Verificamos agora que ele teve como comandante, nesse período, o ex-cap inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (ou só George Freire, como é conhecido nos EUA, para onde emigrou logo em meados de 1963, e na nossa Tabanca Grande, onde ingressou em 29/12/2008).
Da leitura do diário da Guiné, de George Freire, depreende-se que houve um rápido alinhamento da população local, com os fulas a mostrarem-se leais às autoridades portuguesas e os balantas (e outros: biafadas, nalus...) a ficarem do lado do PAIGC... Ficamos a saber, por exemplo, que a população (fula) de Bedanda, em meados de 1965, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, era fundamentalmente oriunda do Cantanhez, e mais concretamemte de Iemberém (no nosso tempo, Jemberém).
Houve seguramente terror e contraterror nestas ações de ambos os lados, nos primeiros tempos da guerra. Mas repare-se que os prisioneiros feitos pela 4ª CCAÇ eram entregues ao batalhão (o George Freire não o identifica, claramente, mas seria o BCAÇ 356).
Por outro lado, um dos alvos privilegiados da ação da guerrilha são as casas comerciais, a Ultramarina (ligada ao BNU) e à Gouveia (pertencente à CUF)... O PAIGC apropriara-se, em Cafine, em 25 de março de 1963, do navio "Mirandela", pertencente da casa à Gouveia, e do navio "Arouca", da casa Brandão (serão depois utilizados para transporte de pessoal e material em águas da Guiné-Conacri).
A produção de arroz vai decrescer drasticamente nos anos seguintes. A importação de arroz mais do que triplica de 1962 (c. 9 mil toneladas) para 1964 (c. 30 mil toneladas). A Guiné nunca mais será a mais a mesma, depois do ataque de Tite, em 23 de janeiro de 1963. As comunicações (por terra e por rio), em particular, tornaram-se impossíveis ou difíceis.
(...) A situação no Sul piorava. O inimigo actuava então em quase todo o sector, aproveitando o facto de serem muito escassos os efectivos militares. As deslocações destes tornaram-se cada vez mais difíceis, em face das obstruções das principais estradas da região. Em 2/3Abr, o ln atacou por três vezes o aquartelamento do Destacamento do Chugué; assassinou nativos e régulos que resistiam ao aliciamento; no dia 07, atacou elementos militares em reconhecimento na região de S. Miguel Balanta; em 21, numeroso grupo inimigo opôs forte reacção à CCaç 414, nas ilhas de Caiar e Como. Em 22, o ln atacou por duas vezes forças militares que actuavam em Jabadá.
Esta actividade do ln levava a admitir que, no Sul da Província, só estavam efectivamente sob controlo das autoridades as populações que viviam próximo das guarnições militares; as mais afastadas consideravam-se sujeitas à pressão do ln, como é natural em guerra subversiva" (Fonte_ CECA, 2014, pág. 92).
Todos estes topónimos, citados pelo George Freire, no seu diário, são-nos familiares, para muitos de nós: Bedanda, Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberem, Mejo, Salancaur... Ainda não se falava de Guileje nem de Gadamael... Repare-se que há tabancas que vão ser logo de imediato abandonadas (caso de Jemberém, cuja população fula é transferida então pela 4ª CCAÇ para Bedanda),
Achámos oportuno voltar a publicar este documento que, a par do testemunho escrito do Amadu Djaló, nos ajuda a perceber a rápida degradação da situação mlitar no sul da Guiné, nos primeiros seis meses de 1963.
2. O testemunho de George Freire [ex-cap inf Jorge Freire, da CCAÇ 153, da 3ª CCAÇ e da 4ª CCaç, Fulacunda, Nova Lamego, Bissau, Bedanda, 1961/63; hoje engenheiro, a viver desde agosto de 1963 nos EUA]
(...) "Durante o Natal de 1961 a minha mulher veio passar um mês a Bissau onde eu estava na altura a comandar uma companhia de nativos.
Em Julho de 1962 a minha mulher voltou para a Guiné e passou quase 3 meses no Gabu (Nova Lamego), onde eu comandei uma companhia mista [3ª CCAÇ, futura CCAÇ 5, "Gatos Prertos", a partir de 1/4/1967, Canjadude, 1967/1974].
Do Gabu fui transferido para Bedanda [4ª CCAÇ, futura CCAÇ 6, "Onças Negras", a partir de 1/4/1967, Bedanda, 1967/1974], onde ela ainda passou quase um mês, mas nos fins de Dezembro tive que a mandar de volta a Portugal pois as coisas começaram a aquecer demais. (...)
O meu Diário da Guiné
por George Freire
Como história, transcrevo partes de um diário que encontrei no meio de papelada antiga numa gaveta da minha secretária. A primeira entrada no diário foi no dia 31 de janeiro de 1963 e a última, no dia 28 de maio do mesmo ano. Aqui vai:
31/1/63:
Ataque de terroristas aos Fulas de Jemberem [no original, Emberém, hoje Iemberém]. Mataram o chefe da tabanca e outros 6 Fulas.
2/2/63:
Acção em Boche Falace pelas minhas forças de Emberém. Um grupo de terroristas balantas em fuga deixou grande quantidade de arroz cozido (!).
6/2/63:
O nosso destacamento em Salancaur foi atacado às 00:30. Tivemos baixas: um furriel e um soldado foram mortos do nosso lado e vários terroristas foram abatidos. [O furriel foi o José do Rego Rebelo, açoriano de Ponta Delgada, CCAÇ 274 / BCAÇ 237; foi o segundo furriel miliciano a morrer no TO da Guiné].
Nesta mesma noite, também atacaram o nosso destacamento em Cacine, mas felizmente não houve baixas a assinalar.
8/2/63:
Fui a Bissau tratar de vários assuntos da Companhia [4ª CCaç].
9/2/63:
Volta de Bissau. Manga de trabalho em atraso devido as acções dos últimos dias. Recebemos informação de que vários terroristas passaram ao largo, vindo de Catió para a zona de Cacine. As instalações da Ultramarina foram assaltadas e o encarregado europeu foi morto.
10/2/63:
Lista de material extraviado em combate: 1 capacete em Chugué, 1 espingarda Mauser e 1 pistola-metralhadora em Jemberem.
Esta madrugada as instalações da Gouveia em Salancaur foram atacadas. Os terroristas levaram cerca de 10 toneladas de arroz e outros géneros de comida.
11/2/63:
Efectuámos acções em Jemberem, Salancaur e Cadique.
Vários elementos terroristas que tinham tomado parte no assalto aos Fulas de Jemberem foram aprisionados e enviados para a sede do Batalhão.
12/2/63:
Um alfaiate mandinga, Mamude Djassi, que tinha sido aprisionado em Chacual pelos terroristas e que passou vários dias num dos seus acampamentos, conseguiu fugir e apresentou-se ao nosso destacamento do Chugué. Foi transportado para o nosso quartel em Bedanda. Enviei um rádio para o Batalhão para que este Mandinga possa ser aproveitado como guia na acção que está a ser preparada pelo Batalhão.
13/2/63:
Enviei um pelotão para Salancaur para proteger o embarque de arroz da Ultramarina e da Gouveia.
14/2/63:
Patrulhamento feito em Jemberem e Cadique. Nesta última povoação tivemos contacto com terroristas Balantas que puseram alguma resistência mas acabaram por fugir. Três foram abatidos.
15/2/63:
O nosso quartel em Bedanda foi visitado por 3 directores da CUF, procurando informações do que se está a passar na região.
Nessa mesma altura, terroristas rebentaram um pontão na estrada de Catió junto de Timbo.
Houve também grande tiroteio em Chugué e algumas explosões na estrada próxima da área.
Os 3 directores ficaram bem informados do que se está a passar...
16/2/63:
Chegou o Pelotão de acompanhamento da Companhia 273. Uma patrulha das nossas forças do Chugué foi atacada por um grupo armado de pistolas-metralhadoras. Não sofremos baixas mas 2 terroristas foram abatidos.
Regressou à base o Pelotão destacado em Salancaur. Foi rendida por novas forças a Secção que se encontrava destacada em Emberém.
17/2/63:
Continuaram a chegar mais elementos da companhia 273.
18/2/63:
Reconhecimentos feitos a Salancaur, Jemberem e Cadique.
Aprisionámos alguns dos elementos que tinham atacado o nosso destacamento de Salancaur.
22/2/63:
Fomos visitados aqui em Bedanda pelo Comandante Militar e pelo Major Mira Dores, durante a altura em que tínhamos começado uma acção no mato de (Nhairom?), com 2 pelotões da CCaç 273 e 1 Pelotão da minha Companhia.
23/2/63:
Regresso da acção. Pobres resultados. Foram encontrados vários acampamentos terroristas, abandonados mas com indícios de terem sido ocupados recentemente.
Foi rendida a secção de Jemberem.
25/2/63:
Reconhecimento feito em Salancaur e Mejo. O Capitão Delfino, Comandante da Companhia que substituiu a CCaç 74, visitou-nos, para discutirmos colaboração.
26/2/63:
Outra visita pelo Comandante Militar e o Comandante da Força Aérea, para discussão sobre a colaboração da FA na próxima operação que iremos executar. Pormenores foram discutidos em detalhe.
27/2/63:
O Capitão Relvas veio da sede do Batalhão visitar-nos em Bedanda. Aparentemente, o Comandante do Batalhão está chateado por não ter sido consultado nos detalhes de apoio pela FA. e tomou a decisão de fazer a operação sem esse apoio. (Incompreensível!).
A acção começará esta noite a partir das 00:04.
A acção terminou pelas 15:00 do dia 28/2/63. Os resultados que poderiam ter sido bastante satisfatórios, foram praticamente nulos, pois vários grupos de terroristas conseguiram, (devido a configuração e extensão do terreno de acção), fugir e dispersar. Se a FA tivesse colaborado os resultados teriam sido tremendos, pois o número de terroristas que conseguiram infiltrar-se entre as nossos forças foi considerável. (Esta foi a opinião de todos os comandantes de pelotão directamente envolvidos na acção. Na área onde a minha companhia actuou, notamos exactamente os mesmos resultados).
É evidente que os terroristas foram avisados da operação a tempo de poderem debandar. Nada me admira, pois temos um número considerável de soldados nativos, incluindo Balantas...
1/3/63:
Hoje pela 09:30 e mais tarde pelas 14:30, pessoal do pelotão do Cabedú sofreu emboscadas respectivamente entre Cafal e Cafine e no cruzamento de Cabante. Na segunda emboscada sofremos um morto e um ferido. Uma viatura Chaimite [lapso: talvez Daimler ou Fox ou White, não havia Chaimites em 1963], foi destruída na primeira emboscada. Seguiram dois pelotões reforçados para os locais das emboscadas.