Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"
A gema de fora
Mal a luz do dia beliscou a frincha da janela, o homem acordou, acordou, como sempre, com pedaços do passado agarrados ao pijama, às mãos e aos cabelos.
Sentou-se na beira da cama e um sonolento: Oh! Que merda! Soltou-se da garganta ainda seca do bagaço da véspera. Quando os pés apalparam a falta dos chinelos, moldou os passos ao chão de modo a evitar o mais possível a madeira fria do soalho. Sobre a cómoda, continuava a tristeza à mistura com águas-de-colónia de vários tipos. Abriu um sorriso quando viu no tapete o artigo que acabara de escrever na véspera e que o sono fizera escorregar-lhe das mãos, dera-lhe o título Orgasmo, inspirando-se numa dessas tardes em que o fim do domingo abre as portas à demência. A caminho do quarto de banho, ia pensando nas palavras que nada dizem e na flatulência da comunicação que o fizera deitar-se tão tarde e acordar, assim, com a gema de fora.
Sempre nele permanecera uma grande dúvida quanto à eficácia de debates como o da véspera, será que têm algum valor como profiláticos da deterioração mental que a idade e os tempos acarretam ou são, eles próprios, catalisadores dessa mesma deterioração? Sobretudo se tais debates não passam de regateirices, confusões, dessintonia de mediocridade e estupidez, discutindo pessoas reles, factos ridículos, ou ideias banais, estafadas e apodrecidas, sobretudo se tais debates se processam entre corruptos, golpistas e terroristas que invadem as casas, maquilhados de gente de bem e cobardemente espantalhados de homens dignos. Sempre pensara que não se deve transformar em espetáculo o perigo da lavagem de muitos rostos pelo sabão da ingenuidade das pessoas, a verdade é só uma, e ele não aderia, de ânimo leve, à tese de que cada um teria a sua verdade, a verdade existe, está lá, está sempre lá, dentro das coordenadas humanas, há quem dela se aproxime e quem dela se afaste, mas o único caminho da verdade é o caminho da lucidez e não há lucidez que não assente na razão. Sem deixar de considerar que a irracionalidade é o caminho das trevas, cada um tem o direito a escolher o seu caminho da verdade, mas aí tem-se o direito de o julgar pela escolha, se se lhe conhece a formação ou a deformação, a inteligência ou a indigência, a humildade ou a petulância, o rigor ou a confusão, a seriedade ou a manigância. Grande respeitador do relativo e da cultura da diferença, o homem que não tinha nome consideravase adversário do consenso, do consenso acima de tudo, que destrói e anula o indivíduo, e da tolerância, tolerância como virtude, que implica sempre a presença de alguém que tolera e de alguém que é tolerado. O homem acordou maldisposto porque não acreditava na existência de debates fluidos, corajosos e pedagógicos e, mesmo assim, cedera-lhes parte do seu tempo de sono.
Convidar tanta gente de caras e tantas caras de gente, fazer cócegas em temas profundos, inacessíveis a mentecaptos, meter num mesmo saco capazes e incapazes, lúcidos e ineptos, fazer de assuntos sérios, estéreis, discussões, criar espetáculos de feira sem o mínimo receio de sujar a consciência e ofender a verdade, era mais do que razão para o incómodo acordar dessa manhã. A visão político-filosófica assente na maior preciosidade do homem, a razão, ao contrário do que muitos pensam, é a única visão profunda, dinâmica, mentalmente produtiva, constante recriação de vivências, ideias e utopias, inexoravelmente ausentes do pensamento irracional, retrógrado, estagnado e paralítico.
Já no café da esquina, o homem deu de caras com a mulher de longos cabelos negros, rosto comprido e olhos paradoxalmente achinesados, a quem pedira, há cinco anos atrás, para posar para si, nada tendo conseguido. Esguia, quase linear, de uma beleza que parecia desenhada, a sua figura prendia os olhos que nela tocavam. Sempre que o homem a via, recordavalhe alguém e bulia-lhe com qualquer coisa que havia dentro dele, ela própria, alguém que já vira, alguém que gostaria de encontrar?
Na mesa do lado, via-se que um outro homem, seguramente um habitante dessas inúmeras ilhas que se escondem no ventre da cidade, tentara encontrar uma camisita de riscas verdes a condizer com o verde das calças, se bem que mais escuro, aceitava-se, não era muito boa a combinação, mas percebia-se a ideia, já não era de aceitar tão facilmente aquela senhora vista de trás, relativamente escorreita, blusa na moda e saia quase mini, moldando formas enganadoramente jovens, que o virar da cara logo atraiçoava ao denunciar as engelhas dos setenta anos. Ninguém tem nada com isso e se ele mentalmente o comentava é porque considerava o sentido do ridículo quase um irmão gémeo da inteligência.
Uma outra senhora tentava limpar, com um guardanapo de papel, os pingos de baba que o marido, por força de tentar sorrir, deixava escorrer dos lábios inertes sobre a gravata cinzenta, deve ter sido acometido de acidente vascular cerebral, pelo menos assim o descrevera o genro à saída do banco: “O meu sogro teve um ataque celebral e ficou com a boca a tocar flauta e a pôr açúcar nas farturas.” Mas ele, provavelmente, nunca entrara num banco, não era desses, não, à esquina do banco, onde costuma fazer umas horas no engraxa, como está de baixa pela caixa, aproveita para andar de caixa pela baixa, pelo que não deve ser este o seu sogro, este tem ar de quem tem massa, o que vale é que o acidente vascular cerebral dos ricos é igual ao acidente vascular celebral dos pobres. Mesmo hemiplégico, nem por isso deixou de sugerir, com a mão válida, que a mulher esfregasse suavemente o guardanapo um pouco abaixo da fivela do cinto, ao que ela acedeu de maneira afável e sorridente. Em paga, ele abriu o livro de cheques e mostrou o que havia por lá, ela arregalou os olhos e inspecionou-lhe, com falsa displicência, o pavilhão auricular, tentando arrancar-lhe docemente uns pelos esbranquiçados e eremitas que teimaram isolar-se do mundo cabeludo. Ciente de que a poderosa e autêntica dinâmica da vida, quer se queira quer não, reside no sexo, não tinha dúvidas em aceitar que o homem do livro de cheques optaria, se fosse possível, dar-lhe a escolher, por poder levantar o pénis em vez da mão paralítica.
Do outro lado do homem sem nome, uma mulher cheirava a perfume que tolhia, bafejou os óculos, limpou-os a um pequeno lenço e pô-los em contraluz para ver o resultado, mas os seus olhos em vez de fitarem o vidro, fizeram esguelha para o companheiro que tinha na frente o generoso cruzar de pernas de uma dessas liberais criadoras de pulsões. Foi para isto que se levantou tão cedo, afinal, o que veio ele ali fazer? Um súbito silêncio, um silêncio esquisito instalou-se à sua volta, o silêncio daqueles momentos em que não se sabe o que fazer, em que se entrechocam o querer e o não querer, o sentir e o não sentir, ele tinha pedido um café e lia o jornal, lembrava-se de que não há nada mais saboroso do que faltar ao trabalho e ir para o café ler o jornal, ou melhor, algumas coisas boas que o jornal comporta, no meio de tanto lixo, levantar os olhos de vez em quando, presenciar as descarnadas cenas da vida, dar cem ou duzentos paus a um mendigo andrajoso ou a uma prostituta bem vestida que os pede emprestados, levantar os olhos de vez em quando e pensar na grandiosa obra daquilo a que chamam criação e, ao que parece, nunca fora criado nem inventado, apenas desenvolvido dentro da ordem natural, obra toda errada por adulterada, é certo, mas grandiosa.
O homem acreditava que o equilíbrio entre o que somos e o que acreditamos e o que os outros são e o que pensam é de tal modo difícil, que a forma mais sábia de nos mantermos verticais neste mundo é colocarmo-nos na posição de deitados, isto é, na posição de aprender. O comum das pessoas que escrevem não difere do comum das pessoas que leem, tudo estaria bem se as pessoas que leem não se sentissem os educandos dos sábios que escrevem, e as pessoas que escrevem não inchassem com as banalidades que dizem, há os que merecem ser lidos e os que não o merecem, simplesmente, só a meio da leitura a gente se dá conta e lá se vai aquele tempo por água abaixo. A nossa cabeça é invadida pela cobarde e revoltante ideia de pensar que a única hipótese que nos resta é não perder o sentido de humor e marimbar-se para os que não respeitam, nem de longe nem de perto, a capacidade que os outros têm, apesar de estarem calados, de ver que eles não sabem nada do que dizem, e que os seus comentários, sem vivências sérias a escorá-los ou solidez cultural a estruturá-los, não passam de mastigada para inglês ver, é sobremaneira penoso e ridículo um qualquer medíocre pegar na caneta ou na língua para analisar figuras cuja vida, formação e inteligência ele não tem capacidade para entender. Pensamos logo como se comportariam tais sábios, se tivessem uma dor no peito, uma dor no peito, porquê uma dor no peito? Tudo é secundário e virado do avesso quando há uma dor no peito, o rico diz que é pobre, o que é, quase sempre, verdade. O político de direita diz que é de esquerda e, algumas vezes, vice-versa, que é o que eles acham que os outros gostariam que eles fossem. O forte não desmente a sua fraqueza, o vigarista confessa o desejo de ter sido a pessoa mais séria, o articulista ou o comentador prestam-se a engolir o que disseram se nisso residir a analgesia.
Toda a hipocrisia vem ao-de-laço de uma dor no peito, a dor no peito despe até à nudez aquele que a sofre, dissolve a vaidade e coloca qualquer homem perante si mesmo, é o detergente que embranquece o espírito e lava a memória. A dor no peito é uma espécie de fronteira entre a vida e a morte, perante ela, ninguém tem vergonha de ser ou parecer ignorante. Não sabem que a dor no peito pode ser, apenas e exclusivamente, a somatização da consciência da nossa insignificância, se o soubessem e disso tivessem a certeza, talvez nem se importassem. Era isso que assustava o homem que não tinha nome, não a dor no peito, mas a fraqueza de um mundo que morria assustado, a grandeza delapidada no esgotar da razão, o vaguear dentro do ciclo vicioso de um sonho desfocado e confuso de que se não acorda, a sensação asfixiante de que o mundo se estreita e se dissolve no fim do corpo abalado por uma dor no peito.
Dobrou o jornal, enfiou o sobretudo e sentiu que aquela manhã não era bem igual às outras, mediu, de novo, todas as caras, perguntou a si mesmo o que estava ali a fazer no meio de uma sociedade de olhos vendados, cega, sem horizontes, que nega a razão como única riqueza do homem, voltou a perguntar a si mesmo o que fazia ali e o que tinha ele a ver com tudo aquilo, na imensidão apaixonante do Universo o que era, afinal, aquele café e aquele jornal, o que era o viver, o ter vivido, e o que se há de ter de viver.
Levantou-se e saiu, o ar fresco da manhã ainda lá estava para o acariciar.
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Nota do editor
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