domingo, 30 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25703: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (24): "A tolice por um fio"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


A tolice por um fio

Pensei logo que era tolo quando não vi nenhum fio preso ao ouvido do gajo. Aqui há uns anos, sempre que um tipo (ou tipa) falava sozinho na rua ou no café, era rotulado de tolo. Hoje em dia, com os auriculares do telemóvel, já não é assim. Sempre que topamos alguém a falar sozinho, olhamos logo para a orelha a ver se tem um fiozinho pendurado. Se tem, não é tolo, se não tem, é tolo.

O homem estava sentado numa mesa em frente à minha no café Turista. Foi há questão de uma hora. Lia o jornal enquanto falava, gesticulava, ria e fazia comentários. Claro que eu olhei logo para as suas orelhas. Numa delas não tinha nada pendurado. Na outra, que eu via mal porque o sujeito estava um pouco de esguelha, também não parecia haver qualquer ligação. Pelo sim pelo não, como quem não quer a coisa, levantei-me para espreitar melhor a sua orelha direita e cheguei à conclusão de que era tolo.

O advogado entrou e sentou-se ao seu lado. Presumo que fosse advogado porque, para além da pasta, tinha o ar que os advogados têm e que eu não sei descrever, por mais que tente. O homem calou de imediato o seu solilóquio e entre ambos apenas se interpôs um aperto de mão e um monte de papéis. O tolo, ou presumivelmente tolo, não abriu mais a boca. Moitacarrasco. O advogado, - só podia ser advogado - apenas lhe apontava o local onde devia assinar, assinatura que ele prontamente ali escrevinhava. Nem uma palavra.

Nem uma palavra. Assim se mantiveram cerca de dez minutos, tempo ao fim do qual, o advogado, presumo que não fosse outra coisa, estendeu-lhe a mão e, com discreto sorriso, pirou-se.

O homem que não tinha telemóvel nem auriculares irrompeu numa conversa pegada, falando não sei para quem, gesticulando de braços abertos, com esgares que podiam ser de escárnio, de gozo ou de raiva, fazendo do seu falar a solo uma espécie de comício em ponto pequeno. Voltei a concluir que era tolo. Mas seria mesmo tolo? Será que a diferença entre tolo e não tolo se resume a um fio pendurado do ouvido? Ora, aqui vos deixo a questão, sobre a qual nem Espinosa, nem S. Tomás de Aquino se debruçaram.

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Nota do editor

Último post da série de 23 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25676: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (23): "Os grelos"

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Ahahahah, mais uma das boas.

O ti Manel Alentejano ainda era pior qu'esse, andava cantando muito bem calado.

Valdemar Queiroz