1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2023:
Queridos amigos,
Lars Rudebeck foi uma presença constante na Guiné depois de 1976, a ele se devem alguns dos melhores ensaios da bibliografia nórdica sobre a Guiné-Bissau. O seu trabalho de campo assentava em Kandjadja Mandinga, a cerca de 30 quilómetros de Farim e a 10 do Olossato. Ele começa por analisar se houve uma alteração substancial depois do golpe de 14 de novembro de 1980 na política económica, concluindo que o golpe em si não trouxe grandes mudanças, eram as mesmas pessoas nos postos principais da hierarquia do Estado; o agravamento do défice, contudo, em 1982, obrigou a Guiné-Bissau a pedir ajuda ao FMI e ao Banco Mundial, o COMECON, liderado pelos soviéticos, já não podia abonar mais ajuda. E resume a essência do que foi o plano de estabilização e do ajustamento estrutural, projetando-o nessa aldeia de Kandjadja, onde ele procede a trabalho de campo, deixamos para o próximo e último texto as implicações políticas e socioculturais, o PAIGC vai desvanecer-se, a sua presença é cada vez mais diminuta nas profundezas do mato, cada povoação trata de si, a inflação foi impiedosa, como o desemprego e o gradual desmoronamento da saúde e da educação. Que as novas gerações de guineenses reflitam como se passa do heroísmo e da extinção do colonialismo para uma deriva que em determinado momento pretende encontrar recursos na exploração de uma rota da droga.
Um abraço do
Mário
Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista:
Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (2)
Mário Beja Santos
Entro numa loja de comércio justo ligada ao CIDAC, à procura de uma publicação sobre Cabo Verde e encontro a tradução portuguesa de um documento de que há muito ando no encalço: o que representou o ajustamento estrutural em três países africanos de língua portuguesa que foram insurgentes (esclarecedor documento de Kenneth Hermele) e a profunda análise que Lars Rudebeck faz do que significou o ajustamento estrutural numa aldeia a cerca de 100 quilómetros de Bissau, foi matéria de um seminário que decorreu na Universidade de Uppsala em maio de 1989, organizado por AKUT.
Do admirável ensaio de Kenneth Hermele falou-se no número anterior. Dá-se agora a palavra a Lars Rudebeck e ao seu habitual rigor e qualidade ensaística com o título “Ajustamento Estrutural numa Aldeia Oeste Africana”, no caso concreto Kandjadja–Mandinga, a pouco mais de 100 quilómetros de Bissau, a caminho de Farim. O sociólogo sueco começa por abordar o fim da primeira fase da independência da Guiné-Bissau observando que o golpe de 14 de novembro de 1980 em si não significou grandes mudanças, visto que as mesmas pessoas continuaram a ocupar os postos principais na hierarquia do Estado e também as condições estruturais objetivas de desenvolvimento continuaram a ser as mesmas. Continuou a estagnação política, os desequilíbrios económicos agonizaram-se, a chamada “crise da dívida” foi alvo de programas de estabilização e ajustamento impostos e apoiados pelo FMI e pelo Banco Mundial. Nos final de 1982 adotou-se o Programas de Estabilização Económica, a implementar nos dois anos subsequentes e em 1987 vigorou o chamado Programas de Ajustamento Estrutural, planeado para continuar durante a década de 1990.
O primeiro programa implicou uma reorientação da estratégia oficial do desenvolvimento, que tinha tido até então inspiração socialista, dava ênfase ao planeamento e controlo estatais através de um setor público forte que exigia um excedente agrícola que nunca se verificou e que se supunha que iria financiar as indústrias de substituição de importações. É facto que houve aumentos de produção agrícola, mas a Guiné-Bissau continuava bastante abaixo da autossuficiência, dependente de altíssimas importações de arroz e da ajuda alimentar das Nações Unidas. E assim nasceu um programa de ajustamento estrutural drástico que tinha como objetivo reduzir o défice da balança de transações correntes, o défice do setor público e estimular setores produtivos da economia. Os meios adotados eram duríssimos: desvalorizações, manipulação dos preços mínimos ao produtor agrícola, aumento do preço dos serviços de saúde pública, liberalização e privatização do comércio externo, controlo firme dos salários dos funcionários públicos.
A mudança mais visível na Guiné nos finais da década de 1980, foi dada pela presença de vários bens de consumo nas lojas e mercados. Só uma parte muito pequena dos novos créditos obtidos se destinou à produção, o número de donos de propriedades privadas de tamanho médio aumentou cerca de dez vezes, o mesmo quer dizer que uma certa oligarquia do partido do PAIGC obteve créditos de modo a poder ver o seu magro salário aumentado com receitas provenientes da produção privada; caiu a produção industrial, agravaram-se as condições de vida, foi inegável o preço social pago especialmente pelos assalariados urbanos que viram o seu poder de compra drasticamente reduzido, pelos funcionários públicos despedidos, pelas crianças sem possibilidade de obter material escolar e também não podendo ir à escola. Pressupunha-se que as populações rurais pudessem tirar vantagem destes programas de estabilização, mas observa o autor que os aumentos dos preços ao produtor não conseguiram manter-se a par com a inflação. E perante este quadro, Rudebeck que desde 1976 seguia o desenvolvimento socioeconómico e político da aldeia de Kandjadja, voltou ao estudo, fez trabalho de campo: como é que a população estava a reagir, como se podia avaliar o bem-estar rural no quadro do desenvolvimento nacional?
As novas políticas instituídas até 1986 levaram ao encerramento do Armazém do Povo, passo para a privatização da economia. E porquê estudar Kandjadja? Justifica: “Não existe nenhuma aldeia, como tal, que seja estatisticamente representativa de alguma coisa para além de si própria. Kandjadja partilha muitas características com centenas e milhares de outras aldeias guineenses e africanas, subsistindo nas franjas do mercado mundial, apesar de nele integrada, sob a jurisdição de um Estado que a população considera ter decrescente legitimidade.”
Dá-nos a situação da aldeia, não muito longe do rio Farim, na terminologia do PAIGC era uma subsecção da secção administrativa de Olossato. A população corta e queima a floresta para poder cultivar os seus produtos na terra vermelha. A distância a pé até à estrada que liga Farim com Bissau é de cerca de 20 quilómetros, foi reconstruída em 1988/89 através de um programa gerido pelo Governo e financiado pela Suécia, a etnia predominante é a mandinga. Vejamos agora alguns elementos da sua vida económica durante o ajustamento estrutural.
A população de Kandjadja vive da produção agrícola e da criação de gado, a economia do amendoim era relevante. Depois da independência, o nível técnico dos meios de produção aumentou pouco, apareceram arados, algum fornecimento de semente por parte do Governo. Manteve-se a subsistência nas culturas para alimentação (arroz, milho preto, mandioca) e vegetais (feijão, cebola, pimento, etc.) para consumo local, mas a um nível de subsistência baixo. Vender em Bissau era extremamente complicado, para chegar à capital andavam-se 12 quilómetros a pé e depois apanhava-se uma kandonga. O único aumento significativo foi no gado – as vacas representam riqueza. Rudebeck procura fazer a contabilidade aos preços pagos pelo produtor, houve deterioração nos termos de troca, a inflação devorava tudo. E o Armazém do Povo? Fechou na sequência das linhas políticas de privatização. Após o encerramento, a loja mais próxima era em Olossato, a cerca de 10 quilómetros a sul de Kandjadja. Aumentou o comércio não oficial com o Senegal, muitos produtos chegavam à povoação através dos djilas.
Houve um comerciante que trespassou o Armazém do Povo, era um antigo empregado. “Durante o período em que a loja era privada, ela estava muito melhor abastecida do que nos últimos anos da gestão pública e em 1988 não se podia ouvir na aldeia quaisquer críticas sobre a privatização.” O novo dono passou a comprar o amendoim, os privados compram o amendoim para em seguida o vender à empresa estatal de exportação. Esta mudança de relações não teve resultado em nenhum aumento de produção. Iremos agora abordar as implicações políticas e socioculturais do ajustamento estrutural em Kandjadja.
(continua)
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Notas do editor:
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