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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26480: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (167): De Bissau a Nhacra e depois Mansoa, de jipe: a última aventura no CTIG, que acabou mal, e que passou pelo Café Bento



Guiné- Bissau _ Região do Cacheu > Barro > 1998 > O A. Marques Lopes (1944-2024), atravessando de piroga o Rio Cacheu, no decurso da sua primeira viagem à Guiné, depois do regresso a casa  em 1969. Voltaria lá ainda em abril de 2006.


Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Da autobiografia (ficcionada)  do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  578 pp.), reproduzimos as pp. 564/572) a partir do ficheiro em pdf que ele disponibilizou na sua página do Facebook, para os seus amigos e camaradas poderem ler e lembrar-se dele quando chegasse a sua hora de se despedir da Terra da Alegria.

É uma homenagem a um dos 111 históricos do nosso blogue, falecido ainda recentemente (em 4 de julho de 2024) e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ 3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército: faleceu, aos 80 anos,  com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma.  Conheci-o, pessoalmente, na vésperad e Natal de 2005, na casa dos meus cunhados, na Madalena, Vila Nova de Gaia. Tem mais de 290 referências no nosso blogue.


 De Bissau a Nhacra e depois Mansoa, de jipe: a última aventura no CTIG, que acabou mal, e que passou pelo Café Bento
 

por A. Marques Lopes (1944 - 2024)



(...) Passara dez meses ali ao pé do Senegal. Ao fim desse tempo mandaram-no ir para Bissau, era para regressar à metrópole. Estava livre, até que enfim, pensou. Mas, afinal, não esteve.

Tinha chegado há poucos dias e disseram-lhe que tinha de ir montar uma emboscada em Bissalanca, perto do aeroporto, pois suspeitavam de um ataque lá. Deram-lhe um pelotão de uma companhia que não soube se tinha acabado de chegar ou se era das que já lá estavam. Nem quis saber, porque ficou é lixado.

Antes, decidiu ir ao Bar de Oficiais do QG beber uma cerveja. Foi ao balcão, pediu uma e foi sentar-se com ela num dos sofás que lá havia. Tentava acalmar-se, pois não lhe agradara nada ter de ir para o aeroporto armar uma emboscada. Estava em Bissau para curtir antes de embarcar, não para isso, já lhe chegara no mato. No meio destas reflexões chega-se à frente dele um tenente-coronel. Já lhe tinham dito que ele era o gerente da Messe de Oficiais, chamavam-lhe “O lavrador” porque gostava muito de tratar de uma horta que havia na zona da Messe.

Não pode estar aí, nosso alferes   lança-lhe ele.

Ficou mesmo espantado. Não estava a ver porquê.

 – Não posso porquê, meu tenente-coronel? perguntou-lhe, sem se levantar.

 – Porque o seu camuflado está a sujar o sofá.

De facto, era tudo gente fina que estava ali naquele bar. Camisas de manga curta e calças limpinhas e passadinhas a ferro, impecáveis, sapatos pretos brilhantes. E ele com o seu querido camuflado, pele da sua carne em muitos dias e noites de mato, com as suas botas calcorreadoras de zonas de capim e de bolanhas. O camuflado estava já muito amarelado e debotado pelo uso, tinha até um buraco ou outro, ali destoava um bocado, é verdade, mas estava limpo, tinha sido lavado. As botas eram de lona mas estavam limpas da lama do tarrafe. Levantou-se para ver se havia de facto alguma sujidade. O grupo que estava ao balcão observava.

Olhou para as pernas, levantou os braços e mirou para cada um, deu meia volta à esquerda e à direita e observou os flancos.

–  Não vejo nada sujo.

–  Não interessa, assim fardado não pode estar aí.

Tinham-no mandado para uma emboscada e vinha agora este com estas merdas. Foi a bebida, foi a raiva, foi o desprezo?, ficou com vontade de lhe dar um murro. Todo ele estava para isso. Um major que estava ao balcão topou e chegou-se ao pé deles.

– Tenha calma, nosso alferes. Meu tenente-coronel, deixe o homem beber a cerveja. Ele vai-se já embora, não é?

Aiveca não disse nada, bebeu o resto da cerveja, pôs a garrafa em cima da mesinha com força e saiu. Alguém lhe disse mais tarde que o major se chamava Carlos Fabião.

Atrás dele veio um alferes que conhecera lá no bar, trabalhava no Gabinete de Justiça do QG. Era magro, moreno, e tinha uma barbicha à passa-piolho.

 – É pá, se quiseres fazer queixa do gajo o Spínola dá-lhe uma porrada com certeza.

 Não faço nada. Quero que o tipo se foda e o Spínola também - e foi-se embora.

Já com o pelotão em viaturas, a caminho do aeroporto, chegaram ao pé do palácio do Governador. Ao lado estava o edifício da Associação Comercial. Havia lá grande festa, janelas iluminadas, ouvia-se música de dança. Mandou parar.

  Porque é que paramos, meu alferes? –  pergunta-lhe um furriel ao pé dele.

   Estou com vontade de ir ali e dar cabo daquela merda toda. A gente aqui e eles a gozar.

O furriel abriu os olhos.

   Mas isso não pode ser. Levávamos uma porrada das grandes. Era mau. Sobretudo para o meu alferes que está prestes a ir embora.

   Está bem, tens razão. Mas daqui a uns meses vais perceber este sentimento. Vamos embora.

E foram para o aeroporto. Não houve nada e lá para as cinco da madrugada regressaram.
Foi para os anexos à Messe de Oficiais onde dormia e onde dormiam também vários alferes que estavam de passagem ou à espera do embarque de regresso. Apeteceu-lhe fazer qualquer coisa para acalmar a fúria. Viu um bidão que estava ali com garrafas de cerveja. É isto. Agarrou em várias garrafas e começou a atirá-las para cima dos telhados do anexo. Que gozo! Bum, bum! Em cima dos telhados de zinco, bum, bum! Riu-se à brava a vê-los sair das portas todos alarmados e em cuecas.

  Que merda é esta?!   gritavam.

Viram que era ele a atirar garrafas e ficaram mais descansados, mas chamaram-lhe todos os nomes antes de voltarem para as camas. Aiveca foi também. Estava mais satisfeito, tinha desopilado.

De manhã, o Almeida Campos, um alferes que andava por lá, convidou-o para ir com ele ao Bento. Era onde se sabia de tudo, porque por lá passavam quase todos os que vinham ou ainda estavam no mato e contavam coisas, tudo, operações, ataques, mortos. Era o sítio das informações, por isso lhe chamavam a 5ªREP, que era a Repartição de Informações do QG. Todos ficavam a saber coisas, todos e também os miúdos e miúdas que entre eles andavam a vender camarão, caju e mancarra ou a engraxar as botas dos mais aprumados. Muita coisa o PAIGC devia saber também através deles.

Comeram uns camarões e beberam umas canecas. O Almeida Campos tinha sido apontador de obus lá para o sul e estava também à espera de embarque para ir embora.

  É pá, e se a gente fosse dar uma volta?    perguntou a Aiveca, que estava de má cara, ainda lixado com o “Lavrador”.

  Uma volta aonde?

   Para fora de Bissau.

Não lhe desagradava.

   Mas precisamos de um jipe para isso   disse Aiveca.

   Eu requisito um jipe ao QG.

   E vão dar-to?...   Aiveca duvidou.

  Está descansado que eu conheço lá um sargento.

E o Almeida Campos conseguiu-o. Saíram de Bissau não sem antes meterem uns whiskys no bar da Messe de Oficiais. Chegaram a Nhacra eram horas de almoçar. Pararam numa tasca á beira da estrada para comer. Foi frango de chabéu regado a muito vinho fresquinho. Era o preferido de Aiveca.

–  A gente podia ir mais longe  –  opinou Aiveca.

Estavam bem aviados e ele já estava por tudo.

 
– Claro  – disse o Almeida Campos . – Metemos pela estrada sempre em frente e logo se vê.

Grande homem, era dos dele!

Foram pela estrada cerca de uma hora. Nada, não viram nada pelo caminho, só mato dum lado e doutro, até que chegaram a uma povoação. Muita gente os olhou, admirada, quando entraram.

–  Eu acho que isto é Mansoa  – pareceu a Aiveca.

Era. Um grupo de militares veio ao encontro deles. Cumprimentos, interrogações.

–  Que vieram cá fazer?

–  Nada. Só passear.

–  São doidos. De Bissau aqui só em coluna militar.

Havia um jogo de futebol e foram até lá para ver. No fim do jogo houve festa com muita cerveja e eles entraram nela.

–  Ó Almeida Campos, é melhor irmos embora que está a fazer-se tarde.

Já tinha passado muito tempo.

 
– Tá bem. Mas antes vamos pedir aqui umas cervejas para o caminho.

Eles deram-lhas, e um fuzileiro, nunca soube porque é que ele lá estava, pediu-lhes boleia. Foi com eles.

Uma viagem de regresso muito alegre. O Almeida Campos ia a conduzir e Aiveca ao pé dele, de pé, sempre a cantar. O fuzileiro ia no banco de trás. Iam bebendo as cervejas ofertadas e a cantar.

Já tinha começado a escurecer quando viram ao longe as luzes do aeroporto. Aiveca ia de pé, agarrado ao para brisas e sempre a cantar. Às tantas o Almeida Campos sai da estrada. O jipe andou uns metros e espetou-se contra uma árvore.

Foi uma sensação já vivida quando fora projectado pelo rebentamento da mina. Foram uns segundos, ou minutos?... Não deu para saber, porque é um tempo de nada. Há o choque, ou o rebentamento, e a seguir é o vazio completo, sem ah! nem oh!, só se sabe quando se bate no chão. Foi o que sucedeu. Deu por si no meio do capim. Levantou a cabeça e viu o jipe a arder, ao seu lado o fuzileiro gemia. Olhou melhor e viu o Almeida Campos estendido sem dizer nada. Chegou-se ao pé dele e pegou-lhe na cabeça. Ficou alarmado pois a mão ficou-lhe cheia de sangue.

–  O fuzileiro ainda mexe mas este não.

Viu umas casas não muito longe. Levantou-se e foi bater às portas mas ninguém lhe respondeu. Estava preocupado com o Almeida Campos. Umas luzes aproximavam-se vindo do lado do aeroporto.

Era uma patrulha que vira as chamas do jipe e queria saber o que se passava. Foram eles que os levaram para o hospital.

O Almeida Campos e o fuzileiro ficaram lá. Este tinha uma costela partida, vinha atrás e batera no banco da frente. O alferes tinha um lanho na cabeça e uma ferida profunda na perna direita. Aiveca não tinha nada, só a farda chamuscada, e regressou ao anexo da Messe de Oficiais.

No dia seguinte foi ao hospital. O fuzileiro tinha sido transferido para a enfermaria da Marinha. O Almeida Campos estava na cama com uma perna engessada, a cabeça ligada e uma cerveja na boca. Riu-se para Aiveca e perguntou-lhe:

–  Estás bom, pá?

–  Eu estou, mas tu não pareces.

 – Estou, sim senhor. Cervejas não faltam.

Dois dias depois, um major, encarregado da peritagem chamou Aiveca para ir com ele reconstituir o acidente.

–  Ó meu major, nós íamos devagar. Houve qualquer problema com a direcção do jipe.

Ele riu-se e mostrou-lhe o sulco dos pneus fora da estrada. Eram uns vinte metros na berma capinada, antes da árvore em que tinham batido.

Aiveca foi apenas testemunha. O Almeida Campos, que requisitou o jipe e o ia a conduzir, e era mais antigo, levou uma porrada de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe e ficou mais uns tempos na Guiné.

Foi curta a estadia em Bissau, porque de alguns dias apenas lá passados antes de embarcar para o puto, mas foi intensa, porque aproveitada como oportunidade para dar largas à loucura que se apossara dele durante todo o tempo em que estivera no mato. Ali não necessitou de cautelas e precauções para garantir a sobrevivência, dele e dos outros. E aquelas do “lavrador” e do aeroporto até o incentivaram para isso.

Muito boas recordações dos restaurantes, onde fez grandes tainadas e apanhou grandes bebedeiras com outros camaradas tão necessitados disso como ele. Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa, um quarto apenas, dormiu algumas noites, numa cama onde dormia também o bebé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, numa das noites lhe fez a proposta de ele trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes.

 – Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso.

Boas noites lá passou. Uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:

–  Está ocupado.

E ele a ajudá-la dizendo:

–  Estou eu, vão pra outra.

Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que teve de sair a meio. É que o bebé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, teve de lhe dizer:

 – Fatinha, já não dá. Assim não. Vou-me embora.

Nesta ordem de lembranças, havia também, junto ao estádio do UDIB, um branco que tinha umas filhas mulatas. A sua casa era um local aberto à frequência dos militares, com muitas bebidas, e as filhas lá estavam para o que desse e viesse. Foi lá uma ou outra vez, só para beber porque, perante aquela situação, sentia que o raio da consciência ainda lhe zurzia e não quis mais nada..

Quanto ao QG, poucas coisas agradáveis. Mas houve uma que até lhe deu muito gozo. Tinham-no encarregado da elaboração do processo a um cabo que fora apanhado a tomar banho na piscina da messe de oficiais do QG, onde só estes e as suas respeitáveis e limpas senhoras é que podiam tomar banho. Fora escandaloso, inadmissível porque pegajoso. Na véspera do seu embarque de regresso olhou para o processo e achou que não lhe devia dar futuro. Rasgou-o aos bocadinhos e meteu-o num caixote de lixo. Ninguém lhe perguntou por ele. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título : LG)

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 2 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26106: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (15): Uma ida, algo dramático-burlesca, da CCAÇ 3, ao Senegal

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26353: Pensamento do dia (27): "Se pudéssemos identificar, desagregar, selecionar e juntar o melhor de cada povo, teríamos o melhor da humanidade" (Luís Graça, em Dia de Reis)

Do sevilhano Murillo (12617-1682): "Adoração dos Reis Magos",  óleo sobre tela c. 1655. Toledo Museum of Art, Ohio (pormenor). Obra do domínio público. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia...)


"Se pudéssemos identificar, desagregar, selecionar e juntar de novo o melhor de cada povo, teríamos o melhor da humanidade" (Luís Graça, em Dia de Reis)

... Mas logo o cardeal-diabo vem questionar-te: "E o que é que faríamos depois ao pior de cada um ?"

E eu aí engoli em seco, só de pensar na "caixinha de Pandora" com todos os males que assombram a humanidade "desde o Adão e Eva", os nossos míticos pais...

  • inveja
  • arrogância
  • egoísmo
  • vaidade
  • orgulho
  • megalomania
  • mentira
  • preconceito
  • racismo
  • xenofobia (e outras sociofobias)
  • etnocentrismo
  • supremacismo
  • negacionismo
  • estupidez
  • fundamentalismo
  • ganância
  • cupidez
  • luxúria
  • ódio
  • belicismo
  • militarismo
  • crueldade
  • fanatismo
  • miserabilismo
  • fatalismo
  • cobardia
  • mentira, etc. etc.
Em Dia de Reis, que vieram há dois mil anos adorar o Menino... Dizem que eram Três,  que eram Reis e que eram Magos... Seriam ? De seus nomes, como eu aprendi na catequese, Melchior, Gaspar e Baltasar. Mas pouco se sabe sobre o seu "curriculum vitae" ou "portefólio":

(i) Melchior (ou Belchior) seria o mais velho (setenta anos, idade bíblica!), de cabelos e barbas brancas; teria partido de Ur, na terra dos Caldeus, outros dizem que era o rei da Pérsia (e que trouxe ouro);
 
(ii) Gaspar é descrito como moço de vinte anos, robusto.  tendo partido de uma região montanhosa distante, perto do Mar Cáspio (ou, noutra versão, que seria o rei da Índia) (trouxe o incenso);

(iii)  Baltasar era preto ou mouro, de barba comprida e cerrada, com quarenta anos, teria partido do Golfo Pérsico, da parte mais rica da pensínsula arábica (também lhe chamaram o Rei da Arábia) (trouxe a mirra) (hoje perguntar-lhe-iam, se ele fosse a uma entrevista de seleção para trolha da construção civil: "onde é que nasceram os teus pais"?).

Os povos do Novo Mundo (a quem o estúpido do Colombo chamou "índios") não viram a estrela nem ficaram a ver navios. quer dizer, camelos; e os outros mais a oriente, lá  mesmo no extremo, e na Oceania, chineses, malaios, japoneses, indonésios, polinésios, papuas, etc. também ficaram com o écrã da televisão em branco... perderam aquilo a que os locutores de serviço na época chamaram o maior acontecimento da história da humanidade (depois, naturalmente, da criação dos nossos pais Adão e Eva, lá no Paraíso Terrestre, está claro...).
______________

Nota do editor:

Postes anteriores da série > 



19/12/2020 > Guiné 61/74 - P21663: Pensamento do dia (26): “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade" [ José de Almada Negreiros (São Tomé e Príncipe, 1893 - Lisboa, 1970), um bastardo do Império, que "inventou o dia claro": fascista, colonialista, futurista, modernista, português genial...]. 
 


08/12/2020 > Guiné 61/74 - P21621: Pensamento do dia (25): Grafito, logo existo... Ou a pandemia de Covid, romântica "ma non troppo"... Afinal, os grafiteiros das nossas cidades são uns meninos de coro quando comparados com alguns que se mudaram para as redes sociais...como o Facebook e o Twitter, diz o Jimmy Wales, o criador da Wikipedia
 


19/03/2015 > Guiné 63/74 - P14389: Pensamento do dia (24): No Dia do Pai... Mensagem ao meu pai, esse homem duro e autoritário que morreu aos 59 anos para grande pena minha (Francisco Baptista)
 


19/03/2015 > Guiné 63/74 - P14387: Pensamento do dia (23): No dia do pai... "Meu pai, estejas onde estiveres, saberás que te amo muito e te perdoei o nos teres deixado tão prematuramente" (José Carlos Gabriel, ex-1º cabo cripto, 2ª CCaç / BCaç. 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)



09/03/2015 > Guiné 63/74 - P14336: Pensamento do dia (22): Aprendi na guerra a pôr um pé à frente do outro e continuar a caminhada, mesmo quando tudo era difícil (José Belo)



25/02/2015 > Guiné 63/74 - P14297: Pensamento do dia (19): A sociedade de Brunhoso (Francisco Baptista)




23/02/2015 > Guiné 63/74 - P14289: Pensamento do dia (18): A guerra (colonial) e as nossas mulheres (Tony Borié / António Graça de Abreu)

 

31/12/2009 > Guiné 63/74 - P5572: Pensamento do dia (17): A guerra colonial e o sentido da História (José Brás)



15/09/2008 > Guiné 63/74 - P3208: Pensamento do dia (16): E não se pode exterminá-la ?... A epidemia de cólera em Bissau (Sofia Branco, "Público")
 

07/09/2008 > Guiné 63/74 - P3184: Pensamento do dia (15) : Paz à Nossa Alma (Anónimo)



03/01/2008 > Guiné 63/74 - P2401: Pensamento do dia (14): Não deixemos que sejam os outros a contar a nossa história por nós (Luís Graça)
 


19/10/2007 > Guiné 63/74 - P2194: Pensamento do dia (13): É na guerra que se revela o pior e o melhor das pessoas (Diana Andringa, Visão, nº 763, de ontem)




06/10/2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

 
04/11/2008 > Guiné 63/74 - P1791: Pensamento do dia (12): A todos os homens e mulheres com coragem... (Manuel Bastos / António Duarte)
 


30/05/2007 > Guiné 63/74 - P1799: Pensamento do dia (11): A todos os homens e mulheres com coragem... (Manuel Bastos / António Duarte)


15/01/2007 > Guiné 63/74 - P1432: Pensamento do dia (10): Honrar os que morreram no Ultramar (António Rosinha)

 
 24/10/2006 > Guiné 63/74 - P1209: Pensamento do dia (9): O nosso humor de caserna (João Tunes)


25/09/2006 > Guiné 63/74 - P1114: Pensamento do dia (8): Matar ou morrer ? ... Morrer, não, que não tenho tempo! (Joaquim Mexia Alves)



19/09/2006 > Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)

 
31/07/2006 > Guiné 63/74 - P1010: Pensamento do dia (6): O único rio a sério, na nossa terra, é o Corubal (Amílcar Cabral) (Luís Graça)

 
16/07/2006 > Guiné 63/74 - P962: Pensamento do dia (5): Português, sem dúvida(s) (Joaquim Mexia Alves)

 
06/07/2006Guiné 63/74 - P942: Pensamento do dia (4): De raiva vai tudo à frente (Paulo Raposo)
 
04/07/2006 > Guiné 63/74 - P937: Pensamento do dia (3): televisão em Missirá (Sousa de Castro)

 
04/07/2006 > Guiné 63/74 - P933: Pensamento do dia (2): as três tropas (José Neto)


30/06/2006 > Guiné 63/74 - P928: Pensamento do dia (1): Cadetes, estamos na idade sexy (Paulo Raposo)

 

sábado, 2 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26106: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (15): Uma ida, algo dramático-burlesca, da CCAÇ 3, ao Senegal



Guiné > Região do Cacheu > Barro > CCAÇ 3 (1968/69) > Os temíveis "Jagudis",  de etnia balanta, nome de guerra do 3º Gr Comb, comandado pelo alf mil  A. Marques Lopes.

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), reproduzimos as pp. 532/546) (que também constam parcialmente da sua página do Facebook, em postagem de  12 de setembro de 2019). É uma homenagem a um dos nossos, recentemente falecido, um histórico do nosso blogue, e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército. Faleceu com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma.


 

Uma ida, algo dramático-burlesca, ao  Senegal

por A. Marques Lopes (1944 - 2024)



(..) Como eu era o alferes mais antigo,  fiquei a comandar a companhia na ausência do capitão, que tinha ido de férias. Houve um dia em que fui chamado a Bigene, ao COP3. O cabo cripto viera com uma mensagem na mão a dizer-me que era para ir falar com o major.

No dia seguinte peguei no meu grupo de combate e numas viaturas e fui para o COP3. No gabinete do major estava também um tipo à civil. Não o conhecia mas tinha um ar que dizia logo quem era. Do alto das suas botas de cavaleiro, o comandante do COP3 apontou com o pingalim para um mapa que tinha cheio de sinais coloridos. Falou sem rodeios:

– O agente Guerra…


Sou bruxo, pensei, é da PIDE e tem ar de fuinha como o pide Alberto que vi em Bafatá. O major continuava.

–  …tem informações que a população de Sano, da parte do Senegal, anda a fazer plantações de arroz e outros produtos na bolanha que está do nosso lado. Eu quero que você vá lá amanhã confirmar isso.

Apontara para o local que o capitão Olavo já lhe tinha indicado como tendo lá uma base do PAIGC. A conversa do major vinha confirmar que a fronteira era apenas uma linha no papel.

 
–  É natural que façam isso, meu major. Antes da guerra aquilo era tudo terra deles, dum lado ou doutro, viviam em conjunto e exploravam as terras em conjunto. Após começar a guerra é que passaram todos para o outro lado mas continuaram a trabalhar aquelas terras que tinham antes. Além disso, meu major, eu acho que uns reconhecimentos aéreos podiam confirmar isso.

De facto, não percebia porque é que era preciso ir lá para ver se era assim como o pide dizia. Pareceu-me e confirmei depois que o major não tinha gostado desta parte final. O pide sorria.

–  Ó nosso alferes, eu sei que você andou no seminário e, portanto, sabe o que quer dizer estar a ensinar o padre nosso ao vigário. Você é um miliciano quase imberbe e acha que me pode estar a dar conselhos a mim? E não sabe que o arroz que eles cultivam é para alimentar os terroristas?

Ele não falara em tom acintoso mas deixou-me enrascado. Não era pelo que ele tinha dito, era um homem corajoso e sensato, já mo tinha demonstrado, até gostava dele. Era mais pelo cabrão do pide que olhava para mim com ar zombeteiro. Não tinha dito a ninguém que tinha estado no seminário e só podia ser ele que tinha essa informação. Tinha cá uma vontade de lhe ir ao focinho…

– Peço desculpa, meu major. Não era minha intenção, de maneira nenhuma.

– Há mais  
– não me deixou acabar – diga lá, ó Guerra.

O pide endireitou-se na cadeira.

– Tenho também uma informação que estará lá um bigrupo reforçado. Consta que prepara um ataque ao seu quartel, alferes, e aqui ao COP. Mas esta não é uma informação muito segura, precisa de confirmação.

– Este é o outro objectivo da sua ida lá
–  disse o major.-–  É o mais importante. Quero que confirme se está lá, de facto, um bigrupo reforçado.

–  Mas, meu major, um bigrupo reforçado é muita gente e, se se preparam para nos atacar, hão-de estar bem armados, com armas melhores e mais poderosas que as nossas. Só tenho três grupos de combate na companhia, tenho de deixar um no quartel e ir lá só com dois.

–  Que porra! Lá está você outra vez, homem! Eu sei bem isso.

Continuou a falar. Eu ouvia-o mas ia também pensando que fizera bem em levantar dúvidas desde o princípio. Palpitava-me que ele lhe estava a fazer o mesmo que o coronel do Agrupamento de Bafatá quando o mandara para levar porrada e ficar na bolanha em Sinchã Jobel. Este só não me tinha ainda dito para levar uma corda. O major acabou por me dizer que, pelo menos, conseguisse um prisioneiro para interrogar e que andaria lá num PCV para me orientar.

–  Percebeu?

–  Percebi, meu major.

Percebia e estava a ver que era pior do que daquela vez em que pusera reticências ao capitão para ir ao corredor perto do Senegal. Estava feito

– Então venha aqui  
– levou-me para mais perto do mapa. -–  Um grupo vai até à bolanha e outro, quero que seja o seu, entra no Senegal e apanha esta picada aqui, está a ver? – Eu disse-lhe que sim senhor - Podem apanhar alguém na bolanha, porque eles vão lá, ou na picada, que é o caminho que fazem. É assim, mais nada.

Despediu-me e cumprimentei o major. Ao pide não liguei.

Uma vez no quartel juntei-me com o Salgado e o Rodolfo e expliquei-lhes a ideia do major do COP.

–  Eu tenho de ir porque o major decidiu que sim. Qual de vocês quer ir?

Eles olharam um para o outro e o Salgado decidiu-se primeiro.

–  Vou eu.

Preferia que fosse o Rodolfo, mas este não disse nada, ficou calado. Procurei não fazer como o Lindolfo e o Mendonça.

–  Então, ó Rodolfo, és tu que ficas a tomar conta disto. Porta-te bem. Salgado, vai falar com os teus furriéis e diz-lhes que têm de ter os homens prontos para sair amanhã logo de manhãzinha, às cinco horas. Eu vou fazer o mesmo com os meus. Diz-lhes o que é que vamos fazer e que tenham cuidadinho com a língua. Os gajos que não falem disto com os soldados, senão toda a tabanca fica a saber e estamos feitos. Quando sairmos, e já fora do quartel, ou vou dizer a todos qual é a missão. Agora vamos aqui ao mapa.

Chegaram-se lá e eu foi apontando.

– Vamos juntos até à ponta da bolanha, esta aqui ao pé do Senegal. Aí separamo-nos, eu vou para o Senegal, por aqui, até esta picada, e tu vais para o corpo principal da bolanha, ficas lá e esperas por mim, até eu regressar - o Salgado percebeu a ideia - Vou ter de levar o Bailo comigo para me indicar o caminho para aquela picada do Senegal. Tu chegas facilmente ao teu local, não é?

 Claro, vou chegar lá nas calmas.

Fomos, então, logo às cinco da manhã..

Às vezes dava-me, esta foi uma das vezes. Ia calmo. Era como assistir ao nascer da vida. Os ainda ténues raios de sol que furavam por entre as folhas da floresta levaram-me a pensar na centelha da vida que Michelangelo representou nos tectos da Capela Sistina. Resquícios da formação religiosa. O pipilar ainda suave dos inúmeros pássaros que habitavam as árvores maravilharam-me como lembranças do despertar dolente e suspiroso da Júlia à minha beira. Mas os grunhidos ruidosos e agudos do macaco-cão eram um despertar, alertavam-me para as passadas que devia dar e o caminho a seguir. Mantinham-me atento no meio das divagações.

Chegámos ao local da separação.

–  Tens o mapa da zona?  
– perguntei ao Salgado.

–  Tenho, claro.

–  Fica aqui, então, que eu vou atravessar a bolanha um pouco mais abaixo e, se tiver problemas, podes apoiar-me com fogo desse lado. Parece-me que é melhor para eu não ser apanhado entre dois fogos. O que achas?

Era uma precaução para não cair novamente nessa situação. Os meus furriéis e os do Salgado comentaram entre eles e pareciam de acordo.

–  Está bem, pá
–  disse também o Salgado.

–  Olha, mantém o teu “banana” sempre atento, eu vou estar com o meu também. É para nos mantermos em contacto e para nos irmos informando do que se passa dum lado e doutro. Além disso, o PCV do major do COP deve estar a aparecer e ele também vai querer conversa.

Separei-me levando o Bailo à frente para me indicar o caminho até à tal picada dentro do Senegal. Vira no mapa que a fronteira ali era uma linha recta entre os marcos 132 e 133. Nem sabia se os marcos ainda existiam, mas, mesmo que existissem, deviam estar totalmente cobertos de vegetação e não adiantavam nada para saber onde acabava a Guiné e começava o Senegal. Em certo momento tanto podíamos estar dum lado como do outro. Por isso é que aquela gente não tinha fronteiras. Era tudo o mesmo.

Estávamos há quase meia hora no meio da mata. O Bailo, por indicação minha, não escolhera carreiros e a progressão não era fácil. Quando se começou a ouvir o ronronar da DO, diz o radiotelegrafista:

–  Meu alferes, está aqui o PCV.

Peguei no “banana”.

–  É pa, já vi que o Salgado está no local indicado 
–  disse o major.  – Mas você ainda não chegou, pá!. Estou a ver daqui o sítio onde devia estar.

O engraçado queria festa. Ia levar.

– Meu major, aqui no meio desta mata cerrada não é tão fácil descortinar o objectivo como aí de cima. Tenho tido dificuldades na progressão, mas o meu guia diz-me que estamos quase a chegar.

Uns segundos de silêncio. Devia ter acusado o toque, mas não se descoseu.

–  Quando chegar avise-me que eu vou andando por aqui.
Desligou.

Acabámos por chegar e emboscámo-nos na berma da picada.

– Ninguém dispara nem se mexe, só à minha ordem 
– disse.

Avisei o major da chegada e liguei ao Salgado para saber como estava. Este disse-me que não via vivalma. O PCV deu mais umas voltas e afastou-se. Ainda bem, pensei, senão os tipos começavam a desconfiar que havia ali qualquer coisa.

A certa altura, o Bailo, que estava perto a espreitar por entre uns ramos, segreda-me:

Alfero, um djipi.

Espreitei também.

– São turras?

O Bailo observou melhor.

 – Polícia Senegal  – disse.

Bonito, só faltava isto. Tinha de os tirar dali. O Bailo não usava camuflado, era guia civil, ia ver o que é que dava.

 Bailo, levanta-te e fala com eles.

Sabia que era um tipo expedito, embora às vezes até demais. Ele levantou-se logo e foi para o meio da picada. O jipe aproximou-se e parou. Os seus ocupantes sorriram.

 
 Bonjour, camarade  –  disse um deles.

Pensaram que era um do PAIGC. Era o que eu queria, que parassem confiantes. Fiz sinal para todos se levantarem e fui o primeiro a saltar. Assim que me viram, era um branco!, ficaram de olhos esbugalhados e levaram instintivamente as mãos às armas.

 Quietos! 
 gritei, apontando-lhes a G3.

Foram cercados pelo grupo e ficaram quietos. Viram logo que o branco era o comandante e um virou-se para mim.

 Banderra de Senegal amie de banderra de Portugal.

Disse isto com voz arrastada enquanto o outro abanava a cabeça de assentimento. Achei-lhes piada.

– 
Deixem-se de merdas! O que é que fazem aqui?

–  Nous avons des femmes amies au village.

Os sacanas até percebiam português. Ou não, se calhar apenas se apressaram com uma desculpa. Houve uma agitação e vi o Blétche e o Falcão de armas apontadas para a picada do lado da tabanca.

 Ninguém dispara!

Ao meu grito abaixaram as G3.

Um miúdo de sete ou oito anos arrastava apressadamente pela mão um velho. Vinham pela picada, depois de ter visto o grupo o miúdo tentava fugir.

 – Aguinaldo, vá lá buscá-los  – e disse aos outros para vigiarem os gendarmes.

A secção do Aguinaldo agarrou-os facilmente. Antes de chegarem, reparei que o velho era cego. O miúdo era o guia dele.
O velho, agitado, dizia algumas palavras que não entendia mas que me pareceram crioulo. Disse ao Otcha para saber o que andavam a fazer e para onde iam. O rapazito estava cheio de medo. O cego abria os olhos baços e franzia a boca receosa. Apercebera-se do mal invisível.

– Iam para uma tabanca aqui perto onde têm família. O velho é avô do rapaz e é cego.

Foi a informação do Otcha depois de falar com eles. A DO estava agora por cima de nós. O radiotelegrafista trouxe-me o “banana”.

 O que é que se passa aí em baixo, nosso alferes?

– Meu major, é um jipe com dois gendarmes do Senegal, apareceram aqui. Parece-me que é melhor irmos embora, já não dá para o que viemos fazer.

 
–  Eh, pá! Mande os gajos embora, e sem uma beliscadura. Não podemos arranjar problemas desses. Depois pode retirar.

Virei-me, depois, para os gendarmes.

– Allez-vous en! Levem o cego e o miúdo!

Ficaram encantados, nem se lhes notou qualquer contrariedade por não irem ter com as “femmes amies”. Elas lá estariam à espera para outra altura, certamente.

 
Agarrem nos dois e metam-nos no jipe  disse para os que cercavam o avô e o neto.

Quando os gendarmes partiram dei ordem de abandono da posição. Não era bom continuar ali pois tinha a certeza que eles iam avisar o PAIGC. Disse ao Bailo para ir por caminho mais fácil, não queria demorar muito com receio de sermos perseguidos. Metemos pela mata em direcção à Guiné e demos com uma tabanca. Estava abandonada, com alguns restos de moranças ainda, muito mato rasteiro, mas havia um grupo de bananeiras ao pé da mata. Devia ser Sarancototo, pelo que vira no mapa.

 
– Está ali uma mulher!  – gritou o Otcha.

Todos viraram a cara para lá. Ela tinha-os ouvido e virou também a cara para nós. Viu-nos e desatou a correr. Levava uma criança no bambaran, o pano para segurar as crianças às costas. Logo alguns levantaram a G3.

– Quietos!  – gritei saltando para a frente deles. – Fodo o primeiro que disparar! Clode, Falcão, vão atrás dela!

A morte de Abess nunca mais me saíra da cabeça e não queria outra situação idêntica.

Vi que o bambaran se soltara e a criança caíra no chão. A mulher virou-se angustiada a ver a criança a chorar mas olhou com terror para o Clode e o Falcão que corriam para ela e continuou a fugir internando-se na mata.

De repente o silvo de um rocket. Atiráramo-nos todos para o chão. O rocket rebentou perto das palmeiras.

– Clode, Falcão, tragam a criança! Todos para a mata!

O Clode corria com a criança nos braços. Começou o fogachal do lado do Senegal. Já abrigados na orla da clareira, disse para o Bailo:

– 
Estamos longe do alferes Salgado?

– Não tá, nossalfero. Tá perto à direita.

Mandei, depois, o furriel Fernandes ir com a secção dez metros para trás, recomendando-lhe que só disparassem morteiradas. O Lindolfo foi dez metros para a direita. Fiquei com o Aguinaldo Baldé, que tinha o Benhanté com a bazuca. Disse também a três homens da secção dele para irem dez metros para a esquerda. Era uma precaução porque tinha a ideia que eles podiam cercar-nos. Com a bazuca ali podia retê-los até decidir recuar.


– Polícias foram avisar os turras  – disse o Aguinaldo por entre as rajadas.

–  Claro.

 
– Devíamos ter matado eles.

–  E arranjávamos um trinta e um do caraças, era?.

As bazucadas do Benhanté e os dilagramas do Otcha mantinham-nos em respeito. Disse ao radiotelegrafista para ligar ao alferes Salgado. Quando o fez deu-me o “banana”.


–  Ó Salgado, estás a ver o que está a suceder?

–  Estou, pá, bem as oiço. Estou a ver que tens festa.

–  Tu daí podes dar-nos uma ajudinha. Nós estamos na tabanca que está à tua esquerda. Tens o mapa, faz os cálculos e manda-lhes umas morteiradas para a mata do lado do Senegal.

 
–  É, pá, eu já não estou no mesmo sítio. Vou a caminho do quartel.

 –  O quê!? Foda-se! Tínhamos combinado que ficavas lá à minha espera!

 –  É pá, vi que não estava lá a fazer nada.

– Vai pró caralho!  –  e desliguei.

O Aguinaldo, mesmo no meio do tiroteio, apercebera-se da conversa.

– O que foi, meu alferes?

– 
O alferes Salgado deixou-nos, foi-se embora.

– 
O alferes Salgado não é bom.

– 
É mas é um grande filho da puta  
– estava mais que furioso.

Passados mais uns minutos, disse ao Benhanté para mandar mais uma bazucada e ao Otcha um dilagrama e mandei recuar. Verifiquei que do lado esquerdo e do direito também o faziam. 

Enquanto isso o Fernandes continuava com as morteiradas. Quando nos juntámos todos ouvi a DO. Foi eu que ligou logo.

 
–  Estamos aqui com um problema, meu major.

–  Já sei. Estava na pista do quartel e ouvi. É o tal bigrupo?

–  Parece-me que não há nenhum bigrupo, meu major. Os que nos atacaram não têm esse poder de fogo, além de que não tiveram capacidade para uma manobra de envolvimento que nos lixasse.

- Podem não ter querido mostrar. Mas agora não interessa.

 Retire-se que eu vou pedir uns T6 para despejarem aí umas bujardas.

 
–  É ótimo, para ver se não vêm atrás de nós. Além disso podem dar cabo de umas plantações de arroz que eles têm na bolanha. Mas isso o meu major já sabe.

Uns segundos para engolir, como era hábito.

–  Toca a andar, homem. Eu vou para o quartel e falamos lá.

Não explodia facilmente, era verdade.

Não íamos muito longe quando os T6 apareceram. Despejaram umas tantas e foram-se embora. Mas deu para que os do PAIGC não nos fossem no encalço. Durante o caminho cheguei-me à secção do Fernandes, onde o Clode continuava com a criança ao colo.

 Nomi di bó? 
–  perguntei-lhe.

– 
 É badjudinha 
–  disse o Clode.

Ela não disse nada e chorou.

-
–  Tá bem, é rapariga. Ó Fernandes, que dia é hoje?

–  É dia 20 de Agosto, meu alferes.

–  Não. O dia da semana.

– 
 É terça-feira.

–  Então, como a miúda não quer ou não sabe ainda dizer o nome, vamos chamar-lhe Terça.

O pessoal ouviu, cochicharam entre eles e acharam piada. Era normal para eles, havia muitas Sábado e Segunda, conforme o dia da semana em que tinham nascido. Não era novidade. 

Quando  chegaram ao quartel, o primeiro que viu foi o Salgado. Foi o o primeiro proque era quem queria ver. Estva com o Rudolfo.  Dirigiu-se a ele, deG3 em riste.

–  Se me fazes aquilo outra vez, fodo-te o coiro! 

(...)

(Revisão / fixação de texto, título: LG)

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26089: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (14): assim nasceram os Jagudis, nome de guerra do meu grupo de combate, na CCAÇ 3 (Barro, 1968/69)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26017: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (13): Uma descida ao inferno do Anexo de Campolide do Hospital Militar Principal (onde visitou o ex-prisioneiro Manuel Fragata Francisco) e o regresso à guerra ("Cabra Cega", 2015, pp. 475 / 484)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 >


"[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar." (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)

 


1. Do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, pp. 475/484) reproduzimos , com a devida vénia e em jeito de homenagem póstuma ao autor, o relato do seu reencontro, no anexo, em Campolide, do HMP (Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa) com o antigo soldado do seu pelotão, na CART 1690, o Manuel Fragata Francisco. Usámos a versão que   ele que nos deixou na sua página do Facebook, na postagem de 22 de setembro de 2019. (*)

No livro (de 2015) o Fragata aparece sob o nome fictício de Gabriel (pág. 476).

Recorde-se que o soldado Fragata (Manuel Fragata Francisco), "um alentejano de Alpiarça, do meu grupo de combate" , foi ferido e feito prisioneiro pelo IN no decurso da Op Invisível, em 19 de Dezembro de 1967. Na mesma ocasião, foi "dado como desaparecido" em companha (na realidade terá sido morto,  e o seu corpo nunca foi recuperado) o alf mil Fernando da Costa Fernandes, natural de Santo Tirso. (Este oficial tinha vindo para a CART 1690, para substituir o A. Marques Lopes, entretanto evacuado parta o HMP, na sequência da mina A/C acionada em 21/8/1967, na estrada Geba-Banjara, que vitimou mortalmente o cap art Manuel Guimarães).

O alferes Fernandes será mais tarde, substituído pelo alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, o "Aznavour", por ser parecido com o Charles Aznavour, que morreu também, em 8 de Setembro de 1968 num ataque a Sare Banda.

(...) "Mas a história toda [do Fragata ] foi-me contada pelo comandante Gazela [do PAIGC, em Bissau, ]: ficou furado por vários estilhaços de uma roquetada e foi levado, em maca, pelos guerrilheiros desde a mata do Óio até a um hospital de Ziguinchor, na Casamansa, Senegal. Foi obra, hão-de concordar, e não foi fácil, como calculam. Aí, em Ziguinchor, foi tratado pelo portugês dr. [Mário] Pádua, um médico desertor, e que me confirmou isto quando, há alguns anos, o encontrei em Lisboa.

Depois desse tratamento, o Fragata foi repatriado pela Cruz Vermelha Internacional e foi para o Anexo do HMP, na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Disse o comandante Gazela que, com a simplicidade própria daqueles nossos soldados, o Fragata, ao apanhar o avião de regresso, disse: "Obrigado. Graças ao nosso partido – referia-se ao PAIGC - "posso voltar para casa".

Infelizmente, o Fragata, passado pouco tempo após a saída do Anexo, morreu num desastre de motorizada na sua terra. " (...) (**)

Quanto ao A, Marques Lopes, recorde-se que esteve em tratamento durante nove meses no hospital da Estrela. Voltou para a Guiné, em maio de 1968,  para cumprir mais 10 meses de comissão de serviço, neste casao na CCAÇ 3, que estava aquartelada em Barro, na zona do Cacheu. Foi comandante do grupo de combate "Jagudis",



 Uma descida ao inferno do Anexo de Campolide do Hospital Militar Principal (onde visitou o ex-prisioneiro Manuel Fragata Francisco)  e o regresso à guerra ("Cabra Cega", 2015, pp. 475 / 484)

por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)




Fui depois à junta médica. Era um coronel e um tenente-coronel. Não sabia mas pensei que deviam ser médicos já que chamavam médica àquela junta. O coronel puxou duns papéis. Folheou-os, os dois olharam depois para eles e cochicharam. Devia ser do meu processo, pensei.

– O ouvido esquerdo tem 10% de incapacidade, no direito tem 20%. De resto está tudo bem - ouvi dizerem.

Foi tudo rápido.

O coronel juntou os papéis e disse:

– Está apto para todo o serviço.

O tenente-coronel abanou a cabeça que sim. Levantaram-se os dois.

– Vá ao Depósito Geral de Adidos. Leve isto.

Estendeu-me um dos papéis e vi que era a ordem para me apresentar lá.

Grande fantochada, fui pensando depois daquilo. Mera formalidade porque já tinham decidido que devia regressar à Guiné. Já sabia que os feridos, depois de curados tinham que ir terminar a comissão. Mas é se estivessem mesmo curados, em condições, também sabia isso. O grau de incapacidade por eles apontado não era verdadeiro. Como é que podia ser se o médico que me tratara dissera que o tímpano esquerdo tinha colado mas o direito não, que ia continuar com um buraco? Filha da putice.

Fui para o DGA, Depósito Geral de “Ardidos”, como a malta lhe chamava.

No primeiro dia decidi deslocar-me ao Anexo do Hospital Militar em Campolide para ver o Fragata. Não foi fácil entrar.

– Só os familiares é que podem visitar os doentes  
– disse-me o Oficial de Dia, um alferes.

 – Espera lá. Não sei se és do quadro ou se és miliciano, isso não interessa porque hás-de perceber uma coisa. Eu conheço esse homem há quase dois anos, foi sempre do meu pelotão e, na Guiné, do meu grupo de combate. O tempo que lá passámos tornou-nos da mesma família, fomos unha com carne em situações complicadas. Hás-de imaginar, não? Pergunta-lhe a ele.

Nunca me chegou a dizer se era ou não miliciano. Mas, uma coisa ou outra, nunca tinha estado na guerra, concluí. Senão ter-se-ia aberto logo também, era o normal quando dois combatentes se encontravam. Depois de mais alguma conversa e reticências acabou por ceder. Sobretudo depois de eu lhe dizer que ia voltar para a Guiné.

 
– É pá, vai lá, pronto. Mas, faz favor, se alguém te perguntar diz que és irmão ou primo, ou outra coisa qualquer da família.

Consultou uma lista, disse-me qual era o quarto em que o Fragata estava e indicou-me o caminho para lá.

À medida que ia andando espreitava para os quartos e camaratas. O que via deixava-me estarrecido e sem fala, não havia palavras perante tal panorama. Havia alguns que pareciam melhor, mas vi homens sem pernas, outros sem braços, uns cegos e, destes, alguns sem mãos ou sem braços também. Ainda bem que não era para falar com eles que ia. Só de ver já era impressionante. Se tivesse de os ouvir contar como foi, estavam stressados de certeza, devia ser terrível.

Ia tão com intenção de só ver o Fragata que não me passara pela cabeça que, no quarto dele, podia encontrar igual panorama. E encontrei mesmo quando lá cheguei e vi as quatro camas. Fiquei especado à porta, atónito. O Fragata estava com uma perna engessada, numa cama estava um sem mãos e a cara com manchas esverdeadas, noutra um sem pernas e, fora o que me deixara estarrecido, vi numa das camas um tronco de homem com uma cabeça.

 
– Olha o meu alferes!

Foi assim que o Fragata me fez voltar a mim e dar uns passos até à cama dele.

– Como é que estás, Fragata? 

Ainda tinha a voz entaramelada, não me recompusera ainda daquela visão.

– Não estou mal, meu alferes. Tenho braços e pernas. Aqui sou o que estou melhor, como vê.

– Mas o que é que tens?

– Levei uma rajada e fiquei com um joelho todo lixado. Foi naquele sítio onde estivemos primeiro, em Sinchã Jobel, lembra-se? O meu alferes até ficou lá toda a noite.

Disse-lhe que me lembrava. Os outros do quarto ouviam com atenção.

– O meu alferes lembra-se daquela chapada que me deu?

Fora uma vez em que tinha ido ver como estavam as sentinelas da noite no quartel e tinha visto que o Fragata não estava no posto em que devia estar. Tinha ido ter com uma bajuda. Fora ter com ele todo chateado e perguntara-lhe se queria uma chapada ou uma participação por abandono do posto. Ele ficara à rasca e preferira levar na cara.

 
– Era melhor não ma ter dado – continuou o Fragata. – Preferia ter levado uma porrada e mudar de companhia. Já não me tinha metido nisto.

 – Foi o que foi. Não te metias nesta metias-te noutra. Mas ouve lá: o alferes Domingos Maçarico Zé Pedro, que também foi ferido numa operação a esse sítio e foi evacuado, disse-me que os gajos te levaram para um hospital deles. Como é que foi isso?

O Fragata ficou uns segundos silencioso.

 
– Olhe, meu alferes  –acabou por dizer – os mandões proibiram-me de contar mas eu estou-me cagando, quero que eles se fodam. Desculpe, meu alferes  – mera por causa da linguagem. –  A estes aqui e à minha família já contei e vou-lhe contar a si também. Aquela operação foi muito má para nós. Fui ferido, a nossa malta pensou que eu estava morto e não me pôde apanhar. Os do PAIGC,  sim, apanharam-me e quiseram-me levar para o hospital deles mas, como eu não podia andar, tiveram de me levar numa maca até Ziguinchor.

Quando o Domingos Maçarico me contara cheguei a interrogar-me como o teriam feito, não achava que fosse possível. Agora ficara admirado, fora mesmo.

 
– Desde a mata central da Guiné até ao Senegal, cuidado!

–  Foram dez dias a atravessar matas, bolanhas e rios, e a fugir dos nossos também. Nem queira saber o que eu passei.

 
– Imagino, sim, imagino. Não deve ter sido nada fácil. E como é que foste tratado lá?

 – Foi um médico português desertor, o doutor Pádua, que me tratou do joelho. E muito bem. Eu tinha a rótula partida, ele arranjou-ma e pôs-me a andar de muletas. Disse-me que tinha já uma infecção e que teria morrido de certeza se eles não me tivessem levado e tivesse lá ficado.

– Estava lá mais algum português ferido?

– Não. Onde eu estava era só malta do PAIGC, também feridos da guerra.

 
– Só!? E davam-se bem?...

Estava curioso e interessado em saber como era que os feridos pelo lado do Fragata o aceitavam ali com eles.

– Demo-nos bem. Olhe, até fiz lá amigos. O chefe deles, o Luís Cabral, levava-me, às vezes, cigarros e eu dava alguns aos outros. Era malta porreira. E olhe, meu alferes, devo agradecer ao Luís Cabral porque foi ele que conseguiu que a Cruz Vermelha me trouxesse para Portugal. É mesmo um gajo porreiro.

Espanto ouvir isto de um inimigo de um lado sobre inimigos do outro lado. E ver que estes não hostilizavam o outro. Mais uma vez me tinha de interrogar sobre o significado da palavra inimigo naquela guerra. Mais uma prova que o eram à força, que alguém é que queria que fossem inimigos.

Enquanto falava com o Fragata, ia dando umas miradas aos outros que lá estavam e via-os interessados na conversa. Acabei por ficar familiarizado com aquele ambiente e mais calmo. Senti-me mais à-vontade.

 
– Como é que foste ferido?  –perguntei ao que não tinha mãos.

 – Era o furriel de minas e armadilhas e… já sabe. Estava a desmontar uma armadilha e ela rebentou-me nas mãos.

– Aí o Quim está fodido. Nem uma punheta pode bater – disse o Fragata.

E riu-se, o sem pernas também. Menos o tronco com cabeça. Mas o Quim não se desmanchou.

 
– Trabalho mais e melhor sem mãos do que vocês com elas. Quando a minha Zulmira cá vem vocês vêem bem quanto tempo passo com ela ali no quarto do truca-truca.

Admirei-me pois não imaginava que a tropa se preocupasse em cuidar desse aspecto com os feridos que ali tinha. Se calhar era um esquema organizado por eles, também podia ser. 

Virara-me para o que não tinha pernas e ia-lhe perguntar mas ele antecipou-se.

 
–Era condutor auto-rodas e uma mina que rebentou por baixo da GMC,  levou-me as pernas. Mesmo assim, meu alferes, tive mais sorte que ali o Casqueiro  – apontou para o de tronco e cabeça. – Ele conduzia um Unimog, que é muito mais leve, e a mina levou-lhe tudo. Pernas, braços e tomates. E até o deixou surdo.

Fiquei silencioso. Além dos mortos, até tinha entre eles uns amigos, havia estes jovens com a vida desfeita, sem hipóteses do futuro que podiam vir a ter se não os metessem naquela guerra. O Casqueiro sobretudo. Estava ali, rosto fixo sem ouvir nada da conversa deles. Era um homem-saco só podendo abrir a boca para lhe meterem comida e água. Já reparara que devia ter uma fralda, de certeza que era onde fazia as necessidades. As deste muito mais, mas os outros também tinham ficado com grandes limitações. O Fragata safara-se, e graças ao inimigo. À vista disto já não era a estupidez ou as barbaridades como se fazia a guerra que me perturbavam, era a guerra em si, e sobretudo esta sem sentido que deixava tantos sem futuro.

Os outros notaram como eu estava. O Fragata quis amenizar. Era palerma, às vezes, mas era bom rapaz. Eu sabia disso.

– Eu aqui, meu alferes, sou o anjo deles  
– disse –. Ali ao Quim sou eu que lhe abro a carcela quando ele quer mijar. Mas não lhe pego na gaita! – os outros riram-se.  – O Fragoso não, que o gajo tem mãos para arrear as calças. O Casqueiro não é preciso tratar dele, ele faz tudo sozinho  – riram-se todos. – Tenho é que chamar o enfermeiro quando o gajo se borra e mija todo. É cá um pivete!  – os outros riram-se novamente. –  E à noite? Nem queira saber.  Quando estes gajos se põem a sonhar com minas e emboscadas não me deixam dormir. Tenho de os acordar e chamar o enfermeiro para lhes espetar uma agulha.

Já vira, já vira a malta inutilizada e traumatizada ali despejada. Aquelas piadas eram um intervalo curto nas suas horas longas de angústia e desespero. Tinha de sair dali.

–  Vou-me embora. Mas antes diz-me lá, ó Fragata, ainda bebes mijo?

– Não goze comigo, meu alferes. Agora é só cerveja.

 
– É melhor. Conta lá essa do mijo aos camaradas.

Apertei a mão ao Fragata e ao Fragoso, um coto ao Quim e dei uma palmada no ombro do Casqueiro. Este fez um esgar de saudação. Não ouvira nada mas já devia estar habituado a imaginar.

Dois dias depois, no DGA, meteram-me nas mãos uma guia de marcha para embarcar no Uíge e apresentar-me no Quartel-General do CTIG. O embarque era daí a três dias. Ardera mesmo, concluí. Da primeira vez ainda fora embalado na ignorância, mas agora não, já sabia bem como era aquilo, até já vira as consequências. Porque não fazer como alguns fizeram, o Gonçalves por exemplo, dar o salto para França? Andei todo esse dia em que me deram a guia de marcha a pensar nisso.

À noite marquei um encontro com o meu novo contacto. Falei-lhe da ideia de dar o salto mas ouvi-o dizer o mesmo que já o Herculano Carvalho já me dissera. Que era melhor não desertar, que havia trabalho a fazer na Guiné.

 
– Tens guia de marcha para o QG do CTIG, não é? Ali é que é porreiro. Não vais para o mato e, ali no QG, podes conversar sobre a situação com muita gente. É ótimo sítio para tal.

***

Grande navio, não era nada como o Ana Mafalda. Como não ia integrado em nenhuma companhia era só dormir, comer, jogar às cartas, apanhar sol. Ia um grupo em rendição individual e foram todos bons parceiros. Foi uma viagem magnífica.

Desta vez não foi como da primeira, quando tivera de saltar do Ana Mafalda para uma LDG e seguir logo rio Geba acima. Agora desembarquei em Bissau e fui apresentar-me na Repartição de Pessoal do Quartel General.

–  Você vai ser colocado numa companhia do recrutamento da Província que está lá em cima, ao pé do Senegal  – disse-me um capitão.

Abri a boca de espanto. Mas que merda era esta?!

– Mas, meu capitão, eu vim do hospital da Estrela. Não estou em condições de ir para uma companhia operacional.

– É, pá, tem de ser. Há um alferes de lá que teve de ser hospitalizado e é preciso substituí-lo urgentemente.

– Mas eu estou à rasca dos ouvidos. Como é que vai ser?

– Paciência, nosso alferes. Amanhã, logo de manhã, sai uma DO para levar os frescos e o correio, você vai nela. O capitão de lá já está avisado.

– E não posso ir para a companhia onde estava antes?

 
– Você já foi substituído lá há uma data de tempo. Pensa que tinham lá um lugar em aberto para si, é?  – fez um sorriso irónico. – É o que você vai fazer agora, vai substituir outro.

– Mas o que me foi substituir na outra companhia morreu, eu sei…

– E também já foi substituído, é assim. Prepare-se para partir amanhã.

Que merda! Que fazer? Nada, não podia fazer nada. Apenas ficar furioso e desforrar-me com uns uísques no bar de oficiais.  (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo de A. Marques Lopes, 1944-2024) (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).

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Notas do editor: