segunda-feira, 3 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (7): Lágrimas secas


1. O nosso Camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil AT Art da CART 2339,
Mansambo, 1968/69), enviou-nos mais um dos seus “Ao correr da bolha”, com data de 28 de Abril de 2010:

AO CORRER DA BOLHA - VII
Lágrimas Secas

Fim de tarde.
Viaturas, em coluna, a voltarem ao aquartelamento.
Muitos a esperarem, inquietos, nervosos, corações a baterem mais forte. Homens de rostos tisnados pelo sol, troncos nus e suados, olhares duros, fechados e a furarem os movimentos das viaturas.
De repente um grito, um levantar de braço de quase todos, numa sincronização a parecer treinada, a parecer de um só e surgem os risos e os sorrisos de alegria a fazerem brilhar os olhares.
Aí está o correio com a carta, a encomenda, o aerograma. Aí está a ligação ao mundo real, mundo deles que não aquele, mundo lá longe e a chegar, aqui e agora, em letras em papel estendidas ou nele, em encomenda embrulhada. Segue-se, então, breve rebulício e depois o silêncio.
Passa o tempo, não muito, só a parecer muito e um deles entra na zona de convívio, protegida por fiadas de bidões, que antecede a entrada de um dos abrigos. Querem que partilhe algo do conteúdo de uma encomenda aberta, encomenda recém chegada em atraso de Natal.
Agradece, diz que já volta e entra no abrigo. Procura uns papéis e sente o rebentamento, segue-se logo outro e mais outros na infernal troca de tiros e granadas.
Olha à volta, berra, sente a Breda a cantar, logo ali ao canto do abrigo, os morteiros e os obuses mais ao longe e ri-se. Ri-se porque pertence àquela bestialidade e, para ele, é a normalidade ou, para tantos, a não sentirem já a anormalidade de uma vida assim.
Gritam, chamam-no e corre para fora. Olha e pára, transforma-se, fecha o rosto, aperta os dentes e sente o cheiro da morte, o cheiro adocicado do sangue.
Tinham acertado, logo no inicio com o RPG, no palanque da sentinela. Em cheio.
Olhares de raiva, silêncios só cortados pelo gemido de um ferido.
Passa o tempo, olham-se e pelo olhar se acalmam, pelo olhar falam. Olhares a tudo dizerem, quase tudo, pois as vozes estão embargadas pela raiva.
Aparece um lençol. Agarra-o e sobe os poucos degraus até ao camarada parcialmente desfeito. Apanha-o e vai embrulhando. Ajudam-no no silêncio da morte.
Preso, balouçando e brilhando, mesmo com a fraca luz, o fio e a cruz do camarada. Porquê? Ali porquê?
Fá-los voar com uma palmada.
Desce e chora por dentro. Sente a dor da perca. Sente que já não verte lágrimas por fora, já não correm pela face. Secaram á muito.
Olham-no e ajudam sem uma palavra. Juntam-se em silêncio, cabeças baixas, pensamentos certamente a jurarem vingança. Alguém leva o camarada e muitos o seguem. Outros arrumam e fazem voltar a normalidade.

Na mesa a encomenda continua aberta…

Um abraço,Torcato Mendonça
Alf Mil AT Art da CART 2339
____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:

21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6202: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Quem ficou com a minha G3

4 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Há coisas que não se comentam.

Sentem-se e vivem-se, na crueza real das palavras que as descrevem.

Um abraço

Anónimo disse...

Caro Torcato.

Estou de acordo com as palavras do Mexia Alves, realmente é difícil acrescentar algo ao que descreves, foram situações que se gravaram para sempre por quem as viveu, e quero dizer-te que comungo contigo nas muitas das tuas “raivas surdas”, que expressas volta e meia nos teus escritos.

Um grande abraço

Manuel Marinho

Anónimo disse...

Torcato Mendonça

Um texto forte na sua verdade crua,esclarecedor de dores e revoltas por vezes ainda sentidas, que nos seria benéfico não reviver e iludir mas que nos é impossivel esquecer

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Torcato

Apetece-me dar-lhe os pêsames!
É tão sentida a sua dor, tão revoltado o seu sentir, perante uma realidade, tão cruel e desnecessária.

E o sentimento fica marcando presença, relembrando quando calha, agitando cruelmente as emoções.

Partilho sinceramente a sua dor.

Um abraço, força meu amigo!

Felismina Costa