1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2025:Queridos amigos,
É uma raridade, uma peça de teatro, a que se segue uma carta-concerto, o foco são os aerogramas, o pretexto é um filho, no nosso tempo, interrogar por carta o pai, em 1972, saber que homem era enquanto combatente. A mensagem é este alerta de que ainda há muito para saber destas toneladas de escrita, houve pactos em casais para destruir a correspondência desse tempo, seguramente que terão assumido que foram dores a mais, que se cometeram excessos, que o que ali se disse não devia ser lido por outros olhos; há quem procure ganhar uns cobres e venda aerogramas por meios eletrónicos ou em negócios de velharias; há aerogramas de grande recorte literário, como os de António Lobo Antunes.
Mas o que continua por esclarecer era o sentir destes homens naquele tempo e naquele lugar, para o investigador seria um termo de referência, de valor discutível, é certo, houve quem escrevesse fantasias, e interrogo-me em termos de estudo como será possível alguma vez fazer a medição dos silêncios, penso sobretudo naqueles nossos camaradas que viveram os pavores de Guileje, Gandembel, Sangonhá, Bedanda, Madina do Boé ou Béli, o que silenciaram para não despedaçar mais a vida dos entes queridos - esses silêncios só podem ser esclarecidos com o rigor dos factos históricos. Não tenhamos dúvidas, ficaram silêncios inquebrantáveis, que mudaram tantas e tantas vidas.
Um abraço do
Mário
Querido pai, escrevo-te do meu presente para o teu passado, a tentar chegar até ti
Mário Beja Santos
O que seria a história da guerra colonial se tivesse sido possível ter acesso às toneladas de correspondência trocadas nas duas direções? É mera conjetura, sei muito bem, grande parte destes documentos foram para o lixo, por decisão dos dois fez-se fogueira, há herdeiros que os põem à venda.
Um abraço do
Mário
Querido pai, escrevo-te do meu presente para o teu passado, a tentar chegar até ti
Mário Beja Santos
O que seria a história da guerra colonial se tivesse sido possível ter acesso às toneladas de correspondência trocadas nas duas direções? É mera conjetura, sei muito bem, grande parte destes documentos foram para o lixo, por decisão dos dois fez-se fogueira, há herdeiros que os põem à venda.
Foi assim que o pintor Manuel Botelho comprou uma resma de aerogramas entre dois namorados, ele no Bachile, cabo das transmissões, ela costureira, não da Sé mas no alto de Alfama, temos ali um percurso que ele aproveitou para uma performance que deu para entender comportamentos havidos a dois e por dois anos: ele deslumbrado, à chegada, com todo aquele fascínio de verdura, braços de ria, a fauna, as queixas da comida, mas sempre o desassossego se tu me amas ou não, escreve-me, há aqui camaradas meus que andam à procura de madrinhas de guerra, eu só te quero a ti; ela responde, tu sais que te fartas, se isso é uma guerra é feita de turismo, eu estou para aqui a trabalhar dia e noite, os fins de semana são para preparar o enxoval; da euforia inicial e da troca de arrufos, os meses passam, e há aerogramas que parecem travessias no deserto, não desampares, isto nunca mais acaba, há noites silenciosas que dão cabo de mim, como é que eu vou poder esquecer este sobressalto em que vivo… E dos muitos aerogramas trocados nos primeiros meses chegamos a um fiozinho de correspondência, há quase uma agonia na expetativa do regresso, experimentada pelos dois. Ora isto é uma simples abordagem da riqueza dos conteúdos, uma das dimensões desse imenso ecrã de quem combatia e de quem deste lado dava apoio e lhe pedia fidelidade.
As autoridades alertavam para a necessidade de muita segurança: nada de dizer no endereço mais do que o SPM; e do lado da guerra nada transmitir que possa cair nas mãos do inimigo e para uso letal.
Escusado é dizer que o teatro é o parente mais pobre da literatura da guerra, avulta a literatura memorial, o romance, a novela e o conto, sobretudo a poesia popular, a diarística, a investigação. Alertado por um dos meus benfeitores, o Dr. João Horta, da Biblioteca da Liga dos Combatentes, “tenho aqui uma peça de teatro que mete a Guiné”, pus-me ao caminho e lá fui àquele ponto do Bairro Alto que tem os passeios completamente escavacados e em frente as obras intermináveis no Conservatório Nacional.
As autoridades alertavam para a necessidade de muita segurança: nada de dizer no endereço mais do que o SPM; e do lado da guerra nada transmitir que possa cair nas mãos do inimigo e para uso letal.
Escusado é dizer que o teatro é o parente mais pobre da literatura da guerra, avulta a literatura memorial, o romance, a novela e o conto, sobretudo a poesia popular, a diarística, a investigação. Alertado por um dos meus benfeitores, o Dr. João Horta, da Biblioteca da Liga dos Combatentes, “tenho aqui uma peça de teatro que mete a Guiné”, pus-me ao caminho e lá fui àquele ponto do Bairro Alto que tem os passeios completamente escavacados e em frente as obras intermináveis no Conservatório Nacional.
O livro intitula-se “Cartas de Guerra (61-74) Aerograma Liberdade”, por Ricardo Correia, edições Húmus, 2024, inclui um glossário preparado por Rui Bebiano, com termos alusivos ao conteúdo da peça e de uma carta concerto intitulada “Aurora Liberdade” que tem ilustrações de Cátia Vidinhas.
No tempo presente (2023) um filho escreve uma carta ao pai em 1972, pede-lhe que ele lhe conte o seu viver, que pessoa era o seu pai, quando agora o abraça não sabe exatamente o que escondem os olhos do antigo combatente. “Procuro-te e sei que ainda não te encontrei. Tal como Telémaco procurou o seu Pai, Ulisses.”
No tempo presente (2023) um filho escreve uma carta ao pai em 1972, pede-lhe que ele lhe conte o seu viver, que pessoa era o seu pai, quando agora o abraça não sabe exatamente o que escondem os olhos do antigo combatente. “Procuro-te e sei que ainda não te encontrei. Tal como Telémaco procurou o seu Pai, Ulisses.”
E como nessas peças em que os atores trocam de papel, que ganham uma identidade que acaba por ser transferida para outrem, como nas peças de Luigi Pirandello, iremos percorrer num couro dos soldados portugueses a cronologia dos acontecimentos dessa guerra, entra em cena o Movimento Nacional Feminino, ouve-se Cecília Supico Pinto afirmando que é “aberto à participação de todas as mulheres portuguesas exceto as comunistas e as comodistas”.
Graças a este Movimento e ao apoio da TAP nasceu o aerograma, atores e atrizes conversam como militares e família, a conversa também transita para o presente, há cartas a um país que silenciou a guerra colonial, um militar está na Guiné, o autor entra em cena, pede colaboração à assistência, diz que está a fazer um espetáculo sobre a correspondência na guerra colonial portuguesa, diz que o pai esteve mobilizado e combateu na Guiné. Vai ser entrepelado, dão-se sugestões.
A peça muda agora de rumo, estamos no presente, conversam atores com o ex-combatente, mas há também testemunhos, não se esconde que existe o stress pós-traumático, uma atriz em cena, de nome Penélope tem como destinatário Telémaco.
A peça muda agora de rumo, estamos no presente, conversam atores com o ex-combatente, mas há também testemunhos, não se esconde que existe o stress pós-traumático, uma atriz em cena, de nome Penélope tem como destinatário Telémaco.
“As cartas chegavam diariamente, mas era como se falássemos em diferido. Ele respondia-me a coisas passadas. Vivíamos em tempos diferentes.”
É uma mãe a falar ao seu filho dos amores que teve pelo seu pai, queimaram todo o correio trocado “para avançarmos com a nossa vida”.
E faz-lhe um pedido:
“Cabe-te a ti inventar as palavras que queimámos. Talvez assim, um dia, possas contar esta história aos teus filhos. Já não me cabem mais palavras nesta carta. Um beijo grande desta mãe que te ama.”
Finda a peça teatral, segue-se a carta concerto, de novo o aerograma como fio condutor, há uma triangulação na correspondência, o pai soldado, a mãe e a filha, Catarina da Paz, há saudades e há notícias, ficamos a saber que o soldado compreende a revolta de quem o combate, a mãe não esconde as saudades, e vem os festejos do 25 de Abril, Catarina da Paz despede-se do espectador dizendo que este em cena a história dos seus pais.
Em jeito de posfácio, Sónia Ferreira faz comentário a estes conteúdos. Quanto à natureza dos tais aerogramas que chegavam diariamente, mas era como se eles falassem em diferido, dirá:~
Finda a peça teatral, segue-se a carta concerto, de novo o aerograma como fio condutor, há uma triangulação na correspondência, o pai soldado, a mãe e a filha, Catarina da Paz, há saudades e há notícias, ficamos a saber que o soldado compreende a revolta de quem o combate, a mãe não esconde as saudades, e vem os festejos do 25 de Abril, Catarina da Paz despede-se do espectador dizendo que este em cena a história dos seus pais.
Em jeito de posfácio, Sónia Ferreira faz comentário a estes conteúdos. Quanto à natureza dos tais aerogramas que chegavam diariamente, mas era como se eles falassem em diferido, dirá:~
“O peso de um tempo longo e da não-simultaneidade é-nos hoje estranho. A ideia de que a comunicação se dava em diferido, que não acompanhava o ritmo constante da vida, que as respostas que recebo hoje são sobre o ontem, provocará estranheza no público mais jovem.”
E deixa-nos este comentário final:
“A sociedade pós-colonial que hoje somos, fruto do desmoronar de um império que ainda hoje persiste e se afirma em ideologias racistas (como bem identifica Ricardo Correia referindo Alcindo Monteiro e Bruno Candé), em património colonial edificado e em lampejos anacrónicos de grandeza, tem se der pensada e construída em relação direta com esta memória difícil que nos atravessa, mesmo que alguns a queiram convenientemente rescrita.”
Nota do editor
Último post da série de 12 de dezembro de 2025 > >Guiné 61/74 - P27523: Notas de leitura (1873): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (4) (Mário Beja Santos)
Ricardo Correia
Advertências das autoridades para a necessidade de segurança do que se escrevia nos aerogramas
Aerogramas de José Rubira: Guiné-Bissau / Montemor-o-Novo 1971-1973, retirado do site Foto-Síntese
“Aerograma Liberdade”, de Catarina Moura
_____________Nota do editor
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