Guiné > Região do Cacheu > Barro > CCAÇ 3 (1968/69) > Os temíveis "Jagudis", de etnia balanta, nome de guerra do 3º Gr Comb, comandado pelo alf mil A. Marques Lopes.
Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), reproduzimos as pp. 532/546) (que também constam parcialmente da sua página do Facebook, em postagem de 12 de setembro de 2019). É uma homenagem a um dos nossos, recentemente falecido, um histórico do nosso blogue, e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército. Faleceu com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma.
Último poste da série > 29 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26089: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (14): assim nasceram os Jagudis, nome de guerra do meu grupo de combate, na CCAÇ 3 (Barro, 1968/69)
Uma ida, algo dramático-burlesca, ao Senegal
por A. Marques Lopes (1944 - 2024)
(..) Como eu era o alferes mais antigo, fiquei a comandar a companhia na ausência do capitão, que tinha ido de férias. Houve um dia em que fui chamado a Bigene, ao COP3. O cabo cripto viera com uma mensagem na mão a dizer-me que era para ir falar com o major.
No dia seguinte peguei no meu grupo de combate e numas viaturas e fui para o COP3. No gabinete do major estava também um tipo à civil. Não o conhecia mas tinha um ar que dizia logo quem era. Do alto das suas botas de cavaleiro, o comandante do COP3 apontou com o pingalim para um mapa que tinha cheio de sinais coloridos. Falou sem rodeios:
– O agente Guerra…
– …tem informações que a população de Sano, da parte do Senegal, anda a fazer plantações de arroz e outros produtos na bolanha que está do nosso lado. Eu quero que você vá lá amanhã confirmar isso.
Apontara para o local que o capitão Olavo já lhe tinha indicado como tendo lá uma base do PAIGC. A conversa do major vinha confirmar que a fronteira era apenas uma linha no papel.
– É natural que façam isso, meu major. Antes da guerra aquilo era tudo terra deles, dum lado ou doutro, viviam em conjunto e exploravam as terras em conjunto. Após começar a guerra é que passaram todos para o outro lado mas continuaram a trabalhar aquelas terras que tinham antes. Além disso, meu major, eu acho que uns reconhecimentos aéreos podiam confirmar isso.
De facto, não percebia porque é que era preciso ir lá para ver se era assim como o pide dizia. Pareceu-me e confirmei depois que o major não tinha gostado desta parte final. O pide sorria.
– Ó nosso alferes, eu sei que você andou no seminário e, portanto, sabe o que quer dizer estar a ensinar o padre nosso ao vigário. Você é um miliciano quase imberbe e acha que me pode estar a dar conselhos a mim? E não sabe que o arroz que eles cultivam é para alimentar os terroristas?
Ele não falara em tom acintoso mas deixou-me enrascado. Não era pelo que ele tinha dito, era um homem corajoso e sensato, já mo tinha demonstrado, até gostava dele. Era mais pelo cabrão do pide que olhava para mim com ar zombeteiro. Não tinha dito a ninguém que tinha estado no seminário e só podia ser ele que tinha essa informação. Tinha cá uma vontade de lhe ir ao focinho…
– Peço desculpa, meu major. Não era minha intenção, de maneira nenhuma.
– Há mais – não me deixou acabar – diga lá, ó Guerra.
O pide endireitou-se na cadeira.
– Tenho também uma informação que estará lá um bigrupo reforçado. Consta que prepara um ataque ao seu quartel, alferes, e aqui ao COP. Mas esta não é uma informação muito segura, precisa de confirmação.
– Este é o outro objectivo da sua ida lá – disse o major.-– É o mais importante. Quero que confirme se está lá, de facto, um bigrupo reforçado.
– Mas, meu major, um bigrupo reforçado é muita gente e, se se preparam para nos atacar, hão-de estar bem armados, com armas melhores e mais poderosas que as nossas. Só tenho três grupos de combate na companhia, tenho de deixar um no quartel e ir lá só com dois.
– Que porra! Lá está você outra vez, homem! Eu sei bem isso.
– Percebeu?
– Percebi, meu major.
Percebia e estava a ver que era pior do que daquela vez em que pusera reticências ao capitão para ir ao corredor perto do Senegal. Estava feito
– Então venha aqui – levou-me para mais perto do mapa. -– Um grupo vai até à bolanha e outro, quero que seja o seu, entra no Senegal e apanha esta picada aqui, está a ver? – Eu disse-lhe que sim senhor - Podem apanhar alguém na bolanha, porque eles vão lá, ou na picada, que é o caminho que fazem. É assim, mais nada.
– Eu tenho de ir porque o major decidiu que sim. Qual de vocês quer ir?
Eles olharam um para o outro e o Salgado decidiu-se primeiro.
– Vou eu.
Preferia que fosse o Rodolfo, mas este não disse nada, ficou calado. Procurei não fazer como o Lindolfo e o Mendonça.
– Então, ó Rodolfo, és tu que ficas a tomar conta disto. Porta-te bem. Salgado, vai falar com os teus furriéis e diz-lhes que têm de ter os homens prontos para sair amanhã logo de manhãzinha, às cinco horas. Eu vou fazer o mesmo com os meus. Diz-lhes o que é que vamos fazer e que tenham cuidadinho com a língua. Os gajos que não falem disto com os soldados, senão toda a tabanca fica a saber e estamos feitos. Quando sairmos, e já fora do quartel, ou vou dizer a todos qual é a missão. Agora vamos aqui ao mapa.
Chegaram-se lá e eu foi apontando.
– Vamos juntos até à ponta da bolanha, esta aqui ao pé do Senegal. Aí separamo-nos, eu vou para o Senegal, por aqui, até esta picada, e tu vais para o corpo principal da bolanha, ficas lá e esperas por mim, até eu regressar - o Salgado percebeu a ideia - Vou ter de levar o Bailo comigo para me indicar o caminho para aquela picada do Senegal. Tu chegas facilmente ao teu local, não é?
– Claro, vou chegar lá nas calmas.
Fomos, então, logo às cinco da manhã..
Às vezes dava-me, esta foi uma das vezes. Ia calmo. Era como assistir ao nascer da vida. Os ainda ténues raios de sol que furavam por entre as folhas da floresta levaram-me a pensar na centelha da vida que Michelangelo representou nos tectos da Capela Sistina. Resquícios da formação religiosa. O pipilar ainda suave dos inúmeros pássaros que habitavam as árvores maravilharam-me como lembranças do despertar dolente e suspiroso da Júlia à minha beira. Mas os grunhidos ruidosos e agudos do macaco-cão eram um despertar, alertavam-me para as passadas que devia dar e o caminho a seguir. Mantinham-me atento no meio das divagações.
Chegámos ao local da separação.
– Tens o mapa da zona? – perguntei ao Salgado.
– Tenho, claro.
– Fica aqui, então, que eu vou atravessar a bolanha um pouco mais abaixo e, se tiver problemas, podes apoiar-me com fogo desse lado. Parece-me que é melhor para eu não ser apanhado entre dois fogos. O que achas?
Era uma precaução para não cair novamente nessa situação. Os meus furriéis e os do Salgado comentaram entre eles e pareciam de acordo.
– Está bem, pá – disse também o Salgado.
– Olha, mantém o teu “banana” sempre atento, eu vou estar com o meu também. É para nos mantermos em contacto e para nos irmos informando do que se passa dum lado e doutro. Além disso, o PCV do major do COP deve estar a aparecer e ele também vai querer conversa.
Separei-me levando o Bailo à frente para me indicar o caminho até à tal picada dentro do Senegal. Vira no mapa que a fronteira ali era uma linha recta entre os marcos 132 e 133. Nem sabia se os marcos ainda existiam, mas, mesmo que existissem, deviam estar totalmente cobertos de vegetação e não adiantavam nada para saber onde acabava a Guiné e começava o Senegal. Em certo momento tanto podíamos estar dum lado como do outro. Por isso é que aquela gente não tinha fronteiras. Era tudo o mesmo.
Estávamos há quase meia hora no meio da mata. O Bailo, por indicação minha, não escolhera carreiros e a progressão não era fácil. Quando se começou a ouvir o ronronar da DO, diz o radiotelegrafista:
– Meu alferes, está aqui o PCV.
Peguei no “banana”.
– É pa, já vi que o Salgado está no local indicado – disse o major. – Mas você ainda não chegou, pá!. Estou a ver daqui o sítio onde devia estar.
O engraçado queria festa. Ia levar.
– Meu major, aqui no meio desta mata cerrada não é tão fácil descortinar o objectivo como aí de cima. Tenho tido dificuldades na progressão, mas o meu guia diz-me que estamos quase a chegar.
Uns segundos de silêncio. Devia ter acusado o toque, mas não se descoseu.
– Quando chegar avise-me que eu vou andando por aqui.
Desligou.
Acabámos por chegar e emboscámo-nos na berma da picada.
– Ninguém dispara nem se mexe, só à minha ordem – disse.
– Bailo, levanta-te e fala com eles.
Sabia que era um tipo expedito, embora às vezes até demais. Ele levantou-se logo e foi para o meio da picada. O jipe aproximou-se e parou. Os seus ocupantes sorriram.
– Bonjour, camarade – disse um deles.
– Quietos! – gritei, apontando-lhes a G3.
– Banderra de Senegal amie de banderra de Portugal.
Disse isto com voz arrastada enquanto o outro abanava a cabeça de assentimento. Achei-lhes piada.
– Deixem-se de merdas! O que é que fazem aqui?
Os sacanas até percebiam português. Ou não, se calhar apenas se apressaram com uma desculpa. Houve uma agitação e vi o Blétche e o Falcão de armas apontadas para a picada do lado da tabanca.
– Ninguém dispara!
– Iam para uma tabanca aqui perto onde têm família. O velho é avô do rapaz e é cego.
Foi a informação do Otcha depois de falar com eles. A DO estava agora por cima de nós. O radiotelegrafista trouxe-me o “banana”.
– O que é que se passa aí em baixo, nosso alferes?
– Meu major, é um jipe com dois gendarmes do Senegal, apareceram aqui. Parece-me que é melhor irmos embora, já não dá para o que viemos fazer.
– Eh, pá! Mande os gajos embora, e sem uma beliscadura. Não podemos arranjar problemas desses. Depois pode retirar.
Virei-me, depois, para os gendarmes.
– Allez-vous en! Levem o cego e o miúdo!
Ficaram encantados, nem se lhes notou qualquer contrariedade por não irem ter com as “femmes amies”. Elas lá estariam à espera para outra altura, certamente.
–Agarrem nos dois e metam-nos no jipe –disse para os que cercavam o avô e o neto.
– Está ali uma mulher! – gritou o Otcha.
Vi que o bambaran se soltara e a criança caíra no chão. A mulher virou-se angustiada a ver a criança a chorar mas olhou com terror para o Clode e o Falcão que corriam para ela e continuou a fugir internando-se na mata.
De repente o silvo de um rocket. Atiráramo-nos todos para o chão. O rocket rebentou perto das palmeiras.
– Clode, Falcão, tragam a criança! Todos para a mata!
O Clode corria com a criança nos braços. Começou o fogachal do lado do Senegal. Já abrigados na orla da clareira, disse para o Bailo:
– Estamos longe do alferes Salgado?
Mandei, depois, o furriel Fernandes ir com a secção dez metros para trás, recomendando-lhe que só disparassem morteiradas. O Lindolfo foi dez metros para a direita. Fiquei com o Aguinaldo Baldé, que tinha o Benhanté com a bazuca. Disse também a três homens da secção dele para irem dez metros para a esquerda. Era uma precaução porque tinha a ideia que eles podiam cercar-nos. Com a bazuca ali podia retê-los até decidir recuar.
– Devíamos ter matado eles.
As bazucadas do Benhanté e os dilagramas do Otcha mantinham-nos em respeito. Disse ao radiotelegrafista para ligar ao alferes Salgado. Quando o fez deu-me o “banana”.
– É, pá, eu já não estou no mesmo sítio. Vou a caminho do quartel.
O Aguinaldo, mesmo no meio do tiroteio, apercebera-se da conversa.
– O que foi, meu alferes?
– O alferes Salgado deixou-nos, foi-se embora.
– O alferes Salgado não é bom.
– É mas é um grande filho da puta – estava mais que furioso.
– Estamos aqui com um problema, meu major.
– Já sei. Estava na pista do quartel e ouvi. É o tal bigrupo?
- Podem não ter querido mostrar. Mas agora não interessa.
– É ótimo, para ver se não vêm atrás de nós. Além disso podem dar cabo de umas plantações de arroz que eles têm na bolanha. Mas isso o meu major já sabe.
– Toca a andar, homem. Eu vou para o quartel e falamos lá.
Não explodia facilmente, era verdade.
Não íamos muito longe quando os T6 apareceram. Despejaram umas tantas e foram-se embora. Mas deu para que os do PAIGC não nos fossem no encalço. Durante o caminho cheguei-me à secção do Fernandes, onde o Clode continuava com a criança ao colo.
– Nomi di bó? – perguntei-lhe.
– É badjudinha – disse o Clode.
-– Tá bem, é rapariga. Ó Fernandes, que dia é hoje?
– É terça-feira.
No dia seguinte peguei no meu grupo de combate e numas viaturas e fui para o COP3. No gabinete do major estava também um tipo à civil. Não o conhecia mas tinha um ar que dizia logo quem era. Do alto das suas botas de cavaleiro, o comandante do COP3 apontou com o pingalim para um mapa que tinha cheio de sinais coloridos. Falou sem rodeios:
– O agente Guerra…
Sou bruxo, pensei, é da PIDE e tem ar de fuinha como o pide Alberto que vi em Bafatá. O major continuava.
– …tem informações que a população de Sano, da parte do Senegal, anda a fazer plantações de arroz e outros produtos na bolanha que está do nosso lado. Eu quero que você vá lá amanhã confirmar isso.
Apontara para o local que o capitão Olavo já lhe tinha indicado como tendo lá uma base do PAIGC. A conversa do major vinha confirmar que a fronteira era apenas uma linha no papel.
– É natural que façam isso, meu major. Antes da guerra aquilo era tudo terra deles, dum lado ou doutro, viviam em conjunto e exploravam as terras em conjunto. Após começar a guerra é que passaram todos para o outro lado mas continuaram a trabalhar aquelas terras que tinham antes. Além disso, meu major, eu acho que uns reconhecimentos aéreos podiam confirmar isso.
De facto, não percebia porque é que era preciso ir lá para ver se era assim como o pide dizia. Pareceu-me e confirmei depois que o major não tinha gostado desta parte final. O pide sorria.
– Ó nosso alferes, eu sei que você andou no seminário e, portanto, sabe o que quer dizer estar a ensinar o padre nosso ao vigário. Você é um miliciano quase imberbe e acha que me pode estar a dar conselhos a mim? E não sabe que o arroz que eles cultivam é para alimentar os terroristas?
Ele não falara em tom acintoso mas deixou-me enrascado. Não era pelo que ele tinha dito, era um homem corajoso e sensato, já mo tinha demonstrado, até gostava dele. Era mais pelo cabrão do pide que olhava para mim com ar zombeteiro. Não tinha dito a ninguém que tinha estado no seminário e só podia ser ele que tinha essa informação. Tinha cá uma vontade de lhe ir ao focinho…
– Peço desculpa, meu major. Não era minha intenção, de maneira nenhuma.
– Há mais – não me deixou acabar – diga lá, ó Guerra.
O pide endireitou-se na cadeira.
– Tenho também uma informação que estará lá um bigrupo reforçado. Consta que prepara um ataque ao seu quartel, alferes, e aqui ao COP. Mas esta não é uma informação muito segura, precisa de confirmação.
– Este é o outro objectivo da sua ida lá – disse o major.-– É o mais importante. Quero que confirme se está lá, de facto, um bigrupo reforçado.
– Mas, meu major, um bigrupo reforçado é muita gente e, se se preparam para nos atacar, hão-de estar bem armados, com armas melhores e mais poderosas que as nossas. Só tenho três grupos de combate na companhia, tenho de deixar um no quartel e ir lá só com dois.
– Que porra! Lá está você outra vez, homem! Eu sei bem isso.
Continuou a falar. Eu ouvia-o mas ia também pensando que fizera bem em levantar dúvidas desde o princípio. Palpitava-me que ele lhe estava a fazer o mesmo que o coronel do Agrupamento de Bafatá quando o mandara para levar porrada e ficar na bolanha em Sinchã Jobel. Este só não me tinha ainda dito para levar uma corda. O major acabou por me dizer que, pelo menos, conseguisse um prisioneiro para interrogar e que andaria lá num PCV para me orientar.
– Percebeu?
– Percebi, meu major.
Percebia e estava a ver que era pior do que daquela vez em que pusera reticências ao capitão para ir ao corredor perto do Senegal. Estava feito
– Então venha aqui – levou-me para mais perto do mapa. -– Um grupo vai até à bolanha e outro, quero que seja o seu, entra no Senegal e apanha esta picada aqui, está a ver? – Eu disse-lhe que sim senhor - Podem apanhar alguém na bolanha, porque eles vão lá, ou na picada, que é o caminho que fazem. É assim, mais nada.
Despediu-me e cumprimentei o major. Ao pide não liguei.
Uma vez no quartel juntei-me com o Salgado e o Rodolfo e expliquei-lhes a ideia do major do COP.
– Eu tenho de ir porque o major decidiu que sim. Qual de vocês quer ir?
Eles olharam um para o outro e o Salgado decidiu-se primeiro.
– Vou eu.
Preferia que fosse o Rodolfo, mas este não disse nada, ficou calado. Procurei não fazer como o Lindolfo e o Mendonça.
– Então, ó Rodolfo, és tu que ficas a tomar conta disto. Porta-te bem. Salgado, vai falar com os teus furriéis e diz-lhes que têm de ter os homens prontos para sair amanhã logo de manhãzinha, às cinco horas. Eu vou fazer o mesmo com os meus. Diz-lhes o que é que vamos fazer e que tenham cuidadinho com a língua. Os gajos que não falem disto com os soldados, senão toda a tabanca fica a saber e estamos feitos. Quando sairmos, e já fora do quartel, ou vou dizer a todos qual é a missão. Agora vamos aqui ao mapa.
Chegaram-se lá e eu foi apontando.
– Vamos juntos até à ponta da bolanha, esta aqui ao pé do Senegal. Aí separamo-nos, eu vou para o Senegal, por aqui, até esta picada, e tu vais para o corpo principal da bolanha, ficas lá e esperas por mim, até eu regressar - o Salgado percebeu a ideia - Vou ter de levar o Bailo comigo para me indicar o caminho para aquela picada do Senegal. Tu chegas facilmente ao teu local, não é?
– Claro, vou chegar lá nas calmas.
Fomos, então, logo às cinco da manhã..
Às vezes dava-me, esta foi uma das vezes. Ia calmo. Era como assistir ao nascer da vida. Os ainda ténues raios de sol que furavam por entre as folhas da floresta levaram-me a pensar na centelha da vida que Michelangelo representou nos tectos da Capela Sistina. Resquícios da formação religiosa. O pipilar ainda suave dos inúmeros pássaros que habitavam as árvores maravilharam-me como lembranças do despertar dolente e suspiroso da Júlia à minha beira. Mas os grunhidos ruidosos e agudos do macaco-cão eram um despertar, alertavam-me para as passadas que devia dar e o caminho a seguir. Mantinham-me atento no meio das divagações.
Chegámos ao local da separação.
– Tens o mapa da zona? – perguntei ao Salgado.
– Tenho, claro.
– Fica aqui, então, que eu vou atravessar a bolanha um pouco mais abaixo e, se tiver problemas, podes apoiar-me com fogo desse lado. Parece-me que é melhor para eu não ser apanhado entre dois fogos. O que achas?
Era uma precaução para não cair novamente nessa situação. Os meus furriéis e os do Salgado comentaram entre eles e pareciam de acordo.
– Está bem, pá – disse também o Salgado.
– Olha, mantém o teu “banana” sempre atento, eu vou estar com o meu também. É para nos mantermos em contacto e para nos irmos informando do que se passa dum lado e doutro. Além disso, o PCV do major do COP deve estar a aparecer e ele também vai querer conversa.
Separei-me levando o Bailo à frente para me indicar o caminho até à tal picada dentro do Senegal. Vira no mapa que a fronteira ali era uma linha recta entre os marcos 132 e 133. Nem sabia se os marcos ainda existiam, mas, mesmo que existissem, deviam estar totalmente cobertos de vegetação e não adiantavam nada para saber onde acabava a Guiné e começava o Senegal. Em certo momento tanto podíamos estar dum lado como do outro. Por isso é que aquela gente não tinha fronteiras. Era tudo o mesmo.
Estávamos há quase meia hora no meio da mata. O Bailo, por indicação minha, não escolhera carreiros e a progressão não era fácil. Quando se começou a ouvir o ronronar da DO, diz o radiotelegrafista:
– Meu alferes, está aqui o PCV.
Peguei no “banana”.
– É pa, já vi que o Salgado está no local indicado – disse o major. – Mas você ainda não chegou, pá!. Estou a ver daqui o sítio onde devia estar.
O engraçado queria festa. Ia levar.
– Meu major, aqui no meio desta mata cerrada não é tão fácil descortinar o objectivo como aí de cima. Tenho tido dificuldades na progressão, mas o meu guia diz-me que estamos quase a chegar.
Uns segundos de silêncio. Devia ter acusado o toque, mas não se descoseu.
– Quando chegar avise-me que eu vou andando por aqui.
Desligou.
Acabámos por chegar e emboscámo-nos na berma da picada.
– Ninguém dispara nem se mexe, só à minha ordem – disse.
Avisei o major da chegada e liguei ao Salgado para saber como estava. Este disse-me que não via vivalma. O PCV deu mais umas voltas e afastou-se. Ainda bem, pensei, senão os tipos começavam a desconfiar que havia ali qualquer coisa.
A certa altura, o Bailo, que estava perto a espreitar por entre uns ramos, segreda-me:
– Alfero, um djipi.
Espreitei também.
– São turras?
O Bailo observou melhor.
– Polícia Senegal – disse.
Bonito, só faltava isto. Tinha de os tirar dali. O Bailo não usava camuflado, era guia civil, ia ver o que é que dava.
– Bailo, levanta-te e fala com eles.
Sabia que era um tipo expedito, embora às vezes até demais. Ele levantou-se logo e foi para o meio da picada. O jipe aproximou-se e parou. Os seus ocupantes sorriram.
– Bonjour, camarade – disse um deles.
Pensaram que era um do PAIGC. Era o que eu queria, que parassem confiantes. Fiz sinal para todos se levantarem e fui o primeiro a saltar. Assim que me viram, era um branco!, ficaram de olhos esbugalhados e levaram instintivamente as mãos às armas.
– Quietos! – gritei, apontando-lhes a G3.
Foram cercados pelo grupo e ficaram quietos. Viram logo que o branco era o comandante e um virou-se para mim.
– Banderra de Senegal amie de banderra de Portugal.
Disse isto com voz arrastada enquanto o outro abanava a cabeça de assentimento. Achei-lhes piada.
– Deixem-se de merdas! O que é que fazem aqui?
– Nous avons des femmes amies au village.
Os sacanas até percebiam português. Ou não, se calhar apenas se apressaram com uma desculpa. Houve uma agitação e vi o Blétche e o Falcão de armas apontadas para a picada do lado da tabanca.
– Ninguém dispara!
Ao meu grito abaixaram as G3.
Um miúdo de sete ou oito anos arrastava apressadamente pela mão um velho. Vinham pela picada, depois de ter visto o grupo o miúdo tentava fugir.
– Aguinaldo, vá lá buscá-los – e disse aos outros para vigiarem os gendarmes.
A secção do Aguinaldo agarrou-os facilmente. Antes de chegarem, reparei que o velho era cego. O miúdo era o guia dele.
O velho, agitado, dizia algumas palavras que não entendia mas que me pareceram crioulo. Disse ao Otcha para saber o que andavam a fazer e para onde iam. O rapazito estava cheio de medo. O cego abria os olhos baços e franzia a boca receosa. Apercebera-se do mal invisível.
O velho, agitado, dizia algumas palavras que não entendia mas que me pareceram crioulo. Disse ao Otcha para saber o que andavam a fazer e para onde iam. O rapazito estava cheio de medo. O cego abria os olhos baços e franzia a boca receosa. Apercebera-se do mal invisível.
– Iam para uma tabanca aqui perto onde têm família. O velho é avô do rapaz e é cego.
Foi a informação do Otcha depois de falar com eles. A DO estava agora por cima de nós. O radiotelegrafista trouxe-me o “banana”.
– O que é que se passa aí em baixo, nosso alferes?
– Meu major, é um jipe com dois gendarmes do Senegal, apareceram aqui. Parece-me que é melhor irmos embora, já não dá para o que viemos fazer.
– Eh, pá! Mande os gajos embora, e sem uma beliscadura. Não podemos arranjar problemas desses. Depois pode retirar.
Virei-me, depois, para os gendarmes.
– Allez-vous en! Levem o cego e o miúdo!
Ficaram encantados, nem se lhes notou qualquer contrariedade por não irem ter com as “femmes amies”. Elas lá estariam à espera para outra altura, certamente.
–Agarrem nos dois e metam-nos no jipe –disse para os que cercavam o avô e o neto.
Quando os gendarmes partiram dei ordem de abandono da posição. Não era bom continuar ali pois tinha a certeza que eles iam avisar o PAIGC. Disse ao Bailo para ir por caminho mais fácil, não queria demorar muito com receio de sermos perseguidos. Metemos pela mata em direcção à Guiné e demos com uma tabanca. Estava abandonada, com alguns restos de moranças ainda, muito mato rasteiro, mas havia um grupo de bananeiras ao pé da mata. Devia ser Sarancototo, pelo que vira no mapa.
– Está ali uma mulher! – gritou o Otcha.
Todos viraram a cara para lá. Ela tinha-os ouvido e virou também a cara para nós. Viu-nos e desatou a correr. Levava uma criança no bambaran, o pano para segurar as crianças às costas. Logo alguns levantaram a G3.
– Quietos! – gritei saltando para a frente deles. – Fodo o primeiro que disparar! Clode, Falcão, vão atrás dela!
A morte de Abess nunca mais me saíra da cabeça e não queria outra situação idêntica.
Vi que o bambaran se soltara e a criança caíra no chão. A mulher virou-se angustiada a ver a criança a chorar mas olhou com terror para o Clode e o Falcão que corriam para ela e continuou a fugir internando-se na mata.
De repente o silvo de um rocket. Atiráramo-nos todos para o chão. O rocket rebentou perto das palmeiras.
– Clode, Falcão, tragam a criança! Todos para a mata!
O Clode corria com a criança nos braços. Começou o fogachal do lado do Senegal. Já abrigados na orla da clareira, disse para o Bailo:
– Estamos longe do alferes Salgado?
– Não tá, nossalfero. Tá perto à direita.
Mandei, depois, o furriel Fernandes ir com a secção dez metros para trás, recomendando-lhe que só disparassem morteiradas. O Lindolfo foi dez metros para a direita. Fiquei com o Aguinaldo Baldé, que tinha o Benhanté com a bazuca. Disse também a três homens da secção dele para irem dez metros para a esquerda. Era uma precaução porque tinha a ideia que eles podiam cercar-nos. Com a bazuca ali podia retê-los até decidir recuar.
– Polícias foram avisar os turras – disse o Aguinaldo por entre as rajadas.
– Claro.
– Devíamos ter matado eles.
– E arranjávamos um trinta e um do caraças, era?.
As bazucadas do Benhanté e os dilagramas do Otcha mantinham-nos em respeito. Disse ao radiotelegrafista para ligar ao alferes Salgado. Quando o fez deu-me o “banana”.
– Ó Salgado, estás a ver o que está a suceder?
– Estou, pá, bem as oiço. Estou a ver que tens festa.
– Tu daí podes dar-nos uma ajudinha. Nós estamos na tabanca que está à tua esquerda. Tens o mapa, faz os cálculos e manda-lhes umas morteiradas para a mata do lado do Senegal.
– É, pá, eu já não estou no mesmo sítio. Vou a caminho do quartel.
– O quê!? Foda-se! Tínhamos combinado que ficavas lá à minha espera!
– É pá, vi que não estava lá a fazer nada.
– Vai pró caralho! – e desliguei.
O Aguinaldo, mesmo no meio do tiroteio, apercebera-se da conversa.
– O que foi, meu alferes?
– O alferes Salgado deixou-nos, foi-se embora.
– O alferes Salgado não é bom.
– É mas é um grande filho da puta – estava mais que furioso.
Passados mais uns minutos, disse ao Benhanté para mandar mais uma bazucada e ao Otcha um dilagrama e mandei recuar. Verifiquei que do lado esquerdo e do direito também o faziam.
Enquanto isso o Fernandes continuava com as morteiradas. Quando nos juntámos todos ouvi a DO. Foi eu que ligou logo.
– Estamos aqui com um problema, meu major.
– Já sei. Estava na pista do quartel e ouvi. É o tal bigrupo?
– Parece-me que não há nenhum bigrupo, meu major. Os que nos atacaram não têm esse poder de fogo, além de que não tiveram capacidade para uma manobra de envolvimento que nos lixasse.
- Podem não ter querido mostrar. Mas agora não interessa.
Retire-se que eu vou pedir uns T6 para despejarem aí umas bujardas.
– É ótimo, para ver se não vêm atrás de nós. Além disso podem dar cabo de umas plantações de arroz que eles têm na bolanha. Mas isso o meu major já sabe.
Uns segundos para engolir, como era hábito.
– Toca a andar, homem. Eu vou para o quartel e falamos lá.
Não explodia facilmente, era verdade.
Não íamos muito longe quando os T6 apareceram. Despejaram umas tantas e foram-se embora. Mas deu para que os do PAIGC não nos fossem no encalço. Durante o caminho cheguei-me à secção do Fernandes, onde o Clode continuava com a criança ao colo.
– Nomi di bó? – perguntei-lhe.
– É badjudinha – disse o Clode.
Ela não disse nada e chorou.
-– Tá bem, é rapariga. Ó Fernandes, que dia é hoje?
– É dia 20 de Agosto, meu alferes.
– Não. O dia da semana.
– É terça-feira.
– Então, como a miúda não quer ou não sabe ainda dizer o nome, vamos chamar-lhe Terça.
O pessoal ouviu, cochicharam entre eles e acharam piada. Era normal para eles, havia muitas Sábado e Segunda, conforme o dia da semana em que tinham nascido. Não era novidade.
Quando chegaram ao quartel, o primeiro que viu foi o Salgado. Foi o o primeiro proque era quem queria ver. Estva com o Rudolfo. Dirigiu-se a ele, deG3 em riste.
– Se me fazes aquilo outra vez, fodo-te o coiro!
(...)
(Revisão / fixação de texto, título: LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 29 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26089: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (14): assim nasceram os Jagudis, nome de guerra do meu grupo de combate, na CCAÇ 3 (Barro, 1968/69)