Capa do livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos" (2021)... O autor, natural de Medas, Gondomar, foi autarca durante 28 anos, é membro da nossa Tabanca Grande, e ex-fur mil enf da CART 6250/72, "Unidos de Mampatá", Mampatá, 1972/74.
Estrutura do livro: 1º passo: I. Medas, da minha infância até à Mealhada (pp. 13/156); 2º passo: II. O piano da Mealhada (pp. 157/173); 3º passo; III. Contra os canhões, marchar, marchar... (pp. 175/204); 4º passo: IV. A revolução e o reencontro (pp. 205/214)
1. O livro vai ser apresentado no próximo sábado, dia 11 de setembro, às 11h, na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar. (*)
Na mesa estarão presentes, além do autor, António Carvalho, o nosso editor Luís Graça, o José Manuel Lopes (amigo e camarada do autor, também ele um dos "Unidos de Mampatá", conhecido na nossa Tabanca Grande como o "poeta Josema" e o "Zé Manel da Régua", vitivinicultor...), e ainda um das filhas do autor, a Ana Carvalho, doutoranda em ciências da educação pela Universidade do Povo.
A convite expresso do autor, o livro será apresentado pelo nosso editor Luís Graça (, de passagem pelo Norte, a matar saudades da Tabanca de Candoz, na próxima semana).
Daremos mais notícias deste evento em próximo poste da série "Agenda Cultural". Quem se quiser inscrever para o almoço (20 morteiradas), que se seguirá a este evento, terá que fazer uma reserva, contactando o Gil Moutinho, régulo da Tabanca dos Melros e gestor do Restaurante Choupal dos Melros ( email: choupal@quintadoschoupos.com : telefone: 22 489 0622).
2. Como "aperitivo", aqui fica um sugestão de leitura, feita pelo editor Luís Graça: as últimas três páginas do livro dizem muito sobre o autor, que, com este notável posfácio, se interpela (e nos interpela) sobre as suas / nossas origens, os seus/ nossos antepassados : afinal, quem sou eu ? afinal, quem somos nós ?...
Quem escreve este posfácio, só pode ter escrito um grande livro...
POSFÁCIO (pp. 215/217)
Se, em 1736, o Padre do Paço não se tivesse instalado, nesta minha freguesia de Medas, no lugar de Vila Cova, eu seria um outro qualquer, mas não esta mesma pessoa. Sucede que este clérigo, quando chegou do Brasil, trouxe com ele três jovens irmãos, de pele muito escura.
Monsenhor Frei Luís Pinto, o Padre do Paço, nasceu nas Taipas, município de Penafiel, em 1699, tendo ingressado, na adolescência, num convento onde recebeu, após a conclusão do curso, a ordem sacerdotal, momento em que terá feito acrescer ao seu nome o sobrenome religioso de S. Jerónimo. Mais tarde frequentou a Universidade de Coimbra onde se bacharelou em Cânones.
Atraído pelas missões apostólicas, embarcou para o Brasil onde se distinguiu, se não como missionário no terreno, pelo menos, enquanto burocrata, nalgum mais conveniente paço episcopal, o que lhe permitiu subir ao patamar de monsenhor e adquirir alguma fortuna.
Quando regressou a Portugal, provavelmente na década de quarenta do Séc. XVIII, não trazia só bens materiais, com ele vinham o António, a Ana e a Maria Trindade, escravizados no Brasil, livres agora por estarem em Portugal continental, onde beneficiaram da lei Pombalina de 1763 .
O frade não se quis radicar na sua freguesia de nascimento , em Penafiel, antes optou por comprar a Quinta do Paço, em Medas, cujos caseiros eram da sua própria família. Pois então aqui se instalou, depois de empreender obras de alguma envergadura, no seu novo domicílio, de acordo com o seu estatuto.
Na casa, hoje já muito alterada, havia uma capela incorporada, aposentos para os seus familiares e até para aqueles três jovens de pele escura, agora na condição de criados de servir. Dois destes criados constituíram família com casamentos promovidos pelo seu amo, dos quais resultaram cinco filhos que se espalharam pela freguesia. Parece que só o António permaneceu solteiro até morrer. Um neto da Ana, chamado José Ferreira, é, segundo afirmação de Albino dos Santos, na sua obra “Monografia da Freguesia das Medas”, um antepassado dos Ferreiras de Pombal. Ora, o meu avô paterno, José Ferreira de Carvalho, nasceu nessa casa dos Ferreiras de Pombal.
Quem sou eu, afinal ? Quem somos nós todos ?
Na verdade, qualquer um de nós pode ter um primo no local mais improvável do mundo. Especialmente, neste pedaço ibérico de formato retangular, posto avançado no extremo poente da Europa, ponto de passagem e de fixação das grandes culturas mediterrânicas, integrado em grandes impérios, invadido por povos oriundos dos confins da Europa, só por insipiência ou até estultícia alguém se pode considerar fruto de um só tipo humano.
No meu caso, a crer na qualidade daquela obra monográfica sobre a minha freguesia, eu tenho, na minha ascendência, uma costela de um ser humano aprisionado na costa ocidental africana e vendido, como escravo, no Brasil, de quem provieram aqueles três criados que o padre do Paço trouxe das terras de Santa Cruz, e o meu fenótipo traduzirá exatamente um produto compósito.
Quando estive na Guiné, na Guerra do Ultramar, em 1972/74, nunca admiti a possibilidade de ter, entre as gentes da tabanca, onde passei vinte e cinco meses, algum primo, porque, nessa altura, o autor da Monografia de Medas não tinha sequer iniciado a sua tão valiosa obra que me propiciou tão surpreendente revelação.
Quem sou eu, afinal ? Quem somos nós todos ?
Na verdade, qualquer um de nós pode ter um primo no local mais improvável do mundo. Especialmente, neste pedaço ibérico de formato retangular, posto avançado no extremo poente da Europa, ponto de passagem e de fixação das grandes culturas mediterrânicas, integrado em grandes impérios, invadido por povos oriundos dos confins da Europa, só por insipiência ou até estultícia alguém se pode considerar fruto de um só tipo humano.
No meu caso, a crer na qualidade daquela obra monográfica sobre a minha freguesia, eu tenho, na minha ascendência, uma costela de um ser humano aprisionado na costa ocidental africana e vendido, como escravo, no Brasil, de quem provieram aqueles três criados que o padre do Paço trouxe das terras de Santa Cruz, e o meu fenótipo traduzirá exatamente um produto compósito.
Quando estive na Guiné, na Guerra do Ultramar, em 1972/74, nunca admiti a possibilidade de ter, entre as gentes da tabanca, onde passei vinte e cinco meses, algum primo, porque, nessa altura, o autor da Monografia de Medas não tinha sequer iniciado a sua tão valiosa obra que me propiciou tão surpreendente revelação.
Mesmo sem esse precioso conhecimento sempre mantive uma relação próxima com aquela população, apesar das abissais diferenças religiosas e culturais. Não sei se, no meu subconsciente, algo me assegurava que aquelas pessoas também eram da minha família. E elas pareciam saber, melhor do que eu, que também lhes pertencia, pela forma doce e leal como me tratavam.
Em 2009 pude e desejei ardentemente lá voltar. Ninguém aqui em casa me tentou dissuadir de tornar ao mato de África, para reencontrar gentes do tempo da guerra em Mampatá, naquela tabanca de casas cobertas de capim, na orla da mata do Cantanhês, pelo contrário, até me incentivaram.
Eu tinha a certeza que aquela viagem me iria fazer bem, porque mesmo sabendo que iria voltar a chorar, evocando momentos de dor e morte, tinha também a certeza que iria tornar a sorrir, nos sorrisos dos olhos deles, recordando também as horas de ubérrimas conversas, à sombra dos frondosos ramos dos mangueiros, num esforço permanente de compreender os conceitos e a alma dos fulas, descodificando as palavras do seu dialeto.
Nas minhas reflexões, atrevo-me a admitir, seguindo um raciocínio lógico, uma hipótese sobre a minha ascendência genética, num esforço pedagógico de demonstrar e afirmar a minha convicção de que nós, os humanos, somos de uma só raça, embora formatados por culturas diferentes e «pintados» em diferentes colorações.
Em 2009 pude e desejei ardentemente lá voltar. Ninguém aqui em casa me tentou dissuadir de tornar ao mato de África, para reencontrar gentes do tempo da guerra em Mampatá, naquela tabanca de casas cobertas de capim, na orla da mata do Cantanhês, pelo contrário, até me incentivaram.
Eu tinha a certeza que aquela viagem me iria fazer bem, porque mesmo sabendo que iria voltar a chorar, evocando momentos de dor e morte, tinha também a certeza que iria tornar a sorrir, nos sorrisos dos olhos deles, recordando também as horas de ubérrimas conversas, à sombra dos frondosos ramos dos mangueiros, num esforço permanente de compreender os conceitos e a alma dos fulas, descodificando as palavras do seu dialeto.
Nas minhas reflexões, atrevo-me a admitir, seguindo um raciocínio lógico, uma hipótese sobre a minha ascendência genética, num esforço pedagógico de demonstrar e afirmar a minha convicção de que nós, os humanos, somos de uma só raça, embora formatados por culturas diferentes e «pintados» em diferentes colorações.
Sobre quem fui e o que sou, acerca do meu valor individual, familiar e social, em relação aos meus méritos e falhas não sou capaz de falar. Outros o farão por mim, numa perspetiva mais equidistante ou mais subjetiva, de forma mais mesquinha ou mais generosa. Alguns terão a pretensão e a capacidade para, a partir deste braçado de histórias e contos, me compreender e julgar, se for esse o seu desejo. Todavia, recomendo que o não façam, porque o que disse de mim não é tudo o que sei ou julgo saber, nem considero o que disse uma verdade absoluta.
Um livro como este, onde pretendi, de certo modo, autobiografar-me e relatar memórias, nascido de um desejo de gravar cenários remotos onde se encontram diluídas as minhas origens bem como do meu passado recente, incluindo algumas observações relativas ao desenvolvimento económico e social da minha freguesia, parecendo assim uma salada de temas, pode não ser coisa que preste, mas serviu, pelo menos, para saciar um desejo irreprimível.
(Reproduzido com a devida vénia... Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação no blogue: LG)
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Notas do editor:
Vd. também poste de 10 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22445: Notas de leitura (1370): Prefácio de Ricardo Figueiredo ao livro "Um caminho a quatro passos", de António Carvalho