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quinta-feira, 3 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26646: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (36): Lamego, Amadora, Oeiras, Lisboa ... e depois Cufar ! (Mário Fitas)

Boina dos "rangers" de Portugal. Cortesia do blogue Coisas do MR
(do nosso camarada e coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro)




CCAÇ 763, "Os Lassas" (Cufar, 1965/67)


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > VI - Por Terras de Portugal: Tavira, Elvas, Lamego, Oeiras...> 

(iii) De Lamego... a Cufar  (pp. 30-33)

por Mário Vicente 


Em Lamego aprende muito e sofre mais. Leva pancada por ignorância, ao tentar responder nos percursos fantasmas, só depois de muito levar compreende que o melhor é não tentar responder. Passa fome, sede, e é ensinado a matar. Com a faca aprende o golpe de cigano e com todo o tipo de armas aprende a tudo destruir, escola perfeita.(*)

Instrutores acabados de chegar do curso nos EUA, o Cobrinha e outros vão construindo máquinas de guerra. Na serra do Marão onde o sol qual bola de fogo, se esconde por sobre montes de róseo algodão ou alvo espelho de neve, apenas desflorados pelo saliente píncaro do Alto do Muel no Mesão Frio, à noite ouvem-se os lobos uivar. Na das Meadas, sobranceira à cidade e onde as noites gelam, as neblinas matinais, chuva miudinha “molha parvos” se infiltra pela roupa deixando os já pouco resistentes rangers como pintos de penas coladas, a quem meteram em alguidar de água. Não só estas mas também a serra do Poio e outras são calcorreadas dia e noite, socalco a socalco, até os pés sangrarem.

O rio Douro, desde o Pinhão até à Régua, é reconhecido palmo a palmo. As rochas duras buriladas por água mole da corrente nos rápidos, são acarinhadas por barcos de borracha, berços flutu­antes que rodopiam e se esfregam nelas como anfíbios cacha­lotes em louco bailado de cio. Navegando, remada a remada, aqui se assiste à trágica manipulação dos homens ignorantes e medrosos. O barco rodopia e encalha num rápido, com catorze homens a bordo. Só três sabem nadar. Num segundo, o Resende entra em pânico, ajoelha no meio do barco e, numa cena trágico-marítima, grita para os céus:

– Senhor Jesus Cristo, valei-nos!...

– Salvai-nos, Senhor!...

– Assim perdeu meu pai a vida! ...

Chora como criança em plenos terrores nocturnos. Tarragona e Vagabundo saltam do barco com o Bracarense e, nadando, puxão para a esquerda, puxão para a direita, desencalham o bar­co e levam-no para a margem esquerda. Os não nadadores sal­tam todos e metem pernas ao caminho até à Régua. O barco não podia ser abandonado. Os três nadadores tomam o comando da enorme banheira de borracha. Maravilhoso! Parecem três putos, a quem deram desejado brinquedo.

As guerras académico-mi­licianas, entram no esquecimento, Bracarense e Tarragona inter­rompem as disputas de ginástica aplicada e forma-se a equipa. Bracarense à ré, faz de timoneiro, Vagabundo e Tarragona a meio do barco para melhor equilíbrio, vão remando quando necessário. Nos rápidos, ou quando a corrente é mais forte os três ficam mais próximos. O barco levanta a proa e atinge uma velocidade louca e estonteante que deixa os três rangers felizes. Divertindo-se, chegam à Régua como miúdos brincando com a loucura do rio.

Mais tarde, Tarragona será mostrado ao Mundo Portu­guês, recebendo a Torre e Espada no Terreiro do Paço. Oculta, ficou a estátua figura do capitão: pés decepados, gastrocnémios desfeitos por prostituta mina, erguendo-se sobre os sangrentos cotos ósseo-tibiais, e mesmo assim tentando continuar a coman­dar os seus soldados!

Nas escarpas do rio faz-se rapell e alpinismo. No rio Balsemão, volta-se a brincar para esquecer a dureza de Penude.

Há largadas em Resende, São João de Tarouca e noutros locais. A chegada a Penude não pode ser detectada. Por montes e vales, povoações, caminham só de noite e mesmo assim, o raio dos cães denunciando a malta. Salzedas, seis da madrugada. Abre-se uma porta, e uma mulher chama os três rangers que cautelosamente passavam pela rua.

– Os senhores são militares, não são?

– Sim, sim ... somos!

– São de Lamego?

– Sim!

– Deixai-me dar-vos um beijo e que a Senhora dos Remédios vos proteja, meus filhos. Entrem, comam qualquer coisa que vos aconchegue o estômago.

Abriu a porta e obrigou os três rapazes a sentarem-se a uma grande mesa de lavrador. Trouxe broa, presunto, salpicão e um jarro grande de vinho. A conversa da tropa começou, e ela foi dizendo que o seu António estava em Angola, escrevera havia dias e dizia estar muito bem, que faziam patrulhas como os de Lamego, e que tudo lhe corria maravilhosamente bem!

Como António, Vagabundo compreendeu mais tarde que também teria de mentir aos pais. O
presunto era maravilhoso e o vinho também. A senhora continuava a falar do filho mas os três rapazes tinham de partir. A senhora ficou à porta com as lágrimas caindo-lhe pelo rosto e pensando no seu filho António, enquanto os rangers alegres, contentes e de barriga cheia continuaram a caminhada. Vagabundo ainda pensou, quantos Antónios não darão a alegria do regresso a estas santas mães!?

À noite, em pleno jardim, das viaturas militares em anda­mento, saltam gandulos reguilas dando o seu grito de ran­ger. As miúdas deliram e os gandulos tornam-se uns heróis. Nos jardins e nas escadarias da Senhora dos Remédios, inebria­dos pelos odores das madressilvas e jasmins, eles embrenham-se entre etéreas promessas de amor incontidas, navegando em lon­gos beijos de aventura!...

Os esgotos da cidade tomam-se caminhos conhecidos pela matula, em noites de percursos fantasmas, com petardos de trotil pelo meio. Aqui existe outra mulher especial na vida do ranger que consegue incutir força para a resistência. Apesar dos seus dezoito anos, Maria de Deus explica ao jovem militar a razão das coisas, mas não consegue influenciá-lo a fugir das terras para Norte. 

No entanto aqui começou uma louca doação. Ao aquartelamento de Cufar na Guiné chegarão, mais tarde, montes de cartas e aerogra­mas, trocar-se-ão poemas, falar-se-á da vida, da guerra e da mor­te. Haveria que fazer qualquer coisa!... A jovem incute no militar a aventura da fuga para França durante as férias. O militar prepara-se para a loucura, mas… há os velhotes e, nas terras para os lados do Norte, Tânia essa estranha força mais forte que o vento, não deixa voar o pensamento acorrentado de Vagabundo. Tão forte na guerra e tão frágil pela imagem de uma mulher que nunca será sua!... Uma mulher, que possivelmente até a sua existência já desconhece.

Traição!... Como se sentiriam António e Francisca na sua terra com um filho traidor à Pátria? E seu avô? O velhote morreria de desgosto e vergonha. Fuga anulada! Vagabundo escolhe o cumprimento do dever jurado na parada de Tavira.

Como Niotetos, Maria de Deus insiste com Vagabundo. Ele é em espírito e corpo inteiro uma parte dela, nesta loucura entregou-se toda e tenta modificá-lo. Não dá, ele já é prisioneiro de si próprio e à sua volta criou uma barreira, um casulo de arame farpado.

Mais tarde, Maria de Deus, com apenas vinte e quatro anos, morre jovem na pujança da vida, brutal arrancar de botão de flor ainda não aberto. Obrigado, Mimê, por tudo o que por Vagabundo fizeste, mesmo pelas tontearias que tentastes e fizeste! Quem sou eu para não te aceitar como tu eras!? Que descanses em paz! Que Deus te tenha em bom lugar!

A vinte e três de setembro os rangers Vagabundo e Almeida, apresentam-se no RI1, na Amadora unidade mobilizadora, para fazerem parte de uma Companhia de Caçadores com destino à guerra no Ultramar. 

Após a concentração de todo o pessoal, é dada a instrução de especialidade durante sete semanas, às quais se seguem mais duas de aperfeiçoamento operacional na região da Serra da Lua, sagrada para os Lusitanos, a bela Sintra.

A 19 de dezembro a CCAÇ 763 é mobilizada para o CTIG Comando Territorial Independente da Guiné. De farda amarela, o furriel miliciano, segue de comboio para passar o Natal na sua aldeia. O casal espanhol, companheiro de viagem, é extraordinário. O homem andará pelos cinquenta e poucos anos e a senhorita aparentava ser um pouco mais nova. Nota-se que têm a noção do que é a guerra e abordam um pouco a política. Falam com algum conhecimento de Salazar e Franco, o militar estando muito cru nesse aspecto aprende algumas coisas. Na despedida, desejam:
 
– Buena sorte! La guerra es una monstruosidade!...

É o único passageiro a tomar a camioneta na velha estação da CP. Inverno, oito da manhã, faz um frio de rachar e sopra aquele vento leste que se entranha na roupa e trespassa os ossos. É reconhecido pelo revisor, velho resistente ainda dos tempos em que Vagabundo era estudante.

– Então também te calhou, rapaz?

– É verdade!

– Para onde?

– Guiné!

– Oh, pá!... Olha, boa sorte!

– Obrigado, ti Chico.

A camioneta pára em terras do lado Norte. Entram quatro pessoas desconhecidas. Passam pelo militar e olhan­do para a farda amarela, dão um bom dia de misericórdia como que a um pedinte em porta de igreja, ou, talvez interiormente desejem uma boa sorte como o Ti Chico, revisor. O militar olha pela janela tentando ver o impossível.

Natal sem sabor. O furriel tem de se apresentar no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) em Oeiras, a dois de janeiro, onde aguardará embarque. A dezanove de janeiro, com toda a pompa militar, a CCAÇ 763 recebe o seu Guião com o lema «Nobres na Paz e na Guerra». À noite recorda-se que,  no dia seguinte, comemora-se o Santo Mártir Sebastião, padroeiro de arqueiros e soldados, venerado em terras de lados do Norte.

Recordando, pega no bloco e começa a escrever uma carta de amor contra o esquecimento. Quando o sofrimento ultrapassa o medo, a sub­missão dissipa-se e relança-nos, geralmente em força para a conquista ou reconquista. Escrevendo, verifica que é um hino à Natureza aquilo que escreve e sente-o como se uma carta de criança. Revolta-se, rasga a carta e sai para ir para Lisboa, decidindo passar a noite com uma prostituta. Quando sai tem vontade de bater em tudo, no entanto o ar da rua faz-lhe bem. Na estação encontra o Carretas,  de Almeirim,  que pertence à Companhia que também aguarda embarque na Parede.

– E, pá.  anda até ao Limo Verde, a malta vai lá juntar-se. 

Aceita o convite do colega e larga Lisboa e a puta, saltando mais esta vala de lama.

9 de fevereiro de 1965. Sobe a rua Morais Soares devagar, atravessa a Paiva Couceiro e entra na Mouzinho de Albuquer­que, onde se encontram os pais em casa de sua irmã mais velha. António está a convalescer de uma operação delicada. Eles não sabem que seu filho, no dia onze pela manhã, embarcará no navio “Timor” com destino à Guiné. Mas apercebem-se que há algo estranho.

Como vai ser? Vagabundo não delineou nenhuma estra­tégia, mas há que resolver a questão. Entra um pouco nervoso, consegue manter conversa evitando o assunto. Sabe que sua irmã estará no Cais, mas de seus pais tem de se despedir sem o dizer. No dia seguinte seguirão de comboio, para a sua aldeia e levarão Pedrito. Mais umas palavras de circunstância, e já é hora de partir.

– Amanhã estarei no comboio!

Mas a experiência de vivência feita, não engana os velhotes. Eles sabem que o filho não está a dizer a verdade. Aguentam-se todos sabendo que estão a fazer jogo viciado e a mentir uns aos outros. Com as lágrimas de Francisca não há problemas. Sempre assim foi, mesmo que partisse para perto. Com António não, raras vezes tinha visto as pérolas rolando naquele rosto.

– Combinado? Amanhã lá estarei em Santa Apolónia, as melhoras e adeus!

Aguenta-se e sai. Pede a Amália para se segurar. Já no elevador não resiste, sente os olhos húmidos. Vai encontrar-se com Picolo e solicita-lhe que vá ele à estação dizer que está de serviço, pelo que não pode comparecer. Picolo, como sempre fixe, aguenta a barra.

(Revisão / fixação de trexto, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)




Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], o nosso querido camarada Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67, e cofundador e "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.

Esta edição é uma segunda versão, reformulada e melhorada, do livro "Putos, gandulos e guerra" (edição de autor, Estoril, Cascais, 2000, com apoio da Junta de Freguesia de Vila Fernando, 174 pp.,). 

A nova versão  (2010, 99 pp.) já foi reproduzida no nosso blogue. Tem prefácio do nosso camarada António Graça de Abreu.





47º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha > Algés > Restaurante Caravela de Ouro > 16 de janeiro de 2020 > Da esquerda para a direita, Zé Carioca, Mário Fitas, dois "homens grandes" da Tabanca da Linha, com o nosso editor Luís Graça. (**)

Foto: © Manuel Resende (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


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Notas do editor LG:

(*) Postes anteriores da série:


(**) Vd. poste de 17 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20565: Convívios (913): A festa dos 10 anos da Magnífica Tabanca da Linha: gente feliz, sem lágrimas, mas com saudades dos que já partiram - Parte I (Fotos de Luís Graça e Manuel Resende)


domingo, 28 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25784: Antologia (98): A ida para o seminário de Lamego, em 1918 (Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)


Miguel Torga (1907-1995). Foto: Adapt.
de Wikimedia Commons 
(com a devida vénia...)

1. Miguel Torga (pseudónimo literário de Adolfo Correia Rocha) nasceu em 1907 em São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, filho de camponeses. Era médico. E morrerá em 1995, em Coimbra aos 87 anos. É um dos grandes escritores da Língua Portuguesa. Prémio Camões (1989).



Em 1917, fez, com distinção, o exame da instrução primária,na escola de Sabrosa. O professor, o "senhor Botelho" (personagem de "A Criação do Mundo") tem pena que o seu aluno não possa prosseguir os estudos no liceu. O pai não vê nenhuma saída para o filho, a não ser o seminário ou o Brasil. A mãe, que não acredita na vocação do filho, manda-o para o Porto, para servir como criado numa casa rica. Revoltado, fica lá pouco tempo.

Em tempos de anticlericalismo, consegue entrar no seminário de Lamego, em 1918, com uma uma recomendação do padre da aldeia. Perde a fé, sai ao fim de um ano. "A passagem por Lamego, como dirá mais tarde no Diário, foi decisiva; aí passou 'um dos anos cruciais' da sua 'vida de menino'. A problemática religiosa irá ocupar na obra de Miguel Torga um lugar digno de registo".





2. Do livro "A Criação do Mundo" (2000) (que o Miguel Torga começou a escrever, como romance autobiográfica, em meados dos anos 30), vamos publicar, com a devida vénia, três pequenos excertos relativos à sua ida para (e os seus primeiros tempos em) o seminário de Lamego, em 1918. É uma descrição antológica, e nomeadamente  a viagem de Agarez (nome ficcionado de São Martinho de Anta, terra natal do escritor) a Lamego.



A ida para o seminário de Lamego, em 1918

(Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)



[…] Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar o meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, que visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.

Meu Pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada.. Gostava, gostava, de me ver professor,  ou médico, ou advogado.. Mas, nicles,  faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que  talvez pudesse ser. Se arranjasse a maneira  de meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...

O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos, que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados  à terra, a embrutecer,  ou eram arrebanhados pela  Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.

– É o que terá mais certo...  concluiu meu Pai, resignado. – A cavar é que não fica. Bem bastou eu. [pág. 40]

[…] Ia na frente, de fato preto, montado na jumenta, a segurar o baú de roupa que levava adiante de mim. Meu Pai e minha Mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas, e ela de colchão e cobertores à cabeça. Assim percorremos as seis léguas que vão de Agarez a Lamego, pelo caminho velho. Senhora da Guia, Senhor do Bom Caminho, Senhor da Boa Morte, Vila Seca, Poiares, Régua… De alma negra, olhava a paisagem grandiosa que nos acompanhava , e via nela apenas a minha sombra. Papa-hóstias, como dissera o senhor Botelho... Era tudo o que eu poderia vir a ser na vida.

Recebeu-nos no pátio da casa do senhor cónego Faria, a quem íamos dirigidos, um sacerdote novo e magricela, que mais tarde vim a saber que se chamava padre Monteiro. Meus Pais cumprimentaram-no respeitosamente, mas, em vez de lhes seguir o exemplo, fiquei ostensivamente calado. O desespero que sentira toda a viagem transformara-se numa raiva cega, que me estrangulava a voz. Meu Pai  reparou na má criação, repreendei-me. Lá arranjei fala e  gaguejei:

– O senhor passou bem ?

O sujeito olhou-me de esguelha, disse que sim,  e perguntou se eu era piedoso. Ao que o meu o Pai respondeu solícito que, quanto a isso... Além de ser bom rapaz  e muito inteligente.

Comprometido, pus-me a arranjar o cabresto à burra e a relancear as janelas da casa solarenga, a ver se via o bispo. Era uma das minhas aspirações em pequeno: ver um bispo. 

Por fim, o homem deu-nos um  bilhete para irmos entregar  ao número quarenta e dois de uma rua assim, quem subia, à esquerda.

Lá fomos, e lá fiquei.

Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamente pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar. Ainda em soluços, vi-os dobrar a esquina e desaparecer. A enxugar os olhos, subi os três lanços da escada que levava ao segundo andar, onde encontrei os companheiros que iria ter.

Passei o resto do dia à espera de ouvir daqueles desconhecidos uma palavra de consolo. Mas eram infelizes como eu, que a pobreza trouxera até ali, sem calor no coração para repartir. Benzeram-se e rezaram antes e depois do jantar, e eu imitei-os. Quando bateram as dez, enfiaram-se na cama. O que fiz também.

Dormi mal. Pela manhã, o prefeito mandou-me rapar o cabelo à escovinha. Depois fui submetido a um rigoroso inventário, que escancarou à luz do sol os meus haveres materiais e espirituais. Fiquei no primeiro ano.

O nosso vigilante chamava-se senhor Ramos. Estava no fim do curso e namorava a filha do dono da casa, que tinha alfaiataria no rés-do-chão.  A República tomara conta do edifício do seminário e transformara-o em quartel. Por isso víviamos em  grupos de dez e doze, espalhados pela cidade, comandados por um  mais velho, e íamos às aulas à residência dos professores.

No dormitório havia apenas um bacio para cada duas camas. O que me pertencia ficava debaixo da do Arménio que, quando eu acordava, já o tinha cheio. O recurso, claro, era ir à varanda. A primeira vez que  tal me aconteceu, fiquei aflito. Quem é que  se atrevia a mijar lá para baixo, diante do palácio das Brolhas,  de fachada imponente e brasão coberto de luto, ali a ver-nos ? Mas a natureza apertava e o frio também. E abri a torneira. [pp. 53/55]

[…] De novo no seminário, agarrei-me ao estudo com unhas e dentes. À febre de aprender, juntara-se um sentimento surdo de revolta, e só encontrava sossego a devorar laudas. Aos Domingos, ensacado na batina do primo santo, que o dono da casa arranjara à medida do meu corpo, ia passear. Juntávamo-nos todos na , assistíamos à missa, e no fim, a ouvir obscenidades dos caixeiros aperaltados, que tocavam no cotovelo do vizinho a passar o enguiço – Lagarto! Lagarto! , seguíamos a dois e dois para a Meia Laranja, ao fundo da escadaria da Senhora dos Remédios, e aí nos divertíamos. 

Numa dessas ocasiões, jogava-se o rim cavalo.

– Quem joga o rim cavalo?
– Há cá quem!
– E se bater na burra?
– Fica tudo bem.

Como andava fraco, a certa altura fui substituído e fiquei a ver. Às tantas por acaso, dei falta do senhor Ramos. Relancei os olhos à volta, e nada. Onde diabo se teria metido? Fiquei admirado daquela ausência, mas acabei por me distrair. Até que passado um grande pedaço ele apareceu.

No passeio seguinte, repetiu-se a mesma cena. E aquilo começou a meter-me confusão. Deixei os companheiros na brincadeira e, como quem não quer a coisa, meti pelas alamedas do parque à procura do prefeito, de olhos afiados para dentro das moitas mais espessas. Mas não fui longe. Quando menos esperava, tive de retroceder a galope. Dum maciço de acácias começaram a chover pedradas sobre mim. Não contei nada aos outros, e quando o sujeito apareceu fiz-me desentendido.

Já na forma, acabei de saber o resto. Por um carrocho íngreme, descia da mata para a cidade uma rapariga nova, vestida de preto. Era a filha do alfaiate. 

Foi então que me apareceram aquelas súbitas saudades da Aurora que, no jogo das escondidas, levantava o vestido na casa da lenha, onde nos refugiávamos.

– Ó Aurora, mostra, mostra… [pp.61/62]


In: Miguel Torga - A criação do Mundo, volume I. Lisboa: Editora Planeta de Agostini, 2002, pp. 40, 53/55, 61/62

(Seleção, revisão / fixação de texto,  título, negritos e itálicos, parênteses retos, links, para efeitos de edição deste poste: LG)

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Nota do editor:


Último poste da série > 11 de agosto de 2023 > 
Guiné 61/74 - P24548: Antologia (97): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: O caso da ajuda ao PAIGC – Parte VIII

domingo, 12 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25514: Efemérides (436): Homenagem aos Combatentes da Guerra do Ultramar da Freguesia de São Romão de Aregos - Concelho de Resende (Fátima's)

Bandeira da União das Freguesias de Anreade e S. Romão de Aregos


Homenagem aos Combatentes da Guerra do Ultramar - União das Freguesias de Anreade e de São Romão de Aregos - Concelho de Resende

No dia quatro de maio de 2024, deu-se mais uma cerimónia de Homenagem aos combatentes da Guerra do Ultramar naturais de São Romão de Aregos, no concelho de Resende.

Apesar de o dia se encontrar chuvoso e envergonhado, os combatentes, os amigos, as famílias e curiosos não deixaram de estar presentes na emblemática igreja matriz de São Romão de Aregos que representa o sacrifício de muitos resendenses que “abalaram” da sua terra à procura de uma vida melhor.

A cerimónia teve início pelas 15h00, com a celebração de uma missa, em que se homenageou todos os combatentes do Ultramar vivos e falecidos na vida civil, não tendo havido mortes no Ultramar nesta freguesia. A eucaristia foi abrilhantada pelo Grupo Coral da Paróquia de São Romão de Aregos com um reportório de excelência. Após o momento litúrgico, deu-se o segundo momento da homenagem, onde se ouviu, na primeira pessoa, o testemunho do Furriel Fernando Silva que realizou um breve resumo da sua comissão militar em Moçambique, de 1972-1974, pertencendo à 2.ª Companhia do Batalhão de Artilharia 7220 e a leitura do testemunho do combatente Amadeu Pereira, que cumpriu comissão em Angola, de 1963-1965, na Companhia de Artilharia 422.

Finda a cerimónia na igreja, procedeu-se à inauguração de um Monumento aos Combatentes do Ultramar junto ao cemitério, seguido de um lanche/convívio.

A cerimónia foi organizada pela Junta da União das Freguesias Anreade e São Romão de Aregos com o apoio das Fátima´s. Estiveram representadas várias instituições civis e militares e entidades autárquicas, destacando-se a presença da Vice-presidente da Câmara Municipal de Resende, Dra. Maria José; do Presidente da Assembleia Municipal de Resende, Dr. Jorge Machado; de um dos assessores do Presidente da República, Tenente-coronel Anselmo Dias; de um representante do Comandante do CTOE, Major Gonçalo Pereira e de um representante do Comandante do Posto de Resende da GNR, Cabo Santos.

Estas celebrações têm tido a presença do Núcleo de Lamego da Liga dos Combatentes, representado por elementos dos seus órgãos sociais, associados e respetivo Estandarte Heráldico.

Interior da Igreja. Eucaristia celebrada pelo Senhor Pe. Abel com a participação do Grupo Coral
Sónia Pinto (Presidente da Junta da União das Freguesias Anreade e S. Romão de Aregos), Coronel Monteiro (Núcleo de Lamego da Liga dos Combatentes), Tenente-Coronel Anselmo Dias (assessor do Presidente da República), Major Gonçalo Pereira (representante do Comandante do CTOE), Cabo Santos (representante do Comandante do Posto de Resende da GNR), Furriel Fernando Silva
Sónia Pinto (Presidente da Junta da União das Freguesias Anreade e S. Romão de Aregos), Coronel Monteiro (Núcleo de Lamego da Liga dos Combatentes), Tenente-Coronel Anselmo Dias (assessor do Presidente da República), Major Gonçalo Pereira (representante do Comandante do CTOE), Cabo Santos (representante do Comandante do Posto de Resende da GNR), Furriel Fernando Silva
Interior da igreja e as Fátima´s
Combatente Amadeu Pereira e esposa
Combatente Cândido Lemos (Índia, prisioneiro)
Furriel Fernando Silva
Coronel Monteiro (Núcleo de Lamego da Liga dos Combatentes)
Dr.ª Maria José (Vice-presidente da Câmara Municipal de Resende)
Dr.ª Sónia Pinto (Presidente da Junta da União das Freguesias Anreade e S. Romão de Aregos)
Monumento aos Combatentes do Ultramar
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Nota do editor

Último post da série de 20 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25417: Efemérides (435): Homenagem aos Combatentes no Ultramar naturais da Freguesia de São Saturnino e inauguração do Monumento de Homenagem do Município de Fronteira aos Combatentes do Ultramar

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25171: In Memoriam (497): Maj Inf ref, Humberto Trigo de Bordalo Xavier (1935-2024): missa de corpo presente, amanhã, pelas 11h00, na igreja de Santa Cruz, em Lamego, seguindo depois o funeral para o crematório de Mangualde

 

Notícia necrológica da Funerária Leite, de Lamego, relativa ao falecimento do major Bordalo (1935-2024). Amanhã, 5ª feira, pelas 11 horas haverá missa de corpo presente, na igreja de Santa Cruz, em Lamego,  onde o corpo está depositado. O funeral segue depois para o Crematório de Mangualde.

As nossas condolências a familiares, amigos e camaradas.

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Notas do editor:

Último poste da série > 14 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25170: In Memoriam (496): Major Inf Humberto Trigo de Bordalo Xavier (1935-2024), ex-cap QEO, "ranger", CART 3359 (Jumbembém, 1971), CCAÇ 12 (Bambadinca, c. 1972) e CCAÇ 14 (Cuntima, c.1973), aqui recordado por Victor Alves (1949-2016), Joaquim Mexia Alves e António José Pereira da Costa; passa a integrar, a título póstumo, a Tabanca Grande, sob o n.º 884

Guiné 61/74 - P25169: In Memoriam (495): Major Inf ref Humberto Trigo de Bordalo Xavier, ex-cap op esp QEO, CART 3359 (Jumbembém, 1971), CCAÇ 12 (Bambadinca, 1972) e CCAÇ 14 (Cuntima, 1973); era natural de Lamego (1935-2024) (Joaquim Mexia Alves)

 


Major inf Humberto Trigo de Bordalo Xavier, natural de Lamego (1935-2024). Foto: cortesia de Joaquim Mexia Alves e da Associação de Operações Especiais (AOE), com sede em Lamego


1. Morreu ontem, aos 88 anos (nasceu em 3/5/1935),  o ex-cap inf op esp QEO Humberto Trigo de  Bordalo Xavier, o 3º comandante, por ordem cronológica da CCAÇ 12 (Contuboel, Bambadinca e Xime, 1969/74). (*)

A triste notícia foi nos dada pelo António Duarte [ex-fur mil da CART 3493, a companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAÇ 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974)].

Foi ele que nos reencaminhou para a página do Facebook do Joaquim Mexia Alves, cujo texto se reproduz com a devida vénia:


MAJOR HUMBERTO BORDALO XAVIER

Sou hoje confrontado com o falecimento do “meu capitão” Bordalo, que nunca chegou a ser “meu capitão”, mas era e foi sempre o meu capitão Bordalo.

Quando fui enviado a comandar tropas guineenses, muito especialmente o Pelotão de Caçadores Nativos 52, conheci em Bambadinca o então cap Bordalo, que era o comandante da Companhia de Caçadores 12, constituída também por militares guineenses, enquadrados por oficiais e sargentos da então metrópole.

Ambos tínhamos o curso de Operações Especiais (ele bem antes de mim), hoje conhecidos como Rangers.

A amizade entre os dois foi imediata e a nossa maneira de ser e de pensar tornou-nos extremamente unidos.

O capitão Bordalo era um homem simples, sem alardes (como são sempre os grandes homens), e um combatente extraordinário, que galvanizava as suas tropas por ser sempre o primeiro a liderar, mas também o primeiro a defender aqueles que estavam debaixo das suas ordens e, isso mesmo, incutiu em mim, o que nos trouxe alguns “amargos de boca” com alguns superiores nossos.

Nunca servi directamente sob as suas ordens, mas fizemos algumas operações militares conjuntas da sua CCaç.12 com o meu Pel Caç Nat 52.

Numa altura em que as condições de vida a que eu com outros estávamos sujeitos, o cap Bordalo foi o garante da minha “sanidade mental”, com o seu apoio sempre próximo, franco e amigo.

Retenho na memória, há uns anos em Monte Real, quando eu estava ao fim da tarde a jogar ténis no campo frente ao Hotel das Termas e vejo parar um carro e dele sair uma pessoa que me pareceu o cap Bordalo.

Achei que não podia ser, mas roído pela curiosidade pedi desculpa ao meu parceiro e fui perguntar ao porteiro do Hotel quem era a pessoa que tinha chegado. 

A resposta deu como certa a minha suposição. Não o via desde a Guiné.

Imediatamente pedi ao porteiro que ligasse para o quarto e pedisse ao capitão para vir à recepção por um motivo qualquer. 

Quando nos vimos, demos num abraço em que literalmente lhe peguei ao colo (o cap Bordalo Xavier era bem mais baixo do que eu), e ficámos ali não sei quanto tempo abraçados, com as lágrimas nos olhos.

O hall do Hotel estava cheio de gente, que ficou muito espantada por me ver assim abraçado a um homem de barbas.

Passados uns tempos, recebi uma convocatória para um encontro de Rangers em Lamego e decidi meter-me no carro e fazer a viagem.

Quem estava a receber os camaradas de armas era, como não podia deixar de ser, o então major Bordalo.

Mais um abraço daqueles que faz tremer o chão, e a “obrigação” de imediatamente me fazer sócio da AOE – Associação de Operações Especiais que, com um padrinho como ele, não podia de forma nenhuma recusar.

Seguiram-se anos de vários encontros em Lamego, até que a vida com as suas voltas, não me permitiu, ou eu não me disponibilizei para isso, e deixámos de nos encontrar.

Repetidamente me prometi a mim mesmo que iria a Lamego dar-lhe um abraço novamente e repetidamente o comodismo me “impediu” de o fazer, o que hoje, neste dia, me dói verdadeiramente no coração e na vida.

Podia ficar horas a escrever, a falar sobre o cap Bordalo, de como ele era um homem de coração grande, como era um verdadeiro comandante que comandava pelo exemplo, como era um amigo sempre pronto a me apoiar, mas também a fazer ver os erros que eu ia cometendo, como me safou de levar uma punição pela minha forma de reagir a ordens sem sentido, enfim, de como me fez mais homem, mais militar, mais oficial, mais amigo.

Ontem escrevia sobre as lágrimas. Hoje as lágrimas são minhas, e sim, um homem chora e eu choro a saudade de um homem bom que tornou a minha vida melhor.

À sua família o meu sentido abraço.

A ti (agora trato-te por tu), meu capitão Bordalo, até já, quando nos encontramos no cantinho do céu que recolhe os Rangers no seu eterno descanso

Marinha Grande, 13 de Fevereiro de 2024

Joaquim Mexia Alves 

Publicado em: https://queeaverdade.blogspot.com/ 

e na página do Facebook do Joaquim Mexia Alves (14 de fevereiro de 2024, 15:08)

(Seleção / revisão e fixação de texto / itálicos: LG)

Nota de LG: O ex-Alf Mil Op Esp Joaquim Mexia Alves esteve na Guiné, entre dezembro de 1971 e e dezembro de 1973, tendo pertencido à CART 3492 (Xitole), ao Pel Caç Nat 52 (Mato Cão / Rio Udunduma) e à CCAÇ 15 (Mansoa). Nunca esteve sedeado em Bambadinca, mas sim no Rio Udunduma e no Mato Cão, destacamentos do Sector L1 (Bambadinca). Ia de vez em quando à sede do Batalhão (BART 3873, 1972/74), a que estava adida a CCAÇ 12, do Cap QEO Xavier Bordalo.

2. Comentário do editor LG:

Obrigado, António Duarte,  por mais uma vez estares a atento às notícias (boas e más) que interessam à Tabanca Grande e nos teres  feito chegar a "carta a Garcia". E obrigado ao Joaquim Mexia Alves por este comevedora e belíssima homagem a um camarada e amigo que acaba de deixar a Terra da Alegria.

O Bordalo Xavier tem 10 referências no nosso blogue. Nunca o conheci pessoalmente, com pena  minha: sou da primeira "fornada" da CCAÇ 12, então comandada pelo cap inf Carlos Alberto Machado de Brito, maio 69/mar 1971, mas sempre ouvi falar dele, como um grande comandante operacional; os camaradas  das "três gerações da CCAÇ 12", com quem tenho falado, sempre me transmitaram as melhores referêncas sobre ele, como militar e como homem.

Pertenceu à direção da Assoiação de Operações Especiais, com sede em Lamego. E tambéme esteve ligado aos corpos sociais dos Bombeiros Voluntários de Lamego.

Sabemos que o Cap QEO Humberto Trigo de Bordalo Xavier, natural de Lamego, começou por ser, no CTIG,  o comandante da CArt 3359 (Jumbembém, 1971/73), do BART 3844, "Bravos e Sempre Leais" (Farim, 1971/73. Foi depois substituído pelo Cap Mil Inf Francisco Luís Olay da Silva Dias.

Foi igualmente, neste período, o 3º comandante, por ordem cronológica, da CCAÇ 12 (1969/1974), mas em data que não podemos precisar (1971/72, ou 1972/73), subunidade da guarnição normal do CTIG que teve os seguintes comandantes, por ordem cronológica:

Cap Inf Carlos Alberto Machado de Brito (maio 69/março 1971);
Cap Inf Celestino Ferreira da Costa;
Cap QEO Humberto Trigo de Bordalo Xavier;
Cap Mil Inf José António de Campos Simão;
Cap Mil Inf Celestino Marques de Jesus.

A CCAÇ 12 (Contuboel, Bambadinca e Xime) foi extinta em 18/8/1974.

Mas também comandou a CCAÇ 14 (que esteve em Cuntima, 1969/74, foi extinta em 2/9/1974):

Cap Inf José Luís de Sousa Ferreira
Cap Inf José Augusto da Costa Abreu Dias
Cap QEO Humberto Trigo de Bordalo Xavier
Cap Inf José Clementino Pais
Cap Inf Mário José Fernandes Jorge Rodrigues
Cap Inf Vítor da Silva e Sousa
Alf Mil Inf Silvino Octávio Rosa Santos
Cap Art Vítor Manuel Barata

Fonte: CECA, 7.° Volume, Fichas das Unidades, Tomo II
Guiné, 1ª edição, Lisboa, 2002.

Recordaremos aqui, em próximo postel as referências elogiosas que lhe foram feitos em vida por camaradas  que o conheceram de mais perto (Victor Alves, António José Pereira da Costa, Joaquim Mexia Alves...). Para já deixamos aqui a expressão da nossa tristeza e os votos de condolências à família natural e à família "ranger".

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Nota do editor:

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24700: Facebook...ando (36): António Medina, um bravo nativo da ilha de Santo Antão, que foi fur mil na CART 527 (1963/65), trabalhou no BNU em Bissau (1967/74) e emigrou para os EUA, em 1980, fazendo hoje parte da grande diáspora lusófona - Parte I: da Ribeira Grande a Mafra e Tavira, e de Lamego a Bissau


Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > Foto tirada na varanda da nossa casa com o meu saudoso pai e minhas duas queridas irmãs, Maria Fernanda e Candida Julieta | 2 de Dezembro de 2013
 


Cabo Verde > São Vicente > Mindelo >   Já lá vão 54 anos que esta foto foi tirada à frente do Liceu Gil Eanes, 1959. Refere-se à turma do quinto ano B. Infelizmente alguns desses colegas já não pertencem a este mundo pelo que aqui mesmo presto a minha sincera homenagem e uma eterna saudade da boa camaradagem vivida. | 4 de Dezembro de 2013.


Cabo Verde > Ilha de Santo Antão > Ribeira Grande  > Um grupo de amigos. Nesta foto se vê dois irmãos meus, o Fausto e o CésarAlberto | 3 de Dezembro de 2012 .


Portugal > Lamego > 1963 (na altura em passou pelo Centro de Operações Especiais de Lamego) | 3 de Dezembro de 2012 


Guiné > Bissau > c. 1967/74 > Colegas do BNU, a Esplanada do Restaurante Solmar | 3 de Dezembro de 2012 


Guiné > Bissau > c< 1967/74 >  Com um velho amigo em Bissau | 3 de Dezembro de 2012


Guiné Bissau > Nhacra | 3 de Dezembro de 2012 

Fotos  (e legendas): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné.]


1. Seleção de fotos do nosso camarada Antonio Càndido da Silva. Medina, para a série "Facebook... ando" (*):

(i) ex-fur mil inf, CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65);

(ii)  natural de Santo Antão, Cabo Verde;

(iii)  estudou no Licei Gil Eanes, no Mondelo, São Vicente; 

(iv)  foi funcionário do Banco Nacional Ultramarino (BNU), Bissau, de 1967 a 1974; 

(v) emigrou para os EUA onde trabalhar, de 1989 a 2005, no East Cambridge Savings Banl  (como  Assist Vice President);


(vii) tem página no Facebook (António Medina)

(viii) faz anos hoje, 26 de setembro,
 

 2. O António Medina tem mais de 3 dezenas de referências no nosso blogue, tendo-se apresentado a à Tabanca Grande, em 15/2/2014,  nestes termos: 

(...) Sou de Infantaria com a especialidade de Atirador, tendo frequentado em 1961 a Escola Prática de Infantaria em Mafra e o Centro de Instrução de Sargentos Milicianos em Tavira.

Dei instrução no Regimento de Infantaria 10 em Aveiro, seguindo em 1962 para Cabo Verde, donde sou natural, para mais tarde (1963) ser mobilizado.

Regressei a Portugal para o Centro de Operações Especiais em Lamego.  para depois seguir para a Guiné, fazendo parte da Companhia de Intervenção - Artilharia,  CART 527.

O meu batismo de fogo foi em Fajonquito quando estávamos estacionados no Olossato.

Convém mencionar que depois de terminada a comissão,  regressei à Guine onde fui admitido como empregado bancário em Bissau. Dez anos depois, e com a Independência, segui para Lisboa como bancário.

Hoje sou imigrante nos USA desde 1980, residindo no Estado de Massachusetts.(...)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de setembro de 2023 >  Guiné 61/74 - P24655: Facebook...ando (35): A "morança" do pessoal do 19º Pel Art (obus 14), em Buba, onde se comia o melhor petisco da região, búzios de cebolada (António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 45613/72, Bula, 1973/74)
 
(**) Vd. poste de  26 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24699: Parabéns a você (2210): Amílcar Mendes, ex-1.º Cabo Comando da 38.ª CComandos (Guiné, 1972/74) e António Medina, ex-Fur Mil Art da CART 527 (Teixeira Pinto, 1963/65)

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24531: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (2): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 2)

Guiné > Olossato > Secretaria > Abril de 1970 > João Moreira


"A MINHA IDA À GUERRA"

2 - CIOE / RANGERS - ESPECIALIDADE (Parte 2)

João Moreira


Como não acabei a especialidade, e só estive lá durante 3 ou 4 semanas, não sou a pessoa mais qualificada para descrever a vida dum "Ranger" durante a especialidade.
A distância de 55 anos também não ajuda. Portanto, peço já desculpa e a vossa compreensão para qualquer descrição que não corresponda à realidade de então.

Continuando, direi que o dia "normal" começava pela alvorada.
Vestidos, passávamos pela cozinha/refeitório, onde os cozinheiros nos davam um ladrilho de marmelada, ou um bocado de queijo, ou meia tablete de chocolate para o estômago não estar vazio na hora seguinte, porque teríamos um crosse ou aplicação militar ministrada pelo diretor do curso, que era o capitão Fonseca.

Na parada exterior, formavam os 4 pelotões - 1 do COM e 3 do CSM, - com os respetivos comandantes de pelotão, que os apresentavam ao comandante de companhia, que era o capitão Rino. Este, por sua vez apresentava a companhia ao diretor do curso que estava num estrado à frente dos pelotões - Os 2 capitães tinham feito o curso de "rangers" nos Estados Unidos da América.

E começava a sessão. Não eram emitidas ordens. Como num jogo de sombras, todos repetiam o que diretor do curso fazia.
O comandante de companhia tirava a roupa do tronco e colocava-a no chão. E todos os outros militares repetiam.

Começava a sessão com os exercícios que o capitão Fonseca executava e que o resto do pessoal repetia, independentemente do chão em terra batida estar seco, molhado, com lama ou com neve ou com qualquer outra situação menos agradável.
Terminada a sessão íamos tomar banho, cortar a barba e vestir a farda que estava indicada.
Corretamente fardados, formávamos e seguíamos para o refeitório tomar o pequeno almoço.

Em mesas para "?" pessoas, e acolitados por soldados de casaco branco, tomávamos o pequeno almoço que era constituído por café ou cevada, leite, manteiga e pão à descrição. Também havia Ovomaltine, que já não me lembro se pertencia à dieta diária ou se só era servido de vez em quando, como os ovos estrelados.

Seguia-se o descanso dos guerreiros com 1 ou 2 horas de teoria, ou armamento e voltava-se ao exercício fisico.

O almoço e o jantar eram muito bem servidos, do género arroz, bife com ovo a cavalo, batatas fritas, pão, vinho e fruta. "Só faltava o café e o whisky"!!!

Numa ocasião o comandante da unidade disse-nos que a dotação para a alimentação era o dobro do normal, ou seja 22$50x2=45$00 e que ainda acrescentavam dotações suplementares do CIOE, porque para poderem fazer aquele esforço físico tinham que nos dar condições.

Depois do jantar podíamos sair até às 22(?) horas, sem qualquer documento e no regresso podíamos ir descansar ou tínhamos sessão de cinema, com filmes de guerra. Tenho ideia que estes filmes eram comentados pelos oficiais da unidade.

Numa ida à Carreira de Tiro, em Penude, saímos depois de almoço com cerca de 10 cunhetes para G3. (Penso que eram mais de 10 cunhetes, mas não tenho a certeza).
Como cada cunhete tinha 1.000 balas, levamos 10.000 balas, que divididas por 33 instruendos ficava a média de 333 por instruendo.
Após fazermos os exercícios de tiro previstos, sobraram alguns cunhetes e o nosso comandante de pelotão propôs gastar as balas que sobravam para não termos que voltar a Lamego carregados.

Então as balas que sobravam foram gastas por atiradores "voluntários".
Com muita organização e segurança, ia 1 militar de cada vez fazer tiro no estilo que quisesse - em pé, sentado, de joelhos - e também escolhia a cadência: tiro a tiro ou rajada.
Para garantir a segurança o "atirador" só ia para a pista à ordem do comandante de pelotão.

Fiz várias centenas de tiros nas mais diversas posições e nas 2 cadências. No final até já conseguia fazer tiro a tiro, com a patilha em rajada. Resumindo, numa sessão de tiro em Lamego, fiz mais tiros que durante toda a recruta nas Caldas da Rainha.

Também tinha o lado negativo para nós.
Ao fim de 3 ou 4 semanas, quando fui para o Hospital Militar, ninguém tinha saído do quartel.
Não tinha havido fim de semana para ninguém.

"ERA JÁ A PREPARAÇÃO MENTAL PARA UMA IDA PARA O ULTRAMAR".


(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 27 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24507: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (1): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 1)

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24507: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (1): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 1)

João Moreira, instruendo do 1.º pelotão da 1.ª Companhia, no RI 5.
O Comandante de Pelotão era o Ten Sidónio Ribeiro da Silva e o Comandante de Companhia era o Ten Carvalho.
Foram os dois mobilizados para a Guiné


"A MINHA IDA À GUERRA"

1 - CIOE / RANGERS - ESPECIALIDADE (Parte 1)

João Moreira[1]


Em Abril, após a recruta no RI 5, fui para o CIOE, em Lamego, para tirar a especialidade de operações especiais, mais conhecida por "rangers".

Para quem não passou pelo CIOE não terá a noção da dureza da especialidade. Por isso vou contar algumas situações que "só acontecem lá".
RI 5 - Caldas da Rainha - Da esquerda para a nossa direita: João Moreira, Castro, Seco e Jorge. Os outros três não me lembro o nome deles mas também eram do 1.º Pelotão.

Aproveitávamos o sol, para estudar para os testes e para engraxar as botas, para não haver castigos. Como podem ver,  tive um par de botas novas e um par de botas antigas, que apertavam com fivelas. Os 3 primeiros (eu, Castro e Seco) fomos para Lamego. Eu fui para o hospital militar e perdi a especialidade. Eles completaram a especialidade e depois foram para os "comandos". Seguidamente foram mobilizados para Moçambique, donde regressaram sem problemas.

Quando chegámos a Lamego fomos instalados numa camarata que ficava ao cimo de uma escadaria com cerca de 30 a 40 degraus, que tinha de ser subida e/ou descida sempre que tínhamos que lá ir fazer qualquer coisa. 

 Para além do fardamento que nos estava distribuído, desde que assentamos praça, deram-nos farda camuflada, farda azul, do género da usada pelos especialistas das viaturas de combate usadas em cavalaria.

Como isso fosse pouco, ofereceram-nos 1 G3, 1 Mauser e 1 canhangulo, mais botas de lona como as usadas na Guiné e botas que apertavam com fivelas.

Para nossa distração e sanidade mental a caserna estava equipada com aparelhagem sonora, e para nos "divertir" tocava 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Para facilitar a memorização da letra dessa música, era sempre a mesma que tocava (desde o primeiro ao último dia da especialidade).

Como não queriam aborrecer-nos, de vez em quando paravam a música e proclamavam os "mandamentos do ranger" que eram 10, tal como na religião Católica Apostólica Romana.

Para não cairmos na "monotonia", de vez em quando - no meio da música privada e durante a noite - surgia uma voz que dizia qualquer coisa deste género:

"RANGER TENS 3 MINUTOS PARA FORMAR NA PARADA EXTERIOR COM A FARDA X, A ARMA Y E AS BOTAS Z", etc.

E os rangers, que estavam cansados dos "trabalhos diários", tinham que dormir com um ouvido alerta, para poderem levantar-se e cumprir as ordens enviadas por altifalante.

Depois de nos prepararmos, tínhamos que fechar os armários com os aloquetes, descer a tal escadaria de 30 ou 40 degraus, atravessar a parada exterior em passo de corrida - não se podia andar a passo na parada - e apresentar-se ao comandante do pelotão que estava à nossa espera.
De acordo com o atraso éramos "premiados" com 30, 40 ou mais "completas" - ainda se lembram quais os exercícios que as compunham e quantas eram de cada exercício?

Como os instruendos se queixavam que era pouco tempo, os comandantes diziam que era o tempo mais que suficiente, porque ainda dava para fumar um cigarro.

Deu-nos algumas dicas de como proceder para chegar à parada dentro do tempo previsto e ainda poderem fumar o tal cigarro:

  • Dormir com os armários abertos. O receio do roubo foi esconjurado com a pena que estava destinada a quem tentasse roubar. E realmente nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido roubado.
  • Nos 3 ganchos do armário colocar uma das 3 fardas, exceto a nº 2.
  • Nos cantos dos armários colocar 1 das 3 armas.
  •  Calçar as meias.
  • Vestir as calças e prendê-las com o cinto igual ao que usávamos na Guiné para enfiar os carregadores.
  • Enfiar o quico.
  • Pegar na arma e na camisa.

Durante o trajeto até ao local da formatura vestia e apertava a camisa e as calças. Chegados ao local da formatura,  acendia o cigarro, apertava as botas e esperava que o tempo se esgotasse enquanto acabava de fumar.

Ao fim de 3 ou 4 semanas, fui ao médico, porque já não suportava as dores na coluna e perdia a acção muscular.

Eu queria dizer ao médico o nome da minha anomalia mas não me ocorria o nome, porque naquele tempo dizia-se em latim (spina bífida). O médico do CIOE era ortopedista, e pelos sintomas disse que era uma espinha bífida congénita, e aí já pude confirmar o nome. Pediu-me a radiografia e o relatório, porque com aquele problema eu não tinha condições para ser militar, muito menos "ranger".

Quando viu a radiografia e o relatório, disse que me ia mandar para o hospital militar regional, do Porto, porque ele não podia fazer nada.

Chegado ao Porto, e ao hospital militar na Boavista,  fizeram-me os exames e confirmaram a minha deficiência, mas, em vez de mandarem para o hospital principal em Lisboa,  deram-me alta. Regressei a Lamego, e mandaram-me para casa porque tinha perdido a especialidade por faltas

Em Julho voltei ao CIOE, em Lamego. Fui logo falar com o médico, para tentar resolver a situação sem ter que perder a especialidade.

Em resultado do que se tinha passado no hospital, no Porto, o médico optou por pedir a minha reclassificação por não ter condições físicas para a especialidade.

Mas, como eu não tinha "cunha",  atribuíram-me a especialidade de atirador de cavalaria e lá segui eu para a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde se repetiu o meu martírio.


(continua)
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 20 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24490: Tabanca Grande (550): João de Jesus Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que se vai sentar no lugar 878 do nosso poilão