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terça-feira, 21 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27337: Viagens à Guiné-Bissau: Amizade e Solidariedade (Armando Oliveira e Ricardo Abreu) (4): Nova Sintra (Aníbal Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Em mensagem de 19 de Outubro de 2025, Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), enviou-nos a quarta reportagem das "Viagens à Guiné-Bissau: Amizade e Solidariedade", levadas a efeito pelos nossos camaradas Armando Oliveira e Ricardo Abreu.


VIAGENS À GUINÉ BISSAU: AMIZADE E SOLIDARIEDADE

NOVA SINTRA

Instalações do quartel de Nova Sintra em 72/74 bem melhores que as de 69/70 da minha época

O quartel de Nova Sintra estava situado na parte sul do Setor de Tite, na Península de Gatangó, região do Quinara. Era uma localidade abundante em cajueiros e mangueiros e onde se fazia o cruzamento da estrada “internacional“ que tinha início no Enxudé, porto no rio Geba e ligava Tite a Bolama por São João e Fulacunda até Buba e Catió.

O quartel foi construído entre os dias 6 e 31 de Maio de 1968, pelos sacrificados e abnegados militares da CCAÇ 2314 e CART 1802, com o propósito de obstar ou dificultar o movimento de homens do PAIGC e de material, na direção de Bissássema, localidade junto ao rio Geba, fronteira à cidade de Bissau, de onde poderiam fazer ataques a esta cidade.



VIAGEM DE 15 DE ABRIL DE 2017

Para concluir o périplo do triângulo da região do Quinara, Tite, Fulacunda e Nova Sintra, a crónica de hoje é relativa à visita a esta ultima localidade da Guiné-Bissau, pelos camaradas Armando Oliveira e Ricardo Abreu.

O transporte dos “repórteres” desde Tite, via Fulacunda e até Nova Sintra foi assegurado por uma viatura da Missão Católica de Tite e conduzido por uma freira. Segundo eles, no espaço que fora ocupado pelo quartel nada resta, salvo meia dúzia de edifícios em ruínas (ver fotos) e está totalmente coberto por árvores e densa vegetação, não permitindo identificar o que quer que seja.

No meu tempo, Março de 69 a Setembro de 70, nas imediações do quartel não havia qualquer tabanca que albergasse população, pelo que foi com surpresa e agrado que os “repórteres” me deram a conhecer a existência da Tabanca de Nova Sintra, situada a meio caminho entre o antigo quartel e o “famigerado” cruzamento de Nova Sintra (acesso a S. João, Tite e Fulacunda).

O propósito da visita foi o mesmo que as efetuadas a Tite e Fulacunda, a “amizade e solidariedade” com a entrega de dádivas, tais como: livros, cadernos e material escolar; bolas e equipamentos desportivos, bonés e t-shirts; biberões e comida para bébés; soros e material de aplicação e principalmente medicamentos.

Ruínas de edifícios do antigo quartel de Nova Sintra
Vegetação densa no espaço outrora ocupado pelo quartel
Ricardo entre dois homens que foram do PAIGC, sendo o que tem a espingarda, o que colocava minas na zona de Nova Sintra.
Estrada Tite - Nova Sintra que o Ricardo percorreu de motorizada dois dias depois da visita. Estrada que ele ajudou a desminar, até ao “pontão”, após o 25 de Abrilde 1974.
Tabanca de Nova Sintra
Ricardo Abreu na entrega de sacos com dádivas
Juventude da Tabanca de Nova Sintra
Jovens no centro do famigerado, pela sua perigosidade de outrora, cruzamento de Nova Sintra

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27316: Viagens à Guiné-Bissau: Amizade e Solidariedade (Armando Oliveira e Ricardo Abreu) (3): Vila de Fulacunda (Aníbal Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27224: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (11): O Soldado Castro

1. Mensagem do nosso camarada do Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (,Tite e Fulacunda, 1968/69), com data de 5 de Setembro de 2025:

Desta vez, relato uma das implicações para que, durante 22 meses, não pude gozar férias por ter sido punido com detenção cumprida no mato.

Um abraço.
J.Caldeira


O SOLDADO CASTRO

Nunca percebi porque, sendo eu apenas um simples furriel, menos que sargento, tivesse que assumir funções que pertenceriam a oficiais ou, na sua ausência, a sargentos.

 Em mais um regresso de Nova Sintra, comandando uma força de cerca de 30 homens, na qual se incluía o soldado Castro que até era da secção do sargento Faria, também integrante da força, sofremos uma emboscada. Mas antes o Faria tinha oferecido o cantil de aguardente ao Castro e, este, não se fazendo rogado, bebeu talvez em quantidade razoável. Ficou grogue e, durante o tiroteio, resguardou-se debaixo de umas raízes de embondeiro e por lá adormeceu. Tropa fandanga.

No final da emboscada, reunido o pessoal, certifiquei-me de que não tinha havido danos pessoais e, após comunicar com a sede do batalhão, certifiquei-me de estávamos todos e mandei prosseguir. 

Passadas duas horas fui informado de que faltava o Castro. Pensei logo o pior. Que talvez estivesse morto ou ferido e que, por eu nem sequer o conhecer - estávamos há muito pouco tempo na Guiné e ele nem pertencia à minha unidade - não tinha dado pela sua falta. O Faria também não. Nova comunicação para o batalhão a informar da falta de um elemento.

 Recebo ordens para prosseguir e informaram que pessoal da companhia de Nova Sintra, por estar mais perto do local da emboscada, iria procurá-lo. Mas não o encontrou. 

Quando acordou, ainda sob o efeito da cachaça, dando pela nossa falta, caminhou errante para Nova Sintra. Chegou lá no dia seguinte. Foi um heli buscá-lo para Tite. E eu tive um processo disciplinar que resultou em castigo de dois dias de detenção que vim a cumprir fora do quartel, a caminho de Bissássema.

Como não podia deixar de ser, estes processos são demorados e só vim a saber da minha punição uns meses depois. Precisamente no dia 2 de Maio, data do meu aniversário. 

Até foi giro. O capitão presenteou-me com uma lembrança, um álbum para fotografias e a nota de culpa.

Quanto ao Castro, por remorso tentou dar um tiro na boca e eu fui chamado para o impedir. Não me foi difícil convencer do seu erro, mas sei que ficou marcado para sempre.

 Uns anos mais tarde, fui chamado para ser sua testemunha num processo em que pedia uma pensão de reforma, que lhe foi concedida por incapacidade motivada por stress de guerra. Perdi-lhe o rasto, mas gostava de reencontrá-lo.
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Nota do editor

Último post da série de 8 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27195: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (10): Ataque à Tabanca de Feninquê

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27195: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (10): Ataque à Tabanca de Feninquê

1. Mensagem do nosso camarada do Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69), com data de 5 de Setembro de 2025:

Boa tarde, caro Luís
Desta vez vai uma das noites que marcaram a minha presença em Tite.

Um abraço e bom fim de semana.
J.Caldeira



TABANCA DE FENINQUÊ

Quem ainda se lembra de uma tabanca a sul de Tite, composta por meia dúzia de palhotas e habitada por uma população que era fiel à nossa bandeira? Pelo menos assim parecia e pareceu. Chamava-se Feninquê.
Localização da tabanca de Feninquê a sudoeste de Tite
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné. Carta de Tite 1:50.000

Mais uma noite de muita chuva. Onze na noite. A aldeia estava a ser atacada e pelo que se ouvia, tínhamos a certeza de que estava a ser dizimada.

O já Coronel Hélio Felgas manda que a 15.ª Companhia de Comandos, nessa noite em passagem por TITE, vá em socorro da aldeia. Não sei o que se passou para que o seu comandante se escusasse e, ironia, não foi a Companhia de Caçadores 2314 que saiu em defesa daqueles pobres? Nunca percebi porquê, mas de uma companhia, foi resolvido que quem iria era o 2.º pelotão. E, como não podia deixar de ser, fui eu a comandar.

Acertadas as logísticas de aproximação, havia que evitar um campo de minas colocado na picada, foi-me entregue um mapa com as coordenadas rigorosas para eu seguir e, após avistar a tabanca, informar a sede do batalhão para onde deveria ser feito fogo de obus para neutralizar o IN e possibilitar-me o resgate da população.

Cheguei tarde. Só encontrei morte e destruição à minha chegada. Ainda assim, pressentindo que o IN estivesse em fuga pela margem esquerda do rio, pedi fogo nessa direção, o que não resultou em nada.

Reuni os habitantes que sobreviveram e, com a ajuda dos homens válidos, improvisámos umas macas para transportar os feridos que seriam tratados pelo médico do Batalhão de Tite. Encetámos o regresso já de dia bem alto e sem chuva. À chegada foi como se nada se tivesse passado. Apenas me ordenaram que elaborasse um relatório da operação.

Afinal, as companhias de Comandos, bem formadas e bem equipadas, também se escusavam a cumprir tarefas que pudessem comportar algum perigo. Será que ainda alguém se lembra deste episódio?
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Nota do editor

Último post da série de 31 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27170: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (9): O perfume da Enfermeira Paraquedista

domingo, 31 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27170: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (9): O perfume da Enfermeira Paraquedista

1. Mensagem do nosso camarada do Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69), com data de 28 de Agosto de 2025:


O PERFUME DA ENFERMEIRA PARAQUEDISTA

Após uma longa e difícil caminhada chegámos perto de Nova Sintra ao local onde devíamos encontrar-nos com um pelotão de nativos, vindos não sei de onde para, em conjunto, fazermos um golpe de mão e destruir um acampamento IN.

 Como estávamos cansados e com fome, aproveitámos estar à beira de um rio para refrescar os pés e comer a ração de combate. Via rádio, fomos informados de que o pelotão de nativos estava perto e que o encontro estava iminente. O senhor coronel Hélio Felgas tinha ideias geniais. Assim chegou a brigadeiro. Por acaso, alguém olhou para oeste e deparou com um grupo de soldados pretos que caminhavam na nossa direção sem que, ao que parece, ainda não nos terem visto. Finalmente, pensámos. Alguém lhes chamou a atenção para a nossa localização que não distava mais de vinte metros. Recordo que estávamos escondidos nas margens do rio e em pose de descanso. Até as armas estavam a descansar.

E eu vi que um dos soldados nativos nos apontava uma arma. Um canhão sem recuo. E disparou na nossa direção, seguindo-se um tiroteio feio, feito com toda a espécie de armas. 

Quando me apercebi de que afinal eram "turras", corri para a bazuca do Melo, que nem teve tempo de a pegar, até porque estava descalço, e apontei aquela arma terrivelmente mortífera. Como já estava carregada, estava sempre, foi só apontar e disparar.

Quem conhece a bazuca sabe que o cano nunca aponta para onde deve ser dirigido o tiro. Por vezes a sua direção fica deslocada do local para onde se aponta pelo diópter. Disparei. E vi cair o meu guia, um soldado de segunda linha, por ser preto, seguido de mais quatro soldados. 

Só percebi que o meu tiro tinha rebentado à saída do cano quando vi que um ramo de mangueira estava cortado, caído no chão. Afinal a granada de bazuca rebentou à saída do cano. Quem te manda utilizar uma arma para a qual não tinhas prática suficiente? 

E, ingloriamente, matei o meu guia que ficou decepado, feri os restantes, sendo o mais grave o soldado Palricas. Lembro-me de ele me ter dito: "Ai, Caldeira, que me mataste". 

Mas não. Ficou gravemente ferido, mas recuperou no hospital e acabou a comissão. Faleceu há dias, devido a problemas cardíacos.

Após a confusão, chamados os helis para evacuações, havia que proceder à segurança para poiso das aeronaves e encaminhar aqueles feridos. Um deles, não me lembro de quem, ainda não estava devidamente tratado e pensado, o que levou a enfermeira perguntar-me qual o seu estado. O barulho das hélices era enorme, porque, por precaução, não pararam. Eu não entendia. Então ela rodeou o meu pescoço com o seu braço. Aproximou a cara da minha e perguntou de novo. O seu perfume era tão agradável que eu desejei que ela voltasse. Mas não voltou. E eu que trazia barba de vários dias, sarro que chegava em cima da pele e exalaria um odor pestilento!
Localização de Nova Sintra
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné - Carta da Província da Guiné: Escala 1/500.000


Afinal, o que era Nova Sintra? Vou tentar esclarecer: Era o cruzamento de três caminhos, no meio do nada, rodeado de mata e longe de tudo. Sem água potável e longe das fontes de reabastecimento. Feudo dos nacionalistas. Mas seria um lugar estratégico por dali irradiarem os caminhos para Tite, Fulacunda e São João-Bolama. 

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27138: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (8): A deliciosa laranja de casca verde ("Citrus sinensis var. dulcis" ou "laranja-lima" no Brasil)




Laranja verde da Guiné-Bissau (Citrus sinensis, var. dulcis). Imagens fornecidas pela IA / ChatGPT. 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



Joaquim Caldeira, hoje e ontem...


1. Mais um  pequeno texto, este "deliciosos", do Joaquim Caldeira, grão-tabanqueiro nº 905, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69); vive em Coimbra; é autor do livro "Guiné - Memórias da Guerra Colonial", publicado pela Amazona espanhola (2021)


A laranjeira de frutos verdes

por Joaquim Caldeira (*)

Já aqui referi (no meu livro) a emboscada de abelhas africanas que deixaram o alferes Pio em coma e, para sua recuperação, teve que ser evacuado para o hospital de Bissau. Isto passou-se ao largo de Fulacunda, na direcção de Nova Sintra - Tite.

Certa vez, numa operação que efectuei para esses lados, dei com uma laranjeira carregada de frutos verdes e segui adiante. Era uma árvore de porte médio e estava cercada por mato. Era mesmo muito difícil a nossa aproximação. Segui adiante e não pensei mais no assunto.

Meses mais tarde fiz o mesmo percurso para repetir nova operação de qualquer coisa. De novo a laranjeira carregada de frutos de cor verde. Não me contive. Então, passados meses, ainda não tinham amadurecido? 

Quis ir ver. Mandei fazer o cerco de segurança e à catanada cortei o mato que me separava do tronco. Depois foi só puxar um ramo e colher uma laranja. Estava maduríssima e era de uma doçura sem igual. 

Só havia uma forma de colher todos os frutos. Era subir à árvore. E assim foi feito. Desde ramos partidos para ser mais rápido e fácil a abanar os troncos para fazer cair laranjas, tudo valeu. Tivemos que tirar os blusões, puxar os cordões das mangas e enchê-las. Depois o mesmo para o cordão da cintura e toca a encher o blusão até ao pescoço, depois de abotoado. No final, carregar com aquilo, somado às munições e às armas. Não foi fácil mas valeu a pena. 

Não ficou uma peça de laranja na pobre laranjeira e decerto que, se não tivéssemos feito a colheita, ainda agora lá estavam. Barrigada geral.

(Revisão / fixação de texto, título do poste: LG)



Guiné-Bissau > Outubro de 2024 > "Mercado de Gamamudo: Frutas e  legumes da época" (é sempre um regalo para a vista...). Do lado direito, parecem-nos ser laranjas limas verdes...

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor LG:

De acordo com o "Sabe-Tudo", o assistente de IA do ChatGPT, trata-se de  uma árvore de fruto tropical que dá laranjas... de casca verde. Nome científico, Citrus sinensis, var. dulcis.  

A sua origem deve ser China e nordeste da Índia.  Deve ter sido levada para o Brasil e para a Guiné pelos "tugas".

Muito interessante o teu testemunho, Joaquim Caldeira! Pelo que tu descreves, não se trata de uma laranjeira comum (Citrus sinensis), mas sim de uma laranja de maturação “permanentemente verde”, muito típica das variedades cultivadas (e espontâneas) na Guiné-Bissau. E que encontravámos facilmente nos mercados locais no nosso tempo. Quem tinha preconceitos (etnocêntricos...) e pouca ou nenhuma curiosidade, nunca a provou...e não sabe o que perdeu. 

Digam-me lá quem é que tinha a curiosidade e a pachorra do Joaquim Caldeira ? No meio de um patrulhamento ofensivo, quis ir ver que raio de árvore era aquela: "Mandei fazer o cerco de segurança e à catanada cortei o mato que me separava do tronco. Depois foi só puxar um ramo e colher uma laranja. Estava maduríssima e era de uma doçura sem igual".

Eis alguns pontos a ter em conta para uma melhor descrição  deste citrino tropical:

(i) Frutos verdes mesmo quando maduros:

Nas regiões tropicais húmidas, como a Guiné-Bissau (a região de Quínara incluída), o citrino pode não adquirir a coloração alaranjada típica do nosso Algarve e do Mediterrâneo em geral.

Isso acontece porque  nos trópicos, as noites não arrefecem o suficiente para quebrar a clorofila da casca; a mudança de cor exige noites abaixo de ~13–15 °C, coisa rara na região de Quínara. As noites são, portanto,  quentes: não há o contraste de temperaturas (calor de dia / frio de noite) que desencadeia a degradação da clorofila e o aparecimento da cor laranja. Logo, a casca mantém-se verde ou verde-amarelada, mesmo estando o fruto já doce e pronto a comer. 

(ii) Doçura excecional:

Muitos relatos coloniais (como este do nosso camarada Joaquim Caldeira)  falam da “laranja da Guiné” ou “laranja de casca verde”, extremamente doce, sumarenta, e que amadurece sem mudar de cor. É um tipo de Citrus sinensis var. dulcis (ou var. tropical),  muitas vezes chamado simplesmente sweet orange tropical ("laranja doce", em português do Brasil).

(iii) Ciclo de frutificação:

Nas condições tropicais, algumas laranjeiras dão fruto quase todo o ano, com várias florações. Isso explica o espanto do narrador: meses depois quando lá voltou a passar, mpo subsetor de Fulacunda na zona de Nova Sintra -Tite,  a árvore parecia sempre “carregada de frutos de cor verde", quando na verdade já havia frutos maduros, apenas sem coloração visível. A laranja "estava maduríssima" e tinha "uma doçura sem igual".

Portanto, o que foi encontrado na zona de  Nova Sintra-Tite em 1968/69. pelo narrador era muito provavelmente a “laranja verde da Guiné” (Citrus sinensis, var. tropical), um citrino comum no país, de porte médio, muito doce, e cuja maturação não se denuncia pela cor da casca.

Esta laranja doce, de baixa acidez, adaptada e cultivada em climas tropicais,  é também conhecida no Brasil  como laranja lima verde. Quem não conhece o livro do José Mauro de Vasconcelos, "O Meu Pé de Laranja Lima", uma verdadeira obra-prima da literatura infanto-juvenil, em língua portuguesa ?

O assistennte de IA / Perplexity também confirma que a Citrus sinensis var. dulcis corresponde à laranja lima verde encontrada e consumida no Brasil (o maior ptrodutor do mundo de laranjas...). É também conhecida popularmente como laranja-doce.

É uma fruta bastante apreciada por seu sabor suave, pouco ácido e adocicado, indicada especialmente para crianças e pessoas com sensibilidade gastrointestinal. De polpa doce, poucas sementes, casca fina e geralmente esverdeada ou levemente amarela quando madura.

A laranja lima verde é considerada uma variedade de maturação tardia, comum em algumas regiões do Brasil, e faz parte da ampla diversidade de laranjas doces cultivadas no país. Além dela, existem outras variações regionais, como a "laranja lima do céu". Todas pertencem à espécie Citrus sinensis, grupo das laranjas doces, e não devem ser confundidas com limas ácidas ou outros citros.

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Nota do editor LG:

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27089: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (6): A noite do Adriano, um herói desconhecido




Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > A famosa "torre de vigia", onde estava montada uma Breda, e que já existia no tempo dos Boinas Negras, a CCAV 2482 (1968/70)



Foto (e legenda): © Armando Oliveira  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



1. Mensagem do  Joaquim Caldeira, grão-tabanqueiro nº 905,  ex-fur mil at inf CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69) (*)


Data - terça, 29/07/2025  12:14  
Assunto -  A noite do Adriano

Desta vez, envio um relato sobre a heroicidade por vezes forçada de um grande homem a quem Portugal ainda não fez justiça.

Ontem fui surpreendido por um telefonema que me fez o nosso amigo, coronel Trabulo. Queria incentivar-me e ao mesmo tempo corrigir algumas imprecisões, sobretudo de datas. Fiquei maravilhado por saber que já estão a fazer comentários ao que escrevi. Peço a todos os que lerem estas palavras que comentem e, se possível, complementem com alterações que lhes pareçam pertinentes. Sobretudo, ajudem-me com material porque eu já não me lembro de tudo.

Mas vamos ao Adriano.

Um abraço, caro amigo.
J.Caldeira


A noite do Adriano, um herói desconhecido

por Joaquim Caldeira (*)


Nas noites mais escuras, dentro da mata, a nossa fila indiana mantinha-se graças ao ouvido, pois que à distância regulamentar que cada um devia manter dohomem da frente, cerca de três metros, não se via nada. Mas, tal como eu e muitos de nós, oAdriano também estava a perder qualidades auditivas e com maior grau de perigosidade.

Estava quase surdo. Penso que acabou por ficar surdo total. Efeitos do ruido sobre o sistema auditivo, dizem-me os otorrinolaringologistas. É assim que se escreve? Bem, como o Adriano estava surdo e não conseguia ver dada a enorme escuridão, ao passarmos numa bifurcação do caminho, ele seguiu pelo outro ramo, levando atrás o resto da coluna. E, quando se deu conta, era tarde. De noite não é possível juntar duas colunas. Mesmo de dia é altamente perigoso, como já aqui referi no episódio da enfermeira. Foi então necessário esperar que o dia nascesse para que as duas colunas, entretanto paradas, pudessem caminhar para o encontro.

Este episódio não teria importância se não fosse introito para o que vem a seguir:

Certa noite, em Fulacunda, calhou a vez ao Adriano de subir ao palanque para sentinela noturna de duas horas. Esse palanque não era mais do que um tronco de "cibe"  com unsquatro metros de altura, encimado por um estrado de madeira, quadrado de dois metros, e nele estava um metralhadora Breda  com dois cunhetes de balas em permanência. Para quem já esqueceu, um cunhete tem mil balas. Para ajudar na subida tinham sido pregados uns sarrafos e, na subida para a plataforma, um pouco de ginástica. Para descer era o cabo dos trabalhos.

E nessa noite, comandado pelo próprio Nino Vieira,  um grupo altamente armado e em número elevado, atacou as nossas fortificações com vários canhões, vários morteiros e roquetes e várias metralhadoras e outras armas ligeiras, dispostas em ninhos por espécie e colocadas a pouco mais de cinquenta metros do arame. Foi uma flagelação destinada a entrar e arrasarconnosco, pois que eles sabiam que nessa altura estavam apenas dois pelotões. O terceiro e o quarto pelotões tinham sido desviados para a psicossocial em Bedanda e no Catió. Está certo?por ordem do comandante do batalhão.

Voltando ao ataque, dessa vez era para acabar com Fulacunda. Mas o Adriano estava lá. E via de onde saiam os disparos. E estava em local privilegiado para apontar ao sítio e ter sucesso.

E teve. Sozinho, nós apenas podíamos fazer barulho e evitar a entrada, sozinho, portanto, foidizimando o IN ninho a ninho, começando pelos canhões, passando aos morteiros e acabando nas metralhadoras. E pô-los em fuga. Mas com o Nino era tudo muito a sério. Não deixaram os feridos nem os mortos nem o armamento. Apenas ficou o sangue, muito, e o mato pisado pelo arrastar de quem não poderia andar.

E, porquê fez tanto e tão bom trabalho, o Adriano. Então ele conta que via as balas tracejantes à sua volta e via os clarões das granadas de canhão, morteiro e roquete rebentar na base do "cibe" e manteve-se firme no seu posto. É que ele nunca teve a noção verdadeira do perigo em que estava porque não ouvia e porque era muito difícil descer dali.

Foi um grande herói. Pedi ao capitão que não se esquecesse dele para as nomeações aos "Óscares". Levou um louvor. Merecia mais. E, do país, não levou nada. Quando os nossos governantes enaltecem quem defendeu o bom nome de Portugal na Bósnia, no Kosovo, no Afeganistão. etc, etc, dando-lhes benesses, merecidas, esquecem quem defendeu o bom nome e a integridade de Portugal, deu a vida, deu a saúde e, em troca, nem uma pensão por invalidez lhe concedem. Se fosse para dar benesses a comendadores ou outros, a políticos ou a outros, haveria dinheiro. Ao Adriano ainda não foi feita justiça. 

Pobre Portugal.  Afonso Henriques, no que te meteste com a teimosia de ser rei!

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 18 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27028: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (5): Consagração de um grande homem e combatente, o João Gualberto Amaral Leite (1944-2011)

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27028: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (5): Consagração de um grande homem e combatente, o João Gualberto Amaral Leite (1944-2011)




Da esquerda para a direita, Fernando Almeida, Narciso Durão, João Leite e Anselmo Adrião, ex-furrieis da CCaç. 2314. Foto: cortesia de Blogue BART 1914 > 9 de fevereiro de 2011 (Legendagem: Joaquim Caldeira)


Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCACÇ 2314, "Brutos", TIte e Fulacunda, 19689/609; nosso grão-tabanqueiro nº 905; 
vive em Coimbra; autor do livro, "Guiné - Memórias da Guerra Colonial", publicado pela Amazona espanhola (2021)


Fotos (e legendas: © Joaquim Caldeira (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



Consagração de um grande homem e combatente: o João Gualberto Amaral Leite
 
por Joaquim Caldeira (*)


Estávamos nos finais de 1967 e, à entrada  do quartel de Tomar, cruzei-me com o João que trazia um braço ao peito e vinha abatido. Mal nos conhecíamos e não nos víamos desde os tempos da recruta, muitos meses antes. Nem sabia o seu nome tal como ele não saberia o meu. Satisfez a minha curiosidade dizendo que se chamava João Leite e que tinha tido um acidente…

Despedimo-nos nesse dia e só voltámos a rever-nos no seguinte, na caserna que nos foi destinada. Ficámos a saber que o nosso destino era comum. Íamos formar companhia para depois seguirmos para o ultramar, mas nem sabíamos ainda para onde.

Não sabíamos que os dois anos seguintes iriam ser muito cheios de emoções fortes, perigos, mas também de solidariedade só possível de construir nos momentos mais difíceis e de grande perigo.

E vim a conhecer melhor o Leite e toda a equipa com quem fizemos grandes amizades.

Passarei a designá-lo por Leite, pois era o nome que usávamos por lá e mais tarde, já no fim da guerra, quando nos encontrávamos por ocasião dos convívios.

Afinal, era um homem diferente do que conheci à entrada do quartel, em Tomar. Era folgazão, brincalhão, sempre de boa disposição e muito bem humorado.

Cedo demos conta de que se tratava de homem determinado, sabia o que queria, como queria e quando queria.

Quis o destino que tivéssemos de viver o desastre de Bissássema onde ele, mesmo na linha da frente por onde o IN pretendia repetir o assalto, tal como fizera uns dias antes e se apoderara de armamento, equipamento e prisioneiros, soube infligir a maior derrota sofrida pelo IN durante toda a guerra que travou com o Exército português. Esta batalha nem consta da história de guerra do PAIGC.

Outros desastres aconteceram nas nossas vidas e, em todos, o Leite teve participação com vantagens para o nosso lado.

Desgostoso com o conformismo que reinava na companhia, decidiu formar o seu próprio grupo indo buscar os melhores de entre os melhores. E assim nasceu o grupo “Os Brutos ”. E fizeram história deixando um rasto de medo nos grupos do IN.

Estavam sempre na linha da frente. Tive o privilégio de os comandar nas ausências do Leite. Eram o escol da companhia. E ajudaram o seu comandante, o Leite, na conquista de uma condecoração justa e merecida, só atribuída aos bons. Uma “Cruz de Guerra” (**).

Mas nem sempre foi fácil a vida do grupo. Tiveram as suas horas más. Entre outras, talvez a pior, o acidente do Viriato Lopes.

E assim se passaram dois anos de uma convivência fraterna, só possível em teatros de guerra. Fizemos amizades para a vida. Ficaram as saudades dos amigos e de algumas, muitas vivências.

Só voltei a ver o Leite passados alguns anos, por ocasião dos convívios a que ele não queria faltar, mesmo vindo de tão longe.

Por fim, soube da sua doença. Fui dar-lhe o meu abraço numa das suas vindas a Lisboa para tratamentos. A doença venceu o homem. Mas não venceu o marido, o pai, o profissional bem realizado, o amigo e o camarada de quem todos sentimos saudades.

O Leite ainda vive em nós. Até sempre, companheiro.


(Revisão / fixação de texto: LG)


PS - O João Gualberto Amaral Leite nasceu em São Miguel, Açores, em 13/07/1944, e faleceu em 16/02/2011. Era bancário.

______________

Notas do editor:


(*) Último poste da série > 10 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27001: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (4): A carta de condução, tirada na Escola de Condução Angélica da Conceição Racha


(**) Furriel Miliciano de Infantaria JOÃO GUALBERTO AMARAL LEITE, CCaç 2314/BCaç 2834 - RI 15, GUINÉ - Cruz de Guerra, 4." CLASSE



Cruz de Guerra de 4ª Classe. Imagem:
cortesia do Portal UTW - Dos Veteranos da
Guerra do Ultramar


Transcrição da Portaria publicada na OE nº 15 - 3ª série, de 1970.

Por Portaria de 15 de Abril de 1970:

Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro do Exército, condecorar com a Cruz de Guerra de 4ª classe, ao abrigo dos artigos 9.° e 10.° do Regulamento da Medalha Militar, de 28 de Maio de 1946, por serviços prestados em acções de combate na Província da Guiné Portuguesa, o
Furriel Miliciano de Infantaria, João Gualberto Amaral Leite, da Companhia de Caçadores 2314/Batalhão de Caçadores nº 2834 - Regimento de Infantaria nº 15.

Transcrição do louvor que originou a condecoração.
(Por Portaria da mesma data, publicada naquela OE):

Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro do Exército, louvar o Furriel Miliciano de Infantaria, João Gualberto Amaral Leite, da Companhia de Caçadores nº 2314, do Batalhão de Caçadores nº 2834 - Regimento de Infantaria n.º 15, pelo modo brilhante e abnegado como se desempenhou de todas as missões de que foi incumbido durante a sua comissão de serviço na Província da Guiné.

Criando um Grupo de Combate tipo Comandos, "Os Brutos", soube logo de início imprimir-lhe notável eficiência para o combate, incutindo nos seus homens o espírito aguerrido e audaz de que ele próprio é' possuidor.

Realizando dezenas de emboscadas, participou em numerosas acções, onde a actuação do seu Grupo de Combate foi bastante influente nos resultados obtidos.

Num ataque sofrido por um dos nossos aquartelamentos, em 24 de Dezembro de 1968, apesar do intenso fogo, deslocou-se para um dos abrigos periféricos mais próximos das posições inimigas, onde dirigiu eficientemente o fogo do pessoal que o guarnecia, tendo ele próprio efectuado o lançamento de dilagramas, de posições a descoberto.

Já antes, em 09 de Fevereiro de 1968, numa acção semelhante, manteve a sua posição num abrigo que guarnecia, apesar de na altura dispor de poucas munições, contribuindo para o aniquilamento de quinze elementos inimigos e para a captura de diverso armamento e outro material.

Numa operação em 26/29 de Maio de 1969, soube conduzir o pessoal do seu Grupo de forma assinalável, no assalto a um acampamento inimigo, debaixo de intenso fogo e na perseguição imediata ao inimigo, até este dispersar.

Militar dotado de elevadas virtudes militares e invulgar capacidade para o comando do seu Grupo, tendo resultado dos seus serviços honra e lustre para a Pátria e para o Exército a que pertence, merece o Furriel Leite que aqueles sejam considerados extraordinários e importantes.

 
 Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 5.° volume: Condecorações Militares Atribuídas, Tomo VI: Cruz de Guerra (1970-1971). Lisboa, 1994, pág. 202/203.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27001: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (4): A carta de condução, tirada na Escola de Condução Angélica da Conceição Racha


Crachá da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 , "Brutos" (Tite e Fulacunda, 1968/69),
grão-tabanqueiro nº 905, ex-fur mil at inf CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69) (*)


Joaquim Caldeira, ex-fir mil at inf,  CCACÇ 2314, "Brutos", TIte e Fulacunda, 19689/609; nosso grão-tabanqueiro nº 905, ex-fur mil at inf CCAÇ 2314 

Fotos (e legendas: ©  Joaquim Caldeira (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


A CARTA DE CONDUÇÃO

por Joaquim Caldeira (*)


Decorria o verão de 1969 e a situação política não alterara em nada a situação militar.

Era muito difícil sair dos buracos que nos estavam reservados. Só com uma forte justificação tal era consentido.

Mas forte justificação tinha eu quando solicitei autorização para me deslocar a Bissau a fim de fazer exame de condução, o qual tinha sido requerido havia mais de seis meses.

Deferido. Só faltava transporte para a cidade e marcar a data do exame, depois de ter alugado viaturas para tal.

E lá fui, desta vez não me lembro de que meio de transporte nem como decorreu. Sei que marquei o exame para o dia seguinte –
tinha prioridade por ser bicho de mato – e só faltava alugar a viatura. 

Desloquei-me à Escola de Condução Angélica da Conceição Racha (**), onde era instrutor um antigo soldado condutor que passara por Fulacunda e com quem eu fizera amizade.

Aluguei um camião com atrelado e uma mota para o exame das duas modalidades.
À hora marcada, o Paulo, o tal condutor, estava com as viaturas preparadas eis que chega o alferes examinador.

Comecei pelo código, a que respondi muito satisfatoriamente, depois das lições que o Durão me deu e que complementei com uma leitura rápida do livro e, passado nesta fase, passei à prática, obtida sem consentimento do Fernando Almeida.

– Um apito é para fazer dois oitos para a esquerda. Dois apitos são para fazer dois oitos para a direita. Três apitos são para regressar a este local e acabar o exame. 
Depois, passamos ao exame do camião   disse o alferes.

E lá vou eu, fazendo tudo muito certinho, regressando ao local de partida aos três apitos. Aí, quis brilhar. Lembrei-me de passar uma rasteira ao alferes e, quando quis travar para parar, a mota não parou. Entrou pela escola dentro.

– Azar, nosso furriel. Depois de uma prova tão boa não o posso passar. Deu muito nas vistas.

Fiquei vacinado e nunca mais pensei na mota. Fiquei-me pela carta de tractor com reboque.

Era assim. Agora, um pouco diferente. Vejam como circular nas rotundas.

Joaquim Caldeira


(**) Segundo a Wikipedia, citando a agência Lusa, em 2013 seria a escola de condução mais antiga da Guiné-Bissau.

Adaptou-se aos novos tempos, e depois independência da ex-colónia portuguesa, passou a denominar-se também por Escola de Condução 3 de Agosto. 

Dá ainda aulas em viaturas da época colonial. O parque automóvel é constituído essencialmente por viaturas bastante antigas

A escola já pertenceu a um português, migrado na ex-colónica portuguesa, de seu nome Telesfório Américo Racha. Tendo mais tarde pertencido a Augusto Soares, entretanto falecido. Actualmente o proprietário é João Augusto Soares, de 59 anos, irmão do anterior dono e conhecido em Bissau como “mestre Joãozinho”.

domingo, 6 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26989: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/60) (3): O levantamento de rancho em Nova Sintra, por causa do meu "prato", uma lata de Coca-cola, meia de água, com quatro feijões a nadar...


1. Mais um excerto do livro "Guiné: Memórias da Guerra Colonia", do Joaquim Caldeira, grão-tabanqueiro nº 905,  ex-fur mil at inf CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69) (*)


Mensagem do Joaquim Caldeira
Data - sexta, 4/07/205  19:41  
Assunto - Levnatamento de rancho
 
Caro Luis. O post de hoje tem a ver com as dificuldades passadas em Nova Sintra, local de má memória, até pelo texto anexo (*).Um abraço e feliz fim de semana.

J.Caldeira.

Imagem à direita: Capa do livro de Joaquim Caldeira, "Guiné - Memórias da Guerra Colonial", publicado pela Amazona espanhola (2021) 



O LEVANTAMENTO DE RANCHO

 por Joaquim Caldeira (**)



Nova Sintra. Já aqui referida muitas vezes e sempre pelas piores razões. Chegámos a passar fome. E o trabalho era incessante. Andávamos todos mal nutridos e esgotados, além de cheios de medo de que aquele fosse o nosso último dia. 

A comida era uma desgraça em qualidade – já nem nos preocupava a qualidade – e em quantidade. 

Certo dia, hora de almoçar, peguei na minha lata de Coca-Cola, à qual tinha sido retirada a tampa, e me dirigi para a improvisada cozinha onde o cabo cozinheiro fazia o melhor que podia e tinha e, nesse dia, perdi a razão. 

A minha lata vinha meia de água e tinha quatro feijões a nadar. E era o meu almoço, igual ao de todos, capitão incluído. Talvez para ele houvesse cinco ou seis feijões dentro do caldo. A taça era também a lata de Coca-Cola. Danei-me. Fiz uma chinfrineira danada – por isso é que digo que me danei – e aconselhei os soldados a recusar comer.

Aí, entra em ação o segundo comandante, alferes Barros, engenheiro de profissão, homem muito sensato e que eu admirava pela sua cortesia e fair-play. Pegou-me no braço e tentou arrastar-me para longe dos soldados. Eu não aceitei e continuei a reclamar e a aconselhar o levantamento de rancho. Estava cheio de fome e aquilo não era comida suficiente para o resto do dia que se adivinhava muito trabalhoso e difícil.

Com uma calma que só o bom do alferes Barros, lá me fez acalmar e sugeriu-me
que repetisse a dose, se ainda desse para repetir.

A custo, aceitei a sugestão dele mas entendia que era injusto eu poder repetir só porque tinha reclamado e, os restantes terem que ficar só pela dose de água e quatro feijões. E não repeti.

Interveio o capitão que me disse que podia acontecer eu ser preso pelo delito que estava a cometer e que devia dar bons exemplos, dada a minha posição de comandante de secção, etc. etc.

Para mais, se fosse para a prisão, deixaria de correr riscos e teria três refeições diárias.

E assim ficou a minha rebelião que, afinal, não chegou a servir para nada.

Coitados dos que tiveram que passar fome, nesse e nos dias que se seguiram. Coisas que só podiam ser compreendidas pelo estado de graça ou de guerra em que vivíamos.

Hoje, passados tantos anos, penso que fiz bem em ter-me revoltado e fiz bem por ter acatado as sugestões do senhor Barros, a quem endereço um forte abraço e peço que, se um dia vier a ler estas linhas, se recorde deste episódio. 

(Revisão / fixação de  texto: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Originalmente publicado no blogue do autor, que foi descontinuado e não consgeruimos recuperar nem Arquivo.pt nem no Archive Net

http://ccac2314.blogspot.com/2010/07/levantamento-de-rancho.html

sábado, 28 de junho de 2025

Guiné 671/74 - P26965: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/60) (2): o soldado Rebouta, municiador de morteiro, para quem a Ditosa Pátria Amada ficou em dívida

1. Mais um excerto do livro "Guiné: Memórias da Guerra Colonia", do Joaquim Caldeira, grão-tabanqueiro nº 905,  ex-fur mil at inf CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69) (*)

Imagem à direita: Capa do livro de Joaquim Caldeira, "Guiné - Memórias da Guerra Colonial", publicado pela Amazona espanhola (2021) 


O  soldado Rebouta, municiador de morteiro, para quem a Ditosa Pátria Amada  ficou em dívida

por Joaquim Caldeira




Muito alto e magro, embora dotado de boa constituição física, o Rebouta era um soldado natural de Felgar, arredores de Moncorvo. Tinha necessidade de mostrar que queria ser amigo de todos e esforçava-se por merecer a amizade de todos. Mas era um amigo e eu agora que o diga, passados mais de trinta anos. 


Joaquim Caldeira: vive em Coimbra

Tinha como missão municiar o morteiro que o Machado apontava com precisão e grande mestria. O Machado, rapaz forte e bem constituído, natural de Larinho, também de Moncorvo, ficou feliz por ter arranjado para municiador do seu morteiro um homem seu conterrâneo, com quem viera a fazer grande e duradoura amizade que ainda hoje perdura. Ambos eram mestres no que faziam e eu sabia que não precisava de preocupar-me em dar-lhes instruções. Tiro do Machado, era tiro que acertava. Granadas dentro do tubo nunca faltavam ao seu jeito porque o Rebouta estava sempre atento às necessidades do seu apontador e sabia o momento ideal para deixar cair a granada.

Naquele fatídico dia 31 de Janeiro, corria o ano de 1968, cerca das 16 horas, durante uma operação que tinha por missão iniciar preparativos para construção do futuro quartel de Bissássema, a companhia, comandada pelo capitão Neves, caiu numa emboscada e, debaixo de tiros do IN, de roquete e de canhão e rajadas de metralhadora ligeira, responde com um fogo cerrado das nossas armas e consegue pôr em debandada o grupo IN que nos atacara. 

Feridos do IN, não constam. Ao meu lado, durante a refrega, cai o Rebouta e rebola-se como pode para debaixo de umas raízes a fim de poder abrigar-se enquanto uma dor lancinante lhe dilacera todo o pé e parte da perna esquerdos. Gritei para o Zé Carlos que heroicamente se dirigiu para o improvisado abrigo do Rebouta e ambos ajudámos a descalçar-lhe a bota para se dar inicio o seu tratamento. 

Credo! Tinha ficado sem o calcanhar, levado por estilhaço de granada de canhão sem recuo. Tratado como soube e pôde, pelo Zé Carlos que lhe fez um garrote na perna para evitar hemorragia e, bem ligado, havia que o carregar até que pudesse chegar ao quartel. 

Qual quê? Chamem já o helicóptero, gritei. Para que é que eles servem? E, assim, lá se foi o nosso primeiro ferido, ainda por cima um dos meus melhores homens. 

Fiquei em choque. Que mal teria eu feito para merecer tal coisa. Eu? Então o mal maior nem sequer foi meu. O pobre coitado é que foi ferido e eu estava a lastimar-me! Burro é o que eu sou. Em chegando ao quartel vou tentar lembrar-me de rezar para que ele não esteja muito ferido e possa curar-se rapidamente. Mas aproveitei o silêncio que se fez entretanto e rezei mesmo ali. Tinha-me despedido dele, pensando que nunca mais saberia notícias suas nem voltaria a vê-lo. 

Assim foi até ao dia 7 de junho – o mês dos Santos- só que do ano seguinte, 1969, portanto. Era perto do meio-dia e o sol tinha raiado depois de uma valente trovoada acompanhada de chuva intensa, daquela que abre rios onde antes era monte. O cheiro da terra é tão doce. O calor já não era como durante os meses de verão e inverno em Portugal. Eu estava de serviço ao piquete e tinha, entre outras preocupações e tarefas, a de garantir que a pista de aterragem estivesse desminada e a protecção de qualquer avião que quisesse ali aterrar.

 


DO-27. Arquivo do blogue
O Dornier encarnado sobrevoou o quartel e encaminhou-se para a pista de terra batida, ainda fresca da chuva mas sem poeira e lá vou eu, de jipe, correndo para me certificar de que todos os procedimentos de segurança estavam activados para a aterragem. 

Estávamos já em Fulacunda, povoação que encimava o nosso quartel onde tínhamos chegado quase um ano antes. A sua população civil era de maioria Fula e gente boa era o que não faltava. Os soldados regalavam-se, nas suas folgas a deitar-se pela tabanca, onde houvesse uma bajuda de mama firmada que os retivesse.

A picada que passava pelo meio da povoação até a pista estava muito esburacada e a chuva que tinha caído ainda ajudara à sua deterioração. Eu cavalgava aquele jipe sem dó, pois que não era meu e sabia que o meu amigo Almeida me ia desculpar por qualquer estrago que lhe provocasse. Logo que pude aumentei a velocidade e corri para o abrigo junto da porta de entrada da pista, donde verifiquei que a segurança estava feita e vi o avião iniciar a descida. Logo que parou, guiei até debaixo da sua asa e ajudei a abrir a porta do pequeno avião. 

Espanto meu. Ri-me de contentamento. Gritei até. O Rebouta estava de volta, com um saco de lona diferente dos que nos tinham sido dados antes. Sinal de progresso na Manutenção. Abraço-o. Ajudo-o a descer do avião e, já no chão, vi que ele coxeava. Abracei-o novamente e perguntei-lhe o que ele estava ali a fazer. 

− Voltei para a companhia!

Ele também estava contente por me voltar a ver. Mas estava também muito triste por não ter conseguido libertar-se da tropa. Ainda por cima, mandaram-no para o mato. 

−  Quando um homem não tem sorte, furriel, nada há a fazer.

 Trouxe-o para o quartel e fui com ele até à presença do capitão Neves. Pedi-lhe que desse um impedimento fácil ao Rebouta que, afinal, apenas tinha sido objecto de operação plástica ao calcanhar, com aplicação de prótese e aí andava ele sem poder calçar botas. Coitado de quem tem azar ou não tem padrinhos. E assim foi decidido, com a anuência do alferes Pio, meu comandante de pelotão, que aceitou que o Rebouta passasse o resto da comissão como ajudante de cozinheiro. 

Finda a comissão, regressou a Portugal, emigrou para França onde trabalhou como pedreiro até que as dores lho permitiram. Quando já mais não podia, regressou definitivamente a Portugal, criou os filhos com uma esmerada educação e aguarda há seis anos que o Estado português lhe faça a justiça de lhe dar uma pensão que o ajude a comer a sopita até ao fim dos seus dias. 

Ditosa Pátria que tanto demora a reconhecer a dívida que tem para com os seus heróis!..