(s.d.), "Relatório da viagem a Hamedalaye e Sansalé", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41415 (2025-12-19)
______________
PAIGC > Documentos > Relatório da viagem a Amedalai e Sansalé (**)
Tr. do francês, revisão / fixação de texto, parênteses retos, links, negritos, notas: L.G.
Chegados a Hamedalaye [Amedalai, na Guiné-Conacri], recebemos instruções do camarada Secu Na Bayo para nos encontramos em Sansalé e contactar as organizações militares e administrativas [do Partido], afim de nos conduzirem até ao pé da fronteira.
Em Sansalé, depois das formalidades, obtivemos instruções respeitantes à nossa estadia.
Em Tanéné fomos recebidos pelo camarada Tomás Queta, chefe da aldeia. Por seu intermédio, conseguimos falar com o camarada do Partido, Daudá Camará, de Cacoca.
Depois de uma longa sessão informativa sobre a vida do Partido no chão dos nalús, e mais particularmente sobre a sua organização do interior da região, o camarada Daudá Camará mereceu a nossa confiança. E foi assim que nós o encarregámos de uma missão junto do camarada Pedro Duarte, em Cacine.
No regresso, recebemos as seguintes informações:
(i) É difícil contactar o Duarte, é vigiado dia e noite por um alferes Indiano, que trabalha no mesma repartição com o seu adjunto, um cabo-verdiano de nome Carvalho, que é um grande inimigo da nossa causa, juntamente com o régulo de Cacine, de seu nome Tomás Camará, igualmente nefasto.
(ii) A sua casa [do Pedro Duarte ? do alferes Indiano, que seria chefe de posto ? ],é guardada dia e noite por soldados africanos; já não tem jipe de serviço, desloca-se agora num jipe do exército. A sua mulher, que o denunciou, regressou a 7/12/1961;
(iii) Todos as "regiões" nalus [no original, "régions", talvez tabancas do chão nalu] foram convocadas a Cacine, para receber as seguintes informações:
- supressão do sistema de registo de denominação indígena;
- deixa de haver distinção entre brancos e negros;
- tanto os grandes como os pequenos devem passar a possuir um bilhete de identidade de cidadão português;
- este bilhete de identidade deve ser pago, mas ainda não foi fixado o respectivo preço;
- supressão do imposto indígena [imposto de palhota];
- o preço dos produtos agrícolas passam a ser fixados pelos proprietários (sic):
- as regiões [tabancas ? zonas ? ]convocadas foram Catió, Cacine, Buba, Fulacunda, Gadamael, Bedanda, Cacoca, Quitafine, Sanconhá, Camissoro, etc.,
(iv) Que é preciso ter muito atenção a Álvaro Queta, de Sanconhá, Munini Camará (Lumba Jodo), de Cacoca, que são elementos muito perigosos da PIDE. Circulam por todas as regiões (do sul).
(v) Os elementos de confiança do Partido são:
- em Cacoca, Daudá Camará, Abdulai Conté, Mbadi Bonhequi;
- em Cacine, Laminé Camará, o relojoeiro, e Cassamá, motorista;
- em Missidé (Quebo), Aliu Embaló, e o grande marabu Cherno Rachid. (**)
Informações de carácter militar:
(i) A entrada da Cacoca é guardada por elementos da polícia administrativa [cipaios] dos quais 8 são africanos e um europeu; entre os africanos, figuram: Lopes (Malagueta), Lassana Turé, Alséni Jaló, Samba Sanhá e José, que são muito violentos.
(ii) Em Cacine encontram-se estacionados 140 portugueses, com o seguinte equipamento: 2 jipes, 2 anti-aéreas, 1 grande canhão (sic), 2 cargas de napalm; a pista de aviação é alcatroada, pode receber aviões modernos e é guardada, dia e noite, por soldados europeus;
(iii) Gadamael: 50 soldados equipados com 2 canhões, 1 jipe e 1 antiaérea.
(iv) Catió: aqui encontra-se a sede da PIDE. Os soldados são em pequeno número.
(v) Missidé (Quebo): 80 soldados europeus, equipados com 1 camião, 1 jipe, 1 antiaérea, 1 canhão (*).
_______
Notas do editor L.G.:
(*) Publicado originalmente em 28 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3366: PAIGC - Docs (2): O grande marabu Cherno Rachide, de Aldeia Formosa: um agente duplo ? (Luís Graça)
(**) O documento, dactilografado, é redigido em francês, com erros ortográficos e de dactilografia. Julgo que às vezes o autor do relatório ( que não sabemos quem é, seria o Joseph Turpin ?) usa o sistema francês de registo de nomes (Nom + prénom).
Nalguns casos, alterei, sendo o apelido (nom) antecido do nome próprio (prénom): por ex., Dauda Camará (no relatório, Camara Daouda)...
No que diz respeito, ao armamento identificado nos nossos quartéis, é bem possível que o autor se queira referir ao obus quando fala de canhão grande, e possivelmente a canhão sem recuo quando fala simplesmente de canhão... Também é possível que tenha confundido a metralhadora pesada e antiaérea... (Em 1962 não existia artiharia nem antiaéreas no Sul.)
Se o relatório for de 1962 (como tudo indica), as informações sobre o dispositivo das NT são completamente falsas ou exageradas. Cacoca e Gadamael só são ocupadas pelas NT em meados de 1964... Cacine não teria efetivos a nível de companhia em 1962...
Por outro lado, em 1964 já o PAIGC estava muito ativo no terreno, com cortes de árvores, abatizes, emboscadas, e colocação o das primeiras minas A/C.
Pelo Decreto-lei no. 43893, de 6 de setembro de 1961, acabara de ser abolido,, "de jure", o estatuto do indígena... Daí as instruções dadas aos nalus pelos chefes de posto sobre as implicações do novo diploma legal.
Não sabemos quem eram as pessoas citadas no relatório: o alferes indiano, o Pedro Duarte, o Dauda Camará e outros... O Cherno Rachide, do Quebo, esse, era declarado explicitamente como "elemento de confiança do Partido" (sic).
(***) O marabu ou imã Cherno Rachide era o dignatário religioso que vivia em Aldeia Formosa, e que eu conheci, em Bambadinca. No meu tempo (em 10 de janeiro de 1970) era tido como um dos poderosos aliados dos portugueses, ouvido amiudadas vezes pelo Spínola (e que punha à sua disposição helicóptero para viajar dentro da Guiné)...
Havia, por outro lado, a lenda de que Aldeia Formosa (Quebo) nunca era atacada pelo PAIGC por deferência, respeito ou temor da figura do Cherno Rachide. Segundo outra versão, mais popular entre os soldados fulas da CCAÇ 12, isso seria devido ao poder (mágico-religioso) do Cherno Rachide, que com os meus amuletos fazia gorar todas as tentativas de ataque dos turras...
Nunca estive em Quebo nessa altura (passei por lá em 2008), não posso confirmar ou infirmar nenhuma das versões (ou lendas).
No entanto, no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum, identifiquei comunicados do PAIGC local com registos de ataques a Quebo (Aldeia Formosa) em 1969 (datas dos documentos: 27 de fevereiro, 7 e 8 de março, 1 de abril) e 1971 (12 e 21 de julho, 2 e 13 de agosto)...
Provavelmente o PAIGC não via com bons olhos a aproximação, a partir de 1969, do Cherno Rachilde ao general Spínola... Terá acabado o estatuto de "neutralidade colaborante" do Cherno Rachide ?
Sobre o Cherno Rachid, vd. postes de:
2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)
4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1815: Álbum das Glórias (14): o 4º Pelotão da CCAÇ 14 em Aldeia Formosa e em Cuntima (António Bartolomeu)
18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)
15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça).
Sobre o Islão e a Guiné Portuguesa, vd. também o texto de Francisco Garcia:FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA > Os movimentos independentistas, o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

Sem comentários:
Enviar um comentário