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sábado, 25 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


Lourinhã > Grafito > 24 out 2020 > Uma quadra atribuída a  Fernando Pessoa, num parede de um prédio devoluto já entretanto demolido: "A terra é feita de céu./A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu./Tudo é verdade e caminho".

Foto: © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Contos com mural ao fundo> Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!

 por Luís Graça (*)


Foi só largos meses depois, na ida à  consulta anual de vigilância a que o doente oncológico fica sujeito, no IPO de Lisboa,  que tu vieste a saber da morte desse teu conhecido... 

Dele não guardavas, para seres sincero, as melhores recordações. Era um tipo de quem sentias pena e asco, ao mesmo tempo (e sem saberes  bem por quê). Tinha sido doente do IPO, tal como tu, antes da pandemia, lá já vão uns bons anos.

Era alguém, um bocado "bronco", que fazia gala de dizer às "meninas", às médicas, às enfermeiras e às radioterapeutas que “tinha sido pegador de touros e ainda gostava de montar” (a cavalo) !...

Uma dos profissionais do IPO, tua conhecida,  que ainda se lembrava dele, comentou:

− Era uma figura patética, para o fim da vida. Mas era popular no IPO, uma figura do passado, um marialva à moda antiga... Cirandou por cá ainda uns tempos. E acabou até por morrer cá. 

Foi bravo na morte, disseram-te. Tu sempre o achaste, para além dessa faceta de marialva "démodé", um bocado exibicionista e histriónico. Precisava de palco. Mesmo no fim. Mas nessa altura, ele devia estar muito longe de saber que ia morrer… Bem pelo contrário. (Afinal, quem sabe onde e quando vai morrer?!)... E tinha-se voluntariado (?) para um ensaio clínico. Não chegaste a saber se fora aceite… 

Descobriste que tinham, afinal, tu e ele, em comum um conhecido. Da terra dele. Mas o que mais aproximou ambos foi, de facto, o IPO, que frequentaram juntos durante algum tempo. Enfim, encontraram-se ainda algumas vezes, na radioterapia... e no bar.

Abreviando a história:  ele acabou por te confiar umas fotocópias de um caderno com as suas memórias. Ainda eram umas largas dezenas de páginas, talvez perto da centena. Pediu-te um “parecer”. Achava que tu tinhas pinta de crítico literário. Só  por usares óculos e andares sempre com um livro debaixo do braço. No fundo, confiou em ti. Não sabes bem por quê, nunca lhe disseste, de resto,  o que fazias na vida… 

Ele queria saber se valeria a pena publicar a sua “história de vida”, em livro. E “ainda em tempo útil” (sic), à medida que o tratamento não parecia estar a resultar… Tinha um tique: olhava para o relógio como se estivesse a cronometrar o tempo de vida que lhe restava…

Os direitos de autor, segundo a sua vontade expressa, seriam entregues à Liga dos Amigos do IPO, instituição onde tinha sido “tratado por anjos” (sic). E ele era um sedutor e desfazia-se em lisonjas para quem cuidava dele.  Ou lhe dava trela, como era o teu caso.

Comentaste, mais tarde, este caso com um teu amigo psicólogo, psicoterapeuta, com nome na praça, e que te perguntou no fim:

−Está bem, mas diz-me então, tu que leste o manuscrito com a sua história de vida: o teu conhecido encaixava-se em que tipo da 'fauna humana' ?

Respondeste-lhe no mesmo tom de chalaça e non-sense:

−Não sou bom em zoologia e muito menos em taxinomia… Podes pô-lo na gaveta do 'acelera', do caceteiro, do energúmeno, do vilão, do brigão, do “mau da fita”, do “lobo mau” da história do Capuchinho Vermelho… Isto por alguns histórias dele (ou que soubeste dele por um amigo comum)... Histórias que ele provavelmente nunca contaria aos netos (nem deveriam ser  motivo de orgulho para os filhos)...Podia ter sido marialva e pegador de touros, um valentaço, e ser um gajo minimamente decente, com valores, com princípios, 
com ética, com bom senso e bom gosto…

−Também não gosto de catalogar ninguém às primeiras impressões… Mas arriscava-me a dizer que o teu conhecido não passava de um reles predador…

− Predador ?!...

− Sim, como a hiena… Tu que andaste pela Guiné, sabes que lá chamavam (ou ainda chamam) “lobo”, em crioulo, à hiena, um animal desprezível,  fedorento, caçador oportunístico... O que eu acho que é uma ofensa para o pobre lobo, para mim um animal nobre e altamente social…

− A hiena também o é, um animal social, é extremamente eficaz a caçar em grupo, como o lobo em alcateia… Talvez o epíteto seja bem aplicado neste caso… 

E acrescentaste:

− Podia contar-te histórias do pequeno cacique, capacho dos agrários, ricos e poderosos, capanga, como dizem os brasileiros…, que ele acabava de deixar transparecer, nas entrelinhas... Talvez pela compulsão de se mostar subserviente para com os  ricos, fortes e poderosos... e valentaço aos olhos dos mais fracos. Era o fruto de uma época, de um regime...

Foi mais ou menos nestes termos que tu descreveste, numa bela manhã de  sábado, em que se encontraram, tu e o teu amigo "Psi",  por acaso,  numa visita a um exposição temporária na Fundação Calouste Gulbenkian (se bem te recordas, sobre o "Cérebro", em meados de 2019), quem era essa tal “hiena” da tua pequena história… 

Oriundo da pequena burguesia rural da província, ali do Médio Tejo, na fronteira entre a Estremadura e o Ribatejo, era o que se podia chamar uma figura recorrente da pequena história da nossa História, com H grande. Sobretudo dos períodos mais conturbados como o foram a “aventura dos Descobrimentos”, as guerras, as invasões (com destaque para as francesas), as revoluções, enfim, todos os períodos de convulsão social, a guerra civil fratricida, como a dos tempos do Liberalismo, as lutas liberais de 1828-1834, a Maria da Fonte e a Patuleia, em 1846/47, ou ainda do tempo República ou e depois dos anos 20/30 que levaram à ascensão da Ditadura Militar e ao Estado Novo… Mas também, mais recentemente, a guerra colonial, o fim do salazarismo e do marcelismo, o 25 de Abril, o Verão Quente de 75…

Nos anos 50 o nosso homem tivera a sorte de poder fazer mais do que a quarta classe do ensino primário. Abrira um colégio privado lá na terra (uma vilória na margem direita do rio Tejo), o pai "pô-lo a estudar", como então se dizia. Deve ter feito o 2º ano, no máximo. Revelou-se desde cedo um arruaceiro, envolvendo-se facilmente “à porrada” com colegas e professores. Claro, foi expulso, e de algum modo fazia gala disso. É ele próprio que o conta nas suas memórias, sem pudor nem arrependimento.

Na época mandavam-se estes casos, quem tinha algumas posses, para o Colégio Nun'Álvares, ali perto, em Tomar. O pai lá fez o sacrifício, na secreta esperança de o corrigir e de “fazer dele um homem”… O pai, nortenho, conservador,  tinha o desgosto de ter um filho "corrécio" (sic)... Deve ter vendido mais umas jeiras de terra da herança da mulher (que essa, sim, é que tinha algo de seu, com restos de família fidalga em Alenquer). O gosto por touros e cavalos (e carros)  deve ter vindo desses tempos. 

Mas tu sabias pouco do seu passado, baseavas-te no que ele te contara, no seu manuscrito, ou numa ou noutra conversa avulsa. E algumas confidências enojaram-te, como as suas alegadas "conquistas amorosas".

Ofereceu-se para a Força Aérea, andou por lá os seis anos da praxe, como “mecânico de aviões” (sic). Se bem percebeste passou por Cabo Verde e Angola. Nunca te deu pormenores sobre a sua passagem por Angola, já em plena guerra. Sabes, isso, sim,  que aprendeu "uns truques de boxe". Passou a confiar na sua estrelinha da sorte e nos seus punhos (e no pedal: era um "acelera"...).  Mas foi o fator C que lhe abriu as portas de um emprego civil, com ordenado certo ao fim do mês, quando regressou de Angola em 1962. O veterinário municipal da terra, que era um cacique da União Nacional, deu-lhe uma mãozinha...

Passou a vender produtos zoofitossanitários e veterinários, percorrendo boa parte da Estremadura e do Ribatejo. Os porcos e as galinhas estavam então em explosão demográfica.  Percorria suiniculturas e aviculturas do Oeste. Apresentava-se também como delegado de propaganda médica veterinária... Habituou-se à vida de “caixeiro-viajante”, e à liberdade que isso lhe proporcionava, ficando semanas inteiras fora de casa. Não sabes se, à boa maneira dos tradicionais "caixeiros-viajantes", que nessa época ainda calcorreavam a província, chegou a ter duas famílias em dois sítios diferentes. Confirmou-te, isso, sim, que tinha os seus “arranjinhos por fora” (sic), ao longo do caminho de casa…

Nunca deu para perceber se estavas na presença de um sociopata. Pelo menos,  ele nunca terá chegado a ter problemas com a justiça (para além, eventualmente, das multas da Brigada de Trânsito)… Também já o conheceste na fase terminal da sua vida. Mas sabias que ele nunca contaria "a verdade toda"... Sobretudo gostava de ficar "bem na fotografia". Teria alguns traços do sociopata, no mínimo fora um homem violento. E, na verdade, não parecia nutrir sentimentos de compaixão pelos outros.

Contou-te (mas não deixou isso escrito nas suas "memórias") que atropelara mortalmente um “pobre diabo” (sic)... Na Estrada Nacional nº 1, na reta da Benedita, de noite. Numa noite de temporal. "Sem culpa"..., apressou-se a acrescentar. Mas nem sequer parou, para prestar socorro à vítima. “Ia a mais de 150 km à hora, quando lhe apareceu um vulto, curvado, a sair da berma da estrada”… Bateu-lhe de lado… Ao  princípio, pareceu-lhe até ter sido "um animal, talvez um javali"...  

Provavelmente intranquilo, confirmou pelos jornais, no dia seguinte, a notícia da morte de um homem, naquela noite, àquela hora, e naquela estrada : “Uma chatice..., mas devia ser um bêbado de fim-de-semana”, comentou ele, com o maior dos desplantes… Sentia-se, afinal,  impune. A polícia nunca chegou a descobrir o autor do atropelamento mortal e o caso terá sido arquivado. Por fim, o  bate-chapas, seu conhecido,  destruiu os eventuais indícios do crime de homicídio involuntário.

A propósito, o teu amigo "Psi" comentou, "ex-cathedra":

− Não é caso virgem. Temos gente (e muito respeitável) que faz (ou faria) o mesmo, a coberto da impunidade. Alguns ficam atormentados. Outros fazem tudo para esquecer. Outros confessam-se ao padre ou ao psicólogo.,,  Para o bem e o mal, a fauna humana é diversa e multicolorida… E adaptativa. Imagina o que seria um mundo de presas sem predadores ?... Ou só predadores: comiam-se uns aos outros… Mas voltando ao teu conhecido… Parece-me ter sido um gajo que não cresceu, ou não quis crescer… Mas eu diria que não há rapazes maus… Os “teddy boys” do nosso tempo, lembras-te ? Carros, gajas, bandos, música ié-ié…

− Sempre os houve e haverá, bandidos e aprendizes de bandidos que tanto sabem usar os punhos, como engatar, com um sorriso sedutor, a menina do coro e, logo a seguir, ajudar a velhinha a atravessar a rua… 

− Estou a ver… Na província, num certa província, isso ainda é (ou era) notório, tal como nos filmes do velho Faroeste…

− Quanto ao nosso fulano, perguntas… Pelo que li nas fotocópias do seu manuscrito, era um anticomunista primário ou, se calhar, nem era nada. Gabava-se de ter “partido o focinho a alguns comunas, em Rio Maior” e noutras “arenas de combate patriótico” (sic) onde atuou no Verão Quente de 75. 

De vez em quando, tu apanhavas, nos seus monólogos (era bastante compulsivo a falar), alguns restos da sua tosca formação político-ideológica. E depois, durante a campanha eleitoral de Ramalho Eanes, em 1976, diz que chegou a andar com ele aos ombros… Coitado do Eanes!... O que nunca apuraste (nem quiseste, sabendo-o já bastante doente) foi a sua eventual participação nas redes bombistas que atuaram em 1975, pondo parte do país a ferro e fogo…

No seu diário faltavam duas ou três folhas, justamente as dessa época. E tu nunca o inquiriste sobre isso. Achavas que não tinhas esse direito, para mais numa situação em que a sua saúde se estava a degradar a olhos vistos... Mas não te pareceu que tivesse sido um operacional de coisa alguma (do MDLP, por exemplo). Quando  muito terá sido um "peão de brega" nas "touradas desse tempo" em que ele gostava,  isso sim, de “molhar a sopa”, como terá acontecido algumas vezes ao longo do Verão Quente de 75, nas terras onde havia "caça aos comunas" e que faziam parte do seu roteiro de "caixeiro-viajante". 

Com um sorriso amarelo, contou-te, da última vez que o viste (e que na prática foi uma despedida), que fora a própria médica oncologista do IPO quem lhe passara a “certidão de óbito antecipada”. (E ele dizia-te isso, com um súbita frieza, sem a mais pequena emoção, o  que te chocou.)

−Senhor Jota Jota (alcunha fictícia)…, sabe que eu nunca fui de paninhos quentes… O médico tem de dizer a verdade ao doente… No seu caso chegámos ao fim de linha. A medicação, que tomou e que é inovadora, deu-lhe muitos meses de vida… Será uma esperança para futuros doentes com tumores como os seus… A si, deu-lhe mais qualidade de vida, mas não vale a pena continuarmos… Seria causar-lhe falsas ilusões e mais sofrimento. A si e à sua família.  Tem metástases espalhadas por várias partes do corpo, e tudo começou, infelizmente, na próstata… Agora a bexiga, o fígado, o pâncreas… O diagnóstico foi, infelizmente,  tardio. Bem, vamos ter que o passar para os cuidados paliativos. Não quero que sofra. Vou-lhe recomendar também a ajuda piscológica. Boa sorte e coragem.

A verdade é que o Jota Jota ter-se-á apagado pouco tempo depois, pelo que tu vieste, 
mais tarde, a saber . Esteve ainda numa unidade cuidados paliativos, com muita morfina em cima daquele corpo que se degradou muito rapidamente…

Mas, muito antes disso, já lhe tinhas devolvido, pelo correio, o seu manuscrito com uma nota, elegante, cortês, até simpática, mas cínica:

 “Meu caro J… Escrever não é fácil. E menos ainda quando, no fim da viagem (ou da picada, você esteve em Angola, sabe do que falo), um gajo, como nós, olha para trás e põe-se a rebobinar o filme da p… da vida…”

Ele escrevia mal,  e com erros de ortografia, mas tu não tinhas coragem de dizer-lhe isso diretamente na cara… Como dizer isso, afinal, a um homem que, pela conversa da sua médica, ia entrar, dentro de pouco tempo, no terminal da morte, para mais sabendo que ele era um narcisista ?!…

Não o desencorajaste, acabaste por criar-lhe falsas esperanças: que a escrita precisava de ser melhorada, a pontuação, a ortografia, a miss ligação entre as partes, o fio cronológico, havia parágrafos a acrescentar, outros a cortar ou melhorar, que havia saltos bruscos, "brancas", lapsos de memória, erros factuais e cronológicos... Enfim, havia que acautelar a privacidade de certas pessoas que, não sendo figuras públicas, eram citadas… 

E depois conviria ainda  saber se a Liga dos Amigos do IPO daria o seu aval à iniciativa, por muito boa que fosse a intenção do autor… E era preciso, não menos importante, encontrar um editor… E restava saber qual seria a aceitação do livro, o volume de vendas, o montante dos direitos de autor… Enfim, uma trabalheira. 
Mas, que, não senhor,  não devia de desistir, escrever só lhe podia continuar a fazer bem, blá, blá, etc., etc.

Tu fazias questão de o tratar por você, para manter um certo distanciamento afetivo, ele era, de resto, uns largos anos mais velho do que tu. E havia um lado da sua humanidade que te causava asco...

Claro, nunca te chegou a responder. Não teria já ânimo para pensar no projeto, algo megalómano e mitómano, do livro. Teve, até ao fim da vida, uma boa companheira, ao que tu sabias, de origem cabo-verdiana… Mais do que companheira, enfermeira. Nunca a conheceste, a não ser de fotografia: teria idade para ser filha dele. (Confessou-te que sempre tivera atração pelas raparigas mais novas, e de "cor".)

Embora tendo casado muito jovem, e com filhos, mas cedo divorciado, o Jota Jota era um “engatão compulsivo”. De estatura média, entroncado, casaco de couro (a lembrar o dos seus tempos da Força Aérea), arranjaria mais tarde uma “pileca” para lisonjear o seu ego e completar a sua auto-imagem de marialva de pacotilha. Gostava de dar a sua “volta ao redondel”, que era o largo da feira lá do sítio onde morava… quando ainda tinha forças para tal… "Nunca perdia a feira da Golegã"... Mas nos últimos meses a sua decadência física fora galopante.

Às tantas tiveste pena daquele teu companheiro de infortúnio, mesmo sabendo que a sua vida tinha sido um caso de “pulhice humana”, e que tinha feito mal a muita gente, a começar por jovens mulheres que ele seduzira, e que era incapaz de autocrítica, compaixão e arrependimento…

O mais patético foi vê-lo, poucos meses afinal antes de morrer, contar-te, sentado num dos bancos do pequeno espaço ajardinado que existe no IPO, frente ao edifício principal, que aquela devia ser a sua “última visita à Santa Casa” (sic), como ele lhe chamava, ao hospital.

Aguardava  pela ambulância que o devia levar a casa, uns cento e poucos quilómetros a norte de Lisboa. Os dois faziam horas. Tu ias adiando o clique de telemóvel para a tua boleia. Talvez por não quereres perder o final daquela história de um homem a lutar contra o tempo e contra a morte. 

Não sabes se não ficaste ali apenas por caridade (a palavra repugnava-te). Ou por compaixão… Ou solidariedade. Ou por simples curiosidade mórbida...Mas ao mesmo tempo tu não querias desmerecer a tão inesperada quanto surpreendente confiança que ele depositara em ti, que só te conhecia do IPO… (Como costumavas dizer, nesse dia fizeste a tua boa ação de escoteiro.)

Já antes te confirmara que se sentia um “doente milionário” (sic)… Provavelmente queria dizer “privilegiado”. Mas fez questão de esclarecer:

− VIP!... Um doente VIP!... Com tratamento VIP!

Nunca tinhas ouvido uma tal expressão, algo surrealista e de todo deslocada num sítio daqueles, onde se sofria e morria todos os dias, gente de todas as classes sociais, género e idade...

− Tratamento VIP ? – interpelaste-o tu, para logo a seguir acrescentares:

− Mas é um direito, que o meu amigo J... tem, o direito à saúde, aos melhores cuidados de saúde possíveis,  um direito consagrado na Constituição… Há quarenta anos atrás já estávamos os dois na quinta das tabuletas.

Não sabes se ele terá entendido  a tua observação, tanto mais que ele não deveria conhecer, pelo que tu deduzias, os princípios em que se  apoiava a criação do SNS, o Serviço Nacional de Saúde… Mas logo percebeste onde ele queria chegar: de facto, e pelas suas contas de “caixeiro-viajante”, os gastos do IPO, “só com a sua humilde pessoa” (sic) , já ascenderiam a cerca de 200 mil euros (sem te explicar como é que ele teria apurado esse valor, absolutamente exorbitante no seu caso).

− Dava para comprar um Ferrari ! – asseverava ele, quase orgulhoso.
 
Com algum humor negro, a que se juntavam uns restos esfarrapados da sua proverbial fanfarronice, garantia-te que a “menina da farmácia” (sic) já brincava com ele, quando lá ia levantar a sua medicação:

− Senhor Jota Jota, por este andar vai levar o IPO à falência.

E seguia-se a justificação:

− A gente gasta um milhão de euros por semana só em medicamentos. O senhor leva a parte de leão…

E ele ria-se, não era bem riso, era uma estranha mistura do riso alarve do marialva fanfarrão e do sorriso triste, amarelo, forçado, do palhaço no último espetáculo  do circo que, no dia seguinte, vai ser desmontado, com a trupe a abalar para outra terra...  

Ao mesmo tempo, ele provocava-te compaixão e irritação. Ele era daquele tipo de doentes para quem o “consumo sumptuário” de cuidados médicos (consultas, exames, fármacos, aparelhos…)"quanto mais caros melhores!"). Era uma forma de “status” social… Era um traço distintivo, afinal, de certos ricos e poderosos com quem ele se gabava de ter privado e com quem, afinal,  se identificara "nos bons velhos tempos"...

Ele sorria porque se sentia de algum modo lisonjeado com as palavras da “menina da farmácia”… Afinal, estava no “quadro de honra dos doentes despesistas” (sic). Havia nele um estranho prazer, quase sadomasoquista, por estar a gastar, com a sua doença, tanto dinheiro ao Estado, ou melhor aos contribuintes.

Tu duvidavas que a farmacêutica (ou mais provavelmente a técnica de farmácia que estava de serviço), em geral tão circunspecta e distante, fechada na sua “redoma de vidro”, por detrás do seu guiché, lhe tenha dito, textualmente, essas palavras... E muito menos falado nos milhões do orçamento do IPO. É mais provável que tenha sido a sua médica oncologista a dar-lhe essa informação, embora muito por alto e em tom de brincadeira. 

Logo que a ambulância partiu com o teu companheiro de infortúnio, tiveste o pressentimento (para não dizer a certeza) que nunca mais o voltarias a ver. E, confessaste, com algum alívio… A sua história acabrunhava-te. Ou, talvez pior, a “sentença de morte” que lhe fora ditada pelos médicos…”Já não havia nada a fazer", conformava-se ele. Estaria talvez já em adiantada fase do seu processo de luto, o da resignação, quando o homem,  que sabe que vai morrer,  aceita a fatalidade e desiste de lutar...

Recordas-te ainda de, logo no princípio da ida ao IPO, ele te contar-te a primeira vez que teve de ir a um urologista:

– Sou um maricas, não posso ver sangue! ( Refiria-se ao sangue dele, entenda-se!)

Andara a “mijar sangue” (sic), e a levantar-se amiudadas vezes, de noite, para ir à casa de banho. Até pensou que tinha apanhado algum “esquentamento” (sic). Foi protelando a ida a um consulta médica, até que uma crise maior, que o deixou prostrado,  o forçou a chamar o 112. Aliás, não foi ele, mas a sua “Bia", o seu "anjo da guarda" (sic)...

A ambulância do INEM levou-o, de imediato, à urgência do centro hospitalar da sua área de residência. Ele protestou, que tinha um seguro de saúde "caríssimo" (sic), que queria ser visto num hospital privado, que o público tinha má fama, que ia ficar toda a noite numa maca, com outros doentes aos berros, no corredor, e por aí fora.
Mas em boa hora lá o levaram ao sítio certo:

−  Mas, primeiro, dei de caras, no SO, com um urologista, que não era homem mas mulher, para minha grande surpresa. Pensava que os urologistas eram todos homens. A princípio, confesso, senti-me intimidado e até humilhado quando ela me mandou despir as calças, e ficar em posição fetal na marquesa…

E justificou-se, como se tivesse perdido a honra:

− Nunca tinha feito o toque retal, nunca ninguém (e muito menos uma mulher) me tinha posto o dedo no cu… Nem o dedo nem outra merda qualquer!

− Nunca tinha feito sequer uma vulgaríssima eco prostática ? – quiseste saber tu, evidenciando algum pudor, delicadeza e cautela na pergunta.

− Nada, nunca precisei, graças a Deus!

Perante a reação, algo desastrada, do doente, a médica riu-se para aliviar a tensão, e gracejou:

− Senhor Jota Jota, porte-se como um homem, já não tem idade para ser criança!... Aqui é apenas um paciente. Mas está no seu direito de recusar o toque retal… Se se portar bem, eu conto-lhe no fim uma história engraçada… Vem a propósito do pudor masculino, e passou-se comigo no início da minha carreira médica…

E, depois de feito o toque retal, a médica prosseguiu:

− Como viu, não doeu nada... Ou doeu ?!

− Não, senhora doutora. Até tem dedos de fada!

− E o senhor J... está inteiro, não perdeu nada!… Mas falando de coisas sérias: a próstata está muito inflamada, e mais dura do que seria normal… Vamos já fazer análises clínicas, para ver o valor do PSA (que deve estar alto) ... E muito vamos ter que fazer uma biópsia nos próximos dias… Só lamento o sr. Jota Jota não ter vindo mais cedo ao urologista, ou à urologista… Fica aqui mais um dia, em observação e para, logo amanhã de manhã,  fazer a eco, as análises… Depois irá para casa, ficando à espera que o chamem para a biópsia… (Infelizmente, vai ter que a fazer, mas é para melhor esclarecimento do diagnóstico, que é reservado.)

A médica fez depois questão de tranquilizar o doente, continuando a conversa bem humorada que mantivera logo de início:

− Afinal, a urologia é uma especialidade tão masculina ou tão feminina como qualquer outra… No caso de nós, as mulheres médicas urologistas, só não podemos é ter as unhas compridas e pintadas… Ou melhor, não convém…

E finalizando, àquela hora da noite, aquela conversa algo surreal (para o doente):

− Fique tranquilo… Tudo se há de compor. Hoje, se formos a tempo, ninguém morre de carcinoma da próstata… Esperemos é que não haja mais complicações… O nosso corpo é uma caixinha de surpresas... É preciso saber falar com ele, saber vê-lo e ouvi-lo, estar atento aos seus sinais... E então agora vou-lhe contar a história que lhe prometi, no caso de se portar bem como aconteceu.

E a história podia resumir-se nestes termos, tal como o Jota Jota ta contou, com graça, pondo-se na pele da médica (que passou a ser o seu "anjo da guarda"):

− Como deve imaginar, a urologia foi durante muito tempo uma especialidade médico-cirúrgica exercida por homens… Nos EUA as mulheres começaram mais tarde, nos anos 60… No nosso caso, só mais recentemente. Eu fui a primeira mulher do meu ano, do meu curso, a escolher esta especialidade como primeira opção… O meu pai, transmontano, caçador, “bon vivant”, bom garfo e melhor copo (faleceu de gota, coitado!), levou-me um dia a uma montaria, uma caçada ao javali. Era uma espécie de prémio, pelo meu sucesso no exame da especialidade. Eu era a única mulher no meio de tantos caçadores, todos empertigados nas suas fatiotas e botas de montar. Um mulher de arma em punho, está a ver ?!... Isto foi no Norte, em Trás-os-Montes, junto à raia espanhola… Desde miúda que eu gostava de acompanhar o meu pai, embora perto de casa, na caça ao coelho, à lebre, à perdiz… Quando fui, pela primeira vez, à montaria, os presentes, todos homens, começaram a torcer o nariz à minha presença, alguns pigarreavam ou fingiam que tossiam para disfarçar o desconforto. Outros puxavam grandes fumaças dos cigarros ou charutos… E antes que se avolumasse o mal-estar e se começasse a gerar algum burburinho, o meu pai (que nestas coisas tinha um sexto sentido apurado, a par de muita graça e bonomia) fez-me a presentação ao grupo dos machos lusitanos (também havia alguns espanhóis): “A minha filha, fulana de tal, médica, urologista… Estejam à vontade, meus senhores, podem continuar a mandar as vossas cara...lhadas (acho que foi esse o termo que ele usou), que ela, embora seja uma senhora muito educada, fina e de boas famílias, está farta de ver piças e cus… Só espero é que os senhores nunca precisem dos seus serviços, dela ou dos seus colegas”… 

E, por fim, a urologista arrematou:

− Fez-se um silêncio, quase sepulcral, por uns largos segundos, até que alguém, de copo na mão, exclamou, para desanuviar o ambiente: “Seja bem vinda, senhora doutora. Vê-se que é uma mulher de armas!”.

O nosso homem, o Jota Jota, ficou visivelmente bem disposto e lisonjeado com estes mimos todos, vindos de uma mulher, de belo porte,  assertiva, superiormente inteligente, de personalidade dominadora, e para mais "doutora"… E, à despedida, teve este rasgo de bom humor, que deixou a médica encantada e até enternecida com o seu trocadilho, à boa maneira marialva:

− Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


[ Obs. - Nesta série, "Contos com mural ao fundo", a realidade e a ficção misturam-se. Muitas vezes. E ainda bem. Ainda bem  que temos a literatura, uma forma de arte, que os seres humanos inventaram, e que nos ajuda a suportar melhor a vida e a morte, o prazer e a dor, a verdade e a mentira, o céu e o inferno, o amor e o ódio, a sordidez e a beleza humanas...]


© Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. Revisto em 19 de novembro de 2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25545: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (28): Cá se fazem, cá se pagam ?!

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24904: S(C)em Comentários (20): Já devo alguns 10 anos à terra, graças ao SNS (António Rosinha)


Lisboa > República Portuguesa > SNS (Serviço Nacional de Saúde) > IPO (Instituto Português de Oncologia) de Lisboa > 28 de Novembro de 2023 > Fotograma de vídeo, sobre obra inédita do artista português Bordalo II oferecida ao IPO, e inaugurada no passado dia 28 de novembro.

"O artista plástico é conhecido pela utilização do espaço público como palco para as suas intervenções de cor e de escala e, no IPO Lisboa, o pintainho foi o animal escolhido como símbolo de renovação e futuro."



1. Comentários ao poste P24893 (*):

(i) Antº Rosinha:

Estes rapazes [reunidos à volta do gen Norton de Matos e da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro] deram o fora para se verem livres do Salazar.

Se o Botas fosse na cantiga desta gente, tínhamos sido 10 milhões de retornados naquela data que nos trouxe a melhor coisa do mundo, o SNS.

28 de novembro de 2023 às 20:32 


(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

Rosinha, para fazeres o elogio do SNS - Serviço Nacional de Saúde, é porque precisaste dele, mais recentemente... como eu já precisei (e continuo a precisar)...

Está tudo bem contigo? Que os bons irãs te protejam e que o SNS continue a cuidar bem de ti e de mim e de todos nós...

28 de novembro de 2023 às 23:26 

(iii) Antº Rosinha:

Luís,

Por mim tudo normal com a saúde, as enxaquecas normais (várias) para a idade.

Mas, como conheci a mortalidade infantil na metrópole, e a assistência médica familiar era zero, nesta metrópole, e cheguei a África e vi uma assistência veterinária no sul de Angola, na Namíbia dos boeres, tal, que fiquei com inveja dos bois dos cuanhamas.

A mim com 19 anos, novo com toda a irresponsabilidade do mundo, mandaram-me trabalhar para aquela fronteira, um cu-de-judas, e como primeiros socorros, levava apenas uma injeção anti-ofídica, caducada há 4 anos, com a recomendação de a devolver da mesma maneira no fim do serviço.

Ora quando um dia cavei para o Brasil e vim passados 5 anos, fiquei sem inveja das vacas dos cuanhamas.

Para mim era o que o país precisava, saúde... mais nada, já devo alguns 10 anos à terra, graças ao SNS. (**)

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24893: Notas de leitura (1638): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte I: a voz dos colonialistas republicanos nostálgicos e exilados

(**) Último poste da série > 26 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24889: S(C)em comentários (19): O silêncio da CECA (Comissão de Estudo para as Campanhas de África) sobre a trágica Op Abencerragem Candente: Xime, 26 de novembro de 1970, 6 mortos e 9 feridos graves

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24785: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte I: A porta estreita da vida


Coimbra > IPO - Instituto de Oncologia > Abril de 2015 > O "paciente" António Eduardo Ferreira na sua 5ª sessão de quimioterapia. Foi-lhe diagnosticado um cancro em 2004. E lutou contra ele quase 20 anos, com tenacidade, coragem e dignidade. Era natural de Moleanos, concelho de Alcobaça.


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74). O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. (*)


I. A porta estreita da vida (**)
António Eduardo
Jerónimo Ferreira (1950-2023)


(...)  Como encarar a vida quando confrontados com um doença como o cancro?

Primeiro,  “descer à terra” e pensar que,  apesar de não parecer, estamos a ser confrontados com algo cada vez mais normal. Por vezes somos levados a perguntar, mas porquê a mim? Pergunta que só tem razão de ser pelo desnorte que naquele momento estamos a viver. Quantos, antes de nós não passaram pelo mesmo? Uns mais velhos, outros mais novos, algumas ainda crianças.

(...) A minha doença foi diagnosticada nos últimos meses do ano de dois mil e quatro, seguiram-se cinco meses de espera e a cirurgia em fevereiro do ano seguinte, hoje talvez esperasse menos tempo, passados cerca de dois meses, fui sujeito a trinta e cinco tratamentos de radioterapia, reagi sempre bem, os efeitos secundários foram quase inexistentes. 

Ao longo destes anos continuei sempre a ser seguido no IPO de Coimbra.

No início do ano de 2015, os valores tumorais estavam demasiado altos, foi então que foi decidido que tinha de fazer quimioterapia,  o que aconteceu a partir do início do mês de abril, seguiram-se dez tratamentos com intervalos de três semanas. 

No início fiquei um pouco assustado, atendendo ao que ouvia falar acerca dos possíveis efeitos secundários, no primeiro dia fui acompanhado por uma pessoa de família ao tratamento, a viagem é de aproximadamente cem quilómetros de minha casa até ao hospital, nas restantes nove sessões a que fui sujeito entendi que não era necessário ir alguém comigo.

Tudo foi menos complicado que eu imaginava, o mais aborrecido era a deslocação, mas também se tornou fácil a partir do momento em que decidi utilizar o transporte facultado pelo hospital em viaturas dos bombeiros (...).

Terminadas as dez sessões, fim do tratamento, senti um alívio enorme próprio de quem passou por mais uma porta estreita da vida, daquelas que nunca se sabe se conseguimos passar, os efeitos secundários comparando com o que acontece a algumas pessoas foram poucos,  o que me permitiu continuar a fazer uma vida quase normal, com exceção do dia do tratamento, todos os outros continuei a fazer a caminhada como antes fazia, de aproximadamente uma hora.

Para que tudo decorresse tão bem há que realçar o trabalho desenvolvido por um grupo de pessoas que tudo faz para que os doentes se sintam o melhor possível, desde o pessoal médico, as enfermeiras/os, os técnicos, pessoal administrativo, e outros, não esquecendo os voluntários sempre prontos a ajudar sem receber nada em troca.(...)

(...) Cada caso é um caso, o meu tratamento tinha uma duração de aproximadamente duas horas, outros demoravam o dobro e alguns ainda mais, os efeitos secundários podem ser muito diferentes de pessoa para pessoa, pois o tratamento administrado não é igual para todos e a reação de cada um também pode ser diferente. (...)

António Eduardo Ferreira (2016) (Excertos) (**)

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24572: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (7): Sozinho, como um cão

 

Foto: © Luís Graça (2011)  


 Contos com mural ao fundo (7)  > Sozinho, como um cão

por Luís Graça (*)


Estiveste no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 anos,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos teus heróis da adolescência, o Doc. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos teus amigos, da época  da tua adolescência. Dele  guardarás para sempre uma grande saudade, não obstante as vossas vidas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura tu foste para a tropa e ele estava a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abruptamente.

A imagem mais dolorosa que guardas dele, é a da cama de um  hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro... Como virás a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço.

Reconheceu-te só pela voz, não se moveu nem um centímetro, estava lúcido, mas já em grande sofrimento, e sob o efeito de drogAS. Só lhe sussurraste, quase em cima do ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentaste, estupidamemente: 

− Coragem!

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-te a despedida, irremediável, brutal, sem retorno. Sentiste-as como um punhal cravado no meu peito. Guardaste-as para o resto da tua vida: 

 Ruizinho (tratava-te sempre por Luisinho), vai-te embora, vai-te embora!  implorou. 

Nunca saberás se era uma súplica, uma ordem ou uma expressão de raiva e impotência.

Trinta anos depois, não te envergonhas de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele proferiu, no seu leito de morte, na tua presença, ainda hoje te martelam a cabeça. 

Sentiste um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por teres sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... 

Por pudor ou medo atávico da morte, não conseguiste sequer tocar-lhe. Muito menos pegar-lhe na mão. Muito menos ainda dizer-lhe uma palavra  humana de consolo, de conforto, de carinho. Não, só uma tímida,  inócua, cobarde e desastrada palavra:

− Coragem! 

Mais tarde, talvez para tranquilizar a tua consciência e não sentir o peso da tua fraqueza e sentimento de culpa, irias interrogar-te sobre o significado que ainda poderia ter o teu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um homem… Que é quando um gajo agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que nos amaram e que nós amámos!…

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos, pelo menos que se soubesse.

Tiveste um ataque de choro, convulsivo, enquanto saiste dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do anexo hospitalar, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno bosque que circundava o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, vêm-te à cabeça as cenas do seu regresso da Guiné. Tu eras o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, tu era talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer.

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do colégio e do grupo de teatro amador, como era o teu caso. E tu, seguramente, eras o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-te, a tu, que eras o seu correspondente e confidente (trocavam correio  enquanto ele esteve na Guiné, entre 1965 e 1967) e, no grupo de teatro, secretário, moço de recados, ponto, datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… Além de serem amigos e vizinhos de bairro, se bem que tu fosse mais novo do que ele uns bons seis anos.

Sentias-te lisonjeado com a sua amizade, mas também sabias que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano”, como escreveu um dos seus "amigos críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da  terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha, por isso, ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como te explicará mais tarde. Tu ainda não percebias nada de tropa, mas ficaste a saber, pelos aerogramas que trocavam, que ele era de “rendição individual”: 

− Fui sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar... 

− Lerpar? !... 

− Morrer, Ruizinho, morrer !− explicar-te-á ele, no aerograma seguinte...  

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele te dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto te apercebeste, o Doc tinha receio que a família e alguns amigos lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador. Em boa verdade, tu nunca o vira representar, nem no palco do teatro nem no palco da vida. 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Tu e a Xana terão sido as primeiras pessoas, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgas até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo te contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que tu tratavas com deferência por ser bastanto mais velha do que tu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana, a alma gémea do seu filho. 

Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade; perdeste-lhe o rasto, na voragem do tempo.) 

O Doc desabafou contigo, explicando-te que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e tu, na ingenuidade dos teus dezoito anos, nem sequer puseste a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental" (falava-se de loucura e de manicómios). E muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem tu imaginavas sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele,  que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca foram lá muito boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  o Doc ter partido a louça posta para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Ruizinho (tratar-te-ia sempre por Ruizinho, até ao fim da vida), não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu “Velho”…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que te chocou e perturbou: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcançaste  o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… 

Queria poder hibernar o resto da vida. Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiaste uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu contigo, pondo-te fora do quarto… Aí assustaste-te, ficaste chocado com a sua brutalidade mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, os olhos vidrados, a cor da pele amarelada,  a barba de vários dias, por fazer…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-te a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de doenças tropicais…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confessarás mais tarde, até pensaste que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Ficaste assustado com o estado de saúde, física e mental, do teu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega teu de escola. Estavas tu de piquete na redação do jornal, fazias os "faits divers", as pequenas ocorrências, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda viste, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, o Doc contou-te que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”. 

Percebeste, por entre as lacónicas frases que ele te ia murmurando, que a viagem de regresso no "Uíge" tinha sido um pesadelo.

Logo à saída da gare marítima, chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic), em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de três horas e tal de viagem (ainda não havia autoestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro, na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes e os pósteres... EStava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado. impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar (segundo depois te explicou).

Sentiste que esse episódio o marcara muito, mas nunca te deu grandes pormenores. E tu respeitaste a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer à festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para agendar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não te permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que tu nunca puseste a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderiam estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Recapitulaste cada um deles, sem  poderes entrar em grandes pormenores por falta de informação. 

primeiro  terá tido a  ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconhecias a patente, mas o mais provável era ser um 1º cabo).

O teu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha, frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava sob euforia alcoóloca e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, e voaram cadeiras da esplanada, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da PM, que era ali mesmo ao lado, na Amura. Ficou lá cerca de uma manhã. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Nomeadamente, outros alferes que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia, comodismo ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. 

− Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço? − interrogava-se o Doc, em voz alta, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se-á com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior,  um major que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Eis o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que ele te  escreveu: 

− Os soldados, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos acompanharam as ameaças do  major, 2º  comandante batalháo, impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros insultos de semelhante teor que interpretei como sendo despudoramente racistas...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... 

− Este, cobardolas, estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e da hontra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para se recolher de imediato ao seus aposentos.

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. 

Não sabes bem o desfecho da história. Mas verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, desproporcionado,  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

− Tal como cheguei, sozinho como um cão, assim parti...

Nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele.

− Nem sequer o sacano do médico. Tive apenas, à mesa, dois ou três furriéis que me estimavam... 

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soubeste ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para ti,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que te escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-te:

“Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, a exaustão física e emocional, os tufóes e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos”…


A mãe não conteve o espanto e as lágrimas quando ele, o Doc, de rompante, espavorido, lhe entrou pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Tu só soubeste da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-te de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-te:

− Ruizinho (também te tratava carinhosamenmte por Ruizinhi, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus, Mas não está nada bem da cabeça, o meu pobre filho!... 

E explicou-te que estava há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, dizendo não querer ver ninguém… 

− Passa por lá, no fim de semana, até podes almoçar connosco, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido tua professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, ao tempo do senhor Dom João V.

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Era mais velho do que ela uns bons quinze  anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Tu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confessas que tinhas medo dele, ou melhor, não gostavas dele. Mostravas-lhe algum respeito apenas por ser o pai do teu amigo e o marido da tua querida professora. 

Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legalmente pelo poder político central e socialmente  pela elite local. Passando a ser declaradamente um “oposicionista, um indivíduo contra a situação” (sic), deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). 

Em boa verdade, fora a sua "morte social". Amargurado, fora obrigado a deixar as suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, pela a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias fixas, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locais.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O teu amigo Doc era, para ti, o irmão mais velho que tu nunca tiveras, separados por uma meia dúzia de anos. Tínham  alguns interesses intelectuais em comum, a começar pelo teatro, a poesia, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da tua idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivia-se num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que o povo podia ver, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o teu amigo Doc solenemente detestava…

O que é que tu sabias do que se passava em África, no "nosso glorioso Império Colonial", para usar uam expressão do Doc ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouviras falar...  Só te lembravas, na igreja, terias tu os teus 10 anos, por volta de 1958, de pedirem dinheiro ao teu santo avô para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Tu vivias numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da tua geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a malta sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a malta soubesse... 

− Saber ler, escrever e contar acrescentava o teu amigo Doc , o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça...

Além disso, as  aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos teus colegas de escola nunca mais os viste. Alguns como tu fixaram-se em Lisboa, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Outros foram para França,  "a salto".


Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondia-se contigo, regularmente, uma ou duas vezes por mês.  Tu  guardaste religiosamente os aerogramas que ele te mandava. Tinhas intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como tu esperavas  que ele chegasse.

Quando o foste visitar, não te deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, e que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Ruizinho, queima-os!

− É um pedido?

− Não, é uma ordem!

Não lhe fizeste a vontade. Devias tê-lo feito? Continuaram guardados ao teu cuidado. Sempre pensaste que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Era material para uma ou mais peças de teatro... Mas, não, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... E acabaste, afinal,  por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral.  Hoje tens pena de não os ter fotocopiado, limitaste-te a copiar alguns excertos. 

Curiosamente ele nunca te escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. 

− Com o dinheiro que poupo nos selos, compro livros, revistas, peças de artesanato e... uísque" − dizia-te ele, a gozar. 

Tu tinhas receio que a correspondência, trocada entre os dois, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-me a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais, revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-te ele,  deixavam muito a desejar: 

− Fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… Até o português escrevem mal e porcamente!... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação ao exército… (e vice-versa). 

− Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite – afiançava o teu amigo. 

− Cepos?... − duvidaste tu.

− Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... 

E sentiu-se na necessidade de te explicar:

− Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca tolerei essas práticas" −  garantiu-te o Doc (a quem um dia perguntaste que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, tu é que não ias na conversa do Doc: com os teus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, te haviam metido na cabeça, achavas que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabias que o teu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, um "santarrão",  ia à missa, raramente discutia política, e muito menos contigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando se jantava lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O teu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu tu não chegaste a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-te que nesse tempo tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele ouvia a BBC.

De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o teu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.

O teu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Tu gostavas muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava contigo. Dizia-te na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave do céu mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca te deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde tu trabalhavas, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tínham uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde se publicavam notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do teu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, que não terá tido tempo, vontade e pachorra para ir  à Torre do Tombo ver o seu processo). 

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… 

Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embora fosse um "segunda linha"...

O jornal onde tu trabalhavas (e que foi, de resto, o teu primeiro emprego), "o teu jornal",  estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal tua catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A tua terra tinha fama de acolher bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época e para a terra) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).

Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como lhe chamavam, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, diziam a más línguas. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Caldas da Rainha, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.

Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”.  O que toda a gente sabia, isso sim, é que ele tinha duas filhas casadoiras, as suas "princesas", que estavam à espera dos seus "príncipes encantados". E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a tua a catequista irá entáo casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na terra.

O teu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para ti a a tua escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar contigo por causa do teu “jornaleco”… Pensas que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tu e o teu diretor tinham uma diferença de quase trinta anos.  A ele ficaste a dever alguns favores.  Numa conversa franca, “cara a cara”, que tivestye com ele, na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…

Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde tu te incluías, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como tu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio te confessara que em Coimbra publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentaste tu, com alguma irreverência e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebeste o seu "recado" (que, no teu caso, visava as "más companhias" como o teu amigo Doc e o grupinho do teatro amador da cidade)... Mas só mais tarde é que eu vieste a contextualizar toda aquela conversa "de pai, mais do que de patrão": tinha como pano de fundo uma campanha que alguns “estado-novistas” estavam a fazer para refrescar as velhas e bolorentas fileiras da União Nacional, de que o proprietário do jornal era um histórico na região… 

Não admira por isso que o “teu patrão” se tornasse rapidamente um entusiástico defensor da “primavera política” do Marcelo Caetano e das suas "conversas em família"...

Voltando ao teu amigo Doc… que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez...

Sempre o trataste por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica, já no último ano do liceu… Era uma alcunha carinhosa. E ele não se importava.

Tu, pelo teu lado, ainda estavas longe de saber o querias fazer da tuavida...  Começavas a a preocupar-te , isso sim, com a guerra que alastrava em Angola e com a mobilização dos teus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica, que só mais tarde vieste a saber o que era... Em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da tua formação intelectual e até literária deves-lha a ele, ao teu amigo Doc. Emprestava-te livros, trazia-me papéis, jornais e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns jornais e revistas, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoolólica, deves acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxera da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcar passo. Houve mesmo quem apostasse contigo que ele nunca chegaria a ter o diploma de médico, "quanto mais a poder receitar uma aspirina a um morto"…

Mas foi também a época em que tu deixaste de ver o Doc, com regularidade. Soubeste depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causas eleições legistivas de 1969, rompendo então, definitivamente, com a sua cidade natal. Há muito que  deixara, de resto, o teatro da cidade, que passara a ter um novo diretor, quando ele foi mobilizado para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E tu nessa altura já estavas na Guiné, onde votaste em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ias tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de  germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo. 

Depois perderam o contacto... Deixaram mesmo de ser "íntimos", se bem que a  amizade entre ambos estivesse para durar até ao fim da vida...

Soubeste, por outras vias, que o Doc  se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tens  aerogramas dele do teu tempo de Guiné. Nunca se  corresponderam nesse tempo. E um ou dois que lhe escreveste, não tiveste coragem de os pôr no correio...

Depois do teu regresso à Guiné, e da tua própria "cura de sono", soubeste notícias, já a viver e a trabalhar em Lisboa,  da família do Doc:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que é que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda lhe dera algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à independência da Angola, Guiné e Moçambique, mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o “Velho”, como lhe chamava o filho; morreu em finais da década de 1970, sem ter realizado  o sonho de "um dia ainda poder voltar a Moçambique", terra que ele amava de alma e coração.

Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, quinze anos depois, no princípio de 1990 ?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimemto para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

− Enfim, ando por aí  
− como te garantiu ele, da última vez que falarakm ao telefone  − a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade... 

Mas nunca mais voltou  à Guiné, nem nunca manifestou desejo de o fazer. E nunca sabias ao certo por onde ele parava... Era ele que te costumava telefonar pelos teus anos. Gostava de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Em tempos tinha-te manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E tu ainda o ajudaste a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que ainda se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que tu soubeste que ele estava a morrer. No anexo do hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do teu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão.

© Luís Graça (2020). Revisto: 5 de novembro de 2024.
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