarque. Dentro deste critério, o capitão, organiza uma lista de 300 pessoas, na qual inclui todas as senhoras e crianças europeias, e fá-las embarcar» (2).

O secretário Mendonça, embarcados para a Austrália sua esposa e filho, juntou-se aos dois missionários e ao aspirante Eugénio de Oliveira, passando a vaguear pelo mato, escondendo-se das colunas negras e alimentando-se de espigas de milho e de raízes de mandioca cruas, que iam apanhando a furto, pois as povoações estavam cheias de japoneses.

Conservaram-se assim, sofrendo privações de toda a ordem, na área dos postos de Viqueque e de Lacluta, até que passaram para a região de Luca onde tiveram a ventura de ser acompanhados e fielmente amparados por dois filhos do chefe do suco de Umuai de Baixo, do posto de Viqueque, Miguel da Costa Soares, os quais iam frequentemente à casa de seu pai para fornecerem alimentação ao grupo.

Conservaram-se nesta situação cerca de dois meses, tendo sido então que tiveram conhecimento do suicídio do dr. Correia Teles que fazia parte doutro grupo de portugueses que perto ali andava.

Cansados e sem esperança, vendo que estavam a comprometer seriamente os timorenses que tão desveladamente os ajudavam, resolveram tentar tudo por tudo, apresentando-se aos japoneses, em Viqueque,

Submetidos pela polícia a um violento interrogatório, durante seis horas, vendaram-lhes, depois, os olhos e meteram-nos, de pé, numa camioneta, julgando, então, irem ser fusilados.

Felizmente, porém, a camioneta foi posta em andamento e, quando horas depois lhes tiraram as vendas, estavam já nas proximidades de Baucau, continuando a viagem para Díli e seguindo directamente para o hospital de Lahane.

O padre Serra deu-me, por fim, a notícia que o missionário, padre Francisco Madeira, havia morrido miseravelmente na região de Lacluta, no mês de Abril, minado por infecção ocasionada por sarna generalizada, para a qual não tivera qualquer possibilidade de tratamento.

(iv) Relato dos bombardeamentos dos aliados 
e o tratamento dos feridos de guerra


(...) A noite em que os meus amigos de Baucau chegaram ao hospital, haveria de ficar marcada por um acontecimento da maior importância para os que aí residiam.

Por estes tempos, os bombardeamentos aliados a Díli recrudesciam de intensidade e frequência, havendo-os duas e até mais vezes ao dia.  Eram terríveis espectáculos em que os aviões voavam sobre nós e iam afrontar uma formidável barragem de artilharia antiaérea que defendia a cidade, com troar ensurdecedor.

Porém, como tínhamos sempre hasteada a bandeira nacional e as suas cores pintadas no telhado de zinco do pavilhão principal, vivíamos com algum sossego, sob a impressão de não sermos, provavelmente, atingidos,

Ora, cerca das dez horas da noite desse dia 11 de maio ouvimos, mais uma vez, os ruídos de motores de aviões que rapidamente se aproximaram. Enquanto corríamos para o abrigo que havíamos cavado na montanha, junto da casa mortuária, fomos surpreendidos
por uma luz intensíssima que tudo claramente iluminava, a qual provinha duma fonte que descia lentamente, certamente num paraquedas.

Mal tendo acabado de entrar no abrigo, sentimos, nitidamente o sibilar de bombas lançadas dos aviões e, a seguir, o tremendo estrondo de explosões muito próximas.

Afastados os aviões, abandonámos o abrigo e mal pudemos, então, acreditar que uma bomba havia caído mesmo ao lado da casa mortuária, a poucos metros de nós, pois aí encontrámos
grandes pedaços da sua parte externa, caprichosamente retorcidos. Assim, cessava toda a nossa confiança em que os aliados respeitariam o hospital português quando bombardeassem os objetivos japoneses.

Mas, além disto, verificou-se, momentos depois, haver tremenda tragédia nas palhotas que os timorenses, auxiliares da Missão Geográfica habitavam no fundo da ravina, junto do hospital. Grande clamor se ouviu então, e, logo chegou um deles, com a notícia de que o auxiliar José havia morrido, com a cabeça esfacelada, e que mais quatro estavam feridos.

Corremos para o local, com macas, e transportámo-los para uma sala que tinha sido enfermaria e ainda conservava as camas respectivas, as quais, oportunamente não haviam podido ser levadas para Quelicai, na pressa da transferência dos Serviços.

Nunca na minha vida de médico eu tivera ocasião de observar feridos de guerra. Os pequenos estilhaços das bombas, por serem caprichosamente retorcidos, seguem um percurso muito sinuoso, dentro das partes moles, sendo as feridas muito irregulares e anfractuosas nos seus bordos e em profundidade.

Dos quatro feridos, um apresentava fractura do fémur e necessitava, com toda a urgência, de uma operação de grande cirurgia que não se podia sonhar ser feita numa ambulância em que nem sequer possuíamos instalações de esterilização de material, de pensos e de roupas, dos quais, aliás, não dispúnhamos, senão para cuidados simples de enfermagem. Porém, mesmo para os outros, eu não tinha possibilidade de lhes extrair os estilhaços profundamente alojados nos tecidos.

Mais uma vez, o engenheiro Canto se dirigiu ao consulado do Japão, desta vez para pedir auxílio que não se fez esperar. Cerca das 10 horas do dia 12, médicos militares japoneses operavam os feridos no seu hospital que tinham instalado no nosso antigo pavilhão de mulheres, tendo eu, a seu convite, assistido à operação.

Logo, voltaram os operados ao hospital português onde eu e os enfermeiros de serviço lhes fizemos os tratamentos subsequentes, um deles durante uma incursão aérea aliada que, tal como felizmente sempre depois sucedeu, não bombardeou o hospital.

Quando se tornou possível, os feridos foram levados para a enfermaria de Liquiçá, onde parecia não haver perigo de bombardeamentos, ficando sob os cuidados do Dr. Francisco
Rodrigues
. Todos foram inteiramente recuperados.

(...)

 ______________

Notas do autor;

(1) Vide Capitão António de Oliveira Liberato, Os japoneses Estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

 (2) Vide Carlos Cal Brandão, "Funo". Porto, 1946.

(3) «Beiro» é o nome, em Timor, das pirogas indígenas. 

 
(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, reordenação das notas de rodapé, negritos, itálicos: LG)

(**) Vd. Teixeira,  Nuno Severiano: "Portugal e a Segunda Guerra Mundial". In "Nova História Militar de Portugal (dir. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira", vol. 4,  s/l,  Círculo de Leitores,  2004, pp. 46-55.

(***) António  Oliveira Liberato escreveu dois livros de memórias sobre o seu tempo de Timor: (i) O Caso de Timor, Portugália, Lisboa, s/d (c. 1947);  (ii) Os japoneses estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25802: Timor-Leste: passado e presente (15): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VI: e o terror continuou no 2º semestre de 1942...


Timor > Aileu > 1938 > " D. Aleixo Corte Real, de Ainaro (ao centro),  com chefes locais e António Magno (à direita)"


Timor > Dili >  Escola Municipal c. 1936-1940

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor > Dili > Sede do BNU (Banco Nacional Ultramarino) > 1912 >  O Banco   "abriu Dependência de Dili em abril 1912 e colocou ali em circulação notas de patacas da filial de Macau com o carimbo 'Pagável em Timor' ”.


Timor > Dili > Sede do BNU (Banco Nacional Ultramarino) > 1950 > Em 1941, e segundo informação do dr. José dos Santos Carvallhos, o gerente do BNU era o sr. João Jorge Duarte e e na filial de Díli  trabalhavam vários empregados não-timorenses.


Timor > Dili >Nova sede do BNU (Banco Nacional Ultramarino) > 1969 > "Em 23 de novembro de 1969 foi inaugurada a nova sede do BNU. Em 11 de Agosto de 1975, com a instabilidade política, cessou a actividade da Filial de Dili do BNU". (...)  Retomou a atividade em 1999. (...) "O edifício onde hoje funciona a Sucursal da CGD/BNU Timor, foi inaugurado em julho 2001. A 17 de maio de 2002 foi inaugurada a agência de Baucau, a segunda cidade mais importante de Timor Leste".



Brasão de armas de Timor sob administração portuguesa


Fotos e legendas: Fonte: Blogue do Banco Nacional Ultramarino > 2 de novembro de 2011 > Timor



António Oliveira Liberato, capitão - "O caso de Timor : invasões estrangeiras : revoltas indígenas". Lisboa: Portugália, Lisboa : Portugália [195_?], 242 pp. (1)




1. Pode não ser a melhor leitura de verão... Mas o agosto (o nosso outrora querido mês de agosto...) apanhou-nos a meio desta tarefa... E temos a obrigação de a levar até ao fim... Por um dever de memória (e até de gratidão): afinal, ligam-nos, ao povo de Timor Leste,  laços históricos, linguísticos e afetivos... Os portugueses e os timorenses têm todo o interesse (e a obrigação)  de conhecer melhor a sua história comum, passada e presente, incluindo os trágicos acontecimentos que ocorreram na II Guerra Mundial: duas invasões estrangeiras (dos Aliados e depois dos japoneses), violando a neutralidade de Portugal... Mas também foi uma ocasião para ações de grande coragem e solidariedade entre um punhado de portugueses, de australianos e dos seus amigos timorenses. Estes homens e mulheres não podem ficar inumados na "vala comum do esquecimento". 

Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro de memórias do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive. Atualizámos a ortografia e os topónimos. 






Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte VI:  e o terror continuou no 2º semestre de 1942



(i) Estamos em 12 de agosto de 1942. Timor está ocupado, pelos japoneses, desde 20 de fevereiro. O dr. José dos Santos Carvalho, chegado ao território em finais de 1941,  está agora à frente do Hospital Dr. Carvalho, em Lahane, nos arredores de Díli. Ofereceu-se como voluntário por um mês. Estava colocado em Baucau, como médico de saúde pública. Acabou de chegar a Lahane. 

À data é já administrador do concelho de Díli, o eng Canto Resende, chefe adjunto da Missão Geográfica de Timor, tornando-se o principal interlocutor dos ocupantes. Os escassos representantes das autoridades portuguesas (com exceção do  governador que ficara "refém" em Díli) estavam acantonados em Lahane, no hospital, ou dispersos por outras partes do território.

Boa parte da informação que o médico José dos Santos Carvalho passa agora a usar e  a citar é do livro de memórias do então tenente  António Oliveira Liberato, "O caso de Timor"publicado em meados dos anos 50).

Recorde-se que Timor foi invadido e ocupado  uma força de 1500 
militares japoneses, insuficiente, no entanto, para ocupar 
de maneira efetiva o território, para mais montanhoso (1 militar por cada 10 km quadrados, e por cada 300 habitantes).  Daí o recurso a milícias, c. 20 mil  (maioritariamente oriundas do lado holandês).

O isolamento dos portugueses era total. Em 31 de maio de 1942 foi ocupada a estação emissora radiotelegráfica de Taibessi. As ligações com o exterior só serão restabelecidas em 13 de setembro de 1945. 

A força militar portuguesesa em Timor era meramente simbólica: 300 homens, na sua grande maioria "indígenas". Portugal, "país neutral",  tinha concentrado os seus esforços na defesa das ilhas atlânticas, Madeira, Açores e Cabo Verde (40 mil, um terço do seu exército de 120 mil; no total terão cumprido o serviço militar, durante a II Guerra Mundial, 180 mil homens, o que representou um enorme esforço orçamental).


(...) Pelo engenheiro Canto foi posto ao corrente da situação existente. Os japoneses continuavam, permanentemente, a pretender a colaboração dos portugueses para lhes resolver os seus problemas de pessoal trabalhador, fornecimentos de géneros alimentícios, etc. 

As exigências que antes apresentavam ao administrador Aguilar continuavam a ser feitas, de modo perentório. Porém, o engenheiro, com extrema paciência e grande habilidade diplomática, conseguia um mínimo de compreensão para a nossa posição de neutralidade que não poderíamos de qualquer forma abandonar. 

A sua luta, nesse tempo, já era, como o foi sempre depois, constante e porfiada, com repetidas visitas ao consulado nipónico e pormenorizadas explicações aos agentes da Kempy [ a Gestapo  nipónica],  tais como o tenente Takeyóshi e os sargentos Sato e Abé, que frequentemente o «visitavam» no hospital, repetindo enfadonhamente as mesmas perguntas e demorando horas esquecidas em conversações que sempre orientavam para o mesmo assunto: a cooperação dos portugueses que pretendiam, e a sua desconfiança na nossa neutralidade pois havia portugueses ao lado dos australianos entre os quais o Júlio Madeira (2) [ natural de Ermera, antigo soldado nas NT, dirigia um grupo de guerrilha, resistindo aos japoneses ],  que eles porfiadamente procuravam. (...)



Governador português de Timor (1940-1945), 
(Porto, 1893-Lisboa, 1968). O " Relatório dos Acontecimentos de Timor
 pelo Governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho" (publicado pela
 Imprensa Nacional, Lisboa,1947), mandado elaborar por ordem do Ministro das Colónias, 
Marcello Caetano, acabará por ficar na gaveta...


(ii) Aparecem os primeiros sinais da presença no território das sinistras "colunas negras", oriundas do Timor Holandês. Diversos postos administrativos na zona oeste do território são bombardeados pela aviação japonesa. Só havia comunicações  telefónicas, com as circunscrições da zona leste. As autoridades portuguesas  estavam isoladas e tiveram que aprender a lidar com a imprevisilidade, o despotismo e o cinismo dos japoneses. 
Só no fim da guerra se sabe da tragédia que foram os três anos e meio da ocupação japonesa.  Na metrópole a censura 
faz total "blackout" noticioso dos acontecimentos. Era ministro das colónias Francisco José Vieira Machado (12 set 39 - 6 jun 42). 

Pouco a pouco a resistência aliada (e nomeadamente australiana) vai enfraquecendo, face à contra-ofensiva dos japoneses e dos seus aliados indígenas do Timor Holandês (mas também de "centenas de índígenas do nosso domínio" que, "minadas pela propaganda nipónica (...) olhavam-nos com arrogância e propalavam o termo do domínio dos brancos", as palavras, insuspeitas, são do tenente Liberato).


(...) Porém, o mais grave é que dias antes, timorenses portugueses, haviam informado o engenheiro de que tinham desembarcado em Díli centenas de indígenas do Timor Holandês de aspecto sinistro e armados de azagaias e  catanas e distribuídos em grupos enquadrados por soldados javaneses armados com armas holandesas.

 Também, dias antes, os postos administrativos de Maubisse, Same, Beco e Mape, haviam sido bombardeados pela aviação japonesa, seguindo-se-lhe a sede da circunscrição da Fronteira (vila de Bobonaro), a sede da circunscrição do Suro (vila de Aileu) e outras localidades do oeste da Colónia entre as quais Lete-Fóho. 

Destes acontecimentos e de tudo o que se passava em todo o território de Timor, com exceção da zona Leste com a qual existiam comunicações telefónicas, chegavam muito tardiamente ao conhecimento dos portugueses do hospital de Lahane notícias muito confusas e imprecisas, melhor dizendo boatos, pois nao havia qualquer fonte de informação oficial nem sequer o Governador alguma vez lhes referiu qualquer coisa dos recados que por portadores timorenses lhe eram comunicados de Aileu e que, também, não poderiam deixar de ser muito imprecisos e inseguros.

Assim, somente no fim da guerra se soube pormenores do assassinato do cabo Alfredo Baptista, chefe do posto administrativo de Fátu-Lúlic, no dia 11 de agosto. 

Uma coluna de tropas japonesas vinda do território holandês entrou nessa povoação, indo os seus oficiais almoçar com o chefe do posto. A coluna saiu de Fátu-Lúlic após o repasto, porém, os indígenas de Atambua que a acompanhavam, a primeira «coluna negra» de cujas atividades houve notícia, ficaram para trás e mataram com as maiores atrocidades ao cabo Baptista, retalhando o seu cadáver em pedaços. 

Em vários pontos da colónia se assinalavam então movimentos de tropas japonesas, reforçadas também por elementos indígenas que, partindo de vários locais, convergiam para a zona em que operavam as guerrilhas aliadas (1). 

Na manhã do dia 13 estabeleceu-se em Aileu, que não tinha comunicação telefónica com Díli desde começos de agosto, um forte destacamento de forças nipónicas, acompanhado de numeroso núcleo de indígenas com armas gentílicas e algumas espingardas (1). A coluna que em Fátu-Lúlic assassinou o cabo Baptista era uma das três forças que avançaram sobre Bobonaro, duas partindo do território holandês e uma desembarcada em Suai e passando por Beco e Mape. 

Em conjunto, fizeram uma diversão sobre a região de Atsabe, que bombardearam intensamente, ao mesmo tempo que as tropas estacionadas em Aileu levavam as suas investidas até Maubisse e ameaçavam Ainaro. Em toda a zona da fronteira lavravam incêndios, e as tropas aliadas, abandonando o material, erravam em pequenos grupos pelas  montanhas, completamente desarticuladas, procurando refúgio na zona Leste do nosso território, onde depois as iriam perseguir os nipónicos, transformando assim toda a colónia em campo de batalha (1) . 

«A população europeia, exausta por um largo período de incertezas, depauperada pelo nervosismo, aterrorizada, aban- donou os seus lares e procurou refúgio nas aldeias indígenas cujos chefes ainda lhe mereciam confiança. O gentio movimen- tou-se e aqui e além notaram-se indícios de revolta» (1) . 

«Com a sua ofensiva, os japoneses trouxeram para a luta um novo elemento: o elemento indígena. As colunas constituías por este novo elemento, já pela cor dos seus componentes ja pelos desmandos que praticavam, ficaram sendo conhecidas em Timor por colunas negras. Estes núcleos, acompanhando as forças nipónicas, asseguravam-lhes a protecção a distância quer durante as marchas quer durante os estacionamen tos» (1).

«Inicialmente recrutadas entre as populações nativas do território holandês e das pequenas ilhas vizinhas, em breve viram as suas hostes engrossadas por centenas de indígenas do nosso domínio, principalmente da Fronteira, Maubisse e Manufai e, mais tarde, das restantes zonas da colónia. 

"Minadas pela propaganda nipónica estas massas olhavam-nos com arrogância e propalavam o termo do domínio dos brancos. O roubo a destruição e o massacre eram os seus objectivos» (1) . 

«As colunas negras, que ultimamente dispunham já de metralhadoras ligeiras e granadas de mão, entraram na luta, nas operações de agosto, como elementos de segurança e proteção das forças regulares japonesas» (1) .

 Depois, «manobrando já com relativa autonomia, dedicaram-se à perseguição dos grupos de guerrilheiros e dos portugueses que, sob a protecção daqueles, andavam a monte, aguardando a oportunidade de embarque para a Austrália. 

"Dirigidas e orientadas pela organização japonesa denominada Autory encarregada de criar, após a conquista pelas armas, a nova Ordem na Grande Ásia Oriental, percorriam todo o nosso território semeando o terror, a ruína e a morte» (1) (...)


(iii) Organiza-se, a partir de Lahane, uma coluna de voluntários (a que se juntaram vários deportados), comandada pelo sargento António Joaquim Vicente,  de socorro a Maucátar, na circunscrição de Fronteira, onde um grupo de portugueses estava cercado por timorenses rebeldes. Há rebeliões na parte oeste da colónia. Os portugueses (e seus aliados timorenses) 
estão mal equipados e pior armados.


(....) Na tarde de 19 de agosto o engenheiro Canto, depois de ter falado com o Governador, informou os que se encontravam no edifício do hospital de Lahane que havia revolta na circunscrição da Fronteira, estando em Maucátar um grupo de portugueses, entre os quais toda a família do tenente Lopes, do Suai, cercado por timorenses rebeldes e em posição muito crítica. 

Automaticamente surgiu entre todos a ideia de seguirem para o local, levando auxílio àqueles compatriotas em perigo. O Governdor permitiu e encorajou a imediata organização duma coluna de voluntários aqui constituída, mas não autorizou que o engenheiro Canto e o dr. Santos Carvalho dela fizessem parte, por a sua presença ser absolutamente necessária na região de Díli. 

O comandante da coluna foi, naturalmente, o sargento António Joaquim Vicente e as armas e munições tiradas da sala do hospital onde estavam guardadas por terem pertencido à administração do concelho de Díli e sido salvas do saque japonês. Assim, a coluna estava pronta e partiu, a cavalo, na manhã do dia 21 levando de Lahane os seguintes elementos: sargento Vicente, chefe de posto Torresão e aspirantes administrativos José Santa e Domingos Ribeiro. 

Em Liquiçá juntaram-se-lhe o sr. Jaime de Carvalho, director da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, o cabo Agapito dos Anjos, o professor primário Victor Duarte Santa e os deportados Jaurés Américo Viegas, Hermenegildo Granadeiro, António Santos Faísca e Raul Honório. 

Em 20 de agosto, o comandante da Companhia de Caçadores recebeu em Aileu uma ordem do Governador para preparar uma força que, sob o comando de um subalterno, partisse para Bobonaro, em virtude dos factos graves que na região se estavam passando e de que lhe dava notícia (1). 

Organizou-se, assim, um destacamento comandado pelo tenente Liberato, que para tal se ofereceu, e que seguiu para a Fronteira no dia 22 com a missão de dominar a rebelião (1) . 

Em Léte-Fóho, no dia 23, foi informado por conversa telefónica com o comandante da Companhia que a situação em Maubisse também era de rebelião tendo o quartel da Companhia sido assaltado, mortos três dos quatro soldados seus guardas e roubado ou destruído o material e que o chefe do posto, sargento Martins Coelho havia desaparecido, ignorando-se o seu paradeiro (1). 

Por estes factos, tinha o Comandante ordenado a saída para Maubisse, nesse mesmo dia, de um destacamento idêntico ao do tenente Liberato, comandado pelo tenente Ramalho dos Santos (1) e que levou como enfermeiro o praticante Alfredo Borges. 

Em Maubisse soube o tenente Ramalho pormenores da rebelião que estalara logo após o regresso a Aileu das tropas japonesas que desta vila se haviam deslocado, dias antes, a Maubisse, onde passaram a noite. Ã aproximação dos amarelos, o chefe do posto Francisco Martins Coelho, e os europeus deportados José Faria Braga, Dionísio Teixeira e Paulo Ferreira, que viviam na localidade, abandonaram as suas residências e refugiaram-se em palhotas indígenas. Porém, o chefe do posto e o deportado Faria Braga foram apanhados pelos rebeldes que os sujeitaram a suplícios horríveis, acabando por lhes deceparem a cabeça (1)  (...)


(iv) É salvo, escondido, tratado e resgatado um piloto australiano 
cuja avião fora abatido pelos japoneses. Um comando australiano consegue libertá-lo do hospital de Quelicai.


(...) Na tarde do dia 21 de agosto o Governador ehamou-me e ao engenheiro Canto à sua residência para nos  comunicar que tinha havido sobre a região de Cribas um combate aéreo entre aviões japoneses e australianos pelo que um avião australiano tora abatido e se incendiara ficando o piloto muito ferido e queimado. 

O alferes reformado Alípio Ferreira que vivia nas proximidades do local onde caiu o avião prestou os socorros de urgência ao ferido e avisou telefonicamente o administrador de Manatuto Dr. Mendes de Almeida. Este, acompanhado do enfermeiro Fernando Senanes fora buscar o oficial australiano no carro da circunscrição e trouxera-o para a residência de Saututo onde se encontrava. 

Ponderadas por nós três as diferentes soluções para o difícil problema de evitar a entrega do piloto aos japoneses, o que eles certamente viriam a exigir, resolveu-se que ele seguisse na automaca dos Serviços de Saúde,  que se mandou vir de Quelicai, para o hospital Dr. Carvalho, instalado nessa localidade, único estabelecimento onde se poderia prestar assistência eficaz a um grave traumatizado.

 O transporte do sinistrado fez-se, assim, na manhã do dia 22, tendo sido internado sob os cuidados do Dr. Correia Teles, antes que os japoneses soubessem do acontecido. Foram repetidas as suas tentativas para que o Governador «mandasse vir o oficial australiano ferido para o hospital de Lahane, pois este é que era o hospital principal dos portugueses!» 

Escusado será dizer que o engenheiro Canto, em nome do Governador, diplomaticamente, mas com toda a firmeza, se opôs, sempre a essa ideia. Sabendo da rebelião de Maubisse o administrador Mendes de Almeida organizou uma força de voluntários europeus, e das tradicionais companhias de "moradores" de Manatuto, com o fim de partir para foco da insurreição com a missão de cooperar com o destacamento militar na repressão da revolta (1) . 

A coluna do tenente Liberato cumpriu integralmente a sua missão da maneira que ele descreve num dos seus livros (1) . 

O que então somente constou na Colónia foi a morte em combate, no dia 5 de setembro, do cabo Paulo Moreira, do soldado Abel Soares dos Santos e do condenado António Fernão de Magalhães, natural de Macau, que seguira como enfermeiro do destacamento por ter prática de enfermagem no presídio de Aileu em que estava internado. 

Soube depois, pelo tenente Liberato, que este acontecimento se havia dado perto do posto administrativo de Lébus. A coluna de voluntários civis cumpriu admiravelmente a sua generosa missão conseguindo a salvação dos portugueses europeus de Maucátar, as famílias do tenente reformado João Cândido Lopes e do encarregado do posto de Fohorém, soldado Saul Nunes Catarino, que puderam dirigir-se e alojar-se em Aileu, e o castigo dos rebeldes, assegurando o respeito pela soberania portuguesa. 

No dia 1 de setembro, uma coluna japonesa desembarcou na foz da ribeira de Lacló e cercou a residência do administrador de Manatuto, Dr. Mendes de Almeida, então ausente a combater os rebeldes na área de Túriscai. Em Saututo estavam então hospedados o engenheiro José de Azevedo Noura, diretor das Obras Públicas, e as senhoras das famílias deste engenheiro, do Governador, do capitão Vieira, do tenente Alves, todos os quais foram encerrados numa das salas enquanto os nipónicos procuravam em todos os recantos vestígios de australianos!

Submeteram depois a dona da casa, D. Elzira Mendes de Almeida, a um enfadonho interrogatório sobre o oficial piloto-aviador australiano que aí tinha sido alojado e caridosamente tratado, tendo ela então demonstrado a mais serena firmeza e desprezo pelas suspeitas absolutamente infundadas de colaboração com as tropas aliadas. Retiraram-se, sem mais vexames. 

A notícia deste acontecimento motivou a fuga, no mesmo dia 1, do piloto australiano do hospital de Quelicai transportado numa cadeirinha por seus compatriotas que ali o foram buscar. 


(v) O terror dos bombardeamentos dos Aliados, em Lahane, onde se situava o hospital e a casa do governador. A que respondem as anti-aéreas dos japoneses.  O médico José dos Santos Carvalho 
renova, por mais um mês, a sua permanência, voluntária, 
em Lahane.


(...) Entretanto tinham passado vinte dias da minha permanência no edifício do hospital onde ainda havia alguns doentes internados, entre os quais duas velhas chinesas, na casa que fora pavilhão de mulheres. 

A comida era fornecida pelo mesmo fornecedor do hospital no tempo de paz, o cabo reformado Joaquim da Silva, cuja residência era próxima dos edifícios hospitalares e cujos géneros provinham de uma pequena quinta e plantação que ele possuía nas vizinhanças de Díli e onde os japoneses permitiam que os serviçais timorenses continuassem em trabalhos agrícolas. 

Vários bombardeamentos pela aviação aliada se fizeram sentir durante esse curto período os quais estoicamente suportávamos, apertados e transidos de natural temor no abrigo escavado em forma de mina na encosta da montanha. Com efeito, são indescritíveis as sensações que de todos se apoderam, sobretudo durante os repetidos voos preliminares dos aviões até se contarem as explosões correspondentes à sua completa descarga de bombas. Mas tudo leva ao terror! 

Em primeiro lugar a permanente incerteza quanto à possibilidade de em qualquer momento das vinte e quatro horas do dia se ser atingido. O som lúgubre da sereia japonesa avisava-nos — e quantas vezes fomos  nós os primeiros a sentir o ronronar dos aviões — de que eles se aproximavam. Logo se fazia sentir um ensurdecedor barulho das violentas explosões dos canhões anti-aéreos e do matraquear das metralhadoras! 

E, tudo isto, sabendo nós que as forças aliadas não poderiam estar informadas da nossa posição de neutralidade e dos locais em que não havia japoneses

Dava-nos alguma confiança o facto da bandeira nacional estar hasteada permanentemente no pavilhão principal do hospital e pintada, em grande tamanho, no seu telhado coberto de folha de ferro zincado. Mas, de noite, como se poderia ver este sinal de gente portuguesa? Confortava-nos o facto de as tropas japonesas estarem alojadas em Díli não se aproximando dos edifícios hospitalares de Lahane e da residência do Governador. 

Porém, na manhã do dia 5 de setembro, chegou ao hospital uma grossa coluna de forças nipónicas comandada por um capitão que, portando-se com toda a correcção, mas com característica frieza, falando inglês razoável, disse que vinham instalar-se na parte dos edifícios do hospital, que não era necessária para nós e, por isso, pedia para eu mandar imediatamente desocupá-la. 

Tentei convencê-lo, então, de que não ocupassem, ao menos, os edifícios mais próximos do pavilhão principal onde estavam alojados os portugueses, mas tudo foi em vão. Instalaram-se, assim, no pavilhão de timorenses, no pavilhão de mulheres, no pavilhão de doenças infecciosas, que se encontrava quase concluído, e na casa da residência do médico-chefe da Repartição de Saúde. 

Ficámos, assim, somente com o pavilhão principal do hospital, as suas dependências e o edifício da casa mortuária. Uma limitadíssima área de terreno circunjacente ficava à nossa disposição, incluindo o pequeno jardim. Mas nem essa escapou.

Passados dias vieram dizer-nos que iam construir abarracamentos para as tropas, encostados ao pavilhão principal do nosso hospital. Depois de muito trabalho, o engenheiro Canto convenceu-os a construirem-nos no jardim, o que foi feito, ficando, situados a menos de dez metros de nós e cobertos a zinco que seria perfeitamente visível dos aviões aliados. 

Estando a chegar o termo do período de trinta dias para o qual eu me tinha oferecido a trabalhar em Díli, oferecime, novamente, para aí permanecer mais um mês, o que fiz no dia 8 de setembro. 

Por Balibó havia então rebelião de parte dos seus sucos. O chefe de posto, cabo Simão Esteves Coronho foi obrigado a retirar-se para Atabai onde se manteve sempre em contacto com os chefes timorenses de Balibó que se mantiveram fiéis e já firmemente apoiado pelos arraiais (3)  de Maubara, do que mostrou ser grande Português, o liurai, coronel José Nunes (1). 

Requisitara o cabo Coronho, um pelotão da força de polícia timorense da Fronteira que estava aquartelada em Bobonaro, com o fim de vir para Balibó proteger a evacuação do posto de quem o quisesse fazer (1) . O pelotão chegou àquela localidade onde encontrou o praticante de enfermeiro Emílio de Oliveira que ali se encontrava por acaso e que, pela força das circunstâncias, teve de tomar o comando do destacamento e manter-se na tranqueira do posto, informando o chefe de posto de tudo, actuando como melhor entendia e assumindo as responsabilidades que pudesse haver (1). 

No dia 10 de setembro o enfermeiro Oliveira comunicou ao cabo Cironho que com os soldados timorenses, alguns chineses e um arraial de 200 homens havia feito batidas na região de Bui-Lácu e que dentro da tranqueira de Balibó estavam perto de quatrocentas pessoas, entre chineses, soldados, moradores e arraiais (1) (3). Mais informou o enfermeiro Emílio haverem chegado à tranqueira duas camionetas com forças japonesas que pediram géneros, que pagaram a pronto, respeitaram as mulheres que se encontravam na tranqueira e trataram muito bem os soldados timorenses (1). 

Porém, nesse mesmo dia, se deram gravíssimos acontecientos em Balibó, pois os japoneses, metralharam o enfermeiro Oliveira e os dez soldados que o acompanhavam, sendo mortos alguns deles e escapando o enfermeiro, um cabo e quatro soldados (1). 

As actividades das tropas japonesas eram agora distribuídas por todo o território timorense e os indígenas, desorientados com o seu estranho procedimento, mostravam-se receosos, apoderando-se de todos o terror (1) .

O tenente Liberato encontrava-se, então, encerrado, com a sua força em Bòbonaro, insistindo com o seu comandante pelo envio de reforços (1). Para satisfazer os seus pedidos, o capitão Freire da Costa ordenara a organização de arraiais nas regiões de Ainaro, Manatuto e Baucau. Os japoneses, porém, estendendo as suas operações àquelas zonas, impossibilitaram o recrutamento dos homens. Velhacos, percorriam com insistência aquelas zonas, tornando infrutíferos todos os esforços para a organização dos arraiais (1). 

A partir do dia 13 de setembro acentuou-se a atividade dos rebeldes em toda a frente de Memo a Mape. Os arraiais fiéis, desanimados pela falta de reforços, fraquejaram. Em Léber abandonaram as posições, mas a rápida intervenção duma equena força militar, comandada pelo soldado Saul, restabeleceu a situação (1). 

Nas regiões de Balibó e Cova continuava a confusão. O tenente de segunda linha, reformado, Paulo Ferreira, preso e conduzido pelos nipónicos para Atambua, recuperara a liberdade sob o compromisso de colaborar com eles. Tomou então a direção das investidas que os povos de Balibó, Cova, Batugadé, etc, iniciaram contra a região de Maubara, cuja defesa estava confiada a um reduzido núcleo de rapazes — Manuel da Costa, Eduardo Massa, Abel Brites, José dos Santos, Manuel dos Santos, Flávio Carion, Acácio Sanches e Gaspar Nunes — coadjuvado pelos arraiais do velho Nunes, figura prestigiosa de chefe timorense, sempre dedicado, de quem os portugueses, mais tarde, nos tempos dolorosos e amargos do campo de concentração, jamais deixaram de receber constantes provas de lealdade. Arriscando a vida, às escondidas, pela caída da noite, lá iam, ele ou o filho, o simpático Gaspar, junto do chefe de posto levar informações, a assegurarem o seu apoio, a denun- ciar as intenções dos nossos algozes, a incutir confiança no futuro. Unicamente português, só a favor de Portugal trabalhou (1). 

No dia 16 de setembro chegou a Baucau uma coluna motorizada de tropas japonesas, não acompanhada de indígenas timorenses, seguindo forças a ela pertencentes para Venilale e Ossú e outras até Quelicai. A força que se dirigia a Ossú foi surpreendida no caminho por uma patrulha holandesa que lhe cortou o caminho, inutilizando uma ponte e, aproveitando a sua paragem forçada, a atacou à metralhadora, ferindo vários homens e entre eles o oficial que comandava a patrulha, após do que se pôs a salvo. 

Os japoneses repararam a ponte e seguiram para Ossú onde, na Missão, estiveram a interrogar o chefe de posto, aspirante Eugénio de Oliveira e o superior padre Jaime Goulart que, durante a estada dos japoneses em Ossú esteve detido, com outros padres da missão, num quarto e que foi maltratado e agredido pelas tropas. O interrogatório incidiu sobre as tropas australianas a respeito das quais procuraram, evidentemente sem qualquer resultado, obter informações. 

A força que se dirigiu a Quelicai, interrogou aí, demoradamente, o director do hospital Dr. Correia Teles, a respeito da fuga do piloto australiano ferido, que ele explicou com todos os pormenores, ameaçando-o por várias vezes de o tornarem responsável por essa fuga e acabando por lhe dizer que iam averiguar se era verdade o que ele dizia, e que, se reconhecessem que o não era, voltariam lá e lhe fariam pagar caro a sua mentira. 

De facto, não houvera a mínima culpa do Dr. Correia Teles naquela fuga, pois foi alta noite e inesperadamente, que os soldados australianos penetraram no hospital e levaram o seu camarada ferido (5). 

No dia 20 de Setembro chegou a Aileu uma coluna japonesa, comandada pelo capitão Moryama, que ia acompanhada por um grande numero de indígenas, armados, disfarçados em carregadores, e que aí se estabeleceu. A pedido do comandante nipónico e para evitar incidentes, no quartel da companhia de caçadores foi suprimido todo o serviço exterior da unidade por patrulhas, mantendo-se somente sentinelas necessárias à sua segurança (6). 

Entretanto, em Bobonaro a situação piorava dia a dia. Os chefes indígenas fiéis queixavam-se, estando abalado o moral dos seus homens. A rebelião ganhava terreno e o cerco apertava-se, ameaçando isolar as forças do tenente Liberato dentro da vila. Sabia ele que nada havia já a esperar. Manatuto, Ainaro e Baucau e a própria tropa, ilaqueda nos locais onde a surpreendera o intencional recrudescimento da actividade dos japoneses, nenhum auxílio lhes poderiam prestar (1). 

Também, o velho colono Sebastião da Costa que vivia numa propriedade pertencente a seu genro Joaquim Pereira Vigário e estava situada no limite de Laulara com Aileu foi, aí assassinado com quase toda a família (7). No livro do Dr. Cal Brandão (8) se encontram pormenores acerca desse massacre. 

Numa plantação pertencente ao sr. Sebastião da Costa os criados timorenses mataram à azagaiada dois soldados japoneses que cometiam abusos, facto que se passou em abril de 1942 mas de que os japoneses nunca tiveram a certeza, embora por isso ficassem a olhar com desconfiança e ódio a família Costa. O sr. Sebastião da Costa e seu filho Manuel Albano foram, então, residir para a propriedade do seu genro e cunhado Joaquim Pereira Vigário que, agora, estava ausente por se ter oferecido como voluntário para a expedição contra a revolta de Maubisse, comandada pelo tenente Ramalho. 

Foi então que «as colunas negras assaltaram a propriedade e, numa carnificina bárbara, retalharam mais de quinze pessoas. O Manuel, exaustas as munições, teve que ver dum alto próximo a imolação de todos os entes queridos, pai, mãe, irmãos, sobrinhos e o filhito com três meses. 

Quando tudo acabou, a alma dobrada pela dor e o espírito ardendo em desejo de desforra, foi apresentar-se às guerrilhas australianas, ansioso por acalmar no ardor da guerra o fogo que o consumia. O Vigário quando teve conhecimento do crime que lhe aniquilara a família e casa, reuniu alguns criados e dirigiu-se à propriedade, já então abandonada pelos selvagens, para dar sepultura condigna aos seus mortos. Surpreendido pela entrada de alguns japoneses com uma coluna negra, o Vigário repeliu-os mas, teve que ceder terreno e de se entrincheirar num reduto de pearas, e matando se deixou morrer (9)

No dia 26 de setembro, soube-se em Bobonaro que uma coluna japonesa avançava de Ainaro em direcção a Ataabe O sargento Alexandrino, chefe do posto de Atsabe, abandonou a localidade e fugiu à aproximação da coluna. Outro tanto íiaviam feito os chefes de posto de Same, Ainaro e Uátu-Údu por onde a coluna passara anteriormente.

 No dia seguinte soube-se que os nipónicos marchavam para Bobonaro, onde chegariam a noite, o que de facto sucedeu. No dia 28 abandonaram a vila. Esta coluna tinha aprisionado o régulo Evaristo, mas dera-lhe a liberdade em Atsabe, donde regressara à sua casa de Maubisse. Porém, pouco mais tempo viveu. Foi trucidado por uma coluna negra, assim como toda a sua numerosa família, algumas semanas depois (1). 

Em Maubisse, procedia-se então a averiguações para o apuramento das responsabilidades e a punição dos supostos cabecilhas da revolta (1). Os japoneses, prontos a aproveitar o descontentamento dos nativos, em seu benefício, imediata-mente acorreram ao apelo dos insurretos prestando-lhes auxílio contra as prepotências de que se diziam vítimas (1). Inesperadamente, apareceram na região forças nipónicas acompanhadas de numerosos indígenas, estabelecendo-se em Maubisse e lançando as suas avançadas até Ainaro, cujos arraiais haviam tomado parte activa na jugulação da revolta (1). 

No dia 27 de setembro, elementos da «coluna negra», assaltaram o acampamento do destacamento do tenente Ramalho, roubando espingardas e outro material e foram eles que então prenderam o chefe Evaristo tendo-o levado com eles (1). Simultaneamente, esboçou-se uma tentativa de roubo, por parte dos mesmos elementos, à residência do administrador de Aileu, tendo os criados, que quiseram opor-se à pilhagem, sido barbaramente espancados (1). 

Criava-se assim a atmosfera de terror destinada a favorecer o planeado assalto ao comando da Companhia de Caçadores, em Aileu, que se verificou na madrugada do dia 1 de Outubro (1). 

Altas horas da noite desse dia chegou ao hospital de Lahane um timorense, emissário de um liurai dos arredores de Aileu, com um bilhete redigido, mais ou menos, nos seguintes termos: "Senhor Engenheiro. Eles foram a Aileu e estragaram tudo". O portador da mensagem nada mais pôde adiantar para satisfazer as perguntas que com natural ansiedade lhe fizemos, pois não vivia em Aileu.

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Notas do autor:

 
(1) Vide Capitão António Oliveira Liberato, O Caso de Timor, Portugália, Lisboa.
 
(2) O senhor Júlio Madeira, natural da Ermera, tinha sido soldado da Companhia 
de Caçadores e havia constituído com timo- renses uma guerrilha que fez grandes estragos entre os japoneses devido ao conhecimento perfeito que o seu chefe tinha da região onde nascera e à sua perfeita mobilidade e períica no manejo das armas.

(3) Em Timor dá-se o nome de arraial ao conjunto de timorenses civis que voluntariamente se ofereceram para servirem em operações de guerra.

(4) Sucos, são em Timor, grupos de povoações dos regulados, assim todos os regulados, os reinos de Timor, se dividem num certo número de sucos. O régulo denomina-se «liurai» e o suco tem um «chefe de suco».

 (5) Os pormenores da primeira entrada dos japoneses em Baucau e das suas façanhas em Ossú e Quelicai foram-me referidos pelo tenente Pires quando voltei a Baucau após a minha estadia em Lahane. 

 (6) Estes pormenores da entrada da coluna japonesa acompanhada de indígenas em Aileu foram-me referidos pelo administrador, Virgílio Castilho Duarte. 

(7)  As notícias do assassinato do colono Sebastião da Costa e da sua família foi-me dada pelo chefe de posto de Laulara, Francisco Torrezão.
 
(8) Vide Carlos Cal Brandão, Funo. Porto, 1946.

(9) A morte do colono Joaquim Pereira Vigário deu-se a 3 de novembro de 1942. 
 

Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 44-53.
 
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, notas introdutórias, parênteses retos, reorganização das notas, itálicos e negritos: LG)

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Nota do editor

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14 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25742: Timor Leste : passado e presente (12): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte IV: A vida de um médico de saúde pública, Baucau, 1941

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