
AO CORRER DA BOLHA- XI
Por Morrer uma Andorinha…
Era uma vez um Alferes
Podia começar assim…
Terminada uma Operação na zona do Enxalé, esperava a passagem do macaréu. Só então cambariam o Geba até ao Xime.
Meio enrolado, ouvidos à escuta, a noite a chegar e, para aumentar o desconforto, a dor do dente a voltar, raios, raios, que chatice.
-Dá-me mais uma “pincelada “ dessa Mistura Bonin? …sei lá o nome, é LM, aqui é tudo do LM.
-Tem que ir a Bissau arrancar o dente. Isto só alivia e estraga os outros.
Horas depois já estavam em Fá.
Dormiu mal. O Furriel Enfermeiro aconselhou, logo pela manhã, a ida a Bissau.
Dias depois entrou no Hospital Militar e procurou a Estomatologia. Encontrou uma sala com várias cadeiras, médicos e o cheiro próprio daqueles locais. Borrifafa-se nisso, queria era ser tratado. E foi por um médico, calmo e sorridente, que lhe traçou o destino:
- Temos que arrancar o dente.
Já o esperava.
Falaram agradavelmente enquanto esperavam o efeito da anestesia.
Tentou o médico e o dente saiu alegremente.
- Aqui está, tudo bem e volta daqui a dois dias para ver esse siso. Não é para arrancar. Prevenir.
(O médico, se bem se lembra era de Coimbra ou esteve ligado à Briosa).
Dias depois dois, claro, voltou a entrar na sala. Tentou ser tratado pelo mesmo médico. Não foi possível e outro o tratou.
Mal o ouviu. Boca aberta, dedo lá dentro, breve espreitar.
Pouco depois zunia, com ruído irritante, a broca que de pronto avançou, primeiro na direcção da boca e depois do dente. Por pouco tempo, urrou o alferes e parou a broca.
-Tem que ser arrancado, sentenciou o clínico.
E foi. Foi com força e protestos do médico contra dente tão teimoso. Finalmente o siso lá saiu, descansou o médico e o alferes continuava, em surdina a chamar-lhe… isso mesmo, pensou bem.
Saiu da sala, com Guia assinada e ordem de regressar no dia seguinte ou noutro que não interessava.
Volto o “tanas de albernoa”…
Voltou e muito rápido. Nunca digas nunca.
Voltou porque horas depois as dores eram fortes, o sangue teimava em aparecer ao canto da boca. - Estou lixado.
Um Tenente de Cavalaria levou-o, no “jeep” que tinha, ao Hospital.
No caminho comentaram o que o HM 241, quem lá trabalhava e outros militares ligados à saúde representavam para os que estavam no mato.
“O que interessa é chegares vivo ao Hospital de Bissau e estás safo”. Em dias de tecto baixo, com dificuldade em evacuações de feridos, sentia-se o moral das tropas.
Por morrer uma andorinha… e isto não era caso de vida ou morte…
Entrou no Hospital, a cabeça a latejar, a visão meio enevoada, a raiva a tirar-lhe o juízo depois da partida do siso.
Nem viu, ao dobrar uma esquina, um Major do BART 1904.
- Então, que se passa? - Disse o Major.
Relatou brevemente e seguiu o Major. Numa sala estavam muitos militares ligados, se bem se apercebeu, à saúde. Ele saiu dali.
Pouco depois apareceu o Major e o tal clínico.
- Eu espero aqui. Tem transporte?
- Devo ter ou talvez não.
Seguiu o homem que lhe extrairia o siso e os protestos dele.
Ele nada dizia só, em surdina ia “falando”… do dito e de muito mais. Era para se entreter, para tranquilizar.
Sentou-se na cadeira, abriu a boca, lavou com água e algo mais, suportou a introdução de uma massa acastanhada ou que ficou dessa cor, levou uma injecção e esperou.
- Vai à Farmácia Militar e levanta o que aí está. Toma como aí diz. Volta cá daqui a… não se lembra quando ou participo de si. Aceitou o papel e a Guia com as novas indicações.
Saiu, foi à Farmácia, recebeu medicamentos e informações.
Nesse dia, talvez não, no outro já estava em Bambadinca e depois em Fá.
Da recuperação se encarregou o Enfermeiro.
A Guia… o vento levou-a… tudo o vento leva…
Passado muito tempo, já em Mansambo, a Companhia estava com muitos problemas de saúde. Recebeu, por isso mesmo, uma visita de alguns médicos héli-transportados.
Parece ter decorrido bem. Dizem que sim, se não me engano.
Fizeram fila para verificação dentária. Depois da saída do primeiro, talvez do segundo “doente” , desapareceu a fila. Seria…?
Na parada havia militares a lançar aviões de papel. Gritavam. - Vou para a Metrópole. Outros pediam boleia. Um outro, que tinha partido os óculos numa emboscada e ficou sem eles, o tique de os puxar para o lugar com o indicador manteve-se. Outro tomava comprimidos por cores. E agora? Azul… depois o verde…
Parece que ao fim da tarde, o tal Alferes regressou, salvo erro, da Moricanhe com o Grupo. Soube as novidades.
Foi benéfica, para a saúde daqueles militares a consulta colectiva. As condições eram demasiado más e foi uma boa medida.
Parece que o Comandante da Companhia teve que passar, no dia seguinte ou no outro, pelo Comando de Batalhão para uma ou outra explicação. Sem problemas se bem me lembro.
Tudo bem e lá continuaram cantando e rindo… mas a saúde e certas condições parece terem mudado.
Era uma vez um velho, a quem há décadas atrás chamaram Alferes... que, mesmo tanto tempo depois, se ouve o zumbido da broca no estomatologista fica muito, muito desagradado… vidas…
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 17 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8565: Fotos à procura de... uma legenda (1): Álbum de Torcato Mendonça (CART 2339, Mansambo, 1968/69)
Vd. postes da série de:
10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1353: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (1): O bababaga e o papa-figos
9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758
12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador
16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6002: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (4): Os apontamentos de Amílcar Cabral
20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6197: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (5): Mentes com dúvidas
21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6202: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Quem ficou com a minha G3
3 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (7): Lágrimas secas
14 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6388: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (8): Promessas
16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6404: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): Páscoa de 1968
17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (10): O saco do Zé Paz D'Almas