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quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26004: O melhor de... A Marques Lopes (1944 - 2024) (12): Uma noite no "Comodoro" com o Herculano Carvalho , da 3ª CCmds("Cabra Cega", 2015, pp. 442/443 e 452/461)





Lisboa > Praça D. João da Câmara, nº 20> Restaurante-bar "Comodoro" > C. 1960 > Cortesia do blogue "Restos de Cokleção" > 16 de outubro de 2018



Notícia da inauguração do restaurante-bar "Comodor0" > Diário de Lisboa, 
5 de fevereiro de 1960, pág. 15.


1. Mais um excerto das melhores partes do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, pp. 442/443 e 451/461 (com a devida vénia...) (*)


Sabendo do prognóstico reservado da doença de evolução prolongada que o iria vitimar,e  apesar do seu apego à vida, e do seu franco otimismo, o A. Marques Lopes quis partilhar, anmtes de morrer,  muitas das melhores páginas do seu livro de memórias, "Cabra Ceba", acabando por assumir que era a sua autobiografia... Terá sido uma espécie de último testamento. Replicar aqui alguns dssses excertos é homenagear a sua memória. Ele foi um dos primeiros camaradas da Guiné a dar cara no nosso blogue, logo em 2005. Tem mais de 280 referências

Seguimos o seu texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, nas postagem de 19 de maio de 2023, 19:20.
  

O Herculano de Carvalho, da 3ª CCmds, e o "Comodoro"...

por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)

 

Já no hospital militar da Estrela encontrei lá o Herculano (**) logo no primeiro dia. Andava nos tratamentos.

  Vais ficar aqui? 
  perguntou-me.

 − Tem que ser, não é?

 − Pelo teu aspeto, pelo tipo de ferimentos que tens até te mexes bem, parece-me que não tem que ser. Tens cá família?

 − Tenho os meus pais, moram em Lisboa.

 −  Então faz como eu. Quando cá cheguei disse-lhes que tinha família na Amadora e eles deixaram-me ir para casa deles. Só venho cá aos tratamentos. E já me disseram que não vão durar muito porque isto não tem cura, qualquer dia vou a uma junta médica e mandam-me embora. E, olha, até te vão agradecer porque precisam de camas para casos mais graves e para gajos que são da província.

Fiquei encantado com a ideia e fui com o Herculano aos serviços administrativos. Ficou assente que podia ir para casa e que devia estar no hospital todas as segundas, quartas e sextas, às nove horas, para tratamentos.

O Herculano levou-me no seu Citroen 2 cavalos até à porta da casa dos meus pais.

 
 − Está aqui o meu telefone   − disse-me ao despedir-se.   − Dá-me um toque para combinarmos ir dar uma volta por aí.

 − Claro, podes ter a certeza. (...)

(...) No dia seguinte telefonei-lhe.

 
− Queres ir dar uma volta esta noite? Ou tens que ir ao hospital amanhã?

 − Não, não tenho. Olha, ainda bem que me ligaste porque precisava de falar contigo. Mas aonde é que estás a pensar ir?

  Não vou aos fados, pá, nem penses. Quero ir ao "Comodoro", é um sítio porreiro e já tenho saudades daquilo.

Era verdade. Não tinha lá ido ainda desde que traçara o plano de tratamento. Fora a outros mas àquele não.

 
 − Hui, isso é muito chique, de gente fina! Há outros sítios de gente mais como nós. Além disso, não podes antes encontrar-te comigo esta tarde?

Falava alto pra caraças. Não estava a perceber as reticências dele. Já tínhamos andado os dois por vários lados, por onde o ele queria. Fora num deles que o ligara à organização. Achou que desta vez era eu a decidir.

 
 − Não, não pode ser  − disse-lhe.   − Já tenho o meu esquema montado. Tenho uns filmes para ver e estou mesmo decidido a ir ao "Comodoro". E fala-me mais baixo, pá. Tirei os tampões para te ouvir. Os tímpanos par ecem estar melhor, não me dês cabo deles agora.

- Desculpa lá. Então está bem, vamos ao "Comodoro".

Encontraram-se à meia-noite junto ao  D. Maria . Foram até ao "Comodoro" e tocaram à campainha. O porteiro abriu a porta solicitamente. Foi o que nos pareceu, mas mal. Depois de os mirar de alto abaixo inquiridoramente, disse-lhes com ar de cepo:

 − Não podem entrar. É reservado.

O Herculano ficou calado mas eu perguntei-lhe em voz alta:

 − O que é isso de reservado?

− É só para clientes e seus acompanhantes.~

Fiquei fulo e levantei mais a voz:

 
− Eu sou cliente! Vim aqui várias vezes antes de ir para a guerra. Andei lá a defender isto! Agora que vim de lá ferido já não sou cliente, é?!

O Herculano só dizia "deixa lá, deixa lá, vamos a outro lado". Mas o porteiro estava roxo de enrascado e já falava como lírio do campo.

 
− O senhor desculpe, mas são as normas. Se conhece alguém…

− Claro que conheço! O Zeferino do bar e o gerente.

Não conhecia nada o gerente, só de vista e nunca tinha falado com ele. Mas o Zeferino, sim. Nas várias horas passadas no bar tinha tido conversas com ele. Era o típico barman confidente de uísques  e gins tónicos.

Pareceu-me que a minha voz alta já tinha chegado lá dentro pois apareceu à porta um tipo de fatinho azul e todo engravatado. Era o gerente, topei-o.

 
− O que se passa, Romeu?  − perguntou ao porteiro.

Está calado, Romeu, agora sou eu. Não o deixei falar:

 
− Eu e o meu amigo aqui viemos feridos da Guiné e queríamos entrar, mas o senhor Romeu diz que não pode ser. Eu sou alferes da companhia do capitão Guimarães. Vim aqui várias vezes com ele, lembra-se?

Vi logo que tinha dado um golpe certeiro. O homem ficou sério.

− Ah, o capitão Guimarães, claro que me lembro. Sei que morreu lá, coitado.(***)

Não se havia de lembrar, não. E a morte dele custou-lhe muito, claro. Grande sacana é o que ele era. O gerente virou-se para o porteiro:

 
− Romeu, deixa estes senhores entrar.

Conduziu-nos até ao bar.

 
− Zeferino, serve uma bebida a estes senhores. É por conta da casa. Estejam à vontade.

Afastou-se e eles sentaram-se. O Zeferino chegou-se e perguntou-lhes o que queriam. Ri-me para ele.

 
− Ó Zeferino, não me digas que te esqueceste das minhas preferências.

O barman olhou, interrogativamente primeiro, mas depois de uns momentos abriu-se num sorriso e estendeu-lhe a mão.

− Ah!...Como está? Então por cá?!

 
− É verdade. Não como eu queria, mas estou cá.

O Zeferino serviu-lhe um uísque com gelo e o Herculano também quis um. Contaram que tinham sido evacuados, falaram sobre a guerra, eu sobre a morte do Guimarães também, o Zeferino disse que já sabia. Como estava a mulher e os filhos dele, enfim, coisas do costume e normais. Quando os copos estavam a ficar vazios perguntei-lhe:

 Ouve lá, o capitão Guimarães não deixou aí nenhuma garrafa?

 
− Não há nenhuma. Se deixou já desapareceu. Sabe como estas coisas são...

Tinham-na gamado, claro. O gerente pensou que homem morto não bebe mais.

 Claro – compreendera. 
  Então traz uma de Dimple para aqui que eu pago.

 Para que é isso, pá? Não vamos beber uma garrafa inteira.

 
− Ó Herculano, claro que não. Vou fazer como o Guimarães. Ele tinha sempre uma garrafa reservada para se servir quando cá vinha. Esta vai ficar para quando voltarmos aqui. É o esquema, pá.

O Zeferino estava a servir dois clientes que se tinham também chegado ao balcão. Virámo-nos para observar a sala. Eu já sabia como era. Um ou dois gajos em cada mesa, e em todas elas uma ou mais mulheres, bem aconchegadas de vestimentas mas todas com ar de profissionais.

 Lá estava o filho da puta do banqueiro todo enleado com três. Uma delas olhou para eles, cochichou para as outras e para o banqueiro. Viraram-se todas e riram. Não reagi porque me palpitou da razão do riso delas. Era melhor sair dali.

– Há ali uma mesa vazia naquele canto  
− disse ao Herculano.  − Vamos para ali.

O Zeferino fez sinal a um empregado para lhes levar os copos, o balde do gelo e a garrafa. Quando já sentados dei um toque com o cotovelo no Herculano e apontei-lhe com a cabeça a mesa onde estavam as mulheres que se riram.

 
− Aquele engravatadinho com cara de fuinha é banqueiro.

 − Como é que ele se chama?

 − Não sei. O Guimarães disse-me o nome dele mas já não me lembro.

 Passa aqui as noites, e sabes qual é o divertimento dele?

 − Anda a comer as gajas, não?

 
− Qual quê, pá! Não vês que ele já está com os pés para a cova?! O que faz, não sei se já fez isso esta noite, se calhar não, é cedo, ainda estão poucas na mesa dele. Agarra uma nota de mil na mão e pergunta-lhes par ou ímpar? Aquela que primeiro adivinhar o último algarismo do número da nota ganha. Passa-lhe a nota para a mão e os olhos brilham-lhe de felicidade. É assim que ele se vem, acho eu.

− Filho da puta! − o Herculano estava escandalizado.

 − Dizes bem, também já lhe chamei isso. Mas há mais. Nas vésperas de embarcarmos para a Guiné viemos todos aqui, os alferes e o capitão. Ele é que o conhecia e esteve uma data de tempo a falar com ele. Olha, nessa altura mamámos quase uma garrafa inteira do Guimarães. Passado tempo veio ter connosco e disse-nos que o banqueiro, porque íamos para a guerra, tinha pago às cinco que estavam na mesa com ele para irem connosco.

O Herculano ia beberricando e olhava-o fixamente com os olhos de camaleão.

– E fomos mesmo  
− continuei  − para uma casa de uma delas, precisamente da que olhou há pouco para nós e que pôs as outras a rir, eu bem a topei. Começámos com um jogo a que elas chamaram “tira”. Quem perdia tinha de tirar uma peça de roupa. Íamos bebendo, jogando, despindo. Passada mais de uma hora, sei lá, já não havia noção de nada e foi a desbunda completa, cada um com a sua pelos quartos que havia e pelos cantos da casa.

Ele olhou-me reprovadoramente.

 
− É pá, porra, como é que vocês entraram numa coisa dessas?

Não gostei.

- O que é que querias que fizéssemos? Que fôssemos a Fátima rezar o terço? Tás maluco. Nós já sabíamos que íamos para o mato e que mulher era zero. Não íamos ter a sorte que os comandos tinham, uns saltos ao mato e depois era passar o tempo em Bissau para andar atrás das putas. Sim, foram meses no mato e zero, zero, assim  
− juntei o indicador e o polegar −,  tás a ver?

Para ele até não fora totalmente zero, mas fora para os dos destacamentos. Calou-se porque ele lhe fizera sinal para baixar a voz e viu que olhavam para eles das outras mesas. O gerente, ao pé de uma delas, estava com cara de poucos amigos. Teve tempo para pensar que tinha feito mal com aquela dos comandos. O Herculano tinha sido comando e também viera evacuado.

Desculpa lá, exaltei-me 
  disse-lhe.

− Eu não estou contra vocês terem ido com elas. É outra coisa. Nós andamos na guerra por causa do banqueiro e outros da laia dele. E dão um rebuçadinho, às vezes, que é para nós irmos e estarmos lá todos contentinhos. Foi o que ele vos fez.

Sabia que ele tinha razão. Ainda estive para lhe dizer que uma oportunidade daquelas não se podia perder, apesar disso. Mas não, pareceu-me que era melhor acabar ali aquela conversa.

 
− Ouve lá. Quando te liguei disseste-me que estavas a pensar falar comigo. O que era?

 Aqui não dá. Isto deve estar cheio de bufos e de pides. Eu levo-te a casa e no carro logo falamos.

Levei a garrafa, entreguei-a ao Zeferino e recomendei-lhe que a guardasse. À saída fiz um aceno de despedida ao gerente. Não é que o gramasse, mas era bom para o futuro.

Já íamos no carro e ele:

− O que eu te queria dizer é que temos que nos encontrar amanhã com outros camaradas e era preciso uma casa para isso. Na da minha tia não dá porque há lá sempre muita gente e estava a pensar na tua. Será que pode ser?

 E a que horas é?

 − Às dez da manhã.

 
− A essa hora tenho de estar no hospital. Só se forem vocês e depois falas comigo sobre o que decidiram. O meu pai e a minha irmã estão a trabalhar e a minha mãe vai a uma consulta ao hospital. Eu dou-te a chave de casa.

−  Está bem. Falamos os dois depois.


Chegámos, entretanto, ao largo da Calçada da Patriarcal. Parou o carro ao pé das árvores. Lembrei-me duma coisa.

− Mas espera aí, ó Herculano. Não sei se é o melhor ser em minha casa. É que, em tempos, apareceu lá na caixa do correio uma carta para um tal Aníbal de São José Lopes. A minha mãe foi perguntar à vizinha se não seria para ela. E a vizinha disse-lhe que era um gajo da PIDE que tinha antes lá morado mas que, agora, estava em Angola.

Ele ficou calado, parecia apreensivo.

 
− Mas há quanto tempo é que ele morou lá?  acabou por perguntar.

− Não sei. Mas, como os meus Pais já moram lá há mais de cinco anos, foi há mais tempo.

−Então deixa estar. Dá cá a chave. Até tem piada. Mas, olha, já agora outra coisa. A semana passada fui a uma junta médica e os gajos deram-me como inapto para a tropa. Isto da hemofilia não tem remédio.

− Porreiro, Herculano! Então estás livre da guerra ?!

 − Não é nada porreiro. Sabes muito bem que a orientação é não fugir à guerra. É lá com os outros que temos de estar, é lá que podemos influenciar, não é fugindo para França. Mas, paciência, comigo já não há hipóteses. Para compensar pus-me a delegado de propaganda médica, dá-me para andar por aí e desenvolver o trabalho clandestino.

 − Mas deves concordar que é melhor do que estar na guerra.

 − Claro. Mas lá também se pode trabalhar, e é muito importante.

Concordei com ele e despedi-me. Toquei à campainha e tive de dizer à minha mãe que me tinha esquecido da chave. (...)


(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

_______________


(**) Vd. biografia do Herculano de Carvalho (1943-1976)

O Herculano de Carvalho já era conhecido do A. Marques Lopes, da  EPI, Mafra... Voltaram a encontrar-ase no HMP, Estrela, Lisboa...

(...) Encontrei lá o meu amigo Herculano de Carvalho. Fora meu colega no 2º pelotão do COM de Mafra. Magro, louro, olhos azuis grandes, era um aventureiro, uma máquina em todos os exercícios. Mas foi sempre um bom companheiro, diferente de outros que lá andavam a armar-se em bons e achavam, por isso, ser superiores. Eu sabia que ele, depois da especialidade de atirador, tinha sido mandado para os comandos, e nunca mais soubera dele. Foi um grande abraço. Perguntei-lhe:

− O que é que andas aqui a fazer?

− Ando em tratamento.

− A quê?

−  Tenho hemofilia.

Fiquei banzado. Como era possível um tipo hemofílico ser enviado para os comandos!? Mesmo para a guerra. Mas para os comandos ainda por cima... Então não tinham visto isso antes?

− Parece que não te lembras como era aquilo em Mafra. Além da injecção cavalar, que diziam dar para todos os males, não se preocupavam em saber mais nada. Menos, é claro, em ver aqueles que tinham cunhas para ir para os serviços auxiliares.

− É verdade, eu sei bem. Deves lembrar-te que desde o início sabíamos que o nosso curso estava destinado para uma fornada de atiradores. Até pensei que ia gozar com os gajos dos psicotécnicos quando me puseram um papel à frente e me disseram par escolher a especialidade. Pus lá que queria ser atirador mas eles é que se riram de mim. Mas diz lá, então, como é que descobriram isso.

 
− Eu estava na 3ª Companhia de Comandos na Guiné e… (...)

 (Fonte: Excerto de: Página do Facebook do A,. Marques Lopes, 24 de agosto de 2023, 14;00)

(***) Vd. poste de 10 de maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1745: Eu e o meu capitão e amigo Guimarães, morto aos 29 anos, na estrada de Geba para Banjara (A. Marques Lopes, CART 1690)

(...) O capitão Manuel Carlos da Conceição Guimarães era do quadro de Artilharia. Nas circunstâncias do regime, tinha estado como tenente na esquadra da PSP do Calvário, em Lisboa, depois de ter feito parte da Companhia de Polícia Móvel que esteve em Bissau.

Nesses contextos da juventude formou a sua mentalidade. Rigidez ideológica, fidelidade cega aos desígnios dos mandantes da guerra, alheamento total dos problemas, sentimentos e ambições das populações no terreno. Completa incompreensão das razões da guerra, nem desejo algum de as tentar compreender. Muitos houve assim naquela fase (1967). Ao longo do tempo de guerra muitos foram mudando, e penso que ele também teria mudado.

Mas eu fui amigo dele e acompanhei-o desde o princípio, fui o seu braço direito. Tive a incompreensão dos outros alferes, meus amigos de coração actualmente e eu deles (há 38 anos que nos encontramos - os sobreviventes - três vezes por ano, pelo menos, no Restaurante Colina, em Lisboa). Eles compreendem, agora, as razões dessa minha actuação, pala formação que eu tinha, pelos objectivos que queria conseguir.

O Guimarães foi promovido a capitão e mobilizado para a Guiné. Conhecêmo-lo em 4 de Dezembro de 1966, no RAL1, aquando da formação da companhia (CART 1690) e durante a instrução da especialidae no GACA2, em Torres Novas (de 6 de Dezembro de 1966 a 23 de Fevereiro de 1967).

Lembro-me bem que partíamos os dois, aos fins-de-semana, no Alfa Romeo Sprint Special dele até Lisboa. Loucuras, sem auto-estrada! Grandes noites na Cave, D. Quixote, Comodoro... A experiência dele na polícia abria todas as portas (as raparigas abraçavam efusivamente o Carlinhos).

Nas vésperas de embarcarmos no Ana Mafalda (...), fomos todos ao Comodoro. Um homem, já velho, que conhecíamos por ser frequentador, administrador de um banco qualquer (não me lembro), e que costumava jogar ao par ou ímpar com as raparigas (mostrava uma nota de mil e perguntava qual era o número - par ou ímpar? -, se uma dela adivinhava entregava-lhe a nota... e muitos jogos fazia), disse-nos assim: - Vocês vão para a guerra, para se portarem bem peguem lá - deu-nos várias notas de mil - e vão com estas cinco. - E fomos (alferes e capitão) e foi uma noitada. Era assim, a guerra estava paga. 

Era bom homem, o Cap Guimarães. Filho de um Sargento-Ajudante, sobrinho da Beatriz Costa (estive com ele, depois, e chorou a sua morte), morreu aos 29 anos na estrada de Geba para Banjara, a 21 de Agosto de 1967 (...). Lamentou-se-me o pai, que me visitou, estava eu ferido no hospital, que o filho (solteiro) era o sustento de duas irmãs de 14 anos que andavam a estudar, e que a vida dele estava complicada. (...)

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P25996: O melhor de ... A. Marques Lopes (1944-2024) (11): Quando os meus camaradas (o António Moreira e o Domingos Maçarico...) desconfiaram de mim... ("Cagra Cega", 2015, pp. 471-473)


Dois antigos alferes da CART 1690: Alfredo Reis (à esquerda) e Domingos Maçariço (à direita). 24 de julho de 2010: recordando, 42 anos depois, o ataque ao destacamento de
Banjara. 

Foto (e legenda): © Alfredo Reis (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira , à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita.  Todos eles feridos em combate, com exceção do Moreira. No livro "Cabra cega" são respetivamente Zé Pedro, Aprígio, Castro e Aiveca.

Com os  quatro agora juntos na Tabanca Grande, a CART 1690 fez o pleno em matéria de alferes milicianos... Profissionalmente,  o Moreira é advogado; o Maçarico engenheiro agrónomo; e o Reis, veterinário.  Presumo que estejam todos reformados. E, de boa saúde, espero eu. 

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direit
os reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mais um excerto das melhores partes do livro de memórias A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (*).

Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 16 de outubro de 2022.

Aqui a narrativa já feita na 1ª pessoa do singular, quando o autor passou a assumir que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego". No entanto, os colegas alferes ainda são identificados ppr nomes fictícios (pp. 471/473).


Quando os meus camaradas desconfiaram de mim...

por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)



Nesse dia fiz antes o que fazia habitualmente quando ia ao tratamento 
[no Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa]. Procurei o enfermeiro-chefe para lhe perguntar se tinha vindo alguém evacuado da Guiné. Ia sempre ver os que tinham chegado. Ele disse-me que sim e onde estavam. Vi vários mas houve um que me fez saltar os olhos. Numa cama estava o Zé Pedro [Domingos Maçarico]

 
− Também tu!? Como é que foi isso?

 Fui ao ar com uma mina mas não tive a sorte que tu tiveste. Estou todo partido. É... Cheguei ontem e vão-me operar não sei se já hoje ou amanhã.

Disse isto com semblante carregado e apreensivo.  Depreendi que aquilo era mesmo mau.

− E o resto do pessoal? Como é que está?
 
Ele ficou pior.

− O Aprígio [Alfredo Reis] e o Castro [António Moreira] estão bem.

Fez uma pausa e acrescentou com voz entrecortada:

 
− Mas o gajo que te foi substituir morreu.

− Como é que foi?

Pela voz pareceu estar recomposto.

− Foi numa operação àquele sítio onde passaste a noite 
[, em Sinchã Jobel ] . Com ele morreram lá o Carmo e o Cosme. Antes tinha havido lá outras operações. Numa delas ficou o Fragata.

 − E não deram cabo da base deles?

− Não. Tentámos sempre por onde tu foste mas só levámos porrada. Eu também ia para lá quando fui ferido. Como vês nem consegui lá chegar. Quero contar-te mais. Vão-me mexer e eu sei lá o que vai acontecer  
−   parecia mesmo receoso.  Houve um ataque ao destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] quando ele, por acaso, não estava lá. Tinha ido a uma consulta ao médico do batalhão. Entraram lá e levaram metade da malta. A outra metade conseguiu fugir para a mata. Mataram o Aguiar porque tentou resistir.

− O Lucas, o Carmo, o Cosme e o Gabriel eram do meu grupo de combate. Coitados  
− fiquei pesaroso.

 
− E a mina foi sorte para ti por outro motivo. Se lá tivesses continuado tinhas lerpado de certeza porque andarias metido naquilo, nas operações àquela base.

 
− Pelo que me contas estou a ver que sim. Não fui eu mas foi o meu substituto, coitado.

Acreditei, porque sabia que andaria sempre na berlinda, tal como andara.

 
− E sabes que mais? Os gajos que entraram no destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] foram os gajos da base que tu e o Lindolfo [cap Maia, da CART 1689] destruíram.

Fez uma pausa e acrescentou:

 
− Eles revivem depois de mortos e estão por todo o lado.

Lembrei-me da conversa que tivera com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] , aquela em que ele acabou por me chamar comunista.

− Acabaste por chegar a essa conclusão, estou a ver. Eu bem disse que eles a iam reconstruir mas não me acreditaram. Tu sabes da conversa que eu tive com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] . E tu também tiveste dúvidas.

− É verdade, mas agora já não tenho. Já vi muito para não as ter.

Parou um bocado, parecendo cansado.

 Agora outra coisa – continuou. 
− Sabes que eu e o Castro [António Moreira] chegámos a pensar que tu estavas feito com os do PAIGC?

−  O quê?!
 espantei-me em voz alta.  − Donde é que vem essa ideia, pá?

−  Tu estiveste aquela noite sozinho na zona deles e apareceste calmamente no dia seguinte, primeiro. Depois, estiveste ao pé da mina e afastaste-te antes de ela rebentar. Situações que nos deixaram intrigados.

−  Ó pá, foram casos de sorte e mais nada.

− Mas, sabes?, aquela conversa que tiveste com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] no destacamento do Castro [alf António Moreira] e que o Mendonça me contou, levou-nos também a pensar isso.

Fiquei zangado e mostrei-o na cara mas moderei-me em atenção ao estado do amigo.

−Não sei como é que lhes pôde passar pela cabeça que eu ia provocar a morte de camaradas e amigos meus. Eu, que podia ter morrido naquela mina ou nas operações em que participei.

Houve um enfermeiro que se chegou perto deles.

- O meu alferes, desculpe, mas não pode estar aqui mais tempo a falar. A situação do ferido é tão crítica que não permite isso. Tem de ir fazer uma operação complicada e isto pode estar a perturbá-lo para isso.

 
− Claro, percebo. Vou-me já embora.

 
− Espera só um momento  − disse o Zé Pedro [alf Domingos Maçarico]. 

 − Estava-me a esquecer de te dizer que o Fragata, o do teu grupo de combate, afinal não morreu. Isto andou tudo encoberto, tu sabes, há coisas que são segredo e não são para divulgar. Os manda-chuvas é que não querem divulgar. Mas correu por lá. Ele foi ferido e os do PAIGC apanharam-no e levaram-no para um hospital deles no Senegal [em Ziguinchor] . E, segundo constou também, a Cruz Vermelha Internacional conseguiu repatriá-lo e ele está agora no Anexo de Campolide.

Pensei logo que tinha de ir ter com o Fragata para ouvir o que ele tinha para contar. Desejei que tudo corresse bem ao Zé Pedro [alf Domingos Maçarico] e despedi-me dele.

(Seleção, revisão/fixação de texto, parênteses retos, título: LG)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25978: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (9): a última foto do cap art Manuel Guimarães, cmdt da CART 1690, tirada instantes antes de morrer, na estrada Geba-Banjara, vítima de uma mina A/C, em 21 de agoto de 1967


Guiné > Região de Bafatá > Estrada Geba-Banjara > 21 de agosto de 1967 > A última foto do capitão: "A mina rebentou. O capitão e o Domingos Gomes, à esquerda, morreram.  Eu (de faca) e o Laminé Turé (à direita) ficámos feridos". Foto de um furriel da companhia.  



Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > O cap art Manuel Carlos da Conceição Guimarães, primeiro comandante da CART 1690 (Geba, 1967), então com 29 anos. Morreu, em combate, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C. Foi um dos 26 capitães que morreram no TO da Guiné. (55,3% do total dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar. mortos nma guerra do Ultramar.) (*)

Entrou para a Escola do Exército (hoje Academia Militar), ni último trimestre  de 1954. Esteve na Índia como alferes e depois tenente, entre maio de 1959 e março de 1961. (Esteve, pois, também como prisioneiro de guerra na Índia). Tinha chegado ao CTIG em 15 de abril de 1967. Era a sua primeira comissão em África, como capitão.

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  A foto de cima é a última do cap art Manuel Guimarães (1937-1967), tirada uns minutos ou uns instantes antes  de morrer, em 21 de agosto de 1967. O nosso saudoso A. Marques Lopes fez dele (o "capitão Mendonça")  uma das principais personagens do seu livro de memória, "Cabra Cega" (2015).  

Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o A. Marques Lopes nos deixpou escrito, nomeadamente no seu livro de memórias "Cabra Cega" (**).

Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 11 de maio de 2023, às 23: 45.
 
Aqui a narrativa é já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes.

No livro, na edição de 2015,  o alf mil Domingos Maçarico é o Zé Pedro. O alf mil A. Marques Lopes é o Aiveca. O cap Manuel Guimarães é o Mendonça. O seu guarda-costas, o Calmeiro, é o Domingos Gomes. O guarda-costa do Lopes, o Laminé Turé, é o Carmelita. 

O comandante do batalhão a quem o cap art Manuel Guimarães "queria oferecer" a mina A/C, levantada por ele, não vem identificado. A CART 1690 pertencia ao BART 1914 (que teve  três comandantes: Ten cor art Artur Relva de Lima; ten cor inf Hélio Augusto Esteves Felgas: e ten cor cav António Maria Rebelo. Mas no setor de Gaba, de abril de 1967 a novembro de 1968,  ficou sucessivamente integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1877 e depois do BCav 1905 e ainda do BCaç 2856.
 
Mas em agosto de 1967 a CART 1690 dependia do BCAÇ 1877, sediado em Bafatá, e tendo como comandante o ten cor inf Fernando Godofredo da Costa Nogueira de Freitas. O Comando de Agrupamentpo era o nº 1980  (Bafatá, fev67/nov68) (cmdts: cor inf José Frederico Porto Assa Castel-Branco; e ten  inf Hélio Augusto Esteves Felgas).
 
O A. Marques Lopes, na sua página do Facebook, transcreveu este episódio, por duas vezes, em 15 de maio de 2019, e uns meses antes de morrer (de cancro no estômago), em 21 de agosto de 2023 (56 anos depois!).

O excerto que transcrevemos corresponde, grosso modo, às pp.  434-439 (com algumas alterações e pequenos cortes: em 2015, no livro, as personagens sáo identificadas por nomes fictícios; nos  excertos publicados no Facebook, a narrativa é feita na primeira pessoa do singular).


A Mina , 21 de Agosto de 1967

por A. Marques Lopes (1944-2024)

 
(... ) O  [Domingos] Maçarico saiu com a coluna no dia seguinte, logo de manhã muito cedo. Eu e o Guimarães ficámos no bar-barraco a tomar o pequeno-almoço juntamente com dois furriéis. O do capitão era a habitual fresquíssima garrafa de vinho verde e uns cachorros. Maravilha, dizia ele, o frigorífico a petróleo até estava a funcionar. E ele, assim fresquinho, bebia-o mesmo bem. Eu estava agarrado a uma sandes de queijo que acompanhava com uns goles de café.

Eis se não quando chega um Unimog e vimos o Maçarico saltar dele todo agitado:

− Meu capitão, encontrámos uma mina  comunicou, ainda afogueado.

 Deflagrou? 
− perguntou o capitão.

− Não. Os picadores detctaram-na e agora está tudo lá parado.

 
− Então vou lá ver isso aqui com o Lopes. Vamos.

Nem me perguntou se queria ir ou não. Chamou o seu guarda-costas. Fiz o mesmo. Fomos no mesmo Unimog até para lá um bocado depois de Sare Banda, a tabanca dos milícias. Quando chegámos vimos a coluna parada. Os furriéis, alguns soldados e os milícias picadores estavam à volta da mina. Era outra TMD. O capitão ficou excitado, parecendo uma criança a quem deram um brinquedo desejado. Deu ordem para se afastarem todos para longe.

− Só eu e o alferes Lopes mais os guarda-costas é que ficamos aqui. Vamos ver isto.

Ajoelhámo-nos os quatro à volta da anticarro.

− Lopes, esta vamos levantar e vamos oferecê-la ao nosso comandante de batalhão. Além disso isto dá dinheiro.

Estava todo entusiasmado mas eu não sabia quanto é que dava e não estava nada interessado em ganhar dinheiro dessa maneira. Como estava lixado com os mandões do batalhão e do Agrupamento, porque me estavam sempre a mandar para a boca do lobo, também não estava nada virado para lhes oferecer prendas.
Mas, enfim, a prenda era dele, que se lixasse. Peguei na minha faca de mato e comecei a escavar à volta da mina. Era uma TMD, soviética.

Chegou-se, entretanto, um furriel ao pé de nós e tirou uma fotografia. O capitão enxotou-o:

 Já disse para saírem daqui!

Continuei a escavar. Quando já não havia terra nenhuma à volta da mina, achei por bem dizer:

− Não vejo nada aqui à volta, meu capitão. Mas eu não sou especialista nestas coisas e parece-me que é melhor rebentá-la com uma granada ou puxá-la de longe com uma corda. É melhor não arriscar.

−  Nada disso, pá. Vai ser um ronco e quero oferecê-la ao comandante de batalhão. Vamos levantar isto.

Estava obcecado pela prenda ao comandante e devia estar arrependido de não ter feito isso com a outra. Aquilo podia estar mesmo armadilhado, até me tinham dito que, muitas vezes, só quem montou a armadilha é que sabe como está. E eu, ainda por cima, não percebia nada daquilo. Tinha de o avisar novamente.

− Ó meu capitão, não faça isso. É um grande risco que é melhor não correr. Atamos uma corda e puxamos de longe com um Unimog.

 Deixe-se disso. Vamos levantar.

− Então, não sou eu que pego nisso  − disse decididamente, levantando-me.

Lamine Turé, o meu guarda-costas, já se tinha levantado também, estava agora ao pé de mim e olhava-me com aprovação.

Ficou o capitão e disse ao Domingos Gomes, guineense de Bissau e seu guarda-costas, para pegar na mina. Foi quando eu e o Lamine recuámos uns passos.

Foi outra dimensão. O trovão e a faísca rápidos que me lançaram no vazio, sem passado nem presente, nem nada pela frente. Não senti dor ou sofrimento, nem tive qualquer pensamento. Era a forma rápida de sair da vida para o nada.

Não soube nem deixei de saber o que se passara, não soube se morrera ou se ficara ferido, não soube se fui para o inferno ou para o céu, não vi o velho das barbas nem o cornudo de rabo comprido. Houve momentos em que não existi. 

Nem soube quanto tempo tinha sido quando deu por mim deitado no chão da mata, fora da picada.

Levantei-me e vi ao pé o capitão também deitado. Não se mexia, a farda tinha desaparecido quase toda, a perna direita estava pegada ao joelho por uma tira de pele, os testículos estavam desfeitos. Mais à frente estava o Laminé, que se tinha levantado e parecia não ter nada. Perguntei-lhe como estava. Disse-me que só tinha uns estilhaçositos. Fui até ao buracão da mina, olhei para o fundo e viu lá bocados de uma granada de morteiro. Tinha sido assim, um rebentamento por simpatia. Vários elementos da coluna tinham-se aproximado. O Maçarico olhou para ele estarrecido.

− Estás a deitar sangue dos ouvidos.

Ouvi-o mal mas ainda percebi e levei lá as mãos. Vieram cheias de sangue. Vi também que o poncho que envergara tinha desaparecido, só tinha um bocado à volta do pescoço.
 
− E o guarda-costas do capitão? − perguntei-lhe.

− Já o procurei mas não o encontro 
− respondeu o Maçarico

Decidimos colocar o capitão em cima dum poncho e levá-lo para a sede do batalhão, onde havia um médico. Na nossa companhia não havia. Ainda pensámos que podia estar vivo. Por isso vimos que não havia tem po de procurar o homem que levantara a mina, o qual, concluímos, devia ter os bocados espalhados no meio da mata. Depois se veria.

Ouvia-me ao longe, mas sei que fui todo o caminho a chamá-los turras filhos da puta, cabrões, hei-de fodê-los… e montes de impropérios, misturados com várias lágrimas.

O médico do batalhão disse que o capitão estava morto. Viu o meu guarda-costas e confirmou que tinha dois pequenos estilhaços, retirou-os e tratou dele. Com dificuldade, mas ouvi-o a dizer-me que tinha dois estilhaços no peito, tirou-mos e olhou-me:

Estes não têm importância. Mas olhe que você teve uma sorte do caraças. Há um que lhe passou na virilha direita, deixou aí um traço mas não atingiu nada de importante. 

Sorriu-se mas eu não achei piada nenhuma.

− De qualquer modo tem de ser evacuado porque tem os dois ouvidos furados.

E fui. Veio um helicóptero e levou-me para o HM241, em Bissau. Fiquei lá uma semana, tratado a mais de 15 comprimidos por dia. Hão-de ter-me feito bem a alguma coisa, não duvido, mas ao fim de alguns dias o meu estômago nem a água aguentava. 

No fim dessa semana fui evacuado para o HMP, para Lisboa. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor:

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25800: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (7): "ocupação do território", mandam eles...


Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira , à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita.  Todos eles feridos em combate, com exceção do Moreira. No livro, são respetivamente Zé Pedro, Aprígio, Castro e Aiveca.

Com os  quatro agora juntos na Tabanca Grande, a CART 1690 fez o pleno em matéria de alferes milicianos... Profissionalmente,  o Moreira é advogado; o Maçarico engenheiro agrónomo; e o Reis, veterinário.  Presumo que estejam todos reformados. E, de boa saúde, espero eu. 

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direit
os reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1  Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o  A. Marques Lopes escreveu, nomeadaente no seu livro de memórias "Cabra Cega" (*).

Seguimos, respeitando-a,  a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 14 de outubro de 2022, às 16: 20: aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes  

O Lopes e os outros alferes (nesta data, ainda mantinha 
os nomes fictícios dos seus 3 camaradas; Castro, Aprígio e Zé Pedro) da companhia, a CART 1690 (que ele nunca identifica), foram  colocados no subsetor de Geba, em 1967. E andam há já meses no mato, O diálogo que se segue é a uma conversa, que tende a azedar, entre eles e o capitão, Mendonça (na realidade, o cap inf Manuel Guimarães. que irá morrer, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C, que também irá ferir gravcemente o A. Marques Lopes).

Este excerto correponde às pp. 414/421 do livro "Cabra Cega".


Ocupação do território, mandam eles...

por A. Marques Lopes (1944-2024)


(...) Depois desta operação, comecei a pensar se não era melhor propor ao Mendonça que me mandasse para um destacamento, um qualquer, em substituição do Castro ou do Aprígio. 

Tinha chegado à Guiné no fim de Abril, estava a meio de Julho, e já tinha gramado oito operações. Não era propriamente cansaço, descansara sempre entre elas. O que estava era farto, era isso. Sempre a ver tabancas destruídas ou a ser destruídas, a ver matar e a saber que matavam. Até eu tinha matado também. Outra como a Jigajoga, então, nem pensar. Não queria voltar a isso.

 
– Estou farto disto. Vou pedir ao Mendonça para me mandar para um destacamento –  abri-me com o Zé Pedro.

 Estás parvo, pá.

– Parvo, porquê?

– Os gajos estão lá isolados, cercados de arame farpado. Têm de amochar sem poder sair. Vá lá que o Aprígio tem alguma sorte porque tem uma tabanca ao pé e pode ver algumas bajudas.

– Quero lá saber. O isolamento não me perturba nada. Estava mais sossegado, podia ler uns livrinhos e escrever. Não me importava nada. Aliás, é o que mais desejo agora.

- Ias estar sossegado? Não penses nisso. Depois destas movimentações todas em que estão a ser apertados não há-de tardar muito que os comecem a atacar.

– Isso também não me importa. Prefiro ser atacado estando dentro de um abrigo e com arame farpado entre mim e eles. É melhor do que levar com morteiradas na cabeça a céu aberto e sem saber, a maior parte das vezes, se os gajos estão ou não já em cima de mim.

– Não sei se é melhor: Poder sair quando se quiser, andar por aqui à volta, ir até ao batalhão e ao Agrupamento, e mesmo andar no meio do mato, dá um sentimento de liberdade que não se tem quando amarrado sempre num só local.

Nesse mês de Julho o Mendonça ainda me mandou para mais três operações.
A primeira foi lixada, só porque o meu grupo de combate é que teve de fazer toda a picagem do itinerário em direcção ao destacamento do Castro. Os milícias tinham sido avisados, na véspera, para fazerem a picagem duas horas antes da coluna móvel iniciar a marcha. Mas a tabanca deles fora atacada nessa noite, sendo quase totalmente destruída, e eles não picaram. Foram várias horas a passo de caracol sob grandes chuvadas, com as ATM e GMC atrás em para e arranca. O Mendonça ainda tentara via PRC10 dizer ao Castro para ele fazer uma picagem a partir do destacamento dele até se encontrarem. Mas as comunicações não funcionaram. Foi estafante.

 É uma merda, mas não temos condições  – acabou por dizer-me com ar agastado, depois de chegarem.  – Era para irmos pelo mesmo percurso, aquele em que rebentou a armadilha, mas desta vez você ia mesmo até à base deles. Foram os gajos, de certeza, que atacaram a tabanca. Mas levaria várias horas e teria de regressar à noite

De arma a tiracolo, soergui os braços, cruzei os dedos das mãos e disse interiormente "Ótimo, haja Deus"

–  O meu capitão sabe, claro, das dificuldades da primeira operação do capitão Lindolfo, não é? E não era só um grupo de combate, o meu, era uma companhia reforçada, portanto. A segunda, com mais contingente, o dobro, e com manobra bem planeada, já teve sucesso, mesmo assim com vários feridos. Por isso, meu capitão, não entendo como é que o Agrupamento insiste assim nisto com um grupo tão pequeno. Ainda por cima sem qualquer tipo de apoio. De helicóptero, por exemplo. Estou-me a lembrar dos feridos desta última vez.

–  Ó Lopes, não confunda as coisas. O papel das companhias como a do Lindolfo e do Guilhermino é intervir, por isso lhes chamam de intervenção, isto é, realizar grandes operações em áreas onde as companhias que lá estão não podem fazer, para isso têm os apoios necessários. E essas companhias não o podem fazer porque têm que estar repartidas para a ocupação dessas áreas, como é o nosso caso. Temos uma área que não é pequena, são cerca de mil e seiscentos quilómetros quadrados.

Fiquei espantado com a área da quadrícula, nunca tinha pensado nisso. Veio-me logo à cabeça que aquilo só podia ser de e para gajos com paranóia. Ainda por cima naquela mata. Estava para manifestar o meu espanto mas o Castro, que estava ao pé, antecipou-se. Aproveitara o Mendonça estar com a garrafa de cerveja na boca, desta vez não trouxera whisky.

– Ó meu capitão, ocupar   
 abanou cabeça ceticamente  –   quer-se dizer... Eu ocupo este lugarzito aqui, o que está dentro do arame farpado, a quarenta quilómetros da sede da companhia, o Aprígio ocupa outro lugarzito da mesma maneira e também a quarenta quilómetros. Vocês, quando vêm aqui ou vão ao Aprígio vêm sempre com muitas cautelas e interrogações, pois sabem que podem apanhar com minas e emboscadas. Quer dizer que daqui e do sítio do Aprígio até à sede não se ocupa nada. Que raio de ocupação é esta, meu capitão?

Eu não estava a conhecer o Castro todo prafrentex, todo decidido a cumprir sem dúvidas a sua missão de guerra. Esta não parecia dele. Apesar do isolamento e daquela floresta toda à volta parecia estar a ver melhor. Ou era capaz de ser isso mesmo que o obrigava a ter que ver mais longe, para além da cortina de ideias feitas que lhe ensombrava a cabeça. Mas o Mendonça pareceu não gostar.

 
– Não esteja com essas merdas porque você não percebe nada disto  –  e remexeu na pasta onde levava o mapa.

– Olha mais outro ignorante, afinal não sou só eu 
–  pensei e ri-me. 

O Castro olhou-me a pensar que estava a rir-me dele. Abanei a mão direita em sinal de não enquanto o Mendonça tinha os olhos na pasta.

– Até lhe vou ler isto para você saber o que é ocupação.

O Mendonça tinha já um papel na mão que, pela forma do que tinha escrito, parecia uma mensagem.

 – Assegurar a ocupação territorial do Sector. Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

–  Está a perceber?  
 continuou depois de ler. É assim que fazemos a ocupação, é esta a nossa missão. E não só na zona da sede da companhia mas também aqui onde você está e onde está o Aprígio. Os locais onde estão servem-nos precisamente para apoio na execução dessa missão nas zonas onde estão. Foi, por exemplo, o que eu e o Lopes fizemos outro dia e devíamos fazer hoje.

O Castro ficara embatucado e não disse nada. Eu já tinha bebido três cervejas e estava naquele estado em que me dava vontade de falar. O que o capitão lera era a conversa estereotipada, o ram-ram que vinha em todas as ordens de operação que já lera. Não lhe ia dizer que eram tretas. Era o que achava mas não lhe ia dizer assim senão ele chamava-lhe também de ignorante e continuava com aquele tipo de conversa. Mas tinha que o entalar, tinha de lhe fazer ver que não era parvo.

– Pois é isso, meu capitão, acho que é isso. É a ideia que nos transmitiam lá na metrópole, o Salazar e o Governo, as tais acções de policiamento em que andávamos envolvidos. Apanhar os gajos que pensamos que são turras, dar-lhes umas tareias se for preciso para eles arrepiarem caminho, e até limpar o sebo aos mais renitentes. Também pegar fogo às casas deles, destruir as suas culturas, os tais meios de subsistência. Tudo isso para que os gajos amochem e não ajudem a subversão. Isso acho que podemos fazer. O problema é quando eles estão armados, e até acho que estão bem armados, já pude constatar isso.

O Mendonça estava calado e de olhar draconiano. O Castro estava estupefacto e pensei que devia ser pela crueza da minha descrição. Mas decidi continuar a apertar com o capitão.

– Se calhar é por isso que nunca ouvi falar em acções de policiamento lá em Mafra, só diziam que nos preparavam para a guerra. E, olhe meu capitão, até acho que foi bom porque eu pelo menos já andei metido nela e, naquela vez que sabe, quase me ia lixando. E outra coisa, meu capitão: andar por aí à cata deles, para baixo e para cima, sem conseguir nada porque eles só se mostram quando querem e vêem que nos podem lixar, o que é que adianta? Ou mesmo quando, outro dia, fomos lá acima queimar umas tabancas e destruir instalações deles. Nunca mais lá vamos voltar, se calhar, os gajos vão reconstruir tudo e continuar. Não me parece que é assim que estejamos a ocupar território, nem a restabelecer a autoridade e a ordem, como diz essa mensagem do Agrupamento.

Os olhos do Mendonça chispavam brasa e estava vermelho. Agarrava a garrafa com força parecendo querer parti-la.

 Isso é conversa dos comunistas! Acabou!   disse de forma imperativa.

– Comunistas?! Sei lá o que é isso de comunistas, meu capitão. Estávamos aqui a conversar e eu só estava a dizer o que penso.

Sabia bem de que eram acusados os comunistas, mas estava apenas a dizer o que me parecia que era. O Capitão levantou-se de modo abrupto, quase fazendo cair a garrafa ainda meia de cerveja, e apontou-me o indicador da mão direita.

 
– Daqui para a frente ponha-se a pau comigo porque eu vou estar atento a esse tipo de conversas.

Virou-me as costas e foi para onde estava o meu grupo de combate. O Castro ficara mudo, parecia aturdido. Ouvi o Mendonça dar ordem para subirem para as viaturas e levantei-me.

– Aguenta-te – disse em tom de despedida ao Castro– passa bem que eu tenho de ir andando. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
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